Atas das 1as Conferências do Museu de Lamego / CITCEM

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Geraldo Coelho Dias


ATAS das 1as

CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2013 HISTÓRIA E PATRIMÓNIO NO/DO DOURO: INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

Available online at www.museudelamego.pt

ABREVIATURAS

COMISSÃO ORGANIZADORA

ML Museu de Lamego CITCEM Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória DRCN Direção Regional de Cultura do Norte FLUC Faculdade de Letras da Universidade do Porto ESTGL - IPV Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego - Instituto Politécnico de Viseu DL Diocese de Lamego PNDI Parque Natural do Douro Internacional MFM Museu do Ferro de Moncorvo CNRS Centre national de la recherche scientifique, Lyon

Alexandra Braga (ML -DRCN) Álvaro Bonito (ESTGL - IPV) Gaspar Martins Pereira (FLUC / CITCEM) Luís Sebastian (ML - DRCN) Nuno Resende (FLUC / CITCEM) Paula Montes Leal (FLUC / CITCEM)


Organização

Liga dos Amigos do Museu de Lamego

Lamego

Apoios


Índice O LEGADO DE CISTER NO DOURO Geraldo Amadeu Coelho Dias, OSB Cister no Douro: Cultura, Espiritualidade e Desenvolvimento........................................................ 13 Luís Sebastian Mosteiro de S. João de Tarouca: da investigação à musealização..................................................... 21

HISTÓRIA E PATRIMÓNIO Manuel Real O significado da basílica do Prazo (Vila Nova de Foz Côa), na alta Idade Média duriense.......................... 65 Ana Sampaio e Castro Vias medievais nos coutos monásticos de S. João de Tarouca e Sta. Maria de Salzedas.......................... 105 Nuno Resende «É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»: a implantação dos edifícios religiosos e a expansão urbanística de Lamego entre os séculos XVI e XVIII....................................................................... 125


ARQUEOLOGIA NO/DO DOURO Susana Cosme O contributo das pequenas 'villae' rústicas na economia e povoamento dos séculos IV-VII no Douro.......... 141 Paulo Dórdio Investigação e desenvolvimento no Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor............................................................................................................... 151 Pedro Pereira 'De vino ac vineas' vinicultura romana no Vale do Douro........................................................... 173 António Sá Coixão 1980-2013 / 33 Anos de investigação arqueológica nos concelhos de Vila Nova de Foz Côa e Mêda........... 183 HISTÓRIA NO/DO DOURO Carla Sequeira A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense (1926-1949).................................. 193 Manuela Vaquero O Tribunal da Inquisição de Lamego.................................................................................... 201 Gaspar Martins Pereira Entre a Etnografia e a História: os romances durienses de Alves Redol........................................... 211 Otília Lage Revoltas populares no Douro Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego), no início da I República: Significados e representações sociais a partir da imprensa da época............................................................. 221 HISTÓRIA, PATRIMÓNIO E ACÇÃO LOCAL/REGIONAL Teresa Soeiro ‘Requiem’ pelo património fluvial do Douro........................................................................... 233 Nelson Campos PARM (Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo) breve balanço de 30 anos de actividade em prol do património cultural algures no Douro Superior.......................................................................... 247 Alexandra Cerveira Lima «Arquivo de Memória». Entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional.......................................... 261


Introdução Luís Sebastian



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primeira edição das Conferências do Museu de Lamego é a concretização de uma aspiração: criar um espaço anual de debate, partilha e divulgação da atividade científica desenvolvida em torno do território duriense, com especial enfoque na área das ciências sociais e humanas. A opção estratégica adotada para a região do Douro, assumindo o Turismo Cultural como uma das principais áreas de desenvolvimento económico, acarreta consequentemente a obrigatoriedade de a região possuir uma intensa atividade de investigação científica. O Turismo Cultural, sobretudo dependente do património histórico, seja ele material ou imaterial, é apenas possível se sustentado no profundo conhecimento do território, dos seus imóveis e sítios históricos, das suas tradições, e enfim, de toda a complexa multiplicidade de fenómenos que constituem qualquer herança histórica, tanto mais rica quanto mais multifacetada e milenar, como é o caso da região dominada pelo rio Douro. Como alicerce que é, da qualidade deste conhecimento base depende toda a qualidade da construção da “história” que é narrada em cada ação ou suporte de comunicação, do desdobrável ao livro, das exposições às opções tomadas na conservação e musealização de imóveis e sítios históricos. A produção deste conhecimento assenta por sua vez na capacidade de se conseguir desenvolver na, e para, a região uma intensa e qualificada atividade científica em áreas basilares, como sendo a História, História da Arte, Arqueologia ou Etnologia. Bem mais diretas na sua ação, áreas como as da Conservação e Restauro, ou Arquitetura na sua vertente patrimonial, vivem de um permanente aperfeiçoamento de soluções, técnicas e materiais, apenas possível com investigação, para além da óbvia e preciosa acumulação de experiências. Assim, a criação de um espaço anual de debate, partilha e divulgação científica, que aspira a tornar-se a longo prazo um espaço de referência a este nível, impõe-se naturalmente como uma necessidade e uma vantagem, pelo contributo que pretende dar ao incentivo e fomento dessa mesma atividade científica.

Mas não basta produzir conhecimento. Este é inútil se não divulgado e disponibilizado atempadamente. Não se tratando de uma área científica exata, todo o conhecimento produzido está à nascença destinado a desatualizar-se, pelo que a imediata e gratuita divulgação on-line das atas das conferências é uma preocupação indissociável desta iniciativa. Atendendo por sua vez ao papel histórico e cultural central que Lamego sempre desempenhou na região Duriense, e nesta, a posição que o Museu de Lamego assume, entende-se igualmente que este museu se proponha a ser o palco anual de um encontro de referência para a região do Douro. Neste ponto, e nesta primeira edição, salienta-se o carácter verdadeiramente regional da iniciativa, e a forma como a cidade a soube fazer sua. Contando naturalmente com o apoio da Direção Regional de Cultura do Norte, instituição a que o Museu de Lamego se encontra afeto, deve-se sobretudo ao apoio, antes de mais, dos próprios cidadãos, organizados na Liga dos Amigos do Museu de Lamego. A estes juntam-se as instituições basilares na região - Diocese de Lamego e o Município de Lamego –, as instituições de formação superior da cidade – Escola Superior de Tecnologia e Gestão e Escola de Hotelaria e Turismo do Douro - Lamego –, mas também, e de forma especialmente gratificante, empresas da região, diretamente ligadas ao turismo, como o Hotel Lamego ou a Casa de Santo António de Britiande, à indústria dos vinhos, como a Quinta de Mosteirô, ou à área da comunicação, como a Soltagiga. Para eles vai o nosso agradecimento. Por fim, atendendo à preocupação inicialmente formulada da qualidade da produção científica produzida, procuramos nesta primeira edição a colaboração do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM), da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Centro de investigação que reúne o maior número de investigadores académicos que na atualidade desenvolvem o seu trabalho sobre a região duriense, impôs-se desde logo como o parceiro óbvio. À sua direção e colaboradores agradecemos a forma imediata como souberam fazer da mera ideia um projeto seu.


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Mesa Redonda

O legado de Cister no Douro Geraldo Amadeu Coelho Dias, OSB

Luís Sebastian Nuno Resende Amândio Barros


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Cister no Douro: Um suplemento de alma e um novo dinamismo operacional texto: Geraldo Coelho Dias, OSB/CITCEM

Resumo A dimensão vital de espiritualidade que a observância conventual de Cister acarreta, veio dar um suplemento de alma ao trabalho que a mesma observância exerce e exige, na medida em que, ele também, ajudará à santificação da alma e não apenas ao sustento do corpo. Assim, a Ordem de Cister veio trazer um suplemento de alma e de espiritualidade à região do Douro, mormente à zona de Tarouca, bem como o estímulo do trabalho e do enriquecimento agrícola. Palavras-chave Cister; Trabalho; Estilo gótico; Douro. Abstract The vital dimension of spirituality observed by the Cistercian Order, brought a supplement of soul to manual labour – the kind of labour that is emphasised and required by the Order –, to the extent that it will also help the sanctification of the soul and not only the sustenance of the body. Thus the Cistercian Order has brought a supplement of soul and spirituality to the Douro region – especially to the area of Tarouca –, as well as the stimulation of labour and agricultural enrichment. Keywords Cister; Labour; Gothic; Douro.

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audando-vos a todos vós, que tivestes a generosa ousadia de vir ouvir-nos, queremos, desde já, afirmar-vos: a dimensão vital de espiritualidade que a observância conventual de Cister acarreta, veio dar um suplemento de alma ao trabalho que a mesma observância exerce e exige, na medida em que, ele também, ajudará à santificação da alma e não apenas ao sustento do corpo. Por sua vez, a Ordem de Cister veio trazer um suplemento de alma e de espiritualidade à região do Douro, mormente à zona de Tarouca, bem como o estímulo do trabalho e do enriquecimento agrícola. De facto, os monges estimularam as populações no aproveitamento da terra e seus bens.


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I - INTRODUÇÃO: ORIGEM DE CISTER

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o século X, os monges de Cluny deram à Regra de S. Bento um notável grau de institucionalização; a sua Ordem ganhara influência política e religiosa; em termos de mentalidade dominava mesmo a Cristandade. Alguns monges, porém, sentiam a necessidade do regresso aos ideais primeiros do monaquismo e mesmo à «literalidade» da Regra de S. Bento. Nasceu, desse modo, a reforma beneditina de Cister, sob a conduta de «três monges rebeldes!» – Roberto, Alberico e Estêvão Harding1 –, que, partindo do mosteiro beneditino de Molesmes, arrancaram para a floresta pantanosa e erma de Cister. Foi assim que apareceu na Igreja de Cristo um movimento carismático envolvente, guiado por ideais de austeridade, interioridade, solidão, disciplina e trabalho, que iria restituir à velha cepa do monaquismo novo alor e redobrado dinamismo. Na verdade, foi a 21 de Março de 1089 que se fundou Cister, na Borgonha. Mas esse movimento talvez não passasse duma bravata espiritual dos ditos três monges rebeldes, se o espírito de Deus não tivesse conduzido para ali, corria o ano de 1112, o jovem fogoso e idealista, Bernardo de Fontaines (1090-1153), com 29 familiares. Esta foi a irrigação fertilizante, o adubo misterioso para o êxito da fundação nascente. Na verdade, quando Bernardo, abade de Claraval, morreu, em 1153, os mosteiros cistercienses já eram 343 e estavam espalhados por toda a Europa. Com a sua mística entusiasmada para a construção na terra, através dos mosteiros, duma «feliz visão de paz» («beata pacis visio»), o dinâmico e lutador Bernardo, sempre que «Deus estava em causa» na sociedade cristã, lá aparecia a ajudar o Papa, a estimular os reis, a dinamizar os bispos, a entusiasmar os monges. Para ele, «fugir do mundo» não era deixar a Igreja. Caso curioso e singular o deste monge, amante do silêncio e do retiro, que, todavia, afirmava ousadamente «nós os monges não devemos ficar mergulhados nos nossos pântanos, como sapos que somos, e limitar-nos a coaxar»2. Por isso intervém nos grandes problemas teológicos da Igreja e nas questões políticas entre reis, faz apologia contra os outros monges que criticam a visão de Cister, combate a riqueza dos homens da Igreja, excomunga 1  RAYMOND, M. – Tres monjes rebeldes. Madrid: Ediciones Studium, 1956. 2  BERNARDUS Claravallensis – Epístola 48, 3. Cfr. «Obras completas de S. Bernardo», VII, «Cartas». Madrid, 1990, 220.

os hereges, prega a Cruzada, escreve imensas cartas e dá conselhos. Bernardo é um dinâmico cidadão da Europa Medieval, o «Doutor melífluo», embora, às vezes, mais pareça destilar fel que mel. A sua acção promoveu, de forma determinante, o monaquismo cisterciense; é ela que explica o êxito de Cister. Os seus mosteiros aproveitaram a evolução da arte românica e construíram-se ao gosto do estilo gótico incipiente; alguns deles ficaram como exemplares paradigmáticos daquele estilo arquitectónico que, alguns, exageradamente, chamam «estilo cisterciense» ou «estilo Bernardino»3: Claraval, Fontenay, Sénanque, Thoronet, Casamari, Fossanova, Poblet, Alcobaça, para só enumerar estes que, ainda hoje, causam admiração e atraem turistas, são Património da Humanidade. De maneira geral, os historiadores entusiasmam-se, sublinhando e estudando os aspectos mais salientes do sucesso de Cister, pondo o assento particularmente na arquitectura, acentuando o trabalho manual com autêntico desenvolvimento agrícola, sobretudo com as granjas trabalhadas pelos monges conversos, e relevando a espantosa, senão mesmo taumatúrgica, difusão dos mosteiros e acréscimo de monges. Qual, então, a chave ou o segredo de tal sucesso? O arrojo, a capacidade, a disciplina dos cistercienses? Sem dúvida, mas, por trás de tudo isso, estava uma espiritualidade dinâmica, assente na fidelidade à Regra de S. Bento dentro do rigor da literalidade e que, sobretudo, se traduzia por uma mística apaixonada e dinâmica, baseada no perfeito seguimento de Cristo. É toda essa epopeia de espiritualidade e de arte, de religião e de cultura, que o belo livro da jovem e entusiasmada arquitecta portuguesa Ana Maria Martins procura trazer à colação e dar a conhecer ao nosso povo, que, hoje, parece totalmente esquecido do que foi Cister e do que deve aos monges cistercienses. Nesse sentido, o livro faz uma artística viagem pelos mosteiros cistercienses portugueses. A cultura e a arte precisam, não há dúvida, de espíritos assim, abertos, sem preconceitos, mas apaixonados pelo estudo da arte, da cultura, da religião, aquilo, enfim, que emblematiza, dignifica e enobrece uma sociedade. 3  KINFRT, Terryl N. – L’Europe cistercienne. Zodiaque, 1997 (Tradução do Inglês); LERROUX- DHURS, Jean-François – Las Abadias Cistercienses. História y Arquitectura. Colonia: Koesemann, 1999 (Tradução do francês); TOBIN, Stephen – Les Cisterciens. Moînes et monastêres. Paris: Cerf, 1995; MARTINS, Ana Maria – Arquitecturas de Cister em Portugal. A actualidade das suas reabilitações e a sua inserção no território. Universidad de Sevilla. Departamiento de História, Teoria y Composición Arquitectónicas, 2011, 3 vols. (Tesis doctoral); OSSWALD, Walter – Mosteiros Cistercienses em Portugal. Pequeno roteiro. Porto: Edições Afrontamento, 2012.


Cister do Douro

II - A NOVIDADE DE CISTER

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Mosteiro Novo, Cister, tinha sido fundado em 21/III/1098. Fazendo, agora, o seu estudo, os historiadores são levados a concluir que, na Europa, pelos anos de 1153, aquela ordem religiosa marcava uma novidade e um sucesso assinaláveis na Igreja Católica e no mundo cristão europeu. Nesse ano de 1153, os mosteiros cistercienses eram, como referimos, 343 e, ao findar do século XII, contavam-se 525 abadias. Estes índices de crescimento pareceram tão exagerados, já ao tempo, que o Capítulo Geral da Ordem, em 1152, até proibiu novas fundações, sem dúvida levado pelo princípio de que «quem muito abarca pouco aperta». Administrativamente, os mosteiros eram autónomos, mas os Capítulos Gerais da Ordem, realizados todos os anos em Cister, impuseram uma visita anual e determinaram uma tal qual uniformidade, que propiciava uma verdadeira unidade de disciplina e de acção. S. Bernardo, o dinâmico e contemplativo abade de Claraval, tornara-se um cidadão da Europa Medieval, como já referimos anteriormente, aconselhando Papas, assistindo bispos, dirigindo reis, pregando a Cruzada, combatendo hereges. Ele foi, indiscutivelmente, a mais-valia de Cister a ponto de o seu discípulo de Claraval, Bernardo Paganelli, se ter tornado Papa com o nome de Eugénio III (1145-1153). Por último, depois de alguma resistência e hesitação, permitira-se a fundação de mosteiros femininos, que abriam às mulheres o ideal de perfeição proposto para os monges. O mosteiro de Tat, na Bretanha, França, em1123, foi o primeiro mosteiro feminino a abraçar a disciplina e observância cistercienses. A data de 20 de Agosto de 1153 assinala a morte de S. Bernardo de Fontaine ou Claraval, abade duma das últimas abadias mães cistercienses (1115), depois de Cister, La Ferté, Pontigny e Morimond. Aquele ano de 1153 é, portanto, uma espécie de termómetro de aferimento para avaliarmos o que distingue Cister de Cluny, donde se separara, e para ajuizarmos do resultado da obra dos três «monges rebeldes», que fundaram Cister e lhe deram alma. Duma maneira geral, os historiadores entusiasmam-se, sublinhando e estudando os aspectos mais salientes deste sucesso, a partir do afinco ao trabalho e do sucesso na construção artística. Façamos a análise do sucedido.

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III - IMPORTÂNCIA DOS IRMÃOS LEIGOS

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onto marcante e fundamental foi aquele em que a ordem recusou ter servos a trabalhar pelos monges, e isso foi tão decisivo que levou à aceitação e criação dos irmãos conversos ou leigos, reconhecidos como verdadeiros monges. Eles cultivariam terras, amanhariam granjas, apascentariam rebanhos, plantariam vinhas, fabricariam ferramentas, construiriam mosteiros. Com eles, a Ordem de Cister seria auto-suficiente. Uma espécie de fundamentalismo, todavia, no que toca ao trabalho manual, prescrito pela Regra, acabaria por levar os cistercienses à auto-suficiência e à abastança no sustento dos seus mosteiros. Mantendo o voto de estabilidade, típico da Regra beneditina, e procurando fugir à tentação de viver à custa de dádivas, Cister conservaria o princípio da propriedade comunitária de bens, podendo o terreno da fundação ser cedido por um rei ou um nobre, mas, depois, pelo seu trabalho, os monges deveriam ser garantes do seu próprio sustento. Não poderiam, por isso, aceitar dádivas de dinheiro, não teriam servos a trabalhar em sua vez, nem administrariam paróquias ou outros benefícios eclesiásticos donde colhessem bens de estola ou pé de altar. Vestir-se-iam de burel rude, mesmo por tingir e, portanto, esbranquiçado (daí o nome de «monges brancos», para os distinguir dos cluniacenses «monges negros»), não comeriam carnes nem beberiam vinho, mas eles próprios, «com o suor do seu rosto» (Gn. 3,19) cultivariam as suas terras, amanhariam os campos e granjas semeando os cereais, plantariam as hortas e vinhas, apascentariam os rebanhos, fabricariam as ferramentas, construiriam os seus mosteiros e casas. Para melhor poder fazer a harmonia da oração e do trabalho, Cister iria abrir-se ao grupo dos laboratores, criando, como dissemos, a classe dos irmãos conversos ou leigos, barbati, não dedicados ao culto divino propriamente dito e, por essa razão, mais livres e disponíveis para trabalhos manuais. Esta seria uma das grandes descobertas de Cister e isso explicará o êxito económico desta empresa que recusa, à partida, as dádivas e esmolas dos senhores feudais. O serviço nas famosas granjas ou quintas cultivadas directamente pelos conversos, mesmo à distância dos mosteiros, permitiriam a independência dos monges face ao poder económico dos senhores e possibilitariam o sustento dos mosteiros. Além disso,


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Cister recusou as dádivas de terras e heranças de bens, evitando, assim, uma espécie de hipotecagem do seu monaquismo aos interesses e políticas dos grandes senhores feudais. Por outro lado, não administravam paróquias, nem recebiam benefícios eclesiásticos. Por isso, a recusa de benesses temporais ajudava e forçava a necessidade do trabalho dos monges, dando-lhes, contudo, a liberdade da independência económica. Nos primeiros cem anos de fidelidade e fervor, foi com estes elementos de defesa, que se afirmou a Ordem de Cister. Uma espécie de ânimo guerreiro, de cavaleiresca nobreza, como queria S. Bernardo, devia animar aqueles monges, autênticos milites Christi. Valeria a pena aqui recordar aquele animoso texto da 1ª carta, dirigida ao sobrinho, que tinha querido esquivar-se ao rigor de Cister trocando-o pela suave observância de Cluny. Como seria importante recordar o texto em que fala do exemplo activo de seu irmão carnal, Gerardo, falecido em 1143: «Não era somente o maior nas coisas grandes, mas também nas pequenas. Por exemplo, quem superou a perícia de Gerardo nos edifícios, nos campos, nas hortas, nas águas e, finalmente, nos ofícios e trabalhos dos camponeses? Digo, em coisas desse género, escapava alguma coisa à sagacidade de Gerardo? Com facilidade era mestre de pedreiros, ferreiros, agricultores, hortelãos, sapateiros, tecelões. Embora na opinião de todos fosse o mais experimentado, só nos seus olhos não era experimentado»4. Aqui poderíamos recordar o testemunho do historiador beneditino do século XIII, Odalrico Vital, e o estudo profundo de Terryl Kinder e outros contemporâneos, que bem provam a dimensão laboral dos primitivos cistercienses. Depois, bem depois, com a mística inicial já mortiça, Cister caiu na normalidade de qualquer instituição. IV - A ARTE DA CONSTRUÇÃO E A ESPIRITUALIDADE DO GÓTICO

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arte gótica não é uma novidade introduzida por Cister, mas um aproveitamento de contemporaneidade e espiritualidade. De facto, dentro do trabalho manual dos cistercienses, não podemos deixar de exaltar a arquitectura e a arte 4  BERNARDUS Claravallensis – Sermones in Cantica Canticorum. Sermo XXVII: Obitum fratris Gerardi luget. In «PL», 183, 903-911; Cfr. «Obras Completas de S. Bernardo», V, 364-386, nº 7, 376-377.

de estilo gótico que, posteriormente, os cistercienses, por causa daqueles arcos em ogiva, como mãos erguidas, cultivaram com esmero e até religiosidade nos seus mosteiros, a ponto de lhe chamarem a arte bernardina. Estabelecendo o estilo inicial de vida cisterciense, a «Carta Caritatis» seria como que a Constituição da Ordem e os «Instituta» determinados pelo Capítulo Geral de 1134 seriam a determinação concreta do ideal e da disciplina. Por essa altura, já S. Bernardo emprestava à Ordem Cisterciense a mais-valia do seu dinamismo apostólico e a doutrina da sua mística e espiritualidade incomparáveis. Tenham-se presentes a «Apologia», os entusiasmantes 86 sermões sobre o Cântico dos Cânticos, as excitantes e empolgantes 426 cartas, etc. Se a sua propaganda inflamou a Europa para a segunda Cruzada em Vézelai, em 1145, como é que este santo monge não havia de atrair e empolgar os seus irmãos de hábito e de fervor no Reino de Deus e de Jesus Cristo? Claro que os monges de Cister deram o contributo do seu trabalho e da sua consagração; eles foram o instrumentum conjunctum da acção divina; mas, no plano humano do ideal, a mística que os animava e a espiritualidade que os movia foram o carburante dessa gesta que se propagou incandescente na Europa do século XII «como centelha num canavial» (Sab. 3,6). Vejam o rasto do trabalho na agricultura e na vinha que os cistercienses nos deixaram. Por isso é que o turismo moderno, mesmo em Portugal, procura restaurar os roteiros cistercienses, levar-nos a admirar o trabalho artístico-arquitectural das suas abadias, o incentivo das suas granjas de cultura e de vinha! Por último, analisemos um pouco a obra das construções monásticas, a que os estudiosos modernos, historiadores e arquitectos, são mais sensíveis para realçar o êxito de Cister. Inicialmente, eram os próprios monges que construíam os seus mosteiros e igrejas, geralmente em madeira. É óbvio que, entre eles, houve gente capaz: arquitectos, artistas, operários. Disso temos vários testemunhos desde S. Bernardo, que aponta até o próprio irmão carnal, Gerardo, falecido em 1143, a quem fez um grande elogio, como vimos. No princípio, tudo era pequeno e pobre. S. Bernardo, só em 1135, depois de estabelecidos os «Instituta», é que se rendeu às insistências do seu prior para construir nova igreja, onde se pudesse desenrolar convenientemente a vida litúrgica da comunidade. De facto, inicialmente, Cister, na ânsia de simplici-


Cister do Douro

dade e rigor, suprimira todas as orações comunitárias supra-rogatórias de Cluny, que tinham tornado demasiado pesada a celebração do Ofício Divino (Ofício dos Defuntos, Salmos familiares ou pelos familiares, e até as missas privadas). Por isso é que o abade Hugo, cluniacense de Reading, respondendo à «Apologia» de S. Bernardo, ironizava, dizendo que os cistercienses queriam aproveitar o tempo para dormir: «Para uma noite mais profunda, o dormir pode, com certeza, ser tranquilo, porque, a matinas, apenas se devem ruminar os pouquinhos salmos, que a Regra prescreve, e nada mais. Os salmos pelos familiares, os ofícios pelos defuntos e, finalmente, as gloriosas cantilenas, que a Igreja conserva, não são cantados, e, uma vez recitados os poucos e raríssimos salmos, consumis quase toda a noite a dormir»5. Na realidade, só aos Domingos e Dias Santos é que alguns deles vinham ao seu mosteiro e só comungariam 12 vezes por ano. Nos tempos de aperto de trabalhos agrícolas, todos partiam a ajudar e, na Eucaristia, só tomavam parte os que estavam no mosteiro ou os doentes, prática que S. Bernardo justificava distinguindo a «caridade da verdade» (caridade afectiva: amar a Deus) e a «verdade da caridade» (caridade efectiva: servir o próximo). Dentro deste espírito de trabalho, impõe-se voltar a sublinhar que, ao contrário de Cluny, vigorava entre eles a recusa das dádivas de terras e heranças, evitando, assim, a referida hipotecagem do seu monaquismo aos interesses e políticas dos grandes senhores feudais. A recusa de benesses temporais ajudava e forçava a necessidade do trabalho dos monges, dando-lhes a liberdade da independência. Era desta maneira que eles queriam entender a Regra de S. Bento à letra («Literalitas/Puritas/Rectitudo Regulae»). S. Pedro Damião6 dizia que quase andavam esquecidos do «pondus diei et aestus», isto é, do peso do dia e do calor (Mt. 20,12) com que tinham de ganhar o pão de cada dia. Este afinco ao trabalho é, pois, o ponto de partida para outros motivos que nos ajudam a compreender o sucesso deste novo modo de viver o monaquismo.

