4 gnarus5 romanizacao

Page 1

G N A R U S | 27

Artigo

A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO: A ROMANIZAÇÃO Por Alexandro Almeida Lima Araujo Claudia Patrícia de Oliveira Costa Resumo: O presente artigo tem como finalidade abordar um conceito bastante difundido durante o século XIX, a Romanização. A historiografia do século XIX construiu e apontou para uma visão de imposição de um ethos romano durante e após o processo de expansão territorial da capital do Imperium Romanum¸ Roma, sobre os demais grupos étnicos ditos “incivilizados”. Logo, Roma seria a luz civilizatória e as demais culturas vizinhas do Império seriam “inferiores”, necessitando, assim, da “luz civilizatória” dos romanos, uma cultura “superior”. Portanto, houve a “necessidade” de romanizá-los. Essa construção do XIX foi uma justificativa para que as potências européias buscassem e dominassem territórios. Por exemplo, as pinturas do século XIX foram meios usados para sustentar e representar uma política de dominação através de imagens de combates de gladiadores, naumáquias e venationes, em que os anfiteatros e as arenas romanas seriam utilizados como um locus de romanização. Entretanto, nesta conjuntura, a imposição e homogeneidade cultural de uma “Roma superior” ficam apenas no campo do discurso suscitado pelo XIX, haja vista que, na prática, os grupos culturais díspares que foram ou se deixaram incorporar ao Império não deixaram de cultuar seus deuses, de falar em sua língua nativa, ou de praticar sua cultura de modo geral, para abraçar à romana. Neste sentido, a heterogeneidade cultural se fez presente no Imperium, que se estendeu de um domínio de Roma sobre a Península Itálica, a posteriori, da península itálica às demais regiões que margeiam o mediterrâneo e além. Palavras-chave: Romanização. Ethos romano. Heterogeneidade cultural. Império romano.

O

Império romano abrangeu áreas bem longínquas de sua capital, Roma. Houve, primeiramente, uma “extensão de Roma à Itália, depois à

bacia mediterrânea e além”. (CABANES, 2009, p. 195). De acordo com Guarinello, “o Império foi o resultado de um lento processo de conquista militar e centralização política, primeiro da cidade de Roma sobre a Itália, depois da própria península sobre as demais regiões que margeiam o Mediterrâneo”. (2009, p. 149). O processo de expansão do Império foi fundamental para

estudiosos de Antiguidade Clássica, no século XIX, criarem meios que justificassem o interesse de grupos culturais nos processos de Imperialismo e partilha afro-asiática. Por exemplo, a França se utilizou do discurso de Romanização para legitimar sua ação durante a busca incessante imperialista do XIX. “Assim, as nações que se formavam no século XIX como Inglaterra, França ou Itália, só para citar alguns exemplos, buscaram no Império romano

sua maior

fonte

de

legitimação”.

(GARRAFFONI e SANFELICE, 2013, p. 67).


G N A R U S | 28 A

historiografia

“revisionista”

ou

“nova

Imperial, se deu, segundo a historiografia

historiografia”, da segunda metade do século XX e

“tradicional”, mediante o poder bélico e militar

a mais recente, do XXI, tem se preocupado em

romano. Essas conquistas eram fomentadas pelas

rever certos conceitos construídos por uma

legiões do exército romano, a fim de incorporar ao

historiografia “tradicional”, do século XIX e da

Império os povos subjugados e, assim, romanizá-

primeira metade do século XX. O arcabouço

los. Muitos desses grupos conquistados eram

conceitual defendido por historiadores do século

levados ao “centro” da Romanização: o anfiteatro.

XIX foram difundidos e incorporados por uma parte da historiografia do início do século XX. A

linha

mais variadas etnias. Por conseguinte, para a

especificamente aquela do XIX, estabeleceu um

historiografia do XIX, o anfiteatro era o local ideal

Romanização.

para Roma impor sua cultura aos que não eram

Romanização, portanto, “é um termo que surge na

romanos. Assim, no que concerne o combate

historiografia de fins do século XIX para significar

gladiatorial, os nomes de algumas categorias de

o contato entre os Romanos e os outros povos”.

gladiadores – gaulês e trácio, por exemplo – que

(MENDES, 2007, p. 2). Esse era o período em que

lutaram nas areias dos edifícios de pedra no

se assinalava a necessidade de criação de um

período imperial seriam orquestrados para se

discurso legitimador para que as potências

referenciar aos territórios agora sujeitados por

colonialistas

Roma: as regiões da Gália e da Trácia.

