
7 minute read
O Documento

Orelógio despertou mais cedo que o comum naquela manhã. Eu pulei da cama e apressadamente coloquei meu uniforme da escola. A noite tinha passado vagarosamente porque o sono desapareceu em meio aos pensamentos sobre aquilo que aconteceria no dia seguinte. A ansiedade tomou conta, totalmente. Era uma manhã fria, comum em minha cidade. Tomei meu achocolatado com pressa e derramei um pouco em minha camiseta. “Droga! Essas coisas só acontecem quando estou com pressa”, pensei. Limpei rapidamente com um guardanapo que só pareceu piorar a situação; coloquei a mochila nas costas e fui obstinada ao meu destino. Meus pais ainda dormiam. Fechei a porta atrás de mim e passei rapidamente pelo portão. Nada poderia ficar em meu caminho. Algo muito importante iria acontecer em poucos momentos.
Advertisement
Já fazia uma semana que a professora tinha avisado que o Instituto de Identificação da cidade viria à nossa escola para prestar o serviço de fazer a primeira via da Carteira de Identidade dos alunos. Era uma oportunidade que eu não poderia perder, de jeito nenhum. Ela informou sobre a data, o valor do documento e de todos os detalhes.

Finalmente o dia havia chegado e uma fila grande de alunos se formou. Eu estava muito ansiosa, queria que tudo acontecesse rapidamente, mas pela grande quantidade de alunos comecei a perceber que ia demorar. “Deus, me dê paciência”, pensei comigo mesma, um pouco irritada. Eu precisava me acalmar para que minha foto ficasse decente e minha letra legível.
O chá de cadeira foi mais longo do que eu previa. Parece que quanto mais queremos que algo aconteça rápido, mais demora, né? Essa lei de Murphy* me persegue, definitivamente. No primeiro momento eles coletaram as impressões digitais e lembro de ter achado que meu dedo polegar dobrou de tamanho quando a mulher o apertou com força sobre o papel e ainda o girou para os lados. “Que dedão enorme!”, pensei. Ainda um pouco frustrada com a pouca delicadeza da marca do meu polegar, limpei meus dedos com um paninho que tinha cheiro forte de álcool. Logo depois assinei meu nome no lado direito do documento e, aos poucos, eu conseguia vê-lo tomando forma. Esperei mais um pouco. Chamaram outra pessoa. E outra. Então me chamaram para a última parte que fazia meu estômago parecer estar saindo pela boca.
A hora da foto
Sentei na cadeira e ajeitei minha postura. Já tinha até treinado um sorriso bonito no dia anterior em frente ao espelho, mas quando fui colocar em prática tudo que eu

havia ensaiado, o moço que estava atrás da máquina fotográfica falou: “sem sorrir, por favor”. Fiquei sem reação. “Como assim não podia sorrir?”, pensei perdida. “Coloque seu cabelo atrás da orelha”, o moço acrescentou parecendo um gravador quebrado. Eu obedeci, claro. Olhei para a lente um pouco apreensiva e ouvi o clique do botão. “Pronto! Próximo!” disse, pela milésima vez, o moço entediado. “Mas já?”, fiquei perplexa por me dar conta de que não teria outra chance. E agora eu precisaria ter paciência e esperar um bom tempo para saber o desfecho daquele mistério fotográfico. Murphy, por favor, não me persiga mais uma vez com sua lei irritante.
Lembro exatamente do dia em que meu documento ficou pronto. Outra fila de alunos, agora em ordem alfabética, formou-se na secretaria da escola. A letra L parecia nunca chegar. Quando finalmente falaram Letícia, e peguei minha identidade nas mãos, um sentimento de alegria encheu meu coração. Ele estava batendo mais rápido. Parece que havia me tornado, de fato, uma pessoa. Eu possuía um número e uma identificação! Eu estava oficialmente fazendo parte da lista de seres humanos em meu país! No auge dos meus 12 anos, me senti um pouco mais importante naquele momento. A alegria, entretanto, não durou muito tempo. Fui trazida para a realidade tão rápido que senti como se tivesse levado uma rasteira e caído com o rosto no chão. Assim que peguei o documento, um colega da minha sala, que estava atrás de mim, começou a gargalhar: “Nossa, isso aí é um menino ou uma menina?”. E ele olhou para trás para que todos que estivessem na fila ris-