5  Apud WILMART, A. – Une risposte de l´ancien monachisme au manifeste de S. Bernard. «Revue Bénédictine», 50 (1984), 335s. 6

PETRUS DAMIANI – Epístola V. In «PL» cxlv, 380.

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V - CISTER EM PORTUGAL E NO VALE DO RIO DOURO

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perda dos documentos dos princípios de Cister no nosso país, no incêndio do Seminário de Viseu, em 1848, fez com que a origem histórica dos cistercienses em Portugal ande bastante nebulosa e envolta em lenda, como prova Miguel de Oliveira7. Mas é toda uma epopeia de espiritualidade e de arte, de religião e de cultura, como sublinha o monge precursor dos estudos históricos sobre os cistercienses em Portugal, D. Maur Cocheril, nos seus vários escritos, que um recente guia do Doutor Walter Osswald muito bem aproveitou. Cister chegou relativamente tarde a Portugal, no ocidente europeu, que S. Bernardo considerava uma «terra longínqua», mas também aqui foi influente, barroquizando-se embora com os ouropéis da arte. Hoje, os seus mosteiros estão quase todos em ruínas, e até já nem têm monges. Em resumo, também, aqui, o sucesso de Cister conheceu o triste ciclo da morte, embora permaneça firme e estável essa maravilha de arte que é o Mosteiro de Alcobaça! Para além da estéril discussão, histórico-lendária, acerca da prioridade Lafões-Tarouca e da figura emblemática de Fr. João Cirita, melhor diria «eremita», não há dúvida que é à volta da região de Tarouca, cercana de Lamego, que a Ordem de Cister emerge entre nós8. E, hoje ainda, por lá estão as ruínas dos mosteiros de Tarouca, Salzedas, com todo o problema da igreja velha, e ainda os de S. Pedro das Águias e de Santa Maria de Aguiar. Pode-se, com relativa ousadia, afirmar que o mosteiro de Tarouca é o primeiro da Ordem de Cister a estabelecer-se em Portugal, tendo recebido carta de couto do rei D. Afonso Henriques, em 1140. Teria havido ali antes monges beneditinos? Não me parece provável, quando muito, talvez uma pequena Tebaida de eremitas. As origens do mosteiro cisterciense de Tarouca perdem-se em pequenas historietas encontradas no cartório, quando ainda existia e foi manuseado por 7  OLIVEIRA, Pe. Miguel de – Origens da Ordem de Cister em Portugal. «Revista de História». Coimbra, tomo V (1951), 317-353; MARQUES, Maria Alegria – Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal. Lisboa: Edições Colibri/Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1988. 8  Cister no Vale do Douro. Porto: Ed. Afrontamento/GEHVID, 1999; COCHERIL, D. Maur – Routier des Abbayes Cisterciennes du Portugal. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1978.


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monges e estudiosos. Infelizmente toda a documentação se perdeu no incêndio do Seminário de Viseu, em 1848, pelo que não a podemos controlar. A lenda de João Cirita e dos oito monges enviados por S. Bernardo, que nos foi transmitida por Fr. António Brandão (Livro das Doações - 1º, 2º, 3º, 4º docs.) e que está reproduzida nos azulejos da actual capela-mor, não passa disso mesmo. Provável é que o mosteiro tivesse origem num eremitério anterior, e disso parece prova o padroado de S. João, e por volta de 1140 assumisse a Regra Beneditina segundo a observância de Cister; pelo menos é isso que podemos deduzir do confronto entre os documentos de 1140 e 1145, quando, expressamente, se refere a observância de Cister. Um documento de 1147 já fala de dois monges de Claraval: «Fratres claravalenses. Prior eorum in Taurauca comorantes». A partir daí, o mosteiro cresceu e alargou-se, inclusive, com a dádiva por D. Afonso Henriques do couto de Santa Eulália (Abril de 1144), junto à foz do Douro, importante por causa do peixe e do sal, que os monges precisavam. Entretanto, na região, os monges iam trabalhando campos e granjas. E foi essa a mais-valia que eles vieram trazer à região. Disso, aliás, no tempo do abade Geraldo (11631170), provieram os bens e as várias granjas, onde, ao longo dos tempos, fabricavam o vinho, tão abundante e precioso na região. A bula «Quoties illud», do Papa Alexandre III, emitida em 4/VI/1163, tomou os monges de Tarouca sob a sua protecção, inseridos na abadia-mãe de Claraval, e confirmou os bens recebidos. Almeida Fernandes9 foi o primeiro investigador que tentou inventariar as granjas e propriedades rurais dos primórdios da Ordem naquela zona de Tarouca, os seus edifícios e as suas culturas, sobretudo de trigo e vinho e que foram conseguidas por doações ou aquisições. Recentemente, outros estudiosos têm desenvolvido o tema. Assim, podemos referir os trabalhos de Maria do Céu Simões Tereno10, que, para Tarouca, fala de granjas em Mondim da Beira, Almofala, Granjinha, Arcas, Sever, Souto Redondo, Alvite, Leomil e Quinta do Granjão, dando importância ao Celeiro de Mondim de Baixo. A mesma autora indica para Salzedas as granjas da Quinta do Pinhô, antiga granja de Cimbres, Granja da Ucanha, perto do achado arqueológico do

que teria sido a primitiva implantação da abadia, etc. Poder-se-ia ir mais longe, mas este trabalho teve, sobretudo, a preocupação de apresentar uma perspectiva geral da implantação cisterciense nesta zona. Poderíamos ainda referir granjas esquecidas do mosteiro de Santa Maria de Aguiar, como a do Cibrão, a de Tourões ou La Sacristia. E numa visão mais alargada não deixaríamos de falar da exploração feita pelo mosteiro novo de S. Pedro das Águias, que, hoje, é um bom exemplo de exploração vinícola. Quanto ao estudo da vinha e do vinho, há um trabalho de síntese devido a Maria Amélia Albuquerque11. Segundo esta investigadora, os monges prepararam terrenos, ergueram quintas, introduziram novas técnicas de tratamento, trouxeram novas castas, numa palavra, activaram no Douro o cultivo da vinha, aquilo que, hoje, honrosamente, constitui o Douro como Património Mundial da Humanidade. Em relação ao mosteiro de S. João de Tarouca, a grande quinta produtora de vinho era a Quinta do Mosteiro, na foz do rio Varosa, que, à altura da extinção das ordens religiosas, tinha 118 pipas de vinho no valor de 300.000 réis. Junto a esta, o mosteiro possuía ainda a vinha da Formiga e a vinha do Bacelo. Ao mosteiro de Salzedas pertenciam as grandes quintas da Folgosa, chamada, hoje, Quinta dos Frades, e a de Monsul, ambas situadas pouco acima do rio Douro na margem esquerda. Em Monsul, que, de há muito, está na posse da família Archer de Carvalho, vimos nós grande quantidade de documentação, já de tempos antigos, que, do ponto de vista cultural, bem valeria a pena ser estudada. É evidente que muito do vinho era para venda, pois o universo dos monges, conforme os índices dos mosteiros ao tempo da expulsão de 1834, sendo numeroso, não conseguiria bebê-lo todo. Termino, pois. Aqui têm, os caros amigos, como os humildes e laboriosos monges de Cister, procurando uma vida espiritualmente empenhada, não deixaram de cultivar e desenvolver estas terras agrestes mas fecundas do Douro. E venham lá, agora, os próceres da democracia republicana, ufanos e vingativos, dizer que os «frades eram preguiçosos, calaceiros e parasitários»!

9  FERNANDES, A. Almeida – Acção dos monges cistercienses de Taroucas. «Revista de Guimarães», 83 (1973), 37-51. 10  TERENO, Maria do Céu Simões – Granjas dos Coutos dos Mosteiros de Tarouca e Salzedas. In «Tarouca e Cister. Homenagem a Leite de Vasconcelos». Tarouca, 2004, 261-285.

11  ALBUQUERQUE, Maria Amélia – A vinha e o vinho nos Mosteiros Cistercienses do Douro. In «IV Congreso Internacional sobre El Cister en Portugal y en Galícia. Actas». Ourense, 2009, tomo I, 215-223.




Mosteiro de S. João de Tarouca: Da investigaçção à musealização texto: Luís Sebastian - Museu de Lamego / DCRN (mlamego.diretor@culturanorte.pt)

Palavras-chave Monastery of S. João de Tarouca (Portugal); Cister; Investigation; musealization Resumo O mosteiro masculino cisterciense de S. João de Tarouca foi fundado em 1140. Extinto em 1834, as suas dependências monásticas foram vendidas em hasta pública, sendo estas reaproveitadas como pedreira e quase totalmente desmanteladas. Monumento Nacional desde 1956, foi sujeito a uma intensiva escavação arqueológica entre 1998 e 2007, da responsabilidade do agora extinto Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR). Já em 2008, pela mão da Direção Regional de Cultura do Norte, é integrado num projeto de abrangência regional centrado no Vale do Rio Varosa, subsidiário ao Vale do Rio Douro, Património da Humanidade, numa rede de monumentos abertos de forma integrada à fruição pública, tendo ainda por núcleo principal o Mosteiro de Santa Maria de Salzedas e o Convento de Santo António de Ferreirim. Em curso desde 2009, este projeto encontra-se em avançado estado de realização, com a recuperação do edifício da igreja e a musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca já concluídas. Palavras-chave Mosteiro de S. João de Tarouca (Portugal); Cister; Investigação; musealização

Abstract (812 de 750 caracteres) The male Cistercian monastery of S. John Tarouca was founded in 1140. Closed in 1834, its monastic dependencies were sold at auction, which are reused as a quarry and almost completely dismantled. National Monument since 1956, was subjected to intensive archaeological excavation between 1998 and 2007, the responsibility of the now defunct Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR). In 2008, by the hand of the Direção Regional de Cultura do Norte, is part of a region-wide project centered in Vale do Rio Varosa, subsidiary to the Douro River Valley, a World Heritage Site, a network of monuments seamlessly open to public enjoyment, with an extra main core of the Monastery of Santa Maria Salzedas and Convent of Santo António Ferreirim. Ongoing since 2009, this project is in an advanced state of completion, with the recovery of the church building and musealization the archaeological area of the Monastery of S. John Tarouca already completed. Key-words Monastery of S. João de Tarouca (Portugal); Cister; Investigation; musealization


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“Mosteiro de S. João de Tarouca: da investigação à musealização12” 1. INTRODUÇÃO

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Mosteiro de S. João de Tarouca, pertencente à Ordem de Cister, foi fundado em 1140, tendo a sua construção sido iniciada em 1154. Com a extinção das ordens religiosas em Portugal em 1834, o recheio do mosteiro é vendido em hasta pública, tal como os edifícios das dependências monásticas, sendo a sua biblioteca e cartório depositados no Seminário de Viseu, onde viriam a desaparecer durante um incêndio em 1841. Após a sua venda, os edifícios correspondentes às dependências monásticas foram reaproveitados como pedreira, tendo sido totalmente desmantelados os edifícios medievais e boa parte dos edifícios de século XVII e XVIII. O edifício correspondente à igreja conservou-se graças ao facto de ter sido convertido em igreja paroquial. Tendo esta sido classificada Monumento Nacional em 1956, apenas em 1978 esta proteção foi estendida a toda a área monástica. Sucessivamente afeto à Direção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), Instituto Português do Património Cultural (IPPC), Instituto Português do Património Arquitetónico e, desde 2007, à Direção Regional de Cultura do Norte, o Mosteiro de S. João de Tarouca foi inicialmente inserido em 1996 num abrangente plano de recuperação e valorização de complexos monásticos cistercienses, por altura da comemoração dos 900 anos da Ordem de Cister. É neste âmbito que a sua escavação arqueológica se inicia em abril de 1998, estendendo-se até novembro de 2007, tendo durante este período contado com uma equipa de investigação permanente constituída por uma dezena de técnicos da área da arqueologia e conservação e restauro. Já em 2008, a Direção Regional de Cultura do Norte propõe-se integrar o Mosteiro de S. João de Tarouca num projeto de abrangência regional centrado no Vale do Rio Varosa, subsidiário ao Vale do Rio Douro, Património da Humanidade, numa rede de monumentos abertos de forma integrada à fruição pública, ten12  Este texto é uma versão atualizada da comunicação intitulada “Mosteiro de S. João de Tarouca, Projecto de Requalificação: 1998-2010”, apresentada no ”Congresso Património 2010”, realizado na Faculdade de Engenharia do Porto nos dias 14-16 Abril de 2010, organizado por esta e pela Direção Regional de Cultura do Norte.

do ainda por núcleo principal o mosteiro masculino cisterciense de Santa Maria de Salzedas (Tarouca) e o convento masculino franciscano de Santo António de Ferreirim (Lamego). Realizado o estudo preparatório nesse mesmo ano, em abril de 2009 é apresentada candidatura à linha de financiamento europeia ON2 – Douro Infraestrutural. Tendo esta sido contemplada com o solicitado financiamento, em novembro de 2009 iniciam-se as primeiras obras no âmbito deste projeto, incidindo exatamente sobre a igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca, para em agosto de 2012 voltar a ser alvo de intervenção, desta feita com a musealização da área escavada arqueologicamente. 2. PROJETO DE REQUALIFICAÇÃO DO MOSTEIRO DE S. JOÃO DE TAROUCA: 1998-2013

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acentuado estado de degradação do conjunto e a reduzida informação documental levou a que o projeto de requalificação desenvolvido desde então se baseasse em grande medida na componente arqueológica, passando pela escavação exaustiva da totalidade da área correspondente ao núcleo central das dependências monásticas, compostas pelos edifícios medievais. Para além do natural papel desenvolvido pela Arqueologia no acompanhamento das ações de restauro do edificado, a investigação arqueológica estendeu-se ainda à paisagem e território, tendo a produção de informação histórica tido em especial atenção o seu aproveitamento como conteúdo de divulgação local – centro interpretativo; musealização da área arqueológica - e remota – publicações; divulgação on-line. Assim, se o projeto de recuperação do Mosteiro de S. João de Tarouca teve sempre por principais vetores a conservação, recuperação, valorização e divulgação, a componente arqueológica teve como principais objetivos o diagnóstico prévio e acompanhamento das ações de conservação e recuperação, a valorização do conjunto pela produção de informação histórica e, por fim, a potenciação e desenvolvimento de atividades tendo por suporte a informação histórica produzida. 2.1. Zona Especial de Proteção: 1999 De forma a proteger a forte interligação entre o mosteiro e a paisagem rural envolvente, não só pri1 - Zona Especial de Proteção do Mosteiro de S. João de Tarouca, estabelecida em 1999 (Luís Sebastian sobre Carta Militar Portuguesa).


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mordial do ponto de vista visual, mas igualmente pelo seu significado histórico, dado o importante papel destes cenóbios cistercienses no desenvolvimento agrícola e populacional da região durante o período medieval, foi estabelecida em 1999 uma vasta Zona Especial de Proteção, demarcada segundo os limites de visibilidade (Figura 1). 2.2. Resgate do espaço monástico – aquisição progressiva: 1996-2007 Tendo as dependências monásticas sido vendidas em hasta pública a um só adquirente, a sua partilha por herança durante várias gerações levou a que toda a área interior da cerca de clausura se encontrasse dividida por dezenas de diferentes proprietários à altura do início do projeto em 1996. Este facto impôs a necessidade de adquirir progressivamente todas as diferentes parcelas até, uma vez mais, se recuperar a integridade de toda a área de clausura. Este longo processo de aquisições, iniciado ainda em 1996, prolongou-se até 2007, faltando apenas a aquisição de duas parcelas

3 - Aspeto geral da torre sineira antes e depois da sua recuperação entre 1998 e 1999 (Humberto Vieira; Luís Sebastian).

2 - Área da cerca monástica progressivamente adquirida pelo Estado Português entre 1996 e 2007 (Luís Sebastian).

para que todo o complexo monástico se encontre sob a tutela do Estado Português (Figura 2). 2.3. Escavação e recuperação da torre sineira: 1998-1999 Dentro da componente de acompanhamento das ações de conservação e recuperação do edificado, entre 1998 e 1999 procedeu-se ao registo prévio e acompanhamento do desmantelamento da torre sineira de século XVIII, passando pela escavação do seu interior, utilizado como zona de despejos de lixos domésticos, destacando-se ao nível arqueológico a quantidade, va-

riedade e riqueza dos materiais exumados. A recolocação do campanário original resultou por sua vez não só na recuperação total da estrutura, mas igualmente na libertação da fachada da igreja, até então e desde princípios de século XX parcialmente encoberta por uma pequena torre sineira, improvisada a partir do reaproveitamento do campanário da torre sineira de século XVIII, agora recuperada (Figura 3). 2.4 Recuperação do interior da igreja: 1998-2004 Entre 1998 e 2004 decorreram diversas ações de conservação e restauro do interior da igreja, incidindo sobre a pintura inserida nos diversos retábulos, espaldares ou emolduradas individualmente; sobre o mobiliário, com destaque para o arcaz da sacristia; a cobertura azulejar e a pintura dos tetos da sacristia e capela-mor (MONAR, 2002). Ainda em 1998 foi iniciada a instalação do sistema de drenagem de humidades sob o lajeado da igreja, incluindo calhas técnicas com o objetivo da total eliminação visual de cablagens elétricas. Iniciada na sacris-


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4 - Aspeto geral dos trabalhos de restauro da pintura do teto da capela-mor da igreja em 2004 (LuĂ­s Sebastian).


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5 - Aspeto geral das ruínas monásticas antes da desmatação e limpeza em 1998 (José Eduardo Mendes).

tia, esta operação estender-se-ia em 2003 ao cruzeiro e braços do transepto (Figura 4). 2.5 Desmatação e limpeza do interior da cerca de clausura: 1998-2006 De acordo com o prosseguimento da aquisição das diversas parcelas pelas quais se encontrava dividida a

área de clausura, procedeu-se à sua desmatação e limpeza entre 1998 e 2006, incluindo pontuais ações de consolidação das ruínas, com destaque para as capelas de século XVIII de Santo António e Santa Umbelina (Figura 5 e 6).

6 - Aspeto geral das ruínas monásticas após a desmatação e limpeza entre 1998 e 2006 (Ana Castro).


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2.6 Limpeza e consolidação do “Aljube”: 2004 / 2006 Ligeiramente apartado do conjunto de edifícios monásticos, o edifício popularmente designado de “Aljube”, correspondente a uma monumental construção medieval de função ainda incerta, foi alvo de desmatação e limpeza no ano de 2004. Em 2006 procedeu-se por sua vez ao desentulhamento do seu interior, seguido do reequilíbrio e consolidação das suas paredes (Figura 7 e 8).

7 - Aspeto geral das ruínas do “Aljube” antes e após a sua desmatação e limpeza em 2004 (Luís Sebastian).

8 - Aspeto geral dos trabalhos de 2006 de desentulhamento do interior do “Aljube”, reequilíbrio e consolidação de paredes (Ana Castro; Luís Sebastian).


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2.7 Recuperação funcional do “Moinho do Convento”: 2006 Anexo ao “Aljube”, o localmente designado “Moinho do Convento”, com atividade documentada pelo menos desde século XVII, foi alvo de restauro funcional em 2006, tendo-se reparado os dois mecanismos de rodízio segundo a técnicas tradicionais da região (Figura 9).

9 - Alguns aspetos gerais dos trabalhos de recuperação do “Moinho do Convento” em 2006 (Luís Sebastian).


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2.8 Escavação arqueológica: 1998-2007 Contudo, e naturalmente, a escavação da área correspondente às dependências monásticas originais absorveu a grande parte dos meios arqueológicos instalados no local. Constituindo-se uma equipa permanente de 2 Arqueólogos, 1 Técnico Superior de Conservação e Restauro, 2 Desenhadores Técnicos de Arqueologia, 1 Assistente de Conservação, 3 Assistentes de Arqueólogo e 2 Operários de Arqueologia, esta procedeu entre 1998 e 2007 à escavação de uma área contínua superior a 3500m2, à qual se juntam 20 sondagens de avaliação prévia, acompanhamento e salvaguarda (Figura 10, 11 e 12).