conhecido

europeias

“tradicional”,

onde, neste âmbito, se reuniam guerreiros das mais

conceito

argumentativa

Por que o anfiteatro? Porque esse era o local

como

conquistassem

áreas

territoriais de grupos culturais considerados inferiores, como africanos, indígenas americanos ou asiáticos. Logo, Roma e seu processo civilizacional expansionista foram atrelados aos discursos dessas nações europeias para galgarem e controlarem novos territórios, sob o discurso de se levar a “civilização aos incivilizados”. Nas palavras da historiadora Norma M. Mendes:

discursos

ideológicos

das

como batalhas navais, que ocorriam com o anfiteatro parcialmente inundado, havia uma simbologia de representação pautada numa ideologia de domínio romano através do poder militar

e

naval.

Segundo

a

historiografia

tradicional do século XIX, as naumáquias eram, portanto, encenações de batalhas vencidas por

A experiência imperialista romana foi apropriada pelos

A respeito das naumáquias, também conhecidas

potências

coloniais, que a utilizaram para justificar e legitimar o direito de conquista, vinculando a ação imperialista da Inglaterra, França, Itália como herdeiras de Roma e como uma forma legítima de disseminar entre os nativos o que os Romanos chamavam de civilização. (MENDES, 2007, p. 2). Neste sentido, a imposição cultural romana

Roma, demonstrando aos espectadores toda a glória que o Império possuía, de ser superior a quaisquer outras culturas e exércitos. Do mesmo modo, não podemos nos esquecer das

venationes, espetáculos em que animais exóticos eram exibidos nos anfiteatros para um público que, em alguns casos, jamais tinha visto tais animais, o que causava surpresa. Esses animais, provenientes

das

mais

variadas

regiões

sobre demais grupos étnicos culturais que não

conquistadas por Roma durante o processo de

falavam o latim e que circundavam a Roma

expansão territorial eram caçados nas arenas por


G N A R U S | 29

venatores: homens livres ou escravos que atuavam

modos de agir e pensar para abraçarem o modo

como caçadores. Muitos animais foram mortos

comportamental dos romanos.

neste tipo de espetáculo e a simbologia presente era o controle do civilizado sobre o animal, tido como selvagem e incivilizado. Logo, o domínio de um Império sobre territórios que possuíam amplamente animais selvagens, como o norte da África,

e

a

captura

destes

para

serem

transportados até Roma para fazerem parte dos espetáculos públicos fornecidos pelos Césares, seriam

formas

de

Romanização.

Portanto,

combates de gladiadores, batalhas navais e caçadas demonstrariam ao público o controle e domínio sobre “o outro”.

A ROMANIZAÇÃO E O DISCURSO HOMOGENEIDADE CULTURAL.

DE

Renata Garraffoni (2006) destaca as potências europeias que, de uma forma ou de outra, buscaram na Roma expansionista, um modelo eficaz de militarização e de conquistas de novos territórios. Glaydson José da Silva (2005) concorda com Garraffoni, ao denotar que países europeus buscaram uma legitimação para conquistar novos territórios. Tal legitimação foi construída tomando Roma como modelo, isto é, Roma transmitiu um

Com efeito, abordaremos neste artigo, além da

ideal de missão imperial civilizatória para os

historiografia, três pinturas que demonstram estas

“europeus civilizados” (SILVA, 2005, p. 93). Regina

três formas de espetáculos. Em nossa opinião, as

Bustamante também concorda com o olhar

pinturas do XIX também foram formas de

interpretativo esboçado pelos dois historiadores e

reafirmar um discurso de romanização, segundo o

afirma que, no decorrer do “processo de

qual, Roma era ”a senhora toda poderosa”, padrão

‘civilização/romanização’, Roma parecia também

a ser copiado pelos europeus daquele século.

ter transmitido seu próprio espírito imperial para

Desta forma, vamos analisá-las segundo a ótica

os europeus. Procurava-se estabelecer uma linha

prevalente na historiografia mais recente, já que as

de continuidade entre os expansionismos romano

referidas imagens estão imbuídas e fazem parte de

e o europeu” (BUSTAMANTE, 2006, p. 110).

um discurso tido, para nós, como tradicional. Para tanto, nossa hipótese está ancorada na visão de que não havia uma unidade cultural no império1. Havia grupos heterogêneos que dividiram espaço e não necessariamente deixaram de lado seus

Dessa forma, era necessário acreditar e difundir a ideia de que Roma criou uma política de homogeneidade cultural através das conquistas e que a Europa era a continuidade desta política de conquista e eliminação de heterogeneidades culturais mediante um forte poderio militar. Assim, “a cultura clássica, em especial os textos

