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Cuidado Comigo

Durante a infância tive que conviver com dois meninos que azucrinavam minha vida. Eram os meus irmãos. Não foi fácil sobreviver, apesar de conseguir me defender facilmente. Eu era a única menina na casa, e gostava dessa parte. Eu não tinha que emprestar minhas roupas para ninguém e nem dividir meu quarto. Minha mãe dizia que lá em casa os meninos eram tranquilos, enquanto eu era a que dava trabalho. Eu era ligada nos 220 volts e equivalia a umas três crianças juntas, fervendo a casa. Sempre fui muito moleca e subia nas árvores, jogava futebol e soltava pipa. Amava jogar futebol. Brincava de amarelinha e pulava elástico. Andava descalça pela rua e perdi as contas de quantos pregos enfiei no pé e de quantas injeções antitetânicas tive que tomar.
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Tenho que confessar que não fui uma criança fácil e tranquila. Fui bem difícil, na realidade. Eu era muito, mas muito brava e nervosa. Não era uma criança meiga e bonitinha, sabe? Bem pelo contrário. Meus primos tinham medo de mim. Eu brigava com todos eles e batia sem ter dó. Quando eu chegava, eles saíam correndo! A gente gostava de brincar de escolinha e minha prima mais velha era sempre a professora. Meus outros primos eram os alunos que

prestavam atenção à aula. Eu era a aluna que não obedecia ao que a professora falava e que incomodava os outros ao ponto de ter que sair da brincadeira. O meu plano era sempre incomodar alguém. Ninguém mexia comigo. Minha memória é um pouco ruim, mas alguns acontecimentos importantes da minha infância eu lembro bem. Me recordo desse dia fatídico: é a primeira lembrança que tenho e ela é um tanto quanto trágica.
Não se assuste.
Minha escola primária chamava-se Criança Feliz e eu lembro perfeitamente do desenho de um cogumelo colorido sorrindo em minha camiseta do uniforme. A calça era verde e eu amava aquela cor bonita e alegre. Quando vestia os dois juntos eu me sentia realmente feliz. O nome da escola combinava com aquela roupa. Eu gostava muito de ir lá e brincar com minhas amigas.
Lembrem-se, eu era uma criança brava. Eu deveria ter uns 6 anos e tenho em minha memória esse menino, Rodrigo, me irritando na escola. Ele me infernizava o tempo todo, me deixando com muita raiva. Ele não tinha noção do perigo que estava correndo! Eu lembro de tentar me controlar, mas lá vinha o Rodrigo me tirando do sério, de novo. Era toda hora: no recreio, na sala de aula, na hora de tomar água, na fila. Minha cabeça parece que ia explodir a qualquer momento. Até que um dia eu não aguentei mais e peguei um lápis que estava em cima da minha mesa

e enfiei na cabeça do Rodrigo! Sério mesmo, eu fiz isso! Começou a sair muito sangue. Não foi tão profundo, o lápis logo caiu no chão, mas foi o suficiente para causar estrago. Eu fiquei apavorada e ele começou a chorar. Minhas amiguinhas ficaram muito assustadas e me olhavam com uma expressão de pavor. Foi o maior rebuliço na escola. Lembro até hoje da professora lavando a cabeça dele em uma bacia e o sangue escorrendo sem parar. Tentei me acalmar e deixar a situação melhorar, mas eu sabia que estava em sérios apuros.
O Rodrigo, depois daquele dia inesquecível, nunca mais me incomodou, é óbvio. Consegui deixar bem claro que ele deveria manter uma distância segura da minha pessoa! A escola comunicou minha mãe sobre o que tinha acontecido e ela ficou furiosa por ter que comparecer pessoalmente. Precisei ir para casa mais cedo naquele dia. Um medo pavoroso descia pelas minhas pernas e as faziam tremer sem parar. O trajeto até à minha casa foi longo e silencioso.
Infelizmente eu e minha mãe não tínhamos um relacionamento bom. Eu sei que também não era uma criança tranquila, isso acabou de ficar claro. Às vezes eu queria um abraço e ela me empurrava para longe. Queria poder ter o chamego dela, mas isso quase não acontecia. O que eu normalmente recebia eram palavras duras e frases de que eu não era uma boa menina. Me sentia triste. Ela queria que eu fosse para um internato de freiras e eu tinha muito medo de ficar sozinha. Eu me esforçava para agradá-la, mas parece que não funcionava. Eu limpava a casa e dei-