10 - Alguns aspetos gerais da área de escavação arqueológica antes e depois da sua realização entre 1998 e 2007 (José Eduardo Mendes; Luís Sebastian).


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12 - Planta geral da área de escavação arqueológica (Hugo Pereira & Luís Sebastian & Sílvia Pereira). 11 - Planta geral da área de escavação arqueológica – organização e desenvolvimento dos trabalhos (Luís Sebastian & Ana Castro).


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13 - Sistema informático de armazenamento e gestão de informação “Arqueo” – exemplo do armazenamento e gestão de informação cerâmica (Luís Sebastian).


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2.8.1 Escavação arqueológica: 1998-2007 – Indicadores de progresso O enorme volume de espólio recuperado obrigou ao correspondente esforço ao nível da sua limpeza, consolidação, reintegração, inventariação, registo, acondicionamento e estudo. Como indicadores, aponta-se a recolha de 395 moedas, 1.389 objetos metálicos, 1.434 elementos arquitetónicos e, em claro destaque, um conjunto estimado de 300.000 fragmentos cerâmicos, com 140.473 fragmentos lavados, marcados e inventariados, resultando em 4.714 peças reconstituídas, incluindo 389 ações de conservação e 106 de restauro, com registo gráfico de 1.803 peças e fotográfico de 377. Este esforço de registo traduziu-se ainda no desenho de 163 elementos arquitetónicos e 2.355 registos fotográficos. Ao espólio exumado devemos ainda juntar a recolha de 293 amostras, abrangendo materiais como cerâmica, argamassas ou vestígios orgânicos, tendo sido analisadas 92 amostras. No total, e com base na informação reunida, foi possível desenvolver uma contínua atividade de divulgação dos trabalhos, com 21 participações em encontros científicos e a publicação de 42 textos versando as mais variadas temáticas dentro do universo em estudo. 2.8.2 Escavação arqueológica: 1998-2007 – Gestão de informação De forma a armazenar e gerir o enorme volume de informação produzido, foi desenvolvido desde 1998 um sistema informático composto por 14 bases de dados inter-relacionadas, aperfeiçoadas em contínuo ao longo do desenrolar do projeto. Designado por “Arqueo”, este sistema procurou assim organizar o trabalho segundo um método célere, prático e versátil, tanto quanto possível independente de suportes fixos e materiais, que ao apoio à execução juntasse mais tarde o apoio à gestão museológica13 (Figura 13).

13

CASTRO et al., 2004b.

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2.9 Reconstituição arquitetónica Um dos principais objetivos da investigação histórico-arqueológica passou pela reconstituição arquitetónica do complexo monástico, incluindo as suas diversas alterações e ampliações posteriores à construção original de século XII-XIII. 2.9.1 Reconstituição arquitetónica – Recolha de registos fotográficos: 2001-2006 Este processo de reconstituição integrou várias abordagens metodológicas convergentes, tendo como principal linha condutora os vestígios estruturais exumados pelas escavações arqueológicas. A primeira abordagem complementar passou pela identificação e reprodução de todos os registos fotográficos do imóvel, com especial atenção aos registos atribuídos aos primórdios da fotografia em Portugal. Contando-se felizmente a este nível com diversos registos pela mão de alguns dos principais fotógrafos oitocentistas da região Norte, esta recolha estendeu-se pelos anos de 2001-2006, tendo-se revelado uma importante fonte de informação (Figura 14).

14 - Exemplo de registo fotográfico das ruínas monásticas nos finais do século XIX (Casa de Fotografia Kymagem, Lamego).


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15 - Aspeto do levantamento gráfico de pormenor da igreja realizado entre 2001 e 2003 – fachada da igreja (Hugo Pereira).

2.9.2 Reconstituição arquitetónica – Levantamento gráfico de pormenor da igreja: 2001-2003 Vital no estudo do edifício da igreja do mosteiro, único totalmente conservado da construção original, procedeu-se ao seu levantamento gráfico de pormenor entre os anos de 2001 e 2003. Para o efeito desenvolveu-se um método híbrido entre o desenho técnico de arqueologia clássico, manual, mas com recurso a medições laser de estação total, e o desenho informático vetorial, resultando em margens de erro reduzidas e um formato final versátil e reeditável e constantemente atualizado de acordo com o desenvolvimento dos trabalhos. Assim, o ano de término do levantamento corresponde apenas ao registo total do edifício à data, não deixando nunca de ser complementado com nova informação produzida por sondagens arqueológicas, acompanhamento de obras ou restauros, incluindo mesmo o registo de todas as adições e subtrações realizadas nas diversas intervenções de recuperação e conservação do edifício desde 199814 (Figura 15). 14  SEBASTIAN et al., 2010; SEBASTIAN, 2012.

2.9.3 Reconstituição arquitetónica – Estudo gliptográfico: 2004-2005 Ao levantamento de pormenor do edifício da igreja seguiu-se entre 2004 e 2005 o estudo das suas marcas de canteiro, em contínuo alargado a toda a área das dependências monásticas medievais, uma vez o adiantado estado das escavações já então o permitir. Na realização deste estudo teve-se em conta não apenas o levantamento das diferentes marcas de canteiro visíveis, mas a sua inventariação, numeração, registo e inscrição em base de dados informática desenvolvida para o efeito, permitindo a organização das diferentes marcas segundo a sua morfologia, técnica de talhe, posição no edifício, tipo de elemento arquitetónico marcado e tipologia, como marca de identidade ou de posição. Deste estudo resultaram dados inéditos para o cálculo do número de canteiros envolvidos no processo construtivo, relação familiar/profissional entre canteiros, sua mobilidade – por comparação com outros monumentos na região –, ritmo e ordem de construção. De forma mais específica, as marcas de posição revelaram-se especialmente importantes na reconsti-


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tuição do complexo medieval, sendo por vezes apenas percetível a presença de vãos ou das alturas originais dos alçados através destas, quando ainda conservadas15 (Figura 16 e 17). 15

CASTRO & SEBASTIAN, 2005a; CASTRO & SEBASTIAN, 2010b.

16 - Aspeto do registo de marcas de canteiro de identidade (Ana Castro).

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2.9.4 Reconstituição arquitetónica – Estudo petrográfico: 2005-2007 Entre 2005 e 2007 foi realizado o estudo petrográfico do mosteiro, tendo como principal ponto de partida a análise exaustiva do alçado sul da igreja, tido como o mais representativo da construção medieval. Este estudo foi realizado em colaboração com o Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra, no âmbito da tese de mestrado “Alçado sul da igreja do Mosteiro Medieval de São João de Tarouca: caracterização e proveniência dos materiais pétreos”, da responsabilidade da geóloga Catarina Alexandra Marques. Foi assim possível identificar as diversas pedreiras que forneceram o material pétreo à construção original e posteriores ampliações no século XVII e XVIII, bem como as diferentes técnicas de extração, transporte, talhe, elevação e assentamento, desvendando diferentes interrupções e ritmos de construção. Este trabalho teve ainda como objetivo a identificação de patologias ligadas à degradação dos diferentes tipos de pedra e, consequentemente, o melhoramento das ações conservativas16 (Figura 18, 19 e 20).

16

MARQUES, 2007; MARQUES et al., 2010a; MARQUES et al., 2010b.

17 - Exemplo de marca de canteiro de posição (realçada a vermelho) indicando a localização e dimensão do vão de ligação da cozinha ao refeitório (Luís Sebastian).


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18 - Localização das pedreiras identificadas (Catarina Alexandra Marques & Luís Sebastian).


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19 - Aspeto de silhar inacabado e abandonado no local de extração (Luís Sebastian).

20 - Aspeto do mapeamento petrográfico realizado ao alçado Sul da igreja (Catarina Alexandra Marques sobre Hugo Pereira).


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21 - Aspeto do mapeamento das várias fases construtivas da igreja (Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).

2.9.5 Reconstituição arquitetónica – Arqueologia da Arquitetura (igreja): 2003-2007 A abordagem convencionalmente designada de “Arqueologia da Arquitetura” foi então aplicada ao edifício da igreja entre 2003 e 2007, atendendo aos aspetos estilísticos, materiais e técnicos, não só da pedra, mas inclusivamente das diferentes argamassas empregues (Figura 21).

2.9.6 Reconstituição arquitetónica – Estudo aritmológico e metrológico: 2007 Sobre as três abordagens anteriores juntou-se ainda a análise aritmológica e metrológica do traçado medieval, atendendo àquele que deveria ter sido o plano original e intencionado de acordo com as proporções então tidas como corretas e sagradas, contraposto ao produto final, no qual se registam desvios por motivos de adaptação ao terreno ou mesmo por erro. Toda a informação assim reunida foi por sua vez cruzada com a documentação existente e comparada com os paralelos históricos considerados mais próximos17 (Figura 22, 23, 24, 25 e 26).

17

SEBASTIAN & CASTRO, 2007; SEBASTIAN & CASTRO, 2009.


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22 - Análise aritmológica da planta medieval (Luís Sebastian).


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24 - Aspeto da reconstituição da fachada original da igreja com sobreposição da aritmologia e metrologia que lhe serviu de base (Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).

23 - Aspeto do registo de elementos arquitetónicos exumados na escavação arqueológica ou reaproveitados na construção das casas do burgo de S. João (Hugo Pereira).


24 - Aspeto da reconstituição da fachada original da igreja com sobreposição da aritmologia e metrologia que lhe serviu de base (Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).

26 - Planta geral do complexo monástico assinalando-se as diversas fases construtivas (Luís Sebastian).


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25 - Aspeto da reconstituição da arcada do claustro com sobreposição da metrologia que lhe serviu de base (Luís Sebastian).


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2.9.7 Reconstituição arquitetónica - Cerâmica de revestimento: 2003 Já em 2003, os diferentes revestimentos cerâmicos foram alvo de estudo preliminar, com natural destaque para o azulejo. O desenvolvimento dos trabalhos desde então não deixará de implicar futuramente uma revisão das conclusões então retiradas, com a adição de pelo menos mais dois grupos tipológicos de azulejos entretanto identificados18 (Figura 27). 2.9.8 Reconstituição arquitetónica - Campanário: 2002-2008 Com reflexo ainda na reconstituição do edificado, em 2002 foram identificados e escavados vestígios de século XIV da fundição local de um sino. Dado a raridade da ocorrência e o excecional bom estado de conservação dos mesmos, optou-se por um estudo aprofundado do tema, levando ao seu alargamento à região e, em consequência, à identificação, estudo e classificação da extinta fundição de sinos da Granja Nova. Deste esforço resultou ainda em 2005 a organização da exposição “Sinos, a partir da fundição”, em colaboração com a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em articulação com o “3º Simpósio sobre Mineração e Metalurgia Históricas no Sudoeste Europeu”, e a publicação em 2008 da obra “Subsídios para a História da Fundição sineira em Portugal”19 (Figura 28 e 29).

18

CASTRO & SEBASTIAN, 2003b.

19

SEBASTIAN, 2006; SEBASTIAN, 2008; SEBASTIAN et al., 2008.

28 - Aspeto geral do fosso de fundição sineira escavado e fragmento de molde de sino com pentagrama (Sérgio Pinheiro; Luís Sebastian).


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29 - Fotografia da fundição de sinos da Granja Nova ainda em laboração na primeira década de século XX e registo fotográfico do forno de fundição ainda conservado (MOREIRA, 1924: 29; Luís Sebastian).

27 - Planta de distribuição dos diferentes grupos tipológicos de azulejos (Luís Sebastian).

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2.10 Paleobiologia: 2005 Em 2005, tendo-se considerado que a escavação arqueológica não iria permitir melhores recolhas de enterramentos que os até então obtidos, procedeu-se ainda ao estudo paleobológico dos vestígios osteológicos recuperados na sala do capítulo, correspondendo na totalidade ao enterramento de abades. Este estudo foi feito em colaboração com o Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, fornecendo informação ao nível etário, estatura, alimentação e patologias congénitas e derivadas da vivência monástica20 (Figura 30). 2.11 Arqueologia espacial: 1998-2007 Entre 1998 e 2007, paralelamente ao estudo do edificado, desenvolveu-se em contínuo o estudo da paisagem histórica – natural e antrópica –, procurando-se definir estratégias de implantação, apropriação e estruturação do espaço por parte do Mosteiro de S. João de Tarouca. 2.11.1 Arqueologia espacial: 1998-2007 - Arqueobotânica Esta abordagem, inscrita no que podemos designar por Arqueologia Espacial ou da Paisagem, passou pela recolha de amostras pedológicas sempre que as condições ideais para a sua recolha se verificaram em escavação, tendo-se mesmo realizado sondagens arqueológicas estrategicamente posicionadas de modo a procurar a ocorrência de condições propícias a essa recolha. A análise destas amostras, com especial incidência na polinologia e antracologia, permitiu reunir importantes dados arquebotânicos para a reconstrução da paisagem natural – cobertura vegetal – no momento do início da construção do mosteiro e sua evolução ao longo dos diferentes séculos, determinando-se igualmente a introdução de novas espécies vegetais, com naturais consequências ao nível da alimentação, sendo que para esta se realizaram ainda análises arqueozoológicas de modo a determinar espécies animais consumidas21 (Figura 31).

30 - Registo fotográfico de enterramento na sala do capítulo (Ivo Rocha).

31 - Registo de recolha de amostras pedológicas e esquema de resultados polínicos (Ana Castro; Luís Sebastian). 20  SEBASTIAN et al., 2008/2009. 21  SEBASTIAN et al., 2008; QUEIROZ, 2012.


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Salzedas, uma perspectiva sobre a rede viária do couto monástico” da responsabilidade do arqueólogo António Ginja, esta abordagem começou a ser estendida ao couto monástico do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas, sobranceiro ao couto do Mosteiro de S. João de Tarouca, procurando-se assim alargar o estudo à totalidade do Vale do Varosa24 (Figura 32).

31 - Registo de recolha de amostras pedológicas e esquema de resultados polínicos (Ana Castro; Luís Sebastian).

2.11.2 Arqueologia espacial: 1998-2007 – Análise documental A análise documental, auxiliada por prospeção dirigida no terreno, permitiu por sua vez determinar em pormenor os limites do couto monástico e identificar propriedades e granjas agrícolas pertencentes ao mosteiro22. 2.11.3 Arqueologia espacial: 1998-2007 - Inventário de património associado A prospeção intensiva de toda a área do couto monástico permitiu consequentemente a identificação de centenas de elementos históricos, como marcos, calçadas, pontes e pontões, levadas, capelas, cercas, alminhas, entre outros. De forma a armazenar e gerir todos os dados reunidos, foi ainda desenvolvida uma base de dados informática apelidada de “InventaPatrimónio”, onde toda a informação foi concentrada de forma organizada e facilmente consultável23. Já em 2008, em colaboração com o Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra, no âmbito da tese de licenciatura “O Mosteiro de Santa Maria de 22  CASTRO & SEBASTIAN, 2005b; CASTRO & SEBASTIAN, 2008/2009; CASTRO & SEBASTIAN, 2010a. 23

SEBASTIAN, 2007.

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GINJA, 2008.


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32 - Base de dados informática “InventaPatrimónio” (Luís Sebastian).


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3. INTEGRAÇÃO NO PROJETO “VALE DO VAROSA” 3.1 Integração no Projeto “Vale do Varosa” – Diagnóstico e plano preliminar de ação: 2008 Com a conclusão em 2007 do projeto iniciado em 1998 pelo antigo Instituto Português do Património Arquitetónico, a Direção Regional de Cultura do Norte propôs-se em 2008 integrar o Mosteiro de S. João de Tarouca num projeto de abrangência regional centrado no Vale do Rio Varosa, subsidiário ao Vale do Rio Douro, Património da Humanidade, numa rede de monumentos abertos de forma integrada à fruição pública, tendo ainda por principais núcleos o Mosteiro de Santa Maria de Salzedas e o Convento de Santo António de Ferreirim. Nesse sentido, foi realizado em 2008 um “Diagnóstico e plano preliminar de ação”, passando pelo levantamento dos imóveis classificados e elementos de valor histórico na região, tendo em atenção questões como proteção legal, propriedade, estado de conservação, acesso, estacionamento e condições de abertura ao público. A estes juntou-se a definição de percursos pedestres a potenciar, intimamente ligados à paisagem natural e histórica, identificação de estruturas de fruição operacionais, como museus, teatros, cinemas e auditórios, estruturas de acolhimento, como postos de turismo, unidades hoteleiras, turismos de habitação ou rural, e restaurantes. A pré-existência de projetos e roteiros em alguns pontos da região não deixou, naturalmente, de ser igualmente levada em consideração (Figura 33). 3.2 Projeto “Vale do Varosa” – Candidatura ao ON.2, Turismo Douro-Infraestrutural: 2009 Já em 2009, e no âmbito da apresentação de candidaturas à linha de financiamento ON.2 - o Novo Norte, Programa Operacional Regional do Norte - Turismo Douro-Infraestrutural, a Direção Regional de Cultura do Norte apresentou a candidatura “Vale do Varosa”, com o intuito de instalar na região, subsidiária ao Vale do Douro, nas áreas pertencentes aos concelhos de Tarouca e Lamego, uma rede de estruturas e soluções segundo o conceito de “Território Histórico”, numa estratégia integrada a nível regional beneficiando de uma elevada concentração de imóveis e elementos históricos de elevado interesse turístico-cultural, permitindo otimizar investimentos e potenciar um

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desenvolvimento turístico de conjunto em articulação com o Douro Património da Humanidade, tendo na sua fase inicial como núcleo monumental de destaque o Mosteiro de S. João de Tarouca, Mosteiro de Santa Maria de Salzedas e Convento de Santo António de Ferreirim, procurando desenvolver e alargar o investimento já realizado nos três imóveis desde 1996. Este conjunto de imóveis, constituindo há muito e de forma espontânea o que podemos designar de rede informal de monumentos da região do Varosa, abrangendo os concelhos de Tarouca e Lamego, e aos quais se associa diretamente em termos regionais o conjunto monumental da cidade de Lamego e seu Museu, constitui um dos mais recorrentes percursos de visita da Região Duriense interior, por eleição quer de particulares quer mesmo por operadores turísticos em atividade na região. Ao valor patrimonial intrínseco de cada um destes imóveis soma-se ainda a sua íntima relação histórica, coerência enquanto conjunto de fruição patrimonial e forte proximidade geográfica. Ao valor patrimonial de conjunto sobrepõe-se ainda uma forte componente paisagística, que aliada à proximidade geográfica contribui para uma consistente imagem de coesão. Os anteriores investimentos realizados ao abrigo de candidaturas apresentadas ao IIIQCA, numa abordagem individualizada aos imóveis Mosteiro de São João de Tarouca (POCultura), Mosteiro de Santa Maria de Salzedas (PONorte) e Convento de Santo António de Ferreirim (PONorte – medida 3.9), tiveram então como prioridade preocupações de salvaguarda e valorização como meios para o incentivo à fruição pública. Contudo, em consequência, a rede informal de monumentos da região do Varosa veio assim ser reforçada com as notórias melhorias do estado de conservação dos imóveis intervencionados. Por outro lado, a partilha de visitantes entre os diversos monumentos prova a sua coerência e atrativo enquanto conjunto, realçando-se de imediato os anomalamente elevados números de visitas para imóveis situados na região Norte interior, indicador do seu potencial turístico se desenvolvido em rede, em bom estado de conservação, com instalação das necessárias infraestruturas locais e eficaz estratégia de divulgação. Neste sentido, as principais linhas estratégicas da candidatura apresentada foram a recuperação de edificado, musealização de património móvel e imóvel, instalação de centros de acolhimento, interpretação e postos de vendas, criação de imagem personalizada,


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abertura ao público com funcionamento em rede e desenvolvimento de ações de divulgação conjunta. Como principais linhas orientadoras temos então que: - Em detrimento de um número variável de sítios de interesse histórico informal e intermitentemente abertos ao público, dever-se-á procurar criar a imagem de um só item de elevado valor patrimonial. Ao valor isolado e relativo, variável de cada um destes imóveis, substitui-se a ideia de conjunto, universo inter-relacionável, aproximando-se do conceito de território histórico. - Ao conceito de unidade deve corresponder uma só designação, facilmente assimilável através da unidade geográfica existente, por realçar, traduzida na uniformização gráfica da sua apresentação, com forte relação ao imaginário duriense. - Próximo ao conceito de imagem de marca, a esta unidade deve corresponder uma só designação, um só logótipo, um só grafismo, vertido em todos os suportes de apresentação, de sinalização viária, de publicação, de serviços e etiquetagem de bens, respeitando a sua natural relação com a região duriense e o imaginário já existente. - A constituição de uma rede de designação única deverá ter por núcleo inicial um conjunto criteriosamente selecionado de imóveis de elevado valor patrimonial, selecionados pela sua distribuição no território e mais imediata viabilidade de abertura condigna ao público, desejando-se que a este núcleo inicial de imóveis-ícone sejam progressivamente acrescentados um número crescente de imóveis de menor valor patrimonial isolado. - A um núcleo inicial propenso a visitas organizadas mais ou menos curtas, segundo o modelo de roteiro, pretende-se a gradual sobreposição de uma rede alargada capaz de reter o visitante por um dia ou, preferencialmente, por mais de um dia, beneficiando o consumo de bens e serviços locais e regionais. - Espera-se que à oferta de fruição de um número crescente de imóveis de valor patrimonial se junte, por parte da iniciativa privada, a oferta de bens e serviços relacionados, levando a uma maior diversificação e ao fomento da economia local e regional. - Que a constituição de um “produto” coeso e geo-

33 - Imóveis classificados (Luís Sebastian).

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graficamente concentrado potencie de forma facilitada a sua exploração direta e intensiva por parte dos operadores turísticos ativos na região. - Que a distribuição dos imóveis por uma área de coerente valor paisagístico potencie a sua exploração ao nível da fruição pública, livre e comercial, no âmbito das atividades Out-door, promotoras da saúde e bem-estar assim como do desenvolvimento duma maior consciência ecológica, com consequente preservação da fauna e flora regional. 3.3 Projeto “Vale do Varosa” – Musealização do Mosteiro de S. João de Tarouca: 2009-2013 Em novembro de 2009 iniciou-se a primeira intervenção no Mosteiro de S. João de Tarouca no âmbito do projeto Vale do Varosa. Esta incidiu primeiramente no edifício da igreja, passando pela substituição da cobertura (Figura 34); instalação de novo sistema elétrico e de iluminação (Figura 35), incluindo enterra-

34 - Aspeto da instalação do novo sistema de iluminação na igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).


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35 - Aspeto dos trabalhos de substituição da cobertura da igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).

36 - Aspeto dos trabalhos de enterramento de cabelagens e alargamento do sistema de drenagem interior de humidades na igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).