1

É importante ressaltar que “o vasto território que compôs a sociedade romana dos séculos I e II d. C. circundava todo o mar Mediterrâneo e integrava inúmeras regiões anexadas ao longo do processo de conquista, com grande variedade de povos. Esse imenso império emaranhado de latinos, gálatas, egípcios, béticos, germanos, dácios, gregos, entre tantos outros, apresenta diversidades jurídicas, econômicas, étnicas, de idade, sexo, profissão e língua que acabam sendo camufladas e simplificadas pela expressão ‘povo romano’”. FEITOSA, Lourdes Conde. Masculino e Feminino na sociedade romana: os desafios de uma análise de gênero. In: CANDIDO, Maria Regina. (org.). Mulheres na Antiguidade: Novas perspectivas e abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora – DG ltda, 2012. p. 208

produzidos pelos antigos romanos da elite imperial, foi importante no período de formação dos estados nacionais por apresentarem um caráter de autoridade e poder”. (HINGLEY apud GARRAFFONI e SANFELICE, 2013, p. 68). Lourdes Conde Feitosa (2006) demonstra a importância de novas abordagens críticas acerca


G N A R U S | 30 do entendimento propagado por pesquisadores

traços culturais de uma sociedade, mesmo se essa

adeptos do conceito de Romanização. Em

sociedade esteja contida em uma sociedade

Gladiadores na Roma antiga: dos combates às

geográfica e politicamente mais ampla. “O

paixões cotidianas (2005), Garraffoni se desvincula

chamado ‘processo de romanização’, muito

destas linhas normativas, refutando visões como

debatido atualmente, nunca teve a profundidade e

“pão e circo”2 e “romanização”. Segundo Feitosa

extensão que lhe atribuía à historiografia mais

(2006), a respeito da abordagem da Garraffoni, “as

antiga. Durante séculos, povos montanheses

interpretações [classicistas ou tradicionais], em sua

mantiveram-se arredios à influência romana, no

imensa maioria, apresentam os combates [de

próprio coração do Império”. (GUARINELLO, 2006,

gladiadores] como

e

p. 14-15). Guarinello (2010) aprofunda, ainda, essa

homogêneo, relacionados ora a uma ‘política do

discussão em um ensaio intitulado Ordem,

pão e do circo’, ora ao processo de ‘romanização’”

Integração e Fronteiras no Império. Nesse ensaio,

(FEITOSA, 2006, p. 213).

o autor aborda o conceito de romanização e seu

um fenômeno

único

No entanto, consideramos que, esse “domínio” militar e político não significam dizer que as etnias e culturas diferentes que Roma encontrou durante o processo de expansão foram extirpadas, sobrepondo-se assim uma “cultura soberana”, a

desdobramento no pensamento europeu do século XIX. Ao discutir o conceito de identidade, defende a tese de que as “resistências enfrentadas pelo Império contra diferentes populações” não devem ser reduzidas. (GUARINELLO, 2010, p. 114).

romana. “Visto em seus próprios termos o Império

É neste sentido que os historiadores Erick Otto

Romano não circunscrevia uma organização social

Gomes e Luciane Munhoz de Omena (2014)

homogênea e singular, mas agrupava ‘sociedades’

pautam-se, haja vista que o Imperium em nenhum

completamente distintas”. (GUARINELLO, 2009, p.

momento

149).

universalmente homogêneo, pelo contrário, pois

A pesquisadora Marina Regis Cavicchioli (2009) afirma, por exemplo, que “Pompéia foi formada por vários povos e várias culturas – assim como a própria Roma, por uma fusão e mescla de identidades, (CAVICCHIOLI,

provavelmente 2009,

p.

61).

fluidas”. Essas

novas

interpretações derrubam a ideia de romanização, pois não há uma cultura superior que anule demais

as

foi

constituído

heterogeneidades

dos

em

um

povos

“manobra política para a manutenção da ordem e afastar a plebs das decisões políticas, [em que] as autoridades davamlhe o pão e o circo. Esta concepção se enraizou no senso comum e presenciamos hoje, no público não especializado, formulações de que a plebe era sanguinária, despolitizada, ociosa e desinteressada pelo trabalho”. OMENA, Luciane Munhoz de. Os ofícios: meios de sobrevivência dos setores subalternos da sociedade romana. In: Revista de História e Estudos Culturais. vol. 4. Ano 4. nº 1. Jan/Fev/Mar. 2007. p. 12. Entretanto, é “impensável imaginá-los como setores sociais omissos, preocupados apenas com o seu pão e divertimento, vivendo de forma ociosa, e dependentes das distribuições de trigo oferecidos pelo imperator ou elite”. et al. Idem. p. 13.