sem de mim também. Minha foto havia virado uma piada. Eu olhei para minha identidade e uma tristeza profunda me acertou. Pensei: Não sei! Só sei que detestei essa foto. Sério, porque tanta feiura num ser humano só? Parecia que meu rosto era de um ser assexuado, estranho, que havia acabado de ser atropelado e passado por uma severa doença quase que mortal. Detestei aquela foto com todo o meu ser. Infelizmente, meus pensamentos negativos sobre mim mesma me assombravam. Eu não gostava nem um pouco da minha aparência. Aquela foto era um reflexo real de como eu me sentia, por dentro e por fora.
Adolescência é uma fase difícil, né? Eu sei bem. Para começar, seu corpo começa a ficar uma coisa esquisita: cresce peito, cresce quadril - especialmente nas meninas, né? E cresce cabelo em lugares que você não tinha antes. Até bigode eu tinha! O nome disso, se você não sabe, é buço. É quando a menina tem muitos pelos ali onde fica o bigode nos meninos (deve ser por isso que meu gentil colega achou que eu poderia ser um menino). Na verdade não é um problema gigantesco porque é bem fácil de tirar, se você quiser, então não era pra ter sido o fim do mundo. Mas eu achava esquisito e tinha certeza de que esse problema era irreversível. E era assim que eu estava reagindo ao meu corpo sendo bombardeado pelos hormônios nessa fase da vida. Eu achava que eu não tinha jeito e nem conserto.
E as espinhas então? No meu rosto elas estavam por toda a parte. Eram tantas que eu não conseguia ver onde estava minha pele. Formava-se uma camada tão grossa que

atravessava minha face de um lado ao outro: na testa, nas bochechas e no queixo. Em todos os locais possíveis, em absolutamente tudo! E eu pensava: tanto lugar para nascer espinhas e elas têm que aparecer bem no meu rosto? Bem onde as pessoas olham a primeira vez que querem falar comigo? Não poderiam nascer nas costas ou no meu pé, por exemplo? Ou em algum lugar que eu pudesse esconder e que as pessoas não percebessem? Mas não, justamente no meu rosto, né? Era muita maldade e sacanagem.
A vergonha tomava conta dos meus pensamentos. Eu achava meu nariz bem grande. Quando eu era pequena meu nariz era pequenininho e bonitinho, mas quando eu olhava atualmente no espelho e via que ele estava umas 300 vezes maior que seu tamanho original, eu não entendia o que estava acontecendo. Eu usava uma pasta branca no meu rosto todos os dias na esperança de que um dia essas espinhas desaparecessem, mas não surtia efeito. Nada parecia funcionar. Acordava com meu travesseiro todo manchado de branco e as espinhas continuavam lá. Eu escutava as pessoas dizerem: “É a fase. Quando você for adulta vai passar”. Eu pensava comigo mesma: Adulta? E faço o que agora com esse rosto desse jeito? Eu preciso melhorar essa minha aparência hoje, o quanto antes possível!
Eu também tinha vergonha do meu corpo. Usava umas camisetas enormes para tapar tudo e mais um pouco. Não gostava da ideia de usar roupas apertadas. O desconforto e a timidez me rodeavam. O cabelo era difícil e indeciso. Ele não sabia se era enrolado ou liso. Era um negócio seco nas pontas e oleoso na raiz. Minhas sobrancelhas cresce-

ram mais do que deveriam. Duas tarântulas pareciam estar grudadas acima dos meus olhos. Resumindo, eu era assim, uma menina adolescente que se achava feia e estranha. O pior é que não era só por fora que eu me achava assim. Eu não gostava de mim mesma. Me olhava no espelho e pensava: eu sou um horror. Não faço nada certo, eu não deveria ter nascido. Nunca vou alcançar nada na vida e definitivamente nunca vou fazer nada de importante. Nunca vou ser feliz. Nunca nenhum menino vai olhar pra mim, nunca vou dividir a vida com alguém. Eu sou mesmo um desastre ambulante por aí, um erro da natureza.