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37 - Aspeto dos trabalhos de substituição da cobertura da capela de Santa Umbelina, no interior da cerca de clausura do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).

mento de cablagens; alargamento do sistema de drenagem interior de humidades (Figura 36); instalação de sistemas de alarme de intrusão e incêndio; revisão de caixilharias e melhoramento do sistema de drenagem de águas pluviais. A preocupante torção que o canto sudoeste da fachada da igreja vinha a registar desde a colocação da última cobertura na década de setenta do século XX foi alvo de especial atenção, levando ao seu amarramento através da colocação interior de cabos de aço. A isto juntou-se ainda a revisão da cobertura da torre sineira com instalação de pára-raios e a substituição da cobertura da capela de Santa Umbelina, situada no interior da cerca de clausura, e então em risco iminente de ruína (Figura 37). Aproveitando esta oportunidade, não se deixou ainda de iniciar já a recuperação do adro-miradouro desta capela. Já em agosto de 2012, iniciou-se a segunda intervenção prevista no projeto para o Mosteiro de S. João de Tarouca, desta feita incidindo na área escavada arqueologicamente entre 1998 e 2007, e tendo por objetivo a musealização dos vestígios dos edifícios das dependências monásticas expostos pelas escavações

arqueológicas. Dado o profundo desmantelamento a que estes edifícios foram sujeitos para reaproveitamento da sua pedra, entre 1834 e os inícios do século XX, a sua leitura para o visitante revelava-se difícil, obrigando a uma solução que conferisse maior leitura geral. Por outro lado, a preocupação de conservação das construções exumadas impunha igualmente a sua urgente proteção e consolidação. A estas duas necessidades juntou-se a de dar destino ao colossal número de silhares utilizados originalmente na constituição das paredes dos edifícios das dependências monásticas, e recuperados durante as escavações arqueológicas, num total de 704. Como outra boa parte da pedra constituinte destes edifícios foi nos inícios do século XX lançada para a ribeira sobranceira ao mosteiro, de forma a alargar a área de cultivo em que todo o espaço se transformou após o desmantelamento quase completo dos edifícios, sabíamos que a este número inicial de 704 silhares se juntariam muitos mais, aquando da sua desobstrução (Figura 38).


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38 - Aspeto dos trabalhos de desobstrução da ribeira sobranceira ao Mosteiro de S. João de Tarouca (Sofia Catalão).

Assim, a opção seguida foi a da elevação das paredes através da recolocação dos silhares recuperados. Estes foram simplesmente pousados sobre as paredes existentes, sem qualquer ligação com argamassas. O enchimento das paredes, colocado entre as duas faces exteriores constituídas por silharia, e que nas paredes originais foi feita com pedra miúda e argamassa, foi feita nas fiadas agora acrescentadas apenas com pedra miúda solta. No global, esta solução veio permitir uma maior leitura das paredes, logo dos diversos espaços que compunham as dependências monásticas; a proteção dos vestígios das paredes originais; uma baixa manutenção em virtude do reduzido crescimento de vegetação; a total reversibilidade da solução encontrada; o armazenamento inteligente e útil de milhares de silhares (Figura 39). Neste procedimento deu-se todavia, e de forma assumida, destaque à leitura dos edifícios medievais originais. As paredes acrescentadas mais tarde, nas remodelações que o mosteiro sofreu nos séculos XVII e XVIII, sendo na maioria paredes interiores constituídas por pedra disforme e argamassa, foram apenas


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39 - Aspeto dos trabalhos de elevação das paredes medievais, exumadas arqueologicamente, no Mosteiro de S. João de Tarouca (Sofia Catalão).

consolidadas, sem elevação. As cotas de circulação dos diversos pisos foram repostas recorrendo a gravilha, separada dos vestígios originais por manta geotêxtil. As áreas exteriores sem piso estruturado foram simplesmente repostas com uma cobertura vegetal de hidrosementeira. No caso da torre sineira de século XVIII, cuja porta de acesso situada ao nível superior tinha ficado irremediavelmente sem acesso desde o desmantelamento da ala sul da noviciaria de século XVII, teve-se que desenvolver uma solução assumidamente nova e contemporânea, com instalação de uma escada em aço corten, com a função dúplice de miradouro. Para a resolução do problema de estacionamento automóvel e isolamento em relação a exterior da área musealizada, foi instalada uma vedação metálica, ao longo da qual se desenvolve um espaço de parqueamento para automóveis ligeiros e autocarros. Paralelamente a todos os trabalhos de musealização, foi ainda necessário reconstruir parte do muro de século XVIII, de encanamento da ribeira sobranceira

ao mosteiro, que tinha ruído no rigoroso inverno de 2001. Apesar de uma operação secundária em termos da musealização, esta operação foi das mais complicadas tecnicamente e das mais dispendiosas, dada a escala da estrutura, com cerca de 10 metros de altura, e a necessidade de reforçar interiormente a construção de século XVIII com um maciço de betão ciclópico que garantisse a máxima segurança em termos de futuras derrocadas, ainda para mais considerando a circulação e estacionamento automóvel, para o qual a construção original não foi projetada (Figura 40 e 41). Após esta intervenção, fica a faltar a instalação da receção, bilhética, posto de vendas e centro interpretativo, a instalar no antigo celeiro de século XVIII, sendo que neste centro interpretativo caberá a realização de uma exposição com base no riquíssimo espólio produzido pelas escavações arqueológicas, que a par da visualização de reconstituições dos edifícios e perceção da funcionalidade dos diversos espaços, permitirá ao visitante um mais completo entendimento da área agora musealizada.


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40 - Aspeto geral dos trabalhos em curso de musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca – vista de Nordeste para Sudoeste (Sofia Catalão).


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41 - Aspeto geral dos trabalhos em curso de musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca – vista de Noroeste para Sudeste (Sofia Catalão).


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Painel 1

Hist贸ria e Patrim贸nio Manuel Real Ana Sampaio e castro Nuno Resende


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O Significado da basílica do Prazo (Vila Nova de Foz Côa), na alta Idade Média duriense texto: Manuel Luís Real - Investigador do CITCEM

Resumo A basílica do Prazo integra-se num lugar arqueológico com uma continuidade de ocupação apreciável, desde a Pré-história à Idade Média. Sabe-se que aí houve cristãos desde a Antiguidade Tardia, mas o templo descoberto no Prazo deve remontar à primeira metade do século X. Pelas suas características, pertence a um grupo arquitectónico que se expandiu pela Beira interior e que, de diversos modos, revela uma influência da arte asturiana da última centúria. Isto terá ficado a dever-se a um clã liderado por Bermudo Ordonhes, irmão do rei Afonso Magno, contra o qual se rebelou. A sua presença no território de Viseu-Lafões foi apoiada pelo conde Diogo Fernandes e seus genros, netos de Vímara Peres e Afonso Betotes. Este clã inicia um processo de senhorialização da Beira interior, expandindo-se até ao Alto-Douro. Provavelmente, a basílica do Prazo deve ter sido fundada por descendentes de Diogo Fernandes e Onega. Palavras-Chave: Prazo; Basílica; Pré-Românico; Senhorialização

Abstract The basilica of Prazo is in an archaeological place with an appreciable continuity since the Pre-history to the Middle Age. We know that there was a Christian occupation since the Late Antiquity, but the church discovered in Prazo must be founded only in the first half of the tenth century. Its characteristics show that it belongs to an architectural group that was spreading in the interior of Beiras and, in several ways, discloses an influence of asturian art. It will have been implemented by the clan led by Bermudo Ordonhes, brother of Afonso Magno, against which he was rebelled. Its presence in the land of Viseu-Lafões was supported by count Diogo Fernandes and grandsons of Vímara Peres and Afonso Betotes. This group starts a movement of landlordship in the interior of Beiras, spreading to the Alto-Douro. Probably, the basilica of Prazo must be attributed to descendants of Diogo Fernandes and Onega. Key Words: Prazo; Basilica; Pre-Romanesque; Landlordship


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Manuel Luís Real

A estação arqueológica do Prazo localiza-se na freguesia de Freixo de Numão, do concelho de Vila Nova de Foz Côa. Fica situada no sopé do cabeço de Santa Eufémia, junto a um cruzamento viário designado por “Pedra Escrita”. Os vestígios de ocupação humana distribuem-se por uma zona com certo declive, ora entre batólitos graníticos, alguns dos quais funcionaram de abrigo, ora numa breve plataforma que sobressai entre o relevo circundante, virada a norte para uma depressão que a gente da terra denomina vale de São João25. Este lugar era também conhecido por “Freixo Antigo”, havendo a justificação lendária de que teria sido abandonado porque as “formigas comiam as criancinhas”. A antiguidade do sítio era assim sublinhada pela tradição popular, a qual, ao que parece, também recordava a existência de uma desaparecida capela. A arqueologia veio a comprovar que Freixo de Numão teve ocupação humana igualmente muito antiga, pelo que a lenda a respeito da sua origem, no Prazo, tem de ser matizada, podendo referir-se a um momento singular da história de ambas as localidades e não necessariamente à criação de qualquer dos povoados. Em meados do século passado, durante trabalhos agrícolas para o plantio de amendoeiras, foram descobertos vários elementos de construção e sepulturas em xisto. Este achado fortuito foi noticiado em 1954 por um erudito natural de Freixo, J. A. Pinto Ferreira, no estudo monográfico que publicou sobre a freguesia26. Mas a verdadeira revelação da jazida arqueológica ficou a dever-se a António Sá Coixão, ao promover as primeiras sondagens arqueológicas em 1980-81, as quais deram a conhecer um horizonte de ocupação romana e, ainda, estruturas relacionadas com um templo medieval. As escavações foram retomadas em meados dos anos 90, tendo Sá Coixão detectado, entretanto, indícios de uma ocupação mais recuada, datável pelo menos do período neolítico27. A presença 25  É referido como “vale de Sã Joana”, uma corruptela da expressão “vale de São João”, a partir de um designativo medieval relativamente comum - “Sam Oane” ou “Sam Hoane” - em documentos referentes a localidades com idêntica invocação. 26  FERREIRA, J. A. Pinto – Freixo de Numão: Apontamentos. Porto, 1954. 27  COIXÃO, António do Nascimento Sá – Carta arqueológica do Concelho de Vila Nova de Foz Côa. V. N. de Foz Côa: Câmara Municipal, 1996, p. 175-181; Um projecto: A investigação, a musealização e um circuito. Freixo de Numão: ACDR, 1980-1996. p. 47-62; O circuito arqueológico de Freixo de Numão: Guia do visitante. Freixo de Numão: ACDR, 2005, p. 16-30. Agradecemos ao Dr. A. Sá Coixão todas as informações que

de vestígios pré-históricos no Prazo despertou a curiosidade de Sérgio Monteiro-Rodrigues, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O elevado rigor científico das escavações que aí veio a realizar proporcionou importantes conclusões sobre o processo de antropização do lugar do Prazo desde o Paleolítico, colocando esta estação arqueológica como um local de referência obrigatório, sobretudo para o período de transição entre o Mesolítico e o chamado Neolítico Antigo, no noroeste peninsular28. Embora ainda subsistam muitas dúvidas sobre a basílica do Prazo, somos de opinião que existem também dados suficientes para que se possa igualmente considerar o carácter excepcional desta estação para o conhecimento da alta Idade Média beirã, no período da expansão asturo-leonesa. É isso que tentaremos demonstrar neste estudo. 1. A TEMPORALIDADE DA OCUPAÇÃO HUMANA NO PRAZO

C

om base em dados fornecidos pelas publicações de António Sá Coixão e na sequência das suas próprias pesquisas, o pré-historiador Sérgio Monteiro-Rodrigues apresenta uma bem sistematizada síntese dos testemunhos sobre a utilização daquele espaço pelo Homem, possivelmente desde o Acheulense29. O Paleolítico Superior está devidamente confirmado nas unidades estratigráficas mais antigas que foi possível identificar, embora sem possibilidade de recurso a datações absolutas. Estas foram obtidas apenas a partir do Epipaleolítico e com resultados surpreendentes, alguns deles alcançados até recentemente30. O mais antigo registo cronológico nos foi prestando, a respeito das suas pesquisas e das nossas reflexões sobre a estação do Prazo. Gostaríamos de sublinhar a extrema abertura manifestada e o propósito de, no futuro, nos acompanhar numa análise mais detalhada sobre as descobertas e a musealização das ruínas, tendo em conta a sua experiência pessoal e os registos de campo. 28  MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio – A estação neolítica do Prazo (Freixo de Numão - Norte de Portugal) no contexto do Neolítico Antigo do Noroeste Peninsular. Algumas considerações preliminares. In Actas do 3º Congesso de Arqueologia Peninsular (Vila Real, 22-26 Setembro 1999), v. III. Porto: ADECAP, 2000, p. 149-168; Estação arqueológica do Prazo-Freixo de Numão: Estado actual dos conhecimentos. Côavisão. 4 (2002) 113-126. 29  MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio – Pensar o Neolítico Antigo: Contributo para o Estudo do Norte de Portugal entre o VII e o V milénios a. C.. Viseu: Centro de Estudos Pré-Históricos da Beira Alta, 2011, p. 81-84. 30  IDEM – Novas datações pelo Carbono 14 para as ocupações holocénicas do Prazo (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa, Norte de Portugal). Estudos do Quaternário, 8, APEQ, Braga (2012) 22-37.


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1 - Corte transversal com a implantação da jazida arqueológica do Prazo (seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).


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2 - Posicionamento da estação arqueológica do Prazo, face ao alto de Sª Eufémia e ao vale de S. João (seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).

remonta a este último período, confirmando uma ocupação situada entre finais do X e meados do IX milénio a. C.. Vão-se sucedendo novas ocupações, em fases distintas do Mesolítico e do Neolítico, merecendo particular destaque o horizonte que se convencionou denominar por Neolítico Antigo, que no Prazo se situará no intervalo temporal balizado entre os finais do VI milénio a.C. e um momento algo posterior ao 3º quartel do V milénio a. C.. Este período é caracterizado por uma população de caçadores-recolectores, que deixou marcas da respectiva actividade cinegética, mas também da prática de alguma moagem, talvez de gramíneas e frutos silvestres, concretamente o Esta estação dispõe já de cerca de trinta datações de cronologia absoluta. As primeiras análises foram publicadas em MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio; ANGELUCCI, Diego E. – New data on the stratigraphy and chronology of the prehistoric site of Prazo (Freixo de Numão). Revista Portuguesa de Arqueologia. 7:1 (2004) 39-60.

medronho. Eles já fazem uso da cerâmica e de polidores líticos, mas não apresentam quaisquer indícios sobre o recurso à agricultura ou ao pastoreio. Esta é a grande novidade dos estudos sobre a pré-história do Prazo, desfazendo a ideia de uma real revolução neolítica, desencadeada de um fôlego, a partir de migrações vindas do oriente. Na realidade, o processo evolutivo terá sido mais complexo e experimentalista, ficando aqui demonstrada a necessidade de matizar a tese tradicional sobre a denominada “neolitização” do noroeste peninsular. Embora o concelho de Vila Nova de Foz Côa seja pobre em cultura dolménica, parece que os abrigos rochosos do Prazo foram utilizados durante o Neolítico Final e Calcolítico. É provável que tenha havido algum distanciamento da comunidade relativamente à apropriação do lugar, durante o


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período subsequente, já que os habitantes da Idade do Bronze parecem ter preferido o morro sobranceiro, conhecido por alto de Santa Eufémia, como revelou A. Sá Coixão. Assim também, a Idade do Ferro é desconhecida no Prazo, sendo este talvez o hiato mais significativo na estação arqueológica. A revitalização do lugar dar-se-á com os romanos, no séc. I-II d. C.. Ela tem finalmente um carácter sedentário, com a construção de uma villa na plataforma principal, que incluiria, segundo o autor, uma presumível zona de termas. São apontados os edifícios A e B31, mas a única datação de cronologia absoluta que se possuí deste período, provem da periferia, do chamado abrigo I. É bem provável que esta nova fase corresponda à da pesquisa e apropriação dos recursos mineiros da região. Entre 250-275 d. C. assiste-se a um processo de ruralização mais acentuado, com o aparecimento, no socalco superior, de estruturas relacionadas com o armazenamento e moagem de cereais, bem como de uma cozinha com a lareira e o respectivo forno. É o conjunto que Sá Coixão designa como pars fructuaria. A partir do séc. III também poderão corresponder o edifício G e dois fornos, um de cozedura de tégula (forno C) e outro de fundição de metal (forno H). Talvez nos finais do século possa ter ocorrido um saque, seguido de incêndio, mas o lugar voltará a ser ocupado na centúria seguinte, como o demonstram diversos testemunhos relacionados sobretudo com os edifícios G e E, além de um novo forno (forno L) e duas pequenas sepulturas que continham moedas do Imperador Constantino. Terá sido por esta altura que ocorreu a cristianização do local. A grande incógnita reside na identificação dos vestígios da ocupação sueva e visigoda. Em nosso entender, com os elementos até agora publicados sobre a basílica, nada nos parece de segura atribuição ao período de ocupação bárbara. No entanto, ela existiu sem dúvida, como o comprovam as datações por C14 de materiais colhidos no sector VII (430-570 AD / 590600AD) e no sector I (604-612 AD / 616-653 AD)32. As estruturas da basílica parecem, no seu conjunto, ter sido erguidas já em época posterior. O sector VII fica numa zona mais elevada, junto ao afloramento rochoso sobranceiro à plataforma principal e relativamente próximo da designada 31  Para a identificação alfabética dos edifícios, cfr. as publicações de A. Sá Coixão, como por exemplo em Circuito Arqueológico de Freixo de Numão: Guia do visitante. Freixo de Numão: ACDR, [2012], figs. 6-8. 32

MONTEIRO – ANGELUCCI (2004), p. 52.

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pars fructaria. O sector I, por sua vez, é adjacente ao presumível edifício termal, do lado exterior. Trata-se esta de uma zona onde também surgiram vestígios de ocupação neolítica. Encontra igualmente na vizinhança do edifício G, uma das áreas que revela ocupação tardo-imperial e que poderá ter algo a ver com a continuidade de utilização do local durante o domínio bárbaro da Península. Se existiu um templo religioso atribuível a este período, é algo que nos escapa, tendo em conta os dados disponíveis. No entanto, foi encontrado o fundo de um vaso de cerâmica cinzenta, com a aposição de um crismon, e que poderá corresponder a este período33. Apareceu também o fragmento de uma colher em bronze, cuja cronologia ignoramos, não se sabendo também se, porventura, terá sido usada para funções litúrgicas. Como adiante demonstraremos, a planimetria geral da basílica deve ser atribuída aos finais do séc. IX-princ. X. Além disso, foram encontrados diversos alinhamentos de buracos de poste que merecem ser melhor analisados. Eles surgiram no interior do edifício B, em locais onde o opus signinum parece estar corrompido. Sá Coixão dá nota da sua existência de forma muito esquemática, na publicação da planta de conjunto dos edifícios da plataforma central, por exemplo, no referido guia do visitante. No entanto, uma fotografia apresentada pelo autor mostra que tais alinhamentos não são paralelos entre si. Estando tão próximos uns dos outros, eles são incompatíveis, por manifestarem orientações divergentes (Figura 12). Consequentemente, são de atribuir a cronologias distintas. Analisando este caso com maior detalhe34, verifica-se que existem dois tipos principais de alinhamentos. Um deles é, sem dúvida, paralelo ao muro romano e Sá Coixão pensa tratar-se de um possível alpendre exterior do edifício termal (edifício A). É uma explicação plausível. Mas poderia ser também uma estrutura posterior a ambos os edifícios romanos, eventualmente quando estes já estariam arrasados, ou seja, nunca antes do séc. V-VI35. Nesta circunstância, tratar-se-ia de um edifício cabanal de cronologia suevo-visigoda, o que é perfeitamente 33  COIXÃO, António do Nascimento Sá – Rituais e cultos da morte na região de Entre Douro e Côa. Freixo de Numão: ACDR, 1999, fig. 21. 34  O autor possibilitou-nos a consulta do plano final da escavação, à escala, amabilidade esta que gostaríamos de sublinhar e agradecer. 35  A confirmação dependerá de uma análise, mais detalhada ainda, sobre a posição relativa dos buracos de poste face ao opus signinum romano, podendo nesse caso ser posterior ao próprio edifício B e respectivo pavimento.


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3 - Planta da zona nuclear do Prazo, com a basílica (a norte), os edifícios de origem romana (em redor de um logradouro comum) e os locais de ocupação pré-histórica (sectores I, VII e VIII). A meio da planta, assinala-se uma nascente de água represada (seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).


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possível, à luz do que se conhece sobre a construção em materiais lenhosos que, nessa época, se tornou relativamente vulgar. Mais interessante, ainda, nos parece ser um outro alinhamento oblíquo ao precedente e que, com aparente rigor, se articula com a orientação dos muros da basílica alto medieval. A confirmar-se esta observação, poderemos estar perante um possível anexo habitacional, construído em madeira, tal como o que foi identificado em Santa Marinha da Costa, antes da edificação do palácio condal de meados do séc. X36. São de assinalar, ainda, dois outros elementos relacionáveis com a época da Reconquista. A noroeste do templo, numa plataforma superior, aparece um sarcófago em pedra, aparentemente abandonado, e na sua proximidade foi escavado um edifício que revelou uma fase de ocupação associada a cerâmicas do séc. IX-X, as primeiras a ser identificadas, enquanto tal, por A. Sá Coixão. Por outro lado, ao questionarmos sobre a eventual existência de uma atalaia no alto de Santa Eufémia, este arqueólogo confirmou-nos o aparecimento também de cerâmica medieval e de alguns silhares, durante uma intervenção no cabeço, para aí instalar umas antenas. Regressando ao edifício basilical, importa salientar que ele aparenta ter possuído algumas reformas ao longo do tempo e que, como veremos adiante, está também a ele associada uma necrópole da baixa Idade Média. A quase totalidade da numária aí descoberta não ultrapassa o reinado de D. Afonso III, se bem que num anexo exterior tenha aparecido uma moeda do séc. XV (ceitil de D. Afonso V). Durante a escavação surgiu o derrube da cobertura, formado por telha de reduzida curva. O abandono do local não está claramente determinado, embora se invoque o século XIII, devido à circunstância de, no interior do templo, não terem aparecido numismas posteriores a esta data. Após o desaparecimento do núcleo do Prazo, enquanto habitat permanente, o lugar continuou a ser usado para a prática agrícola, como o demonstra o forno moderno de secar figos.

2 “IN ALIA JOHANNE”

CARRARIA

DE

SANCTO

A

estação arqueológica encontra-se a meia encosta, orientada para um vale cujo nome, de acordo com a memória popular, sobreviveu para lembrar o antigo orago da basílica do Prazo: vale de São João. Tem sido bastante difícil encontrar documentação escrita que auxilie as pesquisas sobre a história deste templo. Até ao momento, não encontramos qualquer referência explícita nos estudos sobre o Prazo. Este topónimo – “Prazo” – tem características que o fazem reportar a uma realidade que apenas deverá ter ocorrido, quando muito, a partir da baixa Idade Média. Se é certo que o termo “plazum” ou “plazo” apareça já esporadicamente na décima centúria37, só no séc. XIII é que ele se consolida para designar o regime enfitêutico a que passou a estar sujeita a propriedade imobiliária desde a Idade Média. E para se transformar em topónimo, algum tempo mais poderá ter sido requerido. Atendendo a que continuam a haver enterramentos com moedas do séc. XIII e, num caso periférico, até associado a um ceitil de D. Afonso V – um sarcófago presumivelmente reutilizado para outro fim – seria legítimo supor que a comunidade eclesial ainda subsistisse na baixa Idade Média e que, como tal, estivesse presente nos róis de igrejas conhecidos para a época. Porém, no que respeita às listas dos benefícios eclesiásticos pertencentes à monarquia, não aparece qualquer alusão ao Prazo38. Isto significa que o(s) patrono(s) ou eram laicos, ainda, ou eram representados por qualquer instituição religiosa superior. E tudo indica que seria este o caso. Na realidade, em 1277, o bispo de Lamego, D. Gonçalo, sente-se obrigado a devolver à mesa capitular uma série de bens de que a mitra se tinha apossado injustamente. Entre eles é incluída a ermida de São João, sita no termo de Numão39. É provável, por conseguinte, que na documentação do cabido ou chantrado de Lamego existam outras referências ao Prazo. Mas não podemos deixar de aludir a uma outra fonte, bem mais antiga e já muito utilizada, em 37  O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 2007, t. 15, p. 6522, cita uma fonte de 938 e outra de 999.