suas

particularidades linguísticas, culturais, militares, religiosas, entre outras, não foram sobrepujadas por um domínio cultural civilizacional romano. Neste sentido “os elementos culturais poderiam sobreviver na pluralidade, um ao lado do outro, levando-se em consideração a coexistência de identidades discrepantes ou paralelas”. (OMENA e OTTO GOMES, 2014, p. 66). Com efeito:

2

e

meio


G N A R U S | 31

Pollice Verso, de Jean-Léon Gérôme, 1872, Óleo sobre tela. (In: ROBERT, 1995, p. 114-115.) Era

um

Estado

profunda

Dessa forma, a identidade romana não era

heterogeneidade. A unidade linguística conferida

fechada e/ou única, ou seja, não pode ser

pelo uso oficial e literário do latim e do grego era

considerada homogênea e unificada, pois a

apenas aparente e superficial. Latim e grego eram,

identidade

com efeito, línguas francas, usadas pelas elites e

GARRAFFONI, 2005.). Isto é, “o Império Romano

pela administração. Mas as populações locais

não exigiu que indivíduos ou mesmo comunidades

continuavam se expressando em seus idiomas de

adotassem uma identidade distintamente romana

origem: o celta na Gália, o púnico no norte da

pela exclusão de qualquer outra identidade. As

África, o copta no Egito, o aramaico no Oriente

identidades locais sobreviveram e floresceram sob

Próximo,

início,

o Império”. (LAURENCE apud MENDES, 2011, p.

uniformidade étnica ou cultural. O império

429). Logo, “Roma, surgida de uma união de povos,

estendia-se por dezenas de povos e comunidades

sabia conviver com as diferenças”. (FUNARI, 2011,

que

p. 86). Dessa maneira, “diante da diversidade

etc.

marcado

Tampouco

preservaram

suas

por

havia,

tradições

de

culturais,

é

plural3.

(CARVALHO,

2009;

alimentares, familiares, suas roupas e moradias, seus modos de enterrar os mortos, suas crenças religiosas, em suma, suas culturas particulares. (GUARINELLO, 2009, p. 150-151. Grifo nosso.).

3

“(...) os historiadores mais antigos, da primeira metade do século XX, descreviam a aparente homogeneidade cultural do Império através do conceito de romanização e helenização, como se as populações conquistadas tivessem acolhido de braços abertos as benesses de civilizações superiores: romana no Ocidente, grega no Oriente. São idéias ultrapassadas”. GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. p. 143.


G N A R U S | 32 socioeconômica, política e cultural das províncias

houvesse a manutenção de sua vida. Vejamos que,

e no interior das províncias, houve mais de um tipo

nesse sentido, o levantar dos dedos pedindo para

de romano”. (MENDES, 2011, p. 429).

poupar sua vida procura representar o olhar intelectual do século XIX sobre a perspectiva

A ROMANIZAÇÃO E AS REPRESENTAÇÕES DOS ESPETÁCULOS GLADIATÓRIOS NAS PINTURAS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX.

romana da morte digna, não temer e não fugir de um destino iminente, ao sucumbir corajosamente a um adversário mais forte, respeitando a honra do

Os combates de gladiadores foram formas que,

combate. Nessa configuração de se estabelecer

segundo alguns autores do século XIX e XX,

uma identidade dos cidadãos romanos está a

demonstravam o “ideal do ser romano” e,

aversão a ser covarde. Bem como o gladiador que

consequentemente,

vence a batalha representa o ser destemido e

a

efetivação

de

uma

romanização. Ou seja: os combatentes assumiam e divulgavam características de como deveria ser um romano. Por exemplo: o desprezo pela morte, não fugir do seu destino ao perder uma luta na arena e oferecer o pescoço a seu adversário, de forma honrosa, para que fosse cravado o gládio e ter uma morte digna, caso assim fosse decidido pelo público, que se manifestava acenando com o polegar para baixo ou para cima. O combate apresentava em sua essência a virilidade, que também estava ligada a um valor relacionado ao

ethos romano. A imagem a seguir, uma pintura do século XIX, representa a leitura que se fez acerca dos jogos de gladiadores e sua representatividade enquanto poder de fomentar um ideal identitário romano.

