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Treinando Boxe

Mais um ano escolar estava começando e a sexta série (equivale hoje ao sétimo ano) e seus novos desafios me deixavam empolgada. Sempre estudei em escola pública. Meus pais não tinham condições de pagar uma escola particular, ainda mais com os gastos que eles tinham com meu irmão mais velho por conta dos tratamentos que ele precisava fazer. Eu sonhava em ter aqueles uniformes bonitos que eu via as meninas das escolas privadas usarem. Sabe aquelas saias cinzas plissadas que vinham até o joelho? E as meias brancas compridas e os sapatos pretos brilhando? E a boina na cabeça? Que sonho! Queria ter estudado com apostilas coloridas e poder ter as salas de aula decoradas de acordo com a matéria estudada.
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Entretanto, o problema maior de se estudar em escola pública não era essa questão dos uniformes, dos livros didáticos ou das salas decoradas - no caso aqui, não decoradas, claro. Só quem estudou na rede estadual vai me entender agora. O problema maior eram as alunas mal-encaradas. Muitas vezes eu tinha medo de ir à escola e encontrá-las pelos corredores. Deus me livre e me guarde. Havia sempre um grupo de alunas que queria arrumar confusão. Seus olhares de “vou quebrar a sua cara agora mesmo se você

ficar me encarando” causavam arrepios em mim. Elas queriam que todos soubessem que estavam no controle e que ninguém podia “mexer” com elas. Se você olhasse demais, corria o sério risco de apanhar no final da aula. Para evitar confusão e alguém achar que eu estava encarando, eu andava olhando para o chão quando esse grupo se aproximava. Eu já achava que meu rosto tinha sérios problemas de proporção - nariz 300 X o tamanho original - e excesso de espinhas, lembra? Imagina andar com um olho roxo por aí? Não, obrigada.
Sempre se escutava um burburinho na hora do recreio: hoje vai ter briga no final da aula. Fulano de Tal vai brigar com o Ciclano! E toda a escola ficava alvoroçada esperando o sinal bater e os alunos ficavam cochichando pelos corredores. Eu morria de medo que um dia isso acontecesse comigo. Quantas vezes houve briga no final da aula e eu olhava de longe as meninas se batendo. Perdi as contas de quantas eu presenciei. Um círculo enorme de alunos se formava e elas ficavam brigando até alguém aparecer e separar. O motivo pelo qual elas iniciavam o combate era sempre incerto. Eu acho que isso não importava realmente porque elas só queriam se bater. Às vezes era bem feio e a situação ficava complicada. Eu ia embora correndo. No dia seguinte a conversa era sobre quem tinha apanhado mais e quem tinha ganhado a briga.
Um belo dia eu estava saindo da escola logo depois de ter ouvido o sinal bater. Eu caminhava com alguns amigos em direção ao ponto de ônibus para voltar para casa. A gente ria alto e ficava falando um monte de bobeira, como

todo adolescente faz. Chegando perto do ponto de ônibus nosso grupo se separou porque uns iam para uma direção e outros para o outro lado da cidade. Eu fiquei de um lado da rua e meu amigo ficou do outro lado, cada um em seu ponto de ônibus, mas a gente conseguia ficar conversando mesmo estando distantes, a gente só precisava falar mais alto. Sem problemas então.
Enquanto eu conversava com meu amigo do outro lado da rua e ria das piadas que ele contava, um grupo de meninas mal encaradas da escola passou na frente dele. Eu lembro delas caminhando “em bando”, todas com a expressão facial de que queriam arranjar confusão. Mas como eu não estava falando com elas eu nem dei muita atenção. Algum tempo depois o ônibus do meu amigo chegou e ele foi embora. Eu fiquei com mais duas amigas esperando o nosso. Não sei dizer exatamente de onde elas vieram, mas, de repente, o mesmo grupo “em bando” se aproximou de mim. Parece que elas tinham ressurgido das profundezas do inferno e estavam bem ali na minha frente. Naquele momento eu congelei de pavor. Eu também lembro desse dia como se fosse hoje. A “líder” se aproximou e me fez uma pergunta. Duas meninas ficaram atrás dela com os braços cruzados olhando para mim como se fossem me estraçalhar ali mesmo. Dois meninos estavam mais atrás também certificando de que ninguém poderia revidar. Pareciam guarda-costas prontos para atacar. Minhas amigas se afastaram e eu fiquei sozinha esperando o que ia acontecer.

“Por que você ficou ‘mexendo’ comigo quando eu passei?”, foi a pergunta que a “líder” fez. Fiquei confusa. Não estava entendendo nada. Tentei rapidamente responder: mas eu estava conversando com meu amigo do outro lado da rua e não “mexendo” com você. Não deu tempo de falar nada. Não pude nem me explicar. De repente eu vi uma cena de um filme de boxe se formando bem ali na minha frente. Eu estava dentro do ringue sem querer estar. Eu havia sido jogada lá. A multidão nas arquibancadas torcia para a vencedora invicta que, no caso, não era eu. De um lado ela: Fulana de Tal, 50 quilos de pura raiva esmagadora; 30 vitórias consecutivas. Do outro lado eu: Letícia, 48 quilos de puro pavor e novata sem jamais ter lutado (bem, se contarem que eu enfiei um lápis na cabeça do Rodrigo talvez não fosse exatamente minha primeira vez). Ninguém estava torcendo por mim. Só lembro que ela fechou o punho e deu um soco no meu rosto. Bem no meu olho esquerdo.
Em minha mente as coisas ficaram em câmera lenta e giravam sem parar. Eu lembro do punho fechado vindo em minha direção e eu pensando: “Eu não acredito que vou levar um soco agora!” Não lembro exatamente de sentir dor. Lembro da confusão mental em que fiquei. Depois de desferir esse direto cruzado em meu rosto, foi como se fosse possível ouvir o sino tocando anunciando o final da luta. Eu havia sido nocauteada no primeiro round sem chance nenhuma de me recompor. Fim do combate.
Assim, como quem não quer nada, a menina mal encarada se achou a pessoa mais poderosa do mundo e logo depois disso deu um beijo gigantesco em um dos meninos