36  REAL, Manuel Luís – Pousada de Santa Maria. Guimarães. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. 130. [Lisboa]: Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações (1985) 16-17 e figs. 3 e 9; IDEM – Materiais de construção utilizados na arquitectura cristã de alta Idade Média em Portugal. In MELO, Arnaldo de Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coord.) – História da construção: os materiais. Braga: CITCEM-LEMOP, 2012, p. 104-105.

38  Cfr. BOISSELLIER, Stéphane – La construction administrative d´un royaume: Registres de bénéfices ecclésiastiques portugais (XIII-XIV Siécles). Lisboa: Universidade Católica, Centro de Estudos de História Religiosa, 2012. 39  COSTA, M. Gonçalves da – História do bispado de Lamego, v. 1. Lamego: [s. n.], 1977, p. 137-138.


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4 - Planta das ruínas do Prazo, após as escavações de 1996. Ainda estavam por escavar o edifício G e a maior parte do edifício E (seg. António N. Sá Coixão)


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que tem passado quase despercebida a passagem que alude ao lugar numantino de São João. Trata-se do foral concedido, em 1130, aos moradores da “ciuitate Noman, cognomento Monforte”, pelo governador D. Fernando Mendes de Bragança. Na parte em que trata das coimas por homicídio, dentro do povoado e numa área periférica, baliza esta última entre a “portellam de doiro” e os “palacios antiquos”, ou seja, “usque in alia carraria de sancto Johanne”40. Trata-se, sem dúvida, da linha demarcada pela ancestral via que ainda hoje liga Freixo de Numão ao Rio Douro, passando em frente ao Prazo, pelo vale de S. João, e que se dirige a Murça e ao entroncamento de Mós do Douro. Junto a este fica o monte da Portela, próximo já do rio, ou seja, precisamente a referida “portellam de doiro”, onde a passagem era efectuada por barca. Do foral de Numão pode-se ainda inferir que o limite sul da linha demarcada, para aquela área de imposição fiscal, coincidiria com a antiga villa do Prazo, identificada como illos palacios antiquos, no século XII.

3. A BASÍLICA MEDIEVAL DO PRAZO

N

a alta Idade Média, durante o reinado de Ordonho II – enquanto governador da Galiza ou, mais provavelmente, já como rei de Leon – terá sido construída esta basílica no Prazo. A planimetria da aula principal aparenta uma lógica unitária e possui determinadas características formais que levam a concluir estarmos perante uma construção de raiz. Isto independentemente da possibilidade de ter existido um edifício anterior, de função desconhecida, romano ou suevo-visigodo, e do qual A. Sá Coixão encontrou indícios numa sobreposição de muros junto ao limite ocidental da nave (Figura 4)41. Em linhas gerais, trata-se de um templo de três naves, separadas por tríplices arcaturas longitudinais. No extremo ocidental sobrevivem os dois muretes constitutivos dos atlantes (salientes), em que se apoiavam os arcos extremos. Estes muros encontramse mal travados à testeira ocidental, circunstância que se repetiria do lado oposto, dado existe uma simetria no espaço deixado vazio entre as últimas sapatas, onde 40  Portugaliae Monumenta Histórica: Leges et Consuetudines, vol.1 ,fasc. 3, 1863, p. 368-370. 41  O muro mais antigo figura a negro, enquanto o da basílica altomedieval aparece a tracejado. Vd. tb. COIXÃO, 1999, figs. 18 e 30.

assentavam as colunas, e o muro oriental da aula. Esta parte foi sujeita a uma maior espoliação de pedra, tendo desaparecido (Figura 4). Tais muros-atlante são muito semelhantes aos de Lourosa e Balsemão, onde há uma imposta no arraque do arco. No Prazo existem impostas com toreados muito rudes, feitas ex-professo (Figura 8c), mas há também outros frisos – destinados a impostas ou a cornijas – que parecem ser fruto do reaproveitamento de materiais de origem romana (Figura 8b). Os elementos de suporte dos arcos, na parte intermédia, seriam formados por simples coluna, duas por cada eixo longitudinal e não muito altas, se tivermos em atenção os paralelos citados42. Apareceram deslocados vários fustes de coluna, bases ou capitéis de estilo dórico, que podem bem ter pertencido a esta parte do edifício. Surgiram também as sapatas para assentamento dessas colunas, uma ainda no sítio e as restantes tombadas na proximidade. A sua forma tronco-piramidal, de tendência para o paralelepípedo, faz recordar as de Santianes de Pravia, nas Astúrias. Mas nada, até ao momento, permite supor que no Prazo houvesse pilares em vez de colunas, a solução mais usual da arquitectura asturiana. No caso português, a tendência foi para privilegiar o fuste de coluna, como o comprovam as basílicas quase gémeas – quanto à planimetria do corpo central – de Lourosa e Balsemão (Figura 20). Esta similitude repete-se relativamente às arcaturas divisórias, se bem que em S. Pedro de Balsemão estejamos perante uma reconstrução moderna, com a utilização apenas parcial dos elementos originais. Contudo, deve ser particularmente sublinhada a extrema parecença que existia entre os desaparecidos arcos formeiros do Prazo e os que ainda hoje vemos em S. Pedro de Lourosa. As escavações forneceram uma série de aduelas, das quais se salientam vários saiméis de arco: uns relacionados com as extremidades de cada fiada (Figura 7a), isto é, por assentarem directamente sobre a imposta de cada atlante no topo das naves; outros que se situavam no prumo de cada coluna, donde divergiam dois arcos (Figura 7b e c). Embora um pouco mutilados, 42  Numa primeira análise sobre os elementos de suporte dos arcos da nave, foi referida a existência de seis sapatas: cfr., por ex., Rituais…, p. 54. Esta interpretação é errónea. Ao centro, haveria apenas quatro sapatas. A uma equidistância semelhante, dum e doutro lado da aula central, existiam apenas os assentamentos das pilastras ou estruturas de remate, de cada um dos muros-atlante em que se apoiam os arcos longitudinais das naves. Por esta razão, entendemos incorrecta a colocação da base e fuste de coluna no extremo dos muretes que se conservam do lado oeste da aula. Na origem, a uma cota ligeiramente superior, haveria apenas uma imposta, a partir da qual assentava o primeiro arco formeiro das arcaturas tríplices em que se dividiam as naves.


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5 - Vista geral do templo, realizada a partir de sudoeste.

os dois saiméis centrais aqui reproduzidos, pelo seu aspecto esguio e pela elegante curvatura das linhas de arco, apresentam uma notável semelhança com os de Lourosa (Figura 14). Deve acrescentar-se que durante as pesquisas arqueológicas apareceram mais arranques de arco, nomeadamente do primeiro tipo, onde parece haver vários géneros de abertura. Só um estudo criterioso de todas as peças, com seu desenho à escala e a reconstituição integral do respectivo arco, é que irá permitir fazer uma ideia de que partes do edifício elas poderão pertencer: muro divisório das naves, arco triunfal da capela-mor ou portada. No extremo oeste da nave central constatou-se que houve uma destruição do primitivo acesso ao nártex, sendo o vão posteriormente entaipado (Figura 11). Da anterior abertura, subsistiram a pedra inferior da ombreira do lado esquerdo (de quem, da nave central, se dirigia ao nártex) e ainda as duas primeiras do lado oposto. Nesta mesma zona, para além de uma sepultura tardo medieval (sepultura 2), apareceram dois buracos de poste abertos no próprio pavimento da igreja – em argamassa de tipo opus signinum – e encostados à parede oeste. Descartamos a possibilidade de se tratar de um estrutura pertencente ao pórtico, apesar de estarem a ladeá-lo, pois o seu avanço face à primitiva parede não condiz com a prática da época, que nunca prevê arcos projectados para fora do muro. Assim sendo, e tendo em conta que se tratava de uma estrutura presumivelmente em madeira, encostada à parede de alvenaria e em perfeita articulação com os restantes muros – pela equidistância que tais colunas exentas mantinham em relação aos atlantes longitudinais, donde arrancam as arcaturas da aula – somos levados a pensar que se está perante vestígios dos suportes de uma tribuna em madeira. Sabe-se

6 - Enfiamento das quatro portas do nártex, visto de norte para sul.

como este dispositivo era muito caro à arquitectura asturiana e conhecem-se em território português, pelo menos, dois exemplos de tribunas em edifícios de época pré-românica: S. Gião da Nazaré e S. Romão da Ucha43. Relativamente às aberturas de circulação, na aula pricipal, A. Sá Coixão aponta quatro portas, além do arco triunfal. Uma dá acesso ao anexo sul e três abrem para o nartex. Ao contrário deste último, onde as quatro passagens aparentam manter as soleiras originais, julgamos que não foram encontradas soleiras monolíticas na parte da aula eclesial. A identificação das portas parece ter ficado a dever-se à existência de pedras com encaixes desnivelados, os 43  Este último caso conhece-se através de uma epígrafe que comemora a sua construção, por um tal “Sermundus”. A obra da tribuna, evocada autonomamente, sem qualquer referência ao resto do templo, data do ano 920. Pode tratar-se de uma “melhoria” ligeiramente posterior à fundação da basílica, tal como poderá ter acontecido na do Prazo, cuja tribuna seria praticamente coeva desta. Sobre a inscrição vd. BARROCA, Mário Jorge – Epigrafia medieval portuguesa (862-1422), Vol. 2, T. 1. Porto: FCG-FCT, 2000, p. 35-37


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7 - Saiméis de arco: a) arranque lateral, do arco triunfal, arco porta ou arco formeiro das naves; b) e c) saiméis de dupla face curvilínea, que se situavam sobre as colunas em que assentavam os arcos longitudinais da aula basilical.

quais, supostamente, serviram para ajustar os silhares de ombreira, entretanto desaparecidos (cfr. Rituais, foto 39, à direita)44. No entanto, não é líquido que tal critério seja isento de dúvidas. No caso vertente, a existência da porta naquele local parece incompatível com a presença do sarcófago S1, que se encontra actualmente mutilado, mas impediria a passagem estando completo (cfr. Um projecto, foto 52). Uma situação inversa, em que uma pedra desnivelada não deu origem a qualquer ombreira, parece ter ocorrido na designada passagem da nave sul para o nartex (cfr. Rituais, foto 43, à esquerda; ou Figura 10 do presente estudo, à direita). À primeira vista, até seria de supor que esta passagem não correspondesse à organização primitiva, encontrando-se o muro completamente encerrado nesse local. E é legítimo pensar o mesmo para o lado simétrico do templo, se bem que nesta parte se possa admitir a existência de uma soleira (cfr. Rituais, foto 62). Analisando de novo a primeira foto, parece claro que entre os dois compartimentos do anexo sul existiu uma porta com soleira, do tipo das do nártex (cfr. 44  Esta é uma foto importante sobre o estado das estruturas, no momento da escavação desta parte do edifício. Não confundir, como muro, o alinhamento de pedras que se vê em último plano, as quais apareceram originalmente dispersas e encontram-se aí meramente ordenadas, a aguardar reposição para o momento de erguer os muros, de acordo com a metodologia utilizada no terreno.

Rituais, foto 39, à esquerda). A soleira avulsa que se vê na mesma fotografia, um pouco acima do sarcófago, foi colocada na passagem situada no muro leste da aula, na suposição de que aí se situaria a primitiva porta do templo. Contudo, não pode deixar de ter estado aqui o local de entrada da capela-mor. Nas primeiras reconstituições feitas da basílica, o autor coloca a cabeceira no lado oposto, assinalando aí três capelas45. Ora tal suposição, além de contrariar os cânones da época sobre a orientação do templo – e, pela posição das sepulturas, constata-se que o respeito canónico era escrupulosamente observado – torna-se impossível conceber que o santuário fosse devassado por uma sucessão de portas que transformam o local como uma espécie de corredor (Figura 6). A implantação do santuário exige recato. Há exemplos de eixos de circulação em frente à capela-mor (Sª Maria de Melque, Sª Lucía del Trampal, S. Gião da Nazaré, etc.), mas trata-se já na área do presbitério. O tipo de solução em causa, na zona ocidental do templo, é mais próprio de um nártex. Na arquitectura asturiana não existe um eixo tão pronunciado, pois até nos casos mais desenvolvidos não há portas nos extremos norte e sul do nártex, mesmo que apareça um anexo lateral, como em Valdedios, o que se explica porque o pórtico 45

Cfr., por exemplo, Rituais…, p. 54 e figs. 14-17.


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8 - Capitel coríntio que poderá ter sido invertido, para servir como base de coluna, na entrada da primitiva capela-mor; b) e c) frisos de cornija e/ou de imposta, decorados com molduras simples.

de entrada se situa sistematicamente na fachada oeste. Tal já não acontece em San Pedro de la Mata (2ª fase), pois não existia pórtico no eixo central da igreja. Em planta, este caso é relativamente próximo ao do Prazo – se descontarmos a colocação da primitiva porta da aula no centro – que, por sua vez, nos faz recordar certos templos cronologicamente anteriores, como Recópolis, Son Fradinet ou Portera. Aqui existe um nártex quase independente46, que estabelece ligação com os anexos eclesiais, destinados a funções litúrgicas complementares ou a habitação. Relativamente à capela-mor, ela situava-se seguramente em zona que ainda não foi devidamente escavada, pela simples razão de que o terreno não estava adquirido, segundo nos confiou o responsável pela estação arqueológica do Prazo47. A reconstituição da actual passagem, no muro leste da aula, é moderna, tanto no que concerne à soleira, como também às ombreiras. Em nosso entender, na origem ela poderia aproximar-se muito da solução existente em S. Pedro de Balsemão (Figura 13, arco da direita) e

reconstituída em S. Pedro de Lourosa. É relativamente frequente encontrar duas colunas de cada lado, sobre as quais assenta o arco triunfal. Talvez nos possa dar uma pista o capitel liso descoberto no Prazo, que outrora devia ter estado invertido, a servir de base (Figura 8a). De facto, ele apresenta um entalhe que poderá ter funcionado como apoio de cancela e isso seria admissível na entrada do santuário48. Tendo em conta que não há vestígios de qualquer outra abertura, no referido muro, parece que a cabeceira possuía uma única capela, como em Balsemão, e não as três usuais da arquitectura asturiana e que reaparecem em Lourosa. Numa análise genérica dos anexos mais chegados à aula eclesial – e descontando alguma dose de incerteza, resultante do facto de não termos acompanhado a escavação e de hoje ser já difícil ver como se articulavam os engates ou encostos dos muros – parece-nos possível que tenha havido duas fases no desenvolvimento destas estruturas periféricas, se bem que não muito distantes no tempo49. O anexo

46  E, como dissemos, temos também algumas razões para duvidar, no Prazo, da existência das passagens laterais entre a aula e o nártex. Mas não estamos seguro disso, pois haveria a possibilidade de terem sido abertas mais tarde, quando foi entaipada a porta da nave central.

48  Infelizmente, na última visita que fizemos à basílica do Prazo, na companhia de A. Sá Coixão, demos conta que esta peça teria sido roubada há pouco tempo, assim com a parte superior do fuste. Para uma vista completa do elemento de suporte resultante da reconstituição efectuada, cfr. Um projecto, foto 47.

47  A gestão da estação arqueológica é feita pela A.C.D.R. - Associação Cultural, Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão, que tem vindo a adquirir os terrenos onde se implantam as ruínas do Prazo.

49  Diga-se, de passagem, que parte da construção original foi executada com muros mal travados, sobretudo onde a fixação era menos exigente,


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sul parece estar perfeitamente coordenado com o comprimento das naves da igreja e será, em princípio, da 1ª fase da construção. Já o nártex casa-se mal com este anexo sul e nada tem a ver com o alinhamento do muro meridional da aula. Em nosso entender, devem ser coevos, este nártex e o anexo norte, que com ele se encontra devidamente coordenado. O primeiro espaço teve claramente a intenção de permitir, desde cedo, enterramentos pios à sombra do templo, sem violar a disposição canónica que impedia a sepultura dos defuntos no interior da igreja. Quanto ao anexo norte, que também recebeu algumas das inumações mais antigas, parece constituir uma zona mais recôndita, na distribuição de espaços da comunidade. De facto, a respectiva soleira, mostra que a porta, tal como as restantes do nártex, abria as suas folhas de madeira para o lado setentrional, demonstrando tratar-se de espaços sucessivamente interiores, num movimento progressivo de sul para norte. Talvez estejamos perante uma área de recolhimento, senão mesmo do tesouro50. A possível afectação deste espaço para guarda do “tesouro” – representado por objectos de carácter litúrgico, livros, etc. – pode estar indiciada pela descoberta in situ de uma pedra almofadada em forma de paralelipípedo, fincada no chão, que pode ter servido como pé de mesa, encostada à parede. Vejase, em planta, a sua localização entre as sepulturas 14 e 18 (Figura 4)51. A existência de mesas na sala do “tesouro” faz recordar uma passagem do testamento de Mumadona que alude a “duas stolas litoneas de seruicio mense in thesaurum” (DC 76)52. A presença destes anexos acontece independentemente da possibilidade de terem existido outros complementares, nas imediações, construídos em estrutura de madeira, eventualmente relacionada com alguns dos buracos de poste que apareceram na escavação da edifício B. Como referimos mais acima, em Sª Marinha da Costa deve igualmente ter ocorrido uma duplicidade de estruturas, com materiais distintos, pelo menos na fase imediatamente como na ligação entre os muros-atlante e as testeiras da aula, ainda visível do lado ocidental. 50  Não temos ideia formada a respeito da actual porta leste, nesse mesmo espaço. 51  Cfr. também Rituais, fotos 69 e 74. Nesta última fotografia vê-se bem o pilarete em granito, junto ao antropólogo que está a escavar a sepultura 18. 52  Doravante citaremos com a sigla DC, seguida do respectivo número, os documentos publicados nos Portugaliae Monumenta Histórica: Diplomata et Chartae. As “stolas litoneas” seriam faixas compridas, que serviam de mantel atravessado sobre uma mesa.

anterior à construção da palácio condal, com a igreja em alvenaria (templo II) e uns anexos em madeira, de impressionante monumentalidade. No Prazo, o mais provável é estarmos diante de um antigo mosteiro, cuja família patronal pode eventualmente ser relacionada com a ascendência de Flâmula Rodrigues, dado que os seus pais, pelo que se deduz do respectivo testamento, deviam terse transformado nos principais senhores da região. Apesar de todas as dúvidas que possam pairar sobre este complexo basilical, não é de mais sublinhar a sua transcendência no contexto da arqueologia da alta Idade Média, em território português. 4. AS TRANSFORMAÇÕES NA BAIXA IDADE MÉDIA

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omo ficou referido acima, a escavação revelou a existência de uma série de diacronias arquitectónicas e forneceu dados inequívocos da utilização do templo ainda na baixa Idade Média. Um dos casos mais evidentes foi o entaipamento da porta sul do nártex, com fustes de coluna e argamassa (Figura 9). Há alguma lógica em considerar contemporâneos, tanto este bloqueamento, como o da passagem que lhe ficava próxima, entre o mesmo nártex e a nave central do templo (Figura 11). A desafectação desta última – ou de outra qualquer antiga porta – está também comprovada pela descoberta avulsa de um elemento de soleira, no compartimento mais ocidental do anexo sul, e que aparece sumariamente representado no meio deste espaço, na planta das ruínas após as escavações de 1996 (Figura 4). Mas a maior perturbação documentada na basílica alto-medieval é a que se relaciona com a apropriação das naves do templo, por parte da necrópole. As inumações mais antigas parecem respeitar a proibição canónica de enterrar os defuntos no interior da igreja. É que não estariam vedados os enterramentos no nártex e noutros anexos eclesiais. De facto, as sepulturas alto-medievais parecem situar-se na periferia. Com referência ao estudo citado de António do N. Sá Coixão, Rituais e cultos da morte na região de Entre Douro e Côa, seleccionámos as seguintes, a partir das respectivas descrições e de alguma reflexão pessoal. A sua localização pode ver-se na figura 4, do presente estudo, que reproduz o número de código


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dado em escavação. São elas: - Sepultura 1: sarcófago, no anexo sul (Figura 22 e foto 39); deve acrescentar-se o fragmento resultante da sua mutilação, na zona dos pés e aparecido junto a um forno vizinho; foi-lhe atribuído o código S16 (foto 67) - Sepultura 5: aberta na rocha, ovalada, no espaço sul do nártex, talvez reutilizada (Figura 29 e foto 47) - Sepultura 6: aberta na rocha, ovalada, no espaço central do nártex, talvez refeita parcialmente com pedras (Figura 30 e foto 48) - Sepultura 7: sarcófago, no espaço central do nártex; apareceu completo, mas muito fragmentado; possui típicos estrangulamentos na cabeceira e nos pés (Figura 30 e fotos 49-50) - Sepultura 11: aberta na rocha, antropomórfica, no exterior, onde veio a ser construído o anexo mais ocidental; era coberto por uma laje de xisto, grosseira (Figura 28, est. III e fotos 56-57) - Sepultura 17: caixa funerária com pedra miúda, no exterior, a sudoeste do edifício; apareceu com a orla de pedras já muito destruída (Figura 35 e foto 68) - Sepultura 19: caixa funerária com pedra pequena, no exterior, a noroeste do edifício (Figura 36-37 e fotos 71-72) - Sepultura 21: caixa funerária com pedra pequena, em muito bom estado de conservação, no anexo norte (Figura 38 e fotos 74-76) - Sepultura 22: caixa funerária com pedra pequena, no anexo norte, sob a S18, que parcialmente a destruiu (Figura 34 e 39, fotos 69-70) - Sepultura s/nº: caixa funerária com pedra pequena, no espaço norte do nártex, sob a S12, que

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parcialmente a destruiu (Figura 34 e foto 58) - Sepultura s/nº: aberta na rocha e de criança, parcialmente destruída pela S14 (Figura 34) - Sepultura s/nº: sarcófago de criança, no exterior, situado numa plataforma de terreno mais elevada; assente junto a uns batólitos de granito, tendo levado Sá Coixão a pensar que ficou inacabado (foto 36). Em linhas gerais, pode concluir-se existirem três tipos de sepultura relacionados com a fase mais antiga da comunidade: sarcófagos monolíticos, sepulturas abertas na rocha e caixas formadas por pedra pequena. No edifício C, a oeste do templo, foi descoberto um sarcófago de granito, claramente fora de contexto e com indícios de ter sido reaproveitado para fins de uso doméstico (sepultura 8: Figura 31 e foto 51). Na nave sul da igreja apareceu ainda um outro sarcófago, de planta rectangular e cantos arredondados, com tampa monolítica (sepultura 3: Figura 25 e fotos 4344). Trata-se de uma peça antiga, sem dúvida, mas que se apresenta igualmente deslocada. Por fotografias da escavação, nomeadamente nas duas reproduzidas a cor, no desdobrável Sítio arqueológico romano/medieval do Prazo, vê-se com clareza que a arca granítica foi aí colocada em fase posterior, destruindo parte do pavimento de opus signinum53. Esta situação repete-se na maioria das restantes inumações do interior da igreja, que furam o pavimento original. Para além desta circunstância, apresentam características diferentes das anteriores. São caixas rectangulares ou trapezoidais, formadas exclusivamente por belas lâminas de xisto, as mais perfeitas (S12, S14, S18 e, talvez, S20), enquanto as demais são de natureza mista, conjugando o xisto e o granito. As peças em granito, porém, diferem das que se usaram nas sepulturas mais antigas, pois formam grandes blocos esquadriados (S2, S4, S6, S.13 e S.15). De algum modo, fazem lembrar uma das fases do cemitério de São Martinho de Lagares (Penafiel), um edifício românico que sucede a outro templo mais antigo54. A área de Freixo de Numão é constituída por um maciço granítico com pouco mais de uma légua de amplitude, o qual, excepto também na zona em que se 53  A fragmentação e anarquia em que apareceram as ossadas, no seu interior, parecem demonstrar que o sarcófago foi aí instalado para servir de ossário. Aliás, adjacente a ele apareceu outro ossário, que, na planta publicada, aparece designado como Oss.1.