estendidos

A mensagem visual representada pelos jogos de gladiadores

nos

remete

ao

sistema

de

representações que definiam o cidadão romano, e consequentemente, o projeto imperial romano. A sociedade romana era altamente militarizada e necessitava demonstrar aos concidadãos e aos estrangeiros presentes às arenas seu poderio bélico, sua repugnância à covardia, a destreza, técnica,

coragem

e

habilidade

de

seus

combatentes. Compreendemos este simbolismo presente nos Jogos como mensagens visuais para a população, já que demonstram entre outros signos a conquista frente aos demais povos – que eram trazidos e representados nas arenas como categorias de combatentes – e mantém viva a

A construção de uma identidade romana é percebida

corajoso, isto é, o ser “romano”. Dessa maneira:

na do

imagem

quanto

gladiador

aos

dedos

caído,

uma

representatividade de súplica ao público para que

historicidade

do

povo

romano

através

de

representações de batalhas antigas. (FERREIRA, 2006, p. 24).


G N A R U S | 33 A conquista e expansão estariam atreladas ao

eram superiores frente a outros grupos étnicos. Em

conceito de Romanização, já que os povos

outras palavras, a cultura romana se impondo

“conquistados”, alguns deles tidos como inimigos

sobre outras culturas e isso estava em evidência

de Roma, tornaram-se categorias de gladiadores,

através dos prisioneiros de guerra que eram

por exemplo, os trácios4 e mirmiliões, também

capturados no processo de expansão do Império e

conhecidos como gauleses5. Neste sentido, para os

levados para o as arenas dos anfiteatros.

autores adeptos do conceito de Romanização, há um domínio sobre o outro, evidenciando,

Outro ponto importante é a representatividade das

batalhas

navais

que

aconteciam

nos

La Naumaquia, de Ulpiano Checa, 1894. Fonte: http://www.thecult.es/Arte/ Ulpiano -Checa-el-pintorepico.html portanto, a cultura e a sociedade romana como as

anfiteatros. Essas eram representações de batalhas

mais fortes. Isso demonstraria o quão os romanos

que foram vencidas por Roma sobre territórios até então dominados por outros grupos socioculturais.

4

Armado de um pequeno escudo redondo, capacete, duas perneiras, braçadeira direita e uma espécie de sabre curto e curvo (sica). Cf. HARCQUARD, G. DAUTRY, J. MAISANI, O. Guide Romaine Antique. Apud. COSTA, Claudia Patrícia de Oliveira. Táticas e Estratégias: o gladiador na Roma imperial de meados do I. d. C. a meados do II d. C. Rio de Janeiro, 2005. p. 57. Segundo Jérôme Carcopino, “os trácios se protegem com o escudo circular (parma) e manejam o punhal (sica)”. CARCOPINO, J. A Vida Cotidiana: Roma no apogeu do Império. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990. p. 279. 5 Era relativamente pouco armado. Pequeno escudo retangular e um capacete em forma de um peixe (murmo), que justificava sua denominação. Ibidem. Segundo Jérôme Carcopino, “os murmillonnes, usam capacete com a figura de um peixe marinho, a murma”. Ibidem.

Essa encenação de uma batalha épica que acontecia dentro do anfiteatro demonstrava o poderio militar romano sobre as sociedades que enfrentaram Roma. Buscavam demonstrar aos presentes nas arquibancadas o que era ser um romano, evidenciar as glórias do Império e unificar valores que o romano deveria absorver, tornandose uma cultura homogênea pautada numa


G N A R U S | 34 ideologia de domínio. A imagem a seguir, também

apud FERREIRA, 2006, p. 22). De acordo com

datada do final do século XIX, representa uma

Pierre Grimal, um pesquisador latinista que possui

naumáquia, segundo a referida perspectiva.

produções difundidas no início do XX, com

As naumáquias eram os espetáculos mais complexos

em

sua

organização,

pois

era

necessário inundar até certo ponto a arena e, dessa

forma,

propiciar

a

navegação

das

características historiográficas peculiares do XIX, “a atracção que esses divertimentos exerciam sobre as populações rudes constituía um meio poderoso de romanização”. (GRIMAL, 2003, p. 69).

embarcações. No caso da capital, havia um sistema

É um ponto crucial do conceito de Romanização,

que enchia o anfiteatro, deslocando a água do rio

pois a “identidade romana” é construída mediante

Tibre. Por sua vez, havia também, um sistema de

os valores de civilização difundidos no âmbito da

drenagem que escoava a água e deixava o

arena, ou seja, a “Roma civilizada” mostra seu

anfiteatro em condições para combates de

domínio sobre os mais variados espécimes de

gladiadores ou caçadas. Estas pinturas procuravam

animais. Seria o controle do civilizado sobre o

evidenciar a grandiosidade dos espetáculos

incivilizado, ou melhor dizendo, sobre as feras

romanos, ou como a intelectualidade do século

apresentadas nas arenas.