xava tudo organizado. Mas se uma coisa estivesse fora do lugar, para ela, estava tudo errado e mal feito. Fui ficando ressentida e amargurada. Toda minha infância ouvi palavras que não me fizeram crescer, pelo contrário, me fizeram sentir sozinha e sem valor, e eu achava que minha mãe não me amava. As palavras que eu escutava doíam lá dentro da minha alma e ao mesmo tempo me enchiam de raiva. Minha casa não era um lugar de muita paz.
Talvez por ser criança eu não tivesse uma boa compreensão do que tinha acontecido com minha família um tempo atrás. Eu estava sofrendo, mas eu não entendia o que meus pais estavam passando. Eles estavam em uma fase muito difícil. Minha mãe teve complicações no parto do meu irmão mais velho, Ricardo, e os dois quase morreram - nessa época minha mãe tinha 31 anos de idade e há 1 mês tinha acabado de perder seu pai em um acidente de carro (ele tinha 53 anos). Tudo estava indo bem na gestação, mas o dia do nascimento foi complicado. Ocorreu muita negligência médica e meu irmão teve falta de oxigênio no cérebro, nascendo praticamente sem vida. Como consequência disso, ele sofreu paralisia cerebral e meus pais tiveram que se adaptar à realidade de ter um filho com deficiência. Eu sei que meu pai ficou muito abalado com essa situação e minha mãe também. Isso deve ter desestruturado o casamento deles e minha família estava ainda se adaptando a tudo isso. Meu irmão, para mim, era meu irmão, sabe? Não importava se ele não andava ou se falava com dificuldade. Eu o amava e sei que meus pais também. Mas eu também

sei que deveria ser difícil, porque todo o tratamento necessário exigia muito deles.
Meu pai até tentava me dar um pouco de atenção. Apesar de trabalhar bastante ele achava um tempo para mim. Me levava a piscina do clube e, às vezes, ao cinema. O primeiro filme que assisti na tela grande foi Os Trapalhões e a gente deu muita risada juntos naquele dia. Ele estudava comigo e me ajudava um pouco nos trabalhos da escola. Me chamava de “neguinha do pai”. Apesar de ser firme comigo e de também me corrigir, eu sentia muito amor dele por mim.
Meu pai vem de uma família muito carente e sofrida. Não consigo nem imaginar as dificuldades que ele passou. Ele veio do Nordeste com 17 anos para morar em Curitiba, para tentar mudar aquela realidade tão difícil. Quando era pequeno ele precisava vender cocada na feira para ajudar os pais a sustentar os 7 irmãos que ele tinha. Você consegue imaginar ter 7 irmãos? Eu quase morria de ter que aguentar os dois que eu tinha! Então, eu acho que meu pai tinha uma vida bem difícil, mas apesar disso eu via nele um amor carinhoso por mim e por meus irmãos. Apesar de tudo que ele passou, eu me sentia amada por ele.
E, para finalizar, tem o meu irmão mais novo, Marcelo. Eu lembro de sugerir esse nome para minha mãe e ela achar bonito. Eu também achava. O Marcelo veio de surpresa, minha mãe já tinha 43 anos quando descobriu que estava grávida. Eu lembro da cena como se fosse hoje.

Era bem cedo de manhã - bom, na minha cabeça era - porque eu tinha acabado de acordar. E eu vi minha mãe e meu irmão mais velho abraçados lá no quintal, chorando. Fiquei confusa e receosa. “O que está acontecendo?”, pensei. Fui chegando perto deles. E mais perto. ”Por que você está chorando, mãe?”, perguntei. A resposta demorou porque eles não conseguiam falar e só choravam. Mas meu irmão estava feliz e minha mãe parecia perdida e triste. O motivo do choro aparentava ser diferente. “Mãe? O que foi?”, perguntei de novo. “Eu estou grávida”, ela respondeu. Fiquei sem reação, sem saber direito o que estava acontecendo. Na verdade, meu irmão estava feliz e chorando de alegria. Minha mãe estava com medo e chorando de desespero. O que eu lembro é que depois de passado o susto, minha mãe ficou feliz com a chegada do meu irmão, claro. Porque no começo deve ser um susto, não é mesmo? Afinal, ela tinha 43 anos e os riscos seriam maiores.
Lembro de ter ido com ela fazer uma ecografia para descobrir se o bebê era menino ou menina. Eu não queria uma irmã e não queria dividir a atenção dos meus pais com outra menina. Senti um alívio enorme quando a médica disse que era um menino. Eu ia continuar sendo a única filha e não ia precisar dividir o meu quarto e nem as minhas roupas - que já não eram muitas. Eu ainda seria a única princesa da casa.
Eu não recordo de ter visto meu irmão recém-nascido no hospital. Lembro de estar brincando na rua e de meu pai descer do ônibus vindo em minha direção. Ele estava muito feliz. “Nasceu!”, ele disse, com um sorriso bem grande que

eu não lembrava de ter visto um assim tão intenso. “Deu tudo certo!”, ele falou aliviado e continuou contando para mim e para a vizinha que o Marcelo e minha mãe estavam muito bem.
Lembro de ver o meu irmão pela primeira vez quando meu pai chegou de fusca lá em casa. Eu estava ansiosa esperando por ele e eu e minha prima fomos correndo ao encontro dele. Ele era tão pequeno que eu achava que ia quebrar. Me deu um misto de alegria e tristeza ao mesmo tempo quando o vi deitado no berço no quarto da minha mãe e lembro de ter pensado: será que esse menino vai roubar minha mãe de mim? Já não sei se eu quero ele mais aqui em casa não, viu? Será que dá pra devolvê-lo para o hospital?