9 - Transformação da porta sul do nártex, entaipada com fustes de coluna e argamassa (seg. António N. Sá Coixão).

54  BARROCA, Mário Jorge; REAL, Manuel Luís – Trabalhos arqueológicos na igreja de Lagares (Penafiel). Relatório. (submetido ao IPPAR em 1984, policopiado).


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10 - Vista da parte meridional do edifício que encosta a ocidente do nártex, notando-se, à direita, um muro bastante tardio (seg. António N. Sá Coixão).

implanta o castelo de Numão, é rodeado por formações geológicas com predominância do xisto. Esta dupla oferta de matéria-prima explica, em grande medida, o carácter misto das alvenarias da estação arqueológica do Prazo. Por sua vez, ela está bem patente neste novo período da vida da comunidade, em que as sepulturas passaram a demonstrar grandes progressos no domínio do talhe da pedra, seja para a execução das grandes placas de granito, seja para a virtuosa preparação das lâminas de ardósia. De acordo com A. Sá Coixão, “pelos numismas exumados no interior da igreja” o templo foi usado ainda durante a 1ª dinastia e forneceu moedas cunhadas, pelo menos, até ao reinado de D. Afonso III55. Uma prova suplementar do intensivo uso do templo para enterramentos, na sua derradeira fase de vida, é-nos dada pela reutilização frequente das campas, como na sepultura 27, que foi parcialmente refeita para albergar um novo enterramento, desta vez de uma criança (cfr. Rituais…, Figura 27). Outra evidência relaciona-se com os múltiplos ossários descobertos no interior do templo. Já nos referimos 55  Rituais…, p. 55.

à função assim desempenhada pelo sarcófago da sepultura 8 e pelo ossário que lhe ficava adjacente, na nave sul. E aos pés das sepulturas 13 e 15, do lado exterior, foram também descobertos ossos empilhados e protegidos com algumas pedras (idem, fig 33). Em nosso entender, esta nova fase, onde se adensa a função cemiterial do templo, deve corresponder à sua provável passagem para o desempenho de funções paroquiais. Um possível indício desta evolução parece verificar-se também no conjunto arquitectónico que foi designado por edifício C. Hoje é difícil de reconstituir alguns detalhes da escavação, mas, da planta geral publicada por A. Sá Coixão, pode constatar-se a construção de um novo anexo, a ocidente do nártex e encostado a este último (Figura 4). Para além dos muros desenhados a negro, aparecem outros dois, no sentido ortogonal ao templo, isto é, na direcção este-oeste, que apenas são sumariamente indicados no desenho. Um deles, situado mais a sul, quase no enfiamento do limite meridional do nártex, está representado em fotografia e revela ser um muro bastante tardio, com fraco alicerce e a uma cota superior (Figura 10,


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11 - Local da presumível passagem entre a nave central e o nártex, a qual terá sido destruída e entaipada, por um grosseiro muro (seg. António N. Sá Coixão).

à direita). O outro alinhamento, que terá aparecido já muito arruinado, fica em frente ao sarcófago (S8), tendo sido provavelmente destruído por alturas da trasladação da antiga caixa funerária para este local. Ora tal resto de muro, pela sua posição, mostra ter pertencido à primeira fase do presente anexo, originalmente de planta bastante regular, constituindo uma sala em forma de rectângulo pouco alongado, no centro da qual se situa uma estrutura sumária em forma de quadrado. Além do citado desenho, este quadrado central aparece reproduzido em fotografia (cfr. Rituais…, foto 57). Colocamos a hipótese de ser o local de assentamento da pia baptismal56. Este espaço veio mais tarde a ser destruído e, segundo o autor da escavação, adaptado a funções agrárias, às quais andará associado o sarcófago monolítico que encostou ao muro exterior do nártex, para servir de pia, pois apresenta um orifício para escoamento de água (S8). 56  Trata-se de uma estrutura algo parecida com a que Luís Caballero escavou em San Pedro de la Nave e para a qual coloca também a hipótese de se tratar dos restos de um baptistério, anexado ao edifício original: CABALLERO ZOREDA, Luís (coord.) – La Iglesia de San Pedro de la Nave. Zamora: Instituto de Estúdios Zamoranos “Florián de Ocampo”, 2004, p. 106-110.

Esta última fase parece remontar ao século XV, pois estará também a ela ligada a moeda de D. Afonso V (ceitil)57. Antes do reinado de D. Dinis “o direito de padroado era maioritariamente, quando não de forma exclusiva, exercido pelas próprias populações”58. Freixo de Numão constituía inicialmente paróquia anexa à igreja de S. Pedro de Numão, situada no castelo. E, acaso seja verdadeira a tradição de que o Prazo era considerado pelos naturais como o “Freixo Antigo”, podemos ver aí um indício da evolução recente sofrida pelo lugar e do próximo abandono das funções eclesiais. Na realidade, a paróquia de Freixo é integrada na doação que o concelho de Numão faz a D. Dinis, na década oitenta do séc. XIII. Será a altura do presumível 57  Rituais…, loc. cit.. Nesta mesma zona apareceram duas fossas quadrangulares, às quais A. Sá Coixão atribui cronologia muito antiga, vindo depois a ser reutilizadas como locais de sepultura (S 9 e 10). Uma delas, pelo modo como foi descoberta, parecia mais um ossário. A outra revelou dois corpos inumados lado a lado, se bem que um deles com o esqueleto em estado de decomposição mais avançado. 58  SOALHEIRO, João – Arcipestrado de Vila Nova de Foz Côa. In SOAHEIRO, João (coord.) – Foz Côa: Inventário e memória. Porto: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p.47.


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12 - Buracos de poste descobertos no interior do Edifício B. Aparentemente, o opus signinum já estava destruído no momento da escavação, o que pode indiciar a posteridade das estruturas em madeira relativamente ao edifício romano, contribuindo para a sua danificação (seg. António N. Sá Coixão).

abandono da igreja de Prazo, no que João Soalheiro vê possível explicação na sua transferência para Fraxino, cuja importância começaria então a revelarse59. A integração de Freixo no padroado régio tem a ver, antes de mais, com a reforma geral empreendida pelo monarca, o qual, no entanto, irá abrir mão desse direito em algumas igrejas da região, após o Tratado de Alcanizes e a resolução dos problemas de fronteira. Foi o caso de algumas igrejas do termo de Numão, que cede a favor do bispo de Lamego, igrejas essas que reaparecem depois associadas ao chantrado, como a já referida ermida de São João que, como vimos acima, pode ser precisamente S. João do Prazo. Assim sendo, o abandono do Prazo pode ser ligeiramente mais tardio. A concluir, deve referir-se que, após a extinção das suas funções religiosas, a igreja terá caído no abandono e as suas ruínas ficaram seladas pela queda do telhado, como o revelou a escavação. Tal derrube é descrito por A. Sá Coixão, que o regista em fotografia 59  Idem, p. 46-51.

(cfr. Rituais…, foto 47). No entanto, o local continuará a ser usado, nomeadamente para a prática agrícola e pecuária, como parece revelar a reutilização de um dos sarcófagos, como pia, e o aparecimento de um forno moderno de secar figos. 5. JUSTIFICAÇÃO HISTÓRICO - CULTURAL DA BASÍLICA DO PRAZO

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o ponto de vista formal, a basílica do Prazo apresenta algumas características que sugerem a sua pertença a um grupo mais alargado, com afinidades na planimetria da aula eclesial (Figura 20) e nalgum apelo a memórias classicizantes, como a reutilização de capitéis lisos e bases de perfil dórico ou de frisos com molduras de tradição romana (Figura 8). Reportamo-nos essencialmente a três edifícios basilicais, que, embora tendo passado por algumas vicissitudes, chegaram até nós com elementos suficientes para lhes podermos atribuir um ar de


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13 - Duas soluções para suporte das arcaturas, no interior da igreja de S. Pedro de Balsemão.

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família. São eles, como já atrás deixamos referido, os templos de S. Pedro de Lourosa, S. Pedro de Balsemão e S. João do Prazo. E o que os torna ainda mais sugestivos é a sua integração numa corrente que atinge toda chamada Beira Alta e que evidencia – mais do que em qualquer outra zona do país – influências visíveis da arquitectura e da escultura que então se praticava no reino das Astúrias. Entre outros aspectos, sobressai em S. Pedro de Lourosa a sua planta, que se inspira em larga medida na basílica ovetense de San Julian de los Prados60. E se alguma dúvida houvesse, poder-se-iam ainda invocar os elementos de ajimez ou os modilhões de um só rolo, estriados no topo, de claro modelo asturiano. Mais interessante ainda, é a cruz gravada numa das pedras de altar de Lourosa, cujo desenho se inspira directamente na Cruz de los Angeles, oferecida por pelo rei Afonso II à basílica de San Salvador de Oviedo, no ano de 808 d. C.61. A referida peça de altar encontra-se hoje desaparecida, mas aparece na obra do Cónego Aguiar Barreiros e chegou a ser fotografada, em excelentes condições, pelo Instituto Arqueológico Alemão de Madrid (Figura 21)62. Tratava-se de uma ara romana, que foi reutilizada para servir de pilar de sustentação, presumivelmente, ao altar-mor da basílica de Lourosa. Na sua parte frontal foi esculpido o signum crucis, com braços de formato evasê63, onde nem sequer falta a evocação dos cinco camafeus existentes numa dos lados da célebre cruz do tesouro da catedral de Oviedo. Para além destes exemplos, podem ainda ser referidas duas peças de escultura, de importância excepcional. Uma delas é o capitel de acantos que se salvou da antiga basílica de Sernancelhe, o qual apresenta folhas bem características desta época, apenas com um nervo central, muito desenvolvido (Figura 23). Pertence a uma tipologia relativamente rara e quase exclusiva da escultura asturiana. Os exemplares 60  FERNANDES, Paulo Almeida – A igreja de São Pedro de Lourosa e a sua relação com a arte asturiana. Arqueologia Medieval, 10, Mértola (2008) 21-40. 61  CASTRO VALDÉS, César Garcia de (ed. lit.) – Signum Salutis: Cruces de orfebrería de los siglos V al XII. Oviedo: Consejería de Cultura y Turismo del Principado de Astúrias; KRK Ediciones, 2008, p. 120-127. 62  BARREIROS, Manuel de Aguiar – A igreja de S. Pedro de Lourosa. Porto: Marques Abreu, 1934, p. 29 e est.56; ARBEITER, Achim; NOACKHALEY, Sabine – Christliche denkmäler des frühen Mittelalters vom 8. bis ins 11. Jahrhundert (Hispania Antiqua). Mainz: Verlag Philipp von Zabern, 1999, p. 237, abb. 164.

14 - Arcaturas das naves, no interior da basílica de S. Pedro de Lourosa (seg. Paulo A. de Almeida Fernandes).

63  Parece-me ser a melhor forma de designar aquilo que se convencionou chamar “cruz patada”; apesar de ser um francesismo, a palavra é adoptada pelo dicionário Houaiss, na forma indicada.


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15 - A implantação do clã senhorial de Lafões no médio vale do Vouga, que serviu de base estratégica para o movimento expansionista protagonizado pelos descendentes de Diogo Fernandes e Onega (base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

mais conhecidos relacionam-se com as igrejas de San Miguel de Lillo e San Salvador de Priesca. A outra peça diz respeito a um fragmento de ajimez, que se encontra num trecho de muro da capela pré-românica de São Martinho, junto às termas de S. Pedro do Sul (Figura 22). A respeito desta escultura e a sua estreita relação com outra de San Salvador de Valdedios, que lhe terá servido de modelo, explanei já o suficiente em trabalho anterior sobre as respectivas características e as razões dessa afinidade64. No entanto, deve adiantar-se que, tanto quanto nos é dado apurar, serão estes casos únicos, em que um ajimez é revestido de moldura tão complexa. Na imagem aqui reproduzida, pondo em confronto as duas peças, torna-se evidente que a de

Valdedios é muito mais elaborada, mostrando na zona central da moldura uma fina decoração em espinha. A peça da capela de São Martinho é mais grosseira, mas mantém o mesmo tipo de ornato, com várias caneluras paralelas. Além disso, o friso percorre o arco que apresenta uma curvatura perfeitamente mimética em relação ao modelo de Valdedios – detalhe que é de sublinhar – e termina com uma inflexão na horizontal, ao modo do ajimez asturiano65. É altura de procurar uma explicação para esta quase sistemática – e de algum modo inesperada – proximidade de igrejas da Beira interior a modelos asturianos produzidos ao longo do séc. IX. Não será a

64  REAL, Manuel Luís – O Castro de Baiões terá servido de atalaia ou castelo, na Alta Idade Média? Sua provável relação com o refúgio de Bermudo Ordonhes na Terra de Lafões. Revista da Faculdade de Letras: Ciências e Técnicas do Património. 12. Porto (2013) 203-220.

65  Sobre as peças asturianas referenciadas cfr. CASTRO VALDÉS, César Garcia – Arqueología Cristiana de la Alta Edad Media en Astúrias. Oviedo: Real Instituto de Estúdios Asturianos, 1995, Figura 237, 263 e 285.


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16 - Tenência ou comisso de Entre Côa e Távora, onde imperaram Rodrigo Tedones e Leodegúndia Dias, pais de Flâmula (base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

Reconquista cristã, só por si, a justificar tal presença, pois nada se passa com tão acentuadas características, tanto no Entre Douro e Minho, como na fronteira de Coimbra. Num estudo recente, demos algum relevo à região de Lafões, onde se veio a instalar um grupo dissidente, hostil a Afonso Magno66. Este grupo seria fiel apoiante de um irmão rei, Bermudo Ordonhes, que por duas vezes se teria já anteriormente rebelado contra o monarca. O braço direito de Bermudo terá sido Diogo Fernandes, um nobre galego ou castelhano casado com Onega, que alguns pretendem ver como uma princesa de origem navarra. A região de Viseu pode ter constituído um foco de resistência mais alargado, posto que há fortes suspeitas de que também a ela estivesse ligado um outro irmão, Odoário, antigo 66

REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2013.

conde de Castela (zona do Orense) e Viseu, cujos bens vieram a ser confiscados por ordem do rei. Além disso, a documentação indica-nos que a este núcleo rebelde se associaram também alguns descendentes dos presores de Tuy e Portucale. Pensamos que a razão desta aliança terá sido provocada, porventura, por se sentirem espoliados do governo de tais territórios, em favor do mordomo-mor do reino, Hermenegildo Guterres, guindado a esta posição após o apoio prestado ao monarca durante uma rebelião na Galiza liderada, entre outros, por um irmão de Vímara Peres. Há fortes probabilidades de Bermudo Ordonhes se ter instalado na vizinhança das caldas de Lafões, que se mantinham activas desde a época romana, escolhendo uma zona relativamente discreta, na actual freguesia de Bordonhos. Ela reunia excepcionais condições, não


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17 - Zona estratégica do médio vale do Mondego, onde imperou Ximeno Dias e se estabeleceram Alvito Lucides e Munia Dias (base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

apenas devido à proximidade das termas, mas também pela fertilidade do solo e pela fácil vigilância que lhe proporcionava uma tal posição. Na outra margem do rio Vouga e sobranceiro às próprias termas, ficava o castelo de Lafões (Vouzela), a fortificação militar que se tornaria cabeça de território. A pouca distância deste lugar, igualmente na margem sul, ficava na freguesia de Moçâmedes o palácio de Diogo Fernandes e Onega. Por este casal, aí terá sido criado até cerca dos doze anos o terceiro filho do príncipe Ordonho, que foi rei de Leon, com o título de Ramiro II. A chegada de Bermudo Ordonhes a esta região, depois de derrotado na batalha de Grajal, terá ocorrido por volta de 898 d. C.. E aqui se veio a estabelecer durante quase trinta anos, já que terá falecido no ano de 928 ou ligeiramente antes. A sua permanência em terras de Lafões deve ter passado por dois momentos distintos. Até 909-

910, altura em que o rei Afonso III é deposto pelos filhos, vindo pouco depois a falecer, este grupo rebelde deve ter-se mantido numa atitude essencialmente defensiva. Como quase único interlocutor com o reino do Norte poderá ter contado com o príncipe Ordonho, governador da Galiza e que em 914 se tornará rei em Leon, com o epíteto de Ordonho II. Posteriormente, a sua posição – e a de Diogo Fernandes – deve ter evoluído para uma progressivo reforço de poderes e de expansão senhorial. A presença deste clã de origem asturiana, com eventuais ligações à Galiza, a Castela e, até, a Navarra, adquiriu foros de poder fronteiriço, semi-independente. A sua situação pode ser posta em paralelo com a de outros grupos que se desenvolveram noutras marcas ou estremaduras do reino asturo-leonês, como os Banu Qasi em Saragoça, os Iñiguez em Navarra ou as cortes de Nuno Núñez


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18 - Expansão senhorial do mesmo clã, junto à cidade de Lamego, onde possuíram herdades Ximeno, Múnia e Leodegúndia Dias (base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

(Munio Múniz) e de Fernan Gonzalez em Castela. O conde lafonense Diogo Fernandes67 pode ser, em justa medida, equiparado a estes magnates. Tal como aos irmãos Ismail e Fortún ibn Musa fora encomendado o príncipe Ordonho, “ad nutriendum” nos confins do reino, também Diogo e Onega receberam deste último – já adulto – a incumbência de criar o filho Ramiro. E tal como o conde Nuno Nuñez, ele distancia-se da corte do rei Magno, aí reaparecendo ambos no ano 909, quando está eminente a queda do monarca. A presença do príncipe asturiano Bermudo 67  É de anotar que nenhum documento lhe atribui o título de “conde”, o que, por si só, não significa que não tenha ascendido a tal dignidade. A documentação é muito escassa e nem sempre era usado o respectivo título (tal como os reis, muitas vezes, dispensavam a designação do cargo, ficando-se pelo qualificativo de “princeps”). Por outro lado, a sua condição de rebeldia não podia ser premiada pela monarquia. Dois dos seus filhos, Ximeno Dias e Mumadona Dias, receberam expressamente a menção do estatuto condal.

Ordoñez na zona das caldas de Lafões é-nos atestada, no plano artístico, pela existência do já referido ajimez da capela de São Martinho, templo que pode ter sido uma fundação sua, tal como, em nosso entender, é legítima a hipótese de lhe poder ser também atribuída a responsabilidade pela primeira fase da construção de San Salvador de Valdedios68. Diogo Fernandes e Onega tiveram quatro filhos – Munia, Leodegúndia, Ximeno e Mumadona – sendo talvez esta a respectiva ordem de nascimento, dado que é assim que os seus nomes aparecem alinhados num documento em que todos eles figuram. A primeira casou com Alvito Lucides, um neto de Vímara Peres. Leodegúndia teve provavelmente como marido Rodrigo Tedones, descendente do conde Afonso 68

REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2013, p. 213-214.


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“Betote”, o presor de Tuy. São eles os progenitores da celebrada D. Flâmula (ou Chamoa) Rodrigues que, por testamento, deixa os castelos do Côa ao mosteiro de Guimarães. O filho varão de Diogo e Onega, Ximeno Dias, casará com Ausenda Guterres, uma neta do presor de Coimbra – presumível adversário do clã – mas já depois da morte deste e na tentativa, porventura, de aproximação entre ambas as linhagens, tornando-se assim cunhado de São Rosendo, o eminente abade de Celanova, bispo de Mondoñedo e, depois, bispo de Iria Flavia/Santiago. A condessa Mumadona, provavelmente a filha mais nova, casa com Hermenegildo Gonçalves, primo de Rodrigo Tedones e igualmente neto de Afonso Betote69. Pelo lado de sua avó paterna é, ainda, bisneto do conde rebelde Hermenegildo (irmão de Vímara Peres). Jogando com esta rede familiar, o clã irá desenvolver um sistema de defesa periférico que, pela sua distribuição no território, poderemos considerar perfeito. O núcleo direccional encontrase no médio vale do Vouga (Figura 15), centrado no castelo de Lafões, com o apoio em algumas atalaias e fortificações secundárias. Junto à villa escolhida pelo líder do clã, que habitaria o paço de Bordonhos, havia provavelmente dois pontos importantes de postos de observação, no castro de Nª Sª da Guia e no castelo de Nespereira70. Recorrendo à documentação relativa ao património da linhagem de Diogo Fernandes e Onega, verifica-se que à filha mais nova e seu genro, Hermenegildo Gonçalves, estaria confiada uma posição na zona de transição entre o médio Vouga e a faixa costeira, donde poderia vir algum perigo. Na realidade, de acordo com a partilha de bens após a morte do conde Hermenegildo, em 950, na parte que coube a um dos seus filhos, o diácono Ramiro, contam-se quatro vilas na chamada região de Centum Cortes (DC 61). São elas a villa Sanctus Martinus (hoje o lugar de Ermida, junto a Sever do Vouga), a villa de Spinitelo (ou “villa Idolo”, em Espindelo, freg. de Ribeiradio, conc. de Oliveira de Frades), a villa Quintanela (Quintela, na freg. de Arcozelo, em Oliveira de Frades) e a villa de Manancos71. A localização desta 69  Hermenegildo é filho de Gonçalo Betotes, enquanto Rodrigo será descendente de Tedon Betotes. 70  Idem, 2013, p. 220-224. Para uma informação mais completa sobre o sistema defensivo em redor de Viseu-Lafões vd.: MARQUES, Jorge Adolfo de Meneses – Castelos da Reconquista na região de Viseu. In Arqueologia da Idade Média da Península Ibérica. Actas do 3º Congresso de Arqueologia Peninsular, v. 7. Porto: ADECAP, 2000, p. 113-129. 71  Veja-se a propósito a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

última é aparentemente mais complexa. No entanto, o topónimo – que hoje é irreconhecível na zona – parece relacionado com “manar ” e “manancial”, o que tem a ver com jorrar água, fonte, nascente, etc.. Por essa razão, estamos inclinados a situar esta herdade para os lados da Serra do Ladário, onde nasce uma série de ribeiros (da Gaia, de Io, do Esporão, da Alombada, de Cedrim, da Ponte) e onde existem grandes concentrações de água em Alagoa, na Vessada do Salgueiro e no Lameiro Longo. Numa e noutra margem do Vouga, a arqueologia identificou pelo menos duas fortificações alto-medievais, respectivamente no castro da Coroa (Arcozelo das Maias) e no Castelo da Pena, em Sever do Vouga 72. É incerta a existência de uma atalaia no castro da Várzea, perto de Reigoso73. Mas um pouco mais a sul, o arqueólogo Jorge Adolfo Marques identificou o roqueiro castêlo de Alcofra74, que, com o de Guardão, defendia um acesso alternativo ao centro políticomilitar da Terra de Lafões, através do Caramulo e pelo importante vale de Besteiros, onde, não talvez por acaso, encontramos o topónimo “Muna” no concelho de Tondela. É de referir, de passagem, que o vale do Vouga foi partilhado com outros familiares desta estirpe, nomeadamente da casa de Gondesindo Eres, primo de Mumadona, cuja descendência terá dado origem aos senhores de Marnel. Trata-se, pois, de um território onde os perigos, embora presentes, não incomodariam tanto como em outras zonas mais expostas. Daí que leve a pensar que possa ser esta a razão para que a sua tutela tenha ficado a cargo da herdeira mais nova de Diogo Fernandes e Onega75.