XIX imaginava ser. Desta forma, acreditamos poder acessar a concepção de romanização, como ela foi construída.

caráter

da

Romanização

que

os

pesquisadores do século XIX enfatizaram e que está presente, em particular, na pintura intitulada

foram

La rentrée des félins de autoria de Jean-Léon

representadas por pinturas durante os séculos XIX

Gérôme exposta a seguir, é a ideia de identidade

e início do XX, as caçadas apresentadas nos

civilizatória romana mediante a execução de

centros das arenas foram objetos dos pintores que

condenados da justiça. Esse tipo de execução

apontavam para a diversidade de animais que

acontecia em um determinado turno do dia no

Roma apresentava nos Jogos Gladiatórios. Isso

anfiteatro, comumente ao meio-dia. Além das

demonstrava o poder de conquista de Roma sobre

penas em que os condenados eram atirados às

as demais regiões, por exemplo, norte da África e

feras, na obra de Gérôme ainda podemos observar

do restante Mediterrâneo. Como se “o papel social

outras formas de execução para criminosos

dos jogos estivesse intimamente relacionado com

comuns, como a crucificação.

As

venationes

Outro

(caçadas)

também

a formação do ethos social e a ideologia da glória e do prestígio, vinculado à vitória militar”. (HARRIS


G N A R U S | 35

La rentrée des félins, de Jean-Léon Gérôme, Óleo sobre tela, 1902. (In: GARRAFFONI, 2005, p. 202) Entretanto, não entendemos as ações que

edifícios de pedra da Roma Antiga. Como bem

ocorreram nos anfiteatros como um modo de

explica a historiadora Renata Garraffoni, “poucos

imposição de uma romanização. Além do que, os

[pesquisadores do XIX] fazem distinção entre uma

pesquisadores e, principalmente os pintores do

luta de gladiadores e as execuções de criminosos”.

século XIX e início do XX, veem os combates

Havia, portanto, “o cumprimento de uma das

gladiatórios na arena como um local de extrema

penas capitais presentes na legislação romana”.

violência, onde aconteciam as mais variadas

(GARRAFFONI apud OMENA, 2009, p. 99).

atrocidades. É notório o enfoque à violência na imagem acima: há sangue por toda a arena, o que normalmente, os autores classicistas classificaram como “verdadeiras carnificinas”. É como se o anfiteatro tornasse um símbolo de massacre e, por conseguinte

de

ordem,

ressaltando

uma

identidade romana através da conquista.

Não podemos esquecer que as arenas eram locais onde os mais variados grupos étnicos encontravam-se para assistir aos combates de gladiadores,

isso

fica

claro

com

a

linha

interpretativa que seguimos, a da historiadora Renata Garraffoni (2005), haja vista que a pesquisadora evidencia que os anfiteatros estavam

Porém, os combates que ocorriam nos anfiteatros

próximos às fronteiras, o que facilitava a circulação

podem soar muito mais violentos para nós, do que

de pessoas de diversas regiões que compunham o

propriamente para os romanos da época imperial.

império. A mesma aponta para os conflitos de

A violência parece ser mais uma preocupação

identidades e culturas num espaço como um

moderna do que para aqueles que adentravam os


G N A R U S | 36 anfiteatro, já que a singularidades de cada

caracterizou o Império Romano em seu auge

indivíduo deve ser ressaltada.

expansionista, entre os séculos I e II d.C.

Em face do debate esboçado, adotamos em nossa pesquisa os conceitos de táticas e

estratégias, como concebidos por Michel de Certeau. Para Certeau, a intricada rede de relações estabelecida entre os integrantes de dada comunidade pode ser definida como um complexo jogo de táticas, na qual o indivíduo ou mesmo determinados grupos sociais possuem variáveis formas de reagir ou interagir com as imposições ou convenções

desta

sociedade,

que

segundo

Certeau, seriam as estratégias (1996, p: 46). Logo, ao enfocarmos o expansionismo romano e os reflexos desse processo na composição dos espetáculos de anfiteatro, rejeitamos as teses que enfocam tão somente a arena como um espaço de propaganda da dominação romana sobre o outro, submisso.

Certeau, consideramos que o fomento aos espetáculos, quer por iniciativa pública ou privada, configuraria

Buscamos nesse artigo, discutir os limites do conceito de romanização, consolidado como lugar comum entre a historiografia de finais do século XIX e primeira metade do século passado. Em face dos recentes debates, mobilizamos conceitos de

tática e estratégia para buscar uma alternativa para a análise das relações de poder estabelecidas entre Roma e povos conquistados. Nessa chave, impõe-se

a

necessidade

de

repensar

os

espetáculos de arena, parte do ethos cultural romano, sob perspectivas mais abrangentes. Essas perspectivas, que vêm ocupando cada vez mais espaço nos estudos clássicos, procuram levar em conta a pluralidade étnica, cultural e social incluída sob a égide do Império Romano entre os

Ao nos apoiarmos no arcabouço teórico de

se

CONSIDERAÇÕES FINAIS

em

estratégia

do

poder

constituído. Nesse sentido, para além de cumprir uma função religiosa, qual seja a de apaziguar os mortos, ainda eram simulacros da dominação romana sobre outros povos. Entretanto, essa não é a única interpretação possível e nem essa mensagem era absorvida de forma homogênea por aqueles que assistiam a tais espetáculos e nem mesmo por aqueles que os protagonizavam. Com base no conceito de tática, acreditamos que a pluralidade cultural que vivia sob o controle de Roma possuía variáveis formas de reagir e interagir com as imposições do tipo estratégia. As

séculos I e II. Não por acaso, esse período assinala o maior impulso expansionista do império e foi apropriado pela historiografia do século XIX para forjar os argumentos que visavam à legitimação da política imperialista encetada, então, pelas potências europeias.

Nesse

modelo

de

colonização,

procurava-se difundir a imagem do europeu, herdeiro presumível da potência dos antigos romanos, imbuído da missão civilizadora que desde a Antiguidade lhe competia. Ao enfocar o europeu sob essa perspectiva, tais análises se ancoravam em pressupostos de uma historiografia etnocêntrica e totalizante. Porém, os recentes estudos, inscritos na chave de

interações, tensões e negociações ocorridas a

pesquisas

que

propõem

alternativas

partir das operações de táticas e estratégias

interpretativas para os trabalhos centrados em

compunham o mosaico social e cultural que

macro análises, têm procurado enfocar as relações


G N A R U S | 37 estabelecidas entre gladiadores e sociedade romana, bem como as variadas formas de integração das populações dominadas por Roma ao conjunto de normas que determinavam o “ser romano”. Nossas investigações sobre esse assunto estão

em

consonância

a

essa

renovação

historiográfica e pretendem abordar os jogos de anfiteatro, pondo em questão as múltiplas identidades culturais abarcadas pelo Império Romano, suas tensões, atrações, repulsas e interpolações.

Alexandro Almeida Lima Araujo é Graduado em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Integrante do grupo de pesquisa “Mnemosyne” – Laboratório de História Antiga e Medieval do Maranhão, UEMA. E-mail: alexandroaraujo12@yahoo.com.br e Claudia Patrícia de Oliveira Costa é Doutoranda em História Social junto à Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Ensino de História e Patrimônio Cultural da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (LEEHPaC/PUC-Rio). Professora de História da rede pública estadual do Rio de Janeiro. E-mail: cliouerj@yahoo.it

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, Alexandro Almeida Lima. Sexualidade, Política e Religião: os combates de gladiadores na Roma Antiga, séculos I – II d. C. Monografia. Orientadora: Profª. Drª. Ana Livia B. Vieira. UEMA/Departamento de História e Geografia. São Luís, 2015. BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. Práticas

Culturais no Império Romano: Entre a Unidade e a Diversidade. In: MENDES, Norma Musco e

SILVA, Gilvan Ventura da. (orgs.). Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, Política e Cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES: EDUFES, 2006. CABANES, Pierre. Introdução à História da Antiguidade. Tradução Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. CARVALHO, Margarida Maria de. As Marcas da

Política na Construção de uma Identidade Plural.