(GEPB), sv “Sever do Vouga”, v. 28, p. 607; e FERNANDES, A. de Almeida – Adosinda e Ximeno: Problemas históricos dos séculos IX e X. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 1982, p. 11-14. 72  EON, Indústrias Criativas (coord.) – Genius Loci: o Espírito do Lugar. Sever do Vouga: Câmara Municipal, 2013, p. 130-131. 73  Agradecemos ao Dr. Filipe Soares, do Museu das Técnicas Rurais, todas as informações concedidas acerca do concelho de Oliveira de Frades. 74  MARQUES, Jorge Adolfo de Meneses – Carta arqueológica do concelho de Vouzela. Vouzela: Câmara Municipal, 1999, p. 39. 75  Sobre estas várias famílias condais vejam-se, entre outros: FERNANDES, A. de Almeida – A nobreza na época vimarano-portugalense. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 1981; MATTOSO, José – A nobreza medieval portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 101-157; e MATTOSO, José; KRUS, Luís; ANDRADE, Amélia – O Castelo e a Feira. A Terra de Santa Maria nos séculos XI a XIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 127-132.


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19 - Vista isométrica da igreja de San Julian de los Prados, em Oviedo, que terá servido de modelo para algumas basílicas da Beira interior (seg. Lorenzo Arias).

Chama a atenção a circunstância de, na distribuição das áreas de influência deste grupo de “homens de fronteira”, não existirem traços de se terem interessado pela zona da Serra da Estrêla e do distrito de Castelo Branco. Deve concluir-se, deste facto, que a fronteira com o Islão não seria causa de grande preocupação para eles. Bermudo Ordonhes tinha anteriormente dominado Astorga, num golpe de rebelião que terá durando uns sete anos, e fê-lo, segundo crónica de Sampiro, tendo árabes consigo76. Como inimigo declarado de rei de Leon, seria um aliado natural 76  QUINTANA PRIETO, Augusto – La “Tirania” de Bermudo, el Ciego, en Astorga. Leon, 1967, p. 113 (sep. de “Archivos Leoneses”, nº 41).

de Córdova ou, pelo menos, teria o direito a não ser hostilizado. As boas relações estabelecidas pelo clã com o al-Andalus estão mesmo comprovadas em S. Pedro de Lourosa, onde existem peças avulsas que demonstram ter existido uma possível torre, cuja cornija imitava as arcaturas usadas nos alminares cordoveses. Por fim, é de ter em conta que um movimento de expansão para sudoeste poderia ser encarado como um acto hostil, pelo que poderemos encontrar alguma lógica nesta ausência de dados relativamente às áreas em questão, apesar da grande mobilidade que, desde cedo, este grupo evidenciará. O terreno mais crítico para o clã rebelde era, sem


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20 - Análise comparativa das plantas das basílicas de S. Pedro de Lourosa, S. João do Prazo e S. Pedro de Balsemão (arranjo gráfico de Cláudio Almeida).

sombra de dúvida, a zona atravessada pelas vias que ligavam a Leon à região de Viseu, seja através de Zamora e cuja penetração se daria – na parte hoje portuguesa – por Escarigo e Vermiosa77, seja sobretudo de Astorga, cujo trajecto seria eventualmente mais traiçoeiro. É esta, a nosso ver, a explicação para a presença de tantos castelos e penelas na posse de Flâmula Rodrigues, quando, no ano de 960, faz deles testamento ao mosteiro de Guimarães. A deovota Flâmula (ou Chamoa) era neta de Diogo Fernandes e Onega. Terá herdado esses bens de seu pai, Rodrigo Tedones, que seria porventura o mais maduro dos genros daquele prócere lafonense. Assim pode ser entendida a circunstância de lhe estar atribuído todo o sistema defensivo da região entre Côa78 e Távora (Figura 16). O estudo da organização militar na Beira interior, no século X, já foi efectuado por outros autores, com destaque par Mário J. Barroca79. O castelo que 77  É de supor que Almofala, Vilar Torpim e Pinhel desempenhassem já um papel de relevo como atalaias ao longo do trajecto em território português. Para outros pontos de vigilância e sinalização estratégica vd. BARROCA, Mário Jorge – De Miranda do Douro ao Sabugal: Arquitectura militar e testemunhos arqueológicos medievais num espaço de fronteira. Portugalia, Nova série, v. 29-30. Porto (2008) p. 228. 78  Há a possibilidade de se estender até ao rio Águeda, como veremos adiante. 79  IDEM – Do castelo da Reconquista ao castelo românico (séc. IX-XIII). Portugalia, Nova série, v. 11-12. Porto (1990-91) p. 94-98; Fortificações

desempenhava funções estratégicas mais relevantes era naturalmente o de Trancoso, que servia de obstáculo à passagem de forças inimigas que descessem de León, por qualquer das vias. O citado autor chamou a atenção para a grande antiguidade da torre de menagem de Trancoso, avançando com a hipótese de se tratar de invulgar relíquia da lista de castelos que pertenceram a Flâmula. Escavações arqueológicas recentes, realizadas dento da primeira cerca desta fortificação, aconselham a uma certa prudência a esse respeito. Elas comprovaram que, até ao séc. VIIIIX, não existira qualquer ocupação anterior naquele lugar, o que sugere ter sido ela logo efectuada para fins militares. Além de cerâmicas de produção local, existem materiais do período emiral-califal, ou seja, exactamente contemporâneos dos acontecimentos que estamos a descrever. Todavia, apareceram estruturas mais antigas do que a referida torre, estruturas essas que já seguiriam um amplo traçado, bem próximo do da cerca actual – pelo menos na parte oeste – e que dispunha de contrafortes redondos. Foi encontrado um deles, aliás, em posição incompatível com a porta do recinto na baixa Idade Média80. O traçado da e povoamento no norte de Portugal. Portugalia, Nova série, v. 25. Porto (2004) p. 189-191. 80

Poder-se-á ver nisto um indício de construção islâmica, do período


O Significado da basílica do Prazo

primitiva muralha apareceu em vários locais, sendo de salientar que, durante as obras da DGEMN, surgiu um fabuloso pano desta cerca, do qual restam fotografias. Ao que parece, o recinto sofreu grandes reparações em época posterior, porventura durante o reinado de D. Afonso Henriques, pois apareceu uma mealha mandada cunhar por este monarca, no fundo de uma torre rectangular que substituiu o citado contraforte redondo. O conjunto do espólio ainda se encontra em estudo, pelo que é prematuro avançar com conclusões definitivas. À primeira vista, a construção da torre de menagem poderá situar-se numa fase intermédia, articulando-se com ela outras estruturas que lhe estão adjacentes. Todavia, é ainda prematura a atribuição de uma cronologia precisa, podendo esta ser mesmo posterior à época de Flâmula, segundo hipótese provisória avançada pelos arqueólogos responsáveis pela escavação81. Não é de descartar também a possibilidade de a primeira fase corresponder a uma construção emiral, seguindo-se uma reforma à conta dos repovoadores cristãos. Outra importante fortaleza, a destacar-se no conjunto, deverá ter sido o castelo de Numão. Na documentação antiga aparece designado como “Nauman” ou “Noman, cognomento Monforte”. Este último apelativo, “Monforte”, aponta desde logo para a singular importância estratégica da elevação onde se implanta tal reduto. Por outro lado, o topónimo “Nauman”, já referido em 960, deriva do antroponímico árabe nu´mân, que significa homem de “sangue [nobre]”82. A presença de um nome árabe dado tão precocemente àquele castelo, não pode deixar de sugerir a sua origem anterior à primeira Reconquista do território. Ele derivará, quase seguramente, do próprio nome do líder que representava o poder emiral na região. Aliás, o mesmo deixou a sua marca na toponímia local, em Sabadelhe, no lugar conhecido por “Terra do emiral? 81  FERREIRA, Maria do Céu et al. – Castelo de Trancoso. Trancoso: ARA-Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património da Beira Interior, 2011; FERREIRA, Maria do Céu; LOBÃO, João Carlos; CATARINO, Helena – Cerâmicas altomedievais do castelo de Trancoso: uma primeira abordagem. Arqueologia Medieval, 12. Mértola (2012) 15-20; FERREIRA, Maria do Céu; LOBÃO, João Carlos – Arqueologia no castelo de Trancoso: novos dados para o estudo da fortificação. In Fortificações e Território na Península Ibérica e Magreb (séculos VI a XVI). II Simpósio Internacional sobre Castelos. Lisboa: Edições Colibri (no prelo). Agradecemos à Drª Maria do Céu Ferreira todas as informações fornecidas sobre esta importante descoberta. 82  ALVES, Adalberto – Dicionário de arabismos da língua portuguesa. Lisboa: INCM, 2013, p. 608.

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21 - Altar de S. Pedro de Lourosa, hoje desaparecido, onde estava esculpida uma representação da imperial Cruz de los Angeles, de Oviedo, inclusive com a precisa referência aos cinco camafeus que lhe ornamentam os braços e a cruzeta (seg. Instituto Arqueológico Alemão de Madrid).

Rei Nemão”, onde A. Sá Coixão encontrou vestígios de uma “uilla” romana. A cerca do castelo primitivo, de âmbito mais reduzido e traçado irregular, embora com tendência para o rectângulo, pode seguir-se na parte setentrional da fortificação, no seu interior, através de pequenos trechos da muralha (Figura 26) e sucessivos entalhes na rocha. O levantamento está por fazer, mas viemos a constatar que a sua localização – aproximada, embora não exacta – se encontra já sugerida numa das plantas gerais que acompanham a publicação sobre os trabalhos arqueológicos na Vila Velha de Numão83. Na cerca actual, existe também um pano de muralha relativamente antigo, do lado Norte, com aparelho não isódomo, que poderá eventualmente corresponder ao início da remodelação do castelo após a conquista das Beiras, por Fernando Magno. 83  LOPES, Isabel Alexandra; SANTOS, Heloísa Valente dos; ABRANCHES, Paula Barreira – Vila Velha de Numão: Registo arqueológico de um espaço duriense. Douro. Estudos & Documentos. 12:21 (2006) 229240.


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22 - Fotografia do fragmento de ajimez de S. Martinho, nas Caldas de Lafões, colocado em confronto com a peça que lhe serviu de modelo, existente na cabeceira de S. Salvador de Valdedios, nas Astúrias (arranjo gráfico de Cláudio Almeida).

As funções de Numão como cabeça de território continuarão na fase seguinte e, mesmo, durante a primeira dinastia84. Somos, pois, de opinião que Rodrigo Tedones85 terá sido mandante numa espécie de tenência defensiva entre o Douro e Trancoso, na primeira metade do século X, a qual estaria limitada a ocidente pelo rio Távora e a oriente pelo Côa, senão mesmo o Águeda. Segundo João Soalheiro, com aparente fundamento, o termo de Numão chegaria até ao rio Águeda, nos inícios da nacionalidade86. Embora difícil de comprovar, é aliciante o estabelecimento de uma ligação entre o topónimo “Castelo Rodrigo” e o nome do magnate que, por estas paragens, defendia os

84  No entanto, trata-se duma zona que na alta Idade Média vivia à margem do poder central. Cfr. MARTIN VISO, Iñaki – En la periferia del sistema: Riba Côa entre la antiguidad tardia e la alta edad media. In JACINTO, R. ; BENTO, V., (coord.s) – I Conferência, Territórios e Culturas Ibéricas. Porto: Campo das Letras - Guarda: Centro de Estudos Ibéricos, 2004, p. 168-208; IDEM – Espacios sin Estado: Los territórios occidentales entre el Duero y el Sistema Central (siglos VIII-IX). In MARTIN VISO, Iñaki (ed. lit.) – Tiempos oscuros?. Territórios y sociedade n el centro de la Península Ibérica (siglos – VII-X). Madrid: Sílex Ediciones, 2009, p. 107135. 85  É curioso registar, junto à ribeira de Teja e a par de Numão, a existência do topónimo “Conde”, onde apareceram duas inscrições rupestres, condenadas a ficarem submersas pela barragem do Catapareiro. 86  Sobre as fronteiras do termo de Numão, vd: COIXÃO, António do Nascimento Sá; TRABULO, António Adalberto Rodrigues – Evolução político-administrativa na área do actual concelho de Vila Nova de Foz Côa: séculos XII a XX. Vila Nova de Foz Côa: Câmara Municipal, 1995; MARQUES, Maria Alegria Fernandes – As terras de Vila Nova de Foz Côa na Idade Média. In SOALHEIRO, João (coord.) – Foz Côa: Inventário e memória. Porto: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p. 19 ; e SOALHEIRO, João – Arcipestrado de Vila Nova de Foz Côa. In Idem, p.32-36. Segundo este último autor, incluiriam mesmo terras na margem direita do rio Côa.

acessos a Viseu e Lafões87. A este propósito, não deixa de ser também significativa a existência, a sudeste de Barca d´Alva, dos restos de uma presumível villa romana no chamado “Vale Tedão”, onde Manuel Maia encontrou muita tégula, uma tampa de sepultura e mós manuais88. A verdade é que este território ficou marcado por uma certa desconfiança relativamente às respectivas aspirações autonómicas. Não deve ter sido por acaso que, após a Reconquista definitiva no tempo de Fernando Magno, a “região a sul do Douro, compreendida entre os rios Távora e Águeda, não integrou o território portucalense, pelo que todo o repovoamento dessa área deverá ter sido da responsabilidade de um presor leonês, existindo bons argumentos que levam a admitir que os Bragançãos tenham recebido o governo de todo o imenso território que “extremava” o lado oriental do Condado Portucalense, desde Chaves até Bragança, e daí para sul, ultrapassando o Douro entre aqueles dois rios, até ao Sabugal”89. É na qualidade de governador regional que Fernão Mendes de Bragança concederá foral a Numão, em 1130, numa altura em que enceta diálogo 87  Sobre as dúvidas que pairam acerca da origem deste topónimo vd: BORGES, Júlio António – Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo: Subsídios para a sua História. Figueira de Castelo Rodrigues: Câmara Municipal, 2007, p. 83. 88  BORGES, Op. cit., 2007, p. 49; COSME, Susana Maria Rodrigues Entre o Côa e o Águeda: Povoamento nas épocas romana e alto-medieval. Dissertação de Mestrado em Arqueologia apresentada à faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002. (Texto Policopiado), p.54-55, 91, 109. 89  PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor – O regime senhorial na fronteira do nordeste português. Alto Douro e Riba Côa (séculos XI-XIII). Hispânia, 67:227 (sept.-dic. 2007) p. 867.


O Significado da basílica do Prazo

com D. Afonso Henriques, cuja irmã se consorciará precisamente com este magnata. O castelo de Numão, com auxílio de algumas esculcas ribeirinhas – Nossa Senhora do Viso (Custóias), Alto da Atalaia (Algodres), Atalaia (Almendra), etc. – teria a função de controlar as passagens do Douro que pudessem ser utilizadas por qualquer hoste inimiga que, vinda do Norte, se dirigisse a Viseu. O testamento de Flâmula deixa perceber que outras fortificações haveriam, para além das citadas. E nem todos os castelos e penelas referidos no testamento (960) e no inventário dos bens do mosteiro de Guimarães (1059) se encontram devidamente identificados. Apresentamos a localização mais consensual90, sendo de notar que existia um eixo principal de segurança, que controlava a via que desde o Vale da Vilariça e da barca do Pocinho, seguia para Muxagata e Trancoso. Um outro eixo permitiria também fácil penetração, a partir do planalto de Carrazeda e da travessia do Douro junto à quinta do Vesúvio, para depois passar no lugar da Torre (no cruzamento de Rumansil) e não muito longe do castelo de Numão, seguindo para Penedono, Sernancelhe e Aguiar da Beira. Esta linha de fortificações, ao longo do seu trajecto, apresenta praticamente igual poder defensivo à da que bordejava a estrada anterior. Mas não foram descuidadas certas ligações secundárias, como o ramal que unia Penedono a Trancoso, defendido pelo castelo de Terrenho, ou a estrada que vinha de Lamego, por Moimenta da Beira, a qual era vigiada pelo castelo de Caria. A apertada malha de fortificações entre o Côa e Távora deve talvez explicar as dificuldades sentidas posteriormente por Fernando Magno quando preparava a reconquista de Viseu, pois viu-se forçado a mais do que uma tentativa, contornando o trajecto do Côa, sem dúvida o mais directo. Uma outra zona sensível, do ponto de vista da segurança de Viseu, no trânsito do séc. IX para o séc. X, seria a fronteira com Coimbra. A cidade era dominada por uma estirpe rival, através da descendência de Hermenegildo Guterres, o presor da cidade e um dos homens em que Afonso Magno mais confiava, a ponto de o nomear seu mordomo. Ora, a melhor ligação entre Viseu-Lafões e Coimbra era feita através dos vales do Dão e do Mondego. 90  Acrescentamos o castelo de Sª Justa, em Marialva, na convicção de que a sua posição estratégica e a antiguidade do lugar convidam a considerá-lo do mesmo período. Os casos de localização mais duvidosa são Vacinata (Muxagata), Amindula (Meda) e Alcobria (Alcarva).

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23 - Capitel proveniente de uma desaparecida igreja, construída no sopé do castelo de Sernancelhe, do mesmo clã senhorial, e que se inspira em esculturas de S. Miguel de Lillo ou S. Salvador de Priesca, nos arredores de Oviedo (seg. Exposição de Arte Sacra, Sernancelhe, 1964).

No entanto, por alturas de Penacova existe uma portentosa barreira natural, em Livraria do Mondego, resultante da cadeia montanhosa formada pelas serras do Buçaco e da Atalhada, entre as quais o rio atravessa num passo estreito, fácil de controlar. O mosteiro de Lorvão, apesar de se encontrar a jusante de Penacova, encontra-se protegido pelo mesmo sistema orográfico, encaixado entre o Buçaco e a serra da Aveleira. E não obstante estar-se já a poucos quilómetros de Coimbra, parece que esta zona, na primeira metade do séc. X, concretamente antes de 928 d. C., se encontraria dominada pela estirpe lafonense, mais do que a coimbrã. Na verdade, as relações do clã – outrora rebelde, mas nesta altura já perfeitamente integrado, graças à acção de Ordonho II e do príncipe Ramiro – com o mosteiro de Lorvão parecem ser anteriores às da casa de Coimbra. Estando essa dependência relacionada com alguém que se tornou malquisto de um sector da sociedade, avançamos com a hipótese de tal circunstância poder ter sido responsável pela possível damnatio memoriae que Maria João Branco julga entrever, relativamente aos fundadores do


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24 - A igreja-anta da Senhora do Monte, em Penela da Beira, construída provavelmente pelos mesmos patronos e que preserva algumas características de matriz asturiana.

mosteiro91. Ora, na data referida de 928, a condessa Onega (já viúva) e seus quatro filhos fazem doação ao mosteiro de Lorvão da parte que lhes pertencia em Vila Cova. E fazem-no pro anima dominissimi nostri domini Ueremudi (Bermudo Ordonhes) e para cumprir uma sua última vontade (LT 33)92. O vizinho castelo de Penacova, que no séc. X se designaria “torre de Miranda” (LT 37), devia nesta altura estar sob a alçada do filho varão, o conde Ximeno Dias. Só assim se compreende que, em 936, seja ele o juiz de uma disputa sobre os limites entre Vila Cova e a villa de Alcainça (LT 36), villa esta que ficava à sombra do castelo e que um documento de 980 situa “in territorio 91  BRANCO, Maria João – Reis, condes, mosteiros e poderes: O mosteiro de Lorvão no contexto político do reino de Leão (secs. IX-XI). In Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis (Estúdios). Leon: Centro de Estúdios e Investigación “San Isidoro”, 2008, p. 32-39. Doravante, referiremos os documentos do Liber Testamentarum, pela sigla LT, seguida do número respectivo. 92  É esta a passagem em que referem estar a cumprir a vontade de Bermudo Ordonhes: “Nos uero agnoscentes quod noster domno iam ea dederat ad ipso monasterio in uita sua et non potuit istum testamentum complere, post hec adinplebimus nos quod ille inquoabit et nos et nos (sic) adfirmabimus”.

de Miranda” (LT 43). A defesa desta barreira e o controlo das duas vias de penetração, a norte e sul de Penacova, seriam assegurados por atalaias no alto Viso e na serra da Atalhada. A primeira, vigiava também a estrada secundária que, a norte do Buçaco, se dirigia em direcção a Mortágua e Santa Comba Dão, mas tinha como papel principal defender o caminho que, junto à portela da Oliveira, atravessava a própria serra. À margem desta via, já em zona de protegida, situavase a villa de Gondelim (“Gundelini uel Palacio” – LT 50), onde ficaria um paço que, pelos anos de 984-985, estava na posse de uns netos de Munia Dias e Alvito Lucides (LT 48-50). A própria filha e genro de Diogo Fernandes, os citados Munia e Alvito, entre 951-955 irão doar ao mosteiro de Lorvão outras vilas localizadas um pouco mais a montante, em Midões (“cum suos monasterios”…) e em Touriz (DC 100). Ficavam ambas nas imediações de Bobadela, a splendidissima civitas romana, cuja vida não sofreu interrupção e que, na alta Idade Média, serviu de espólio para o aproveitamento de elementos arquitectónicos em construções coevas – com destaque para S. Pedro de


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25 - O mesmo templo, cuja capela-mor aproveita a câmara do dólmen, possuía sobre o chapéu desta última, uma câmara superior de tipo asturiano.