In: FUNARI, Pedro Paulo A. e SILVA, Maria

Aparecida de Oliveira. (orgs.). Política e Identidades no Mundo Antigo. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2009. p. 9-13. CAVICCHIOLI, Marina Regis. A Formação de

Pompéia Antiga: Identidade, Pluralidade e Multiplicidade. FUNARI, Pedro Paulo A. e SILVA,

Maria Aparecida de Oliveira. (orgs.). Política e Identidades no Mundo Antigo. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2009. p. 59-72. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 2ª edição, 1996. COSTA, Claudia Patrícia de Oliveira. Táticas e Estratégias: o gladiador na Roma Imperial de meados do I d.C. a meados do II d. C.. Monografia. Orientadora Profª. Drª. Maria Regina Cândido. UERJ/IFCH/Departamento de História. Rio de Janeiro, 2005. FEITOSA, Lourdes Conde. Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005. Resenha. In: História: Questões & Debates, Curitiba, Editora UFPR, n. 45, p. 213-216. 2006. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/ar ticle/view/7950/5599 último acesso em 22/03/2015. _____________________. Masculino e Feminino na

Sociedade Romana: Os Desafios de Uma Análise de Gênero. In: CANDIDO, Maria Regina. (org.).

Mulheres na Antiguidade. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2012. p. 203-218. FERREIRA, Kimon Speciale Barata. Jogos de Gladiadores: uma reflexão sobre a economia cultural. Monografia. Orientadora Profª. Drª. Norma Musco Mendes. UFRJ/IFCH/Departamento de História/LHIA. Rio de Janeiro, 2006. FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. GARRAFFONI, Renata Senna. Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2005. ___________________________. Império Romano: História Antiga e Política Moderna. In: Seminário Facetas do Império na História. Universidade Federal do Paraná. p. 1-11. Nov. 2006. Disponível em http://people.ufpr.br/~andreadore/renata.pdf último acesso em 22/03/2015. ___________________________ & SANFELICE, Pérola de Paula. Em tempos de culto a Marte por que

estudar Vênus? Repensando o papel de Pompéia durante a II Guerra. In: Saberes e Poderes no

Mundo Antigo. vol. I. CERQUEIRA, Fábio Vergara. GONÇALVES, Ana Teresa Marques. MEDEIROS, Edalaura Berny. BRANDÃO, José Luís Lopes. (orgs.). CECH: Universidade de Coimbra, 2013.


G N A R U S | 38 GRIMAL, Pierre. As Cidades Romanas. Trad. António Lopes Rodrigues. Lisboa: Edições 70, 2003. GUARINELLO, Norberto Luiz. O Império Romano e Nós. MENDES, Norma Musco e SILVA, Gilvan Ventura da. (orgs.). Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, Política e Cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES: EDUFES, 2006. p. 13-19. ___________________________.. Império Romano e Identidade Grega. In: FUNARI, Pedro Paulo A. e SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. (orgs.). Política e Identidades no Mundo Antigo. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2009. p. 147-161. ___________________________. Ordem, Integração e Fronteiras no Império Romano: Um Ensaio. In: Revista Mare Nostrum. vol. 1. LEIR-MA/USP, p. 113-127. 2010. Disponível em http://leir.fflch.usp.br/sites/leir.fflch.usp.br/files/ upload/paginas/marenostrum-ano1-vol1.pdf último acesso em 22/03/2015. ___________________________. História Antiga. São Paulo: Editora Contexto, 2013. MENDES, Norma Musco. O espaço urbano da

cidade de Balsa: uma reflexão sobre o conceito de Romanização. In: Revista de História e Estudos

Culturais. vol. 4. ano 4. n. 1. p. 1-20. jan/fev/mar 2007. MENDES, Norma Musco. Império romano:

algumas reflexões sobre os processos de globalização. In: História Antiga e Medieval:

Simbologias, Influências e Continuidades – Cultura e Poder. São Luís: Editora UEMA, 2011. p. 425-436. OMENA, Luciane Munhoz de. Os ofícios: meios de

sobrevivência dos setores subalternos da sociedade romana. In: Revista de História e

Estudos Culturais. vol. 4. ano 4. nº 1. Jan/Fev/Mar. 2007. p. 1-13. ___________________________. Pequenos poderes na Roma imperial: os setores subalternos na ótica de Sêneca. Vitória, Flor & Cultura, 2009. ___________________________ & OTTO GOMES, Erick Messias Costa. As Faces da Morte no Mediterrâneo: Uma Análise da Narrativa ‘Metamorphoseon’ de Apuleio (século II d. C.). In: Romanitas: Revista de História Grecolatinos. Nº 3. UFES, p. 65-85. 2014. Disponível em http://www.periodicos.ufes.br/romanitas/article /view/8642 último acesso em 22/03/2015. SILVA, Glaydson José da. A Antiguidade Romana e a Desconstrução das Identidades Nacionais. In: FUNARI, Pedro Paulo Abreu; OSER JR., Charles E.; SCHIAVETTO, Solange Nunes de Oliveira. (orgs). Identidades, discurso e poder: Estudos da arqueologia contemporânea. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. p. 91-101.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.