Lourosa, quase seguramente ligada à mesma família patronal93 – e que pode também ter servido de assento a membros do clã94. No mesmo documento é referida uma outra herdade, a villa que vocitant Flamianes, com o seu mosteiro, ornamento e biblioteca. Ficava junto ao rio Alva, tendo-a Rui de Azevedo identificado com Friúmes. Embora tivéssemos, no início, alguma dificuldade em aceitar esta hipótese, achamo-la possível depois de descartar outras alternativas e por verificar que se situa na proximidade do actual “Vale do Conde”, justamente sobranceiro ao citado afluente do Mondego. A villa de Friúmes fica numa zona acidentada, na outra margem do rio e quase simétrica a Gondelim, bem perto da já secular via colimbriana, à qual ela serviria de sentinela no limiar do território controlado pelo clã lafonense. Esta antiga estrada era 93

REAL, Manuel Luís – Op. cit, 2012, p. 108 e114-117.

94  ALARCÃO, Jorge – A splendidissima civitas de Bobadela (Lusitânia). Sep. de Anas, 15-16. Mérida (2002-2003), 155-180; GOMES, Mário Varela e DIAS, Maria Manuela Alves – Jarro litúrgico, visigótico, de Bobadela (Coimbra). In IV Reunió d´Arqueologia Cristiana Hispânica. Barcelona: Institut d´Estudis Catalans; Universitat de Barcelona; Universidade Nova de Lisboa, 1995, p. 91-98.

a principal de ligação à “via da Prata”, já em território leonês, mas, na zona, partia dela um ramal para Viseu. Vindo de Coimbra, este eixo viário atravessava o festo da serra da Atalhada e, pela ponte da Mucela (de musalla, “lugar de oração”) dirigia-se a S. Martinho da Cortiça, Lourosa e Bobadela. Aqui divergia o referido ramal, inflectindo para norte e passando pelo “porto cum suo barco” de Midões (DC 100) e por Oliveira do Conde, a caminho de Viseu. A penúltima localidade, de acordo com um documento do Livro Preto da Sé de Coimbra chamava-se “villa de comite” já em 1105 (LP 301). Na impossibilidade de sabermos a que conde se referia o topónimo, deixamos a hipótese de aludir a um membro da estirpe de Munia ou, mesmo, da do seu cônjuge Alvito. Isto porque a villa Teodorici (Touriz), referida no DC 100, terá recebido o seu nome do conde Teodorico Lucides95, que devia deter aí também uma parcela, juntamente com seu irmão, pois são ambos filhos do conde Lucídio Vimaranes, aquele 95  Este conde reaparece no Livro Preto, como testemunha de um documento sobre uma villa da zona de Cantanhede, e é referido juntamente com seus irmãos em documentos do mosteiro de Celanova.


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a quem provavelmente foram retirados os direitos de sucessão no condado de Portucale. A emergência desta elite beirã, no séc. IX-X, vai conduzir à ocupação de um espaço que, em grande medida, se desarticulara após a crise do Império e a instalação dos reinos bárbaros, mas sobretudo na sequência das perturbações causadas pela invasão árabe da Península. O seu poder estruturase a partir de Lafões e vai irradiar de acordo com objectivos estratégicos precisos, primeiro defensivos e, posteriormente, decerto já com um plano de senhorialização do território. O ponto de viragem parece localizar-se imediatamente após 910, ano da morte do rei Afonso Magno. Em estudo anterior, adiantamos a hipótese de a árida inscrição de 912, da igreja de S. Pedro de Lourosa, poder corresponder ao momento da fundação solene da basílica – e não à sagração – presumivelmente com a passagem do futuro rei Ordonho II, em cuja corte e no referido ano já aparece o príncipe Ramiro, até então criado no seio da família de Diogo Fernandes e Onega. Também em Trancoso existira outra basílica que forneceu uma inscrição fundacional, hoje desaparecida, mas que ficou transcrita com algumas imprecisões e se presume igualmente reportar ao ano de 91296. A ser verdadeira a data crítica da epígrafe de Trancoso, teremos a confirmação do que, com alguma lógica, se adiantou a respeito de Lourosa. O fim do reinado de Afonso III, o Magno, pode ter representado o reforço do poder desta família e os três lustros que se seguem devem coincidir com a afirmação do seu território “in finibus Gallaeciae”, decerto com o beneplácito e proveito do próprio Ordonho II. No fim do reinado deste monarca a região encontrar-se-ia já suficientemente amadurecida para a experiência autonomista do rei Ramiro, em Viseu, antes de ascender ao trono de Leon. Este curto período, entre 926-930, terá sido igualmente responsável para o relançamento da descendência de Diogo Fernandes e Onega no Entre-Douro-e-Minho, a ponto de poder tomar as rédeas do condado de Portucale. Algumas passagens da documentação relativa aos herdeiros deixam entrever a existência de propriedades de Diogo Fernandes e Onega bem para lá da Beira interior97. No entanto, subsiste a dúvida se esses bens

são de apropriação muito precoce ou derivam de uma aquisição posterior à deposição de Afonso Magno. Um pouco mais tarde, os domínios de família irão conhecer uma evolução, começando a dispersar-se, não apenas entre os herdeiros, mas também através de alienações. O exemplo mais expressivo encontra-se nas disposições de Flâmula Rodrigues, que no testamento mostra vontade de que parte desse património fosse usado para obras de caridade. Tratava-se, precisamente, dos castelos “in ipsa extremadura” e algumas “populaturas” a eles submetidas, que, segundo a doadora, se deviam “omnia uindere et pro remedio anime nostre captiuos et peregrinos et monasteria distribuere in ipsa terre” (DC 81). Em 960, aparentemente, se já não era considerado obsoleto o sistema defensivo de entre Côa e Távora, havia pelo menos o sentimento de que já não serviria para o fim para o qual foi criado98. A expectativa de Flâmula de que o mosteiro de Guimarães alcançaria a venda desses bens, fundamentar-se-ia na consciência de que a sociedade senhorial estava a evoluir, com a emergência de pequenos poderes regionais, susceptíveis de estarem interessados em adquirir os instrumentos necessários ao exercício de tais poderes. Mas o certo é que os castelos voltam a aparecer na posse do mosteiro, em 1059, ficando nós a conhecer o nome de mais um, que não chegou a ser citado no testamento de Flâmula: Terrenho. Daí poder-se concluir que nunca terão sido vendidos apesar das disposições nesse sentido, ou que, talvez melhor, foram ocupados pelas forças cristãs após a reconquista das Beiras por Fernando Magno e entregues ao mosteiro, ao abrigo do direito de presúria e com o argumento de outrora terem estado na posse do cenóbio vimaranense.

96  BARROCA, Mário Jorge Barroca – Op. cit., , v. 2, t. 1, 2000, p. 34.

santom quantum ibidem obtinuit Mito et Adosinda de dato de nostros parentes” (DC 71);“In prato antile… ecclesia que fuit de parentes nostros uocabulo sancti iohannis” (DC 76); “villa de lalin sit in arbitrio de ipsa tia domna Mummadomna cum as villas que ibidem sunt testatas retorta castro nugaria portella teobolosa… sicut illas ganauit auios nostros didaco fredenandiz et coniuge onnice, ad salizeta barrantes mastudo, ad pessegario moledo, ad azer bretenandus, ad orreo villa mediana, ad palatiolo padule et palatio…” (DC 81).

97  Por exemplo: “Tertia parte in villas de subpratello quomodo incartarunt ad parentes nostros”…”In prato antile…et alia que comparauimos de segiones etiam et ecclesia que fuit de parentes nostros”…”In ripa sause uilla

98  O destino histórico da região, com a reconquista das Beiras por Almançor, fez com que estes castelos regressassem à função para que foram criados, de novo como sistema defensivo face ao reino de León.


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6. AS PROPRIEDADES DO CLÃ NO ALTO DOURO

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lâmula Rodrigues incumbe suas tias Mumadona Dias e Godo Eriz, na qualidade de testamentárias e em nome do mosteiro de Guimarães, de providenciar a venda de um número não quantificado de castelos, penelas e povoas “in ipsa stremadura”, para que os benefícios colhidos da respectiva transacção servissem para remédio de sua alma e, como já dissemos, fossem distribuídos pelos cativos, peregrinos e mosteiros. O Prazo terá sido um desses monasteria , “in ipsa terra”, a que se refere a filha de Leodegúndia e Rodrigo Tedonis. No entanto, a sua menção não aparece explícita no testamento ou se lá está, pelo menos, apresenta-se com alguma dificuldade de interpretação. São deixadas ao cenóbio vimaranense, no território “inter ambos riuulos” – isto é, entre o Côa e o Távora – os lugares de “sabadelli, vilar sico, ueiga, anta et eclesiola” (DC 81). Os três primeiros não parecem causar grande dúvida. São as povoações de Sabadelhe, Sequeira e Veiga, no concelho

de Vila Nova de Foz Côa (Figura 16). Quanto a Sequeira, uma evolução de “Vilar Sico”, situa-se num importante cruzamento de vias, tendo aparecido nas proximidades uma sepultura aberta na rocha, nas Ladeiras99. A respeito de “Eclesiola” não nos foi possível encontrar hoje o topónimo “Grijó”, tanto em Vila Nova de Foz Côa, como nos concelhos vizinhos. Colocamos a hipótese de se tratar precisamente do Prazo, não apenas por até agora – se excluirmos a Ervamoira – constituir um raro exemplo de igreja alto-medieval na região, mas também por existirem antecedentes paleocristãos (em sentido lato) que poderiam justificar a consolidação do topónimo “eclesiola”, já em meados do séc. X. Além disso, há que recordar que o bispo de Lamego se refere provavelmente a este templo, no séc. XIII, como uma “ermida”, o que faz supor 99  Na fronteira com o concelho de Meda existe o lugar de Sequeiros e, um pouco adiante, na Fontelonga, foi descoberta uma necrópole em Muimentos, com uma vintena de sepulturas. Estamos mais inclinado, contudo, para considerar “Sequeira”, devido à sua estratégica face à rede viária. A propósito do terceiro topónimo, há também a possibilidade de encontrar uma alternativa em “Cortes de Veiga”, no Pocinho. Contudo, afasta-se um pouco da área em estudo.


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a continuidade da respectiva imagem como uma “igrejinha”. Damos a identificação como provável, mas não absolutamente segura. Outro problema reside na identificação do lugar “Anta”. O concelho de Vila Nova de Foz Côa caracteriza-se pela total, ou quase total ausência, de monumentos dolménicos. O casal Leisner indica uma anta em Santa Comba, no entanto de localização desconhecida100. Existem alguns topónimos, todos eles no estreito planalto das Chãs, que indiciam a possibilidade de ter havido uma ou outra sepultura dolménica, mas a base é muito pouco segura. Parecenos também de descartar a hipótese de se tratar da freguesia de “Antas”, no concelho de Penedono, não apenas por se tratar do corónimo no plural, mas sobretudo por esta localidade ficar já muito longe, bastante a sul da sede do concelho101. A invocação de um monumento dolménico para nome de lugar, só pode ter duas explicações: ou era muito raro na zona, para poder servir de referência, ou então seria algo a que, por alguma razão especial, se atribuía uma importância extraordinária. Estamos mais inclinado para esta última possibilidade. E, procurando qualquer situação do género, fomos dar com um exemplar de importância excepcional no planalto da Senhora do Monte, em Penela da Beira. Muito próximo, existia aí uma “populatura” – Penela Vedra – que se implantou ao abrigo de um castelo roqueiro ainda hoje com grande notoriedade. Aí haveria um templo dedicado a Santo Tirso. E em redor, existiriam inúmeros casais, como o provam a presença de uma série de sepulturas escavadas na rocha em Fonte Fria, Cômbaros, Cadestal, Tapada do Vento, Senhor da Agrela e Vale de Pardieiros. Algumas unidades de povoamento deveriam ter uma certa expressão, como o indicará este último topónimo. E precisamente junto a este fértil vale, já em zona plana e pouco acima do “paúlo”, iria nascer um outro templo em honra da Senhora do Monte. Tratase de um lugar onde existia uma necrópole do período megalítico102, que a devoção popular transformou em

santuário. Assim, a anta maior foi adaptada a templo cristão, aproveitando a câmara dolménica para capelamor. Porém, como o corredor de acesso estava virado a oriente, ficou no exterior, desenvolvendo-se a nave da igreja para o lado contrário (Figura 24). Trata-se de um templo de dimensão apreciável e que apresenta uma série de características que apontam, precisamente, para uma construção alto-medieval. O aparelho é bem característico, sendo muito semelhante ao que então se praticava na arquitectura asturiana, com os cantos reforçados por boa silharia – por vezes, alargada à fachada principal, como em Valdedios – e com os muros construídos por alvenaria de pedra miúda. Além do mais, o aparelho da Senhora do Monte mantém grandes afinidades com o pano da primeira muralha de Trancoso, descoberto durante as obras de restauro da DGEMN e cuja fotografia nos é revelada pelos arqueólogos que recentemente escavaram no castelo103. Mais interessante, ainda, é o facto deste templo ter possuído uma câmara alta, sobre a capela-mor, da qual ainda se preservam evidências sobre a laje de cobertura do dólmen (Figura 25). Estas enigmáticas câmaras constituem uma das marcas estilísticas identitárias da arquitectura asturiana. Encontram-se em igrejas como Santullano, Nora, Valdedios, Tuñon ou Priesca104. Tomando como referência estas últimas, é provável que a abertura de acesso fosse uma fenestração virada a leste, mas já nada resta na Senhora do Monte, dado que este compartimento superior se encontra muito destruído. Mas a base do muro está intacta, assim como nos restantes lanços, excepto parte do muro norte, que tinha entrado em ruína e foi restaurado há poucos anos105. No templo não existe qualquer arco peraltado ou em ferradura, vulgares nesta época. A razão está na circunstância de não existir arco triunfal na capelamor, devido ao aproveitamento da laje de cobertura da anta, e ainda do facto de as portas serem rematadas por poderosos lintéis. Mas este tipo de solução também era utilizado na época, como pode ver-se na ermida de San Xoán do Cachón (Orense), em que o

100  Agradecemos ao arqueólogo António Faustino Carvalho esta e outras informações sobre a cultura dolménica na região.

1910, perdendo o telhado cinco anos mais tarde. No museu concelhio, em Penedono, é relatado que no dia da Senhora do Monte se reuniam nesta capela sete cruzes, que vinham em procissão das sete freguesias vizinhas.

101  Não podemos deixar de referir que nesta freguesia existem sepulturas antropomórficas cavadas na rocha, o que aponta também para uma ocupação alto-medieval. 102  CARVALHO, Pedro Manuel Sobral de – A necrópole megalítica da Senhora do Monte (Penedono-Viseu).: Um espaço sagrado pré-histórico na Beira Alta. Viseu: Centro de Estudos Pré-Históricos da Beira Alta, 1994. Este arqueólogo efectuou escavações na área da igreja, tendo aparecido moedas desde D. Sancho II a D. Sebastião. A intervenção forneceu também espólio de época moderna, já que a igreja só foi abandonada entre 1900-

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Cfr. FERREIRA & LOBÃO – Op. cit., 2013, Figura 10b.

104  A título de exemplo, cfr: ARIAS, Lorenzo – Prerrománico asturiano: El arte de la Monarquia Asturiana. Gijón: Ediciones Trea, 1993. 105  Deste restauro, que não era fácil, devido à confusão gerada pela ruína junto à base da câmara dolménica, resultou uma reconstituição que julgamos defeituosa, pois não nos parece que o muro fosse aí arredondado, tão diferente da solução preservada no lado sul da capela-mor.


O Significado da basílica do Prazo

lintel foi legendado para comemorar a sua construção no ano 918, pelo abade Frankila106. Existe ainda outro dado, da maior importância, para considerar neste período a adaptação da Anta a templo religioso. É que, relativamente próximo, existe a topónimo “Caniça”, o qual não deixa margem de dúvida sobre o seu significado, que é “Igreja” em linguagem moçárabe. Não é pensável que tal designação tenha tido origem noutra época senão entre os séculos VIII e XI. A sua provável utilização posterior, como igreja paroquial, pode estar indiciada na sobrevivência do muro que delimitava o passal107. Tudo leva a crer, por conseguinte, que o topónimo “Anta” usado no testamento de Flâmula se possa reportar a este monumento. A proximidade de uma Penela108 leva a pensar, também, que esta seria uma daquelas que apenas aparecem genericamente designadas na doação de Flâmula, sem precisar o nome. Finalmente, a Senhora do Monte fica a uma quase equidistância de Veiga ou Vilar Seco e de Trevões, todas elas propriedades de Flâmula109. Por documentação posterior a meados do século X – e também da centúria seguinte – sabe-se que os descendentes de Diogo Fernandes e Onega eram possuidores de numerosas propriedades ao longo do vale do Douro. Não iremos detalhar este aspecto, porque parte delas ficam fora da área em análise, e fica por saber em que momento começaram a ser adquiridas. Mas importa regressar ao testamento de Flâmula, para ver o que se passava na região de Lamego. Segundo a referida versão, copiada para o Livro de Mumadona, a sobrinha desta veio a legar ao mosteiro de Guimarães “in illa extrema” as seguintes herdades: “villa cersaria, treuules, baldoigii medium” (DC 81). A última propriedade refere-se à actual Valdigem e, como já vimos acima, a precedente diz respeito a Trevões. Esta herdade pertencia ao actual concelho de S. João da Pesqueira e a outra ficava às portas de 106  FREIRE CAMANIEL, José – El monacato gallego en la alta Edad Media. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, 1998, tomo 1, p. 227-236. 107  Chamou-nos a atenção para este dado o amigo António Lima, numa visita conjunta que fizemos ao local, tendo-se verificado que o templo se situa no meio de um círculo murado, precisamente a doze passos da igreja. 108  No reduzido espaço que medeia entre este castelo roqueiro e a Senhora do Monte, está um outro morro que o povo designa como “Pendão”, eventualmente a recordar que tenha servido outrora para sinalização à distância, dirigida a outras posições estratégicas. 109  No inventário dos bens do mosteiro de Guimarães (DC 420), de 1059, aparecem na mesma zona outras duas herdades – Spinosa (Espinhosa, em São João da Pesqueira) e Nace (que não logramos localizar). Elas podem ter sido doadas por outros familiares, como está provado para mais alguns bens no vale do Douro, mas cujo testamento não chegou até nós.

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Lamego, a menos de uma légua da igreja pré-românica de S. Pedro de Balsemão. Quanto à “villa cersaria”, o seu nome indica que era um local produtor de cerejas. Esta característica era, na toponímia medieval, designada não apenas por “Cersaria”, mas ainda como “Cerdeira” “Cerzeira” ou “Zerzeira”. De acordo com A. de Almeida Fernandes havia precisamente o lugar de Zerzeira junto a Lamego, no limite das freguesias de Cambres e de Sande, e que veio a pertencer ao mosteiro de Tarouca110. Atendendo à sua implantação, na margem esquerda do rio Balsemão e próximo às restantes vilas, deve ser neste local que se situava a herdade de Flâmula. É possível que tais propriedades as tenham recebido por herança de seus pais ou avós, já que apenas possuía metade de Valdigem, podendo estar a partilhá-la com algum parente, pois há outros familiares com bens na proximidade. Era o caso da “villa samota juxta flumen Durio” (Samodães) que deve ter pertencido a seu primo Ximeno e foi permutada com o rei Ramiro (DC 81)111. E era o caso do mosteiro de Bagaúste, doado por sua tia Munia ao mosteiro de Lorvão (LT 57)112. Nesta doação, Munia inclui outros bens vinculados ao cenóbio de Bagaúste, mas na margem oposta e um pouco a jusante: “mea ecclesia, uocabulo Sancta Eolalia…et terras qui iacent usque in muro qui divident cum uilla de Ciuitadelia et de Porta de Sancto Uincenti”. Esta villa de Cidadelhe corresponde ao lugar onde se implantava o castelo de Aliobrio, na margem direita do Douro. Foi aqui que Ordonho II – logo após a morte de seu pai, Afonso Magno, e como monarca independente na Galiza – reuniu uma cúria régia, no ano de 911, com “omnes 110  FERNANDES, A. de Almeida – Taraucae Monumenta Histórica. Braga: Câmara Municipal de Tarouca, 1991-93, v. I/1, p.84 e v. I/3, p. 134137. 111  Ximeno Dias tinha-a oferecido à sobrinha Onega, que ingressara no mosteiro de Guimarães. Posteriormente, a villa serviu para que Onega e sua mãe, Mumadona, permutassem com o rei Ramiro a villa de Creixomil. Esta “villa Samota” tem sido identificada com “Samoça”, no lugar da freg. de Ariz, conc. do Marco de Canaveses. Em nenhuma parte do documento é citada juntamente com outros bens situados “in ripa tameca”, local onde se situa Samoça (apesar de também relativamente próxima do Douro). Por outro lado, Samodães fica expressamente na margem do rio Douro (ao abrigo do castelo de Penajóia) e, do ponto de vista linguístico, parece-nos muito mais pertinente a evolução de uma consoante dental para outra do mesmo tipo. Quanto à terminação -ães é algo semelhante, por exemplo, àquela que, de “Baloca”, terá dado “Balugães”. 112  O resumo deste documento, na recente publicação do Liber Testamentorum (Op. cit,, p. 677-680), contem uma imprecisão. Considera Munia casada com um tal Bermudo. Ora Munia estava casada com Alvito Lucides, que até subscreve o documento. A confusão surge da respeitosa referência à memória de Bermudo Ordonhes: “pro remedio defunctorum meorum… et pro memoria dominissimi mei domini Ueremudi, diue memorie”. O príncipe Bermudo, que se havia rebelado contra o rei seu irmão, já havia falecido há mais de trinta anos.


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episcopi, comites, et capitanei territorio Galeciense” (DC 17). Todos estes dados comprovam tratar-se de uma zona altamente estratégica, numa época de transição na vida do reino asturo-leonês (Figura 18). O historiador Almeida Fernandes chega a colocar a hipótese de nesta altura, ou seja, na primeira metade do séc. X, a tenência de Lamego ter estado cometida ao conde Rodrigo113. Parece-nos uma hipótese plausível, como extensão da mandatione de entre Côa e Távora114, porventura na época em que Ramiro se torna rei, com capital em Viseu. Nesta ocasião tem todo o sentido o reforço do papel de liderança de Viseu sobre a região Douro, como mais a norte, no coração do território portucalense, o que sucederá em 926 com os condes Hermenegildo Gonçalves e Mumadona, a quem, por iniciativa de Ramiro, é entregue a terra de Guimarães115. Aí irá nascer – após Lorvão – o segundo grande cenóbio da região a sul do rio Minho, o qual sustentará o reforço do poder desta família, cujo destino acompanha o evoluir do próprio senhorio do condado de Portucale.

CONCLUSÃO

A

expansão do poder fundiário da família estabelecida nos finais do séc. IX na terra de Lafões, numa situação de rebeldia contra o rei Afonso Magno, mostra que existiram concentrações de propriedade sua em zonas onde se vieram a implantar as três basílicas aqui analisadas e que parecem pertencer a uma mesma linha programática: Lourosa, Balsemão e Prazo. Por outro lado, em todos os lugares onde foi possível localizar vestígios materiais de construções patrocinadas por membros do clã – arquitectónicos e ornamentais – são visíveis influências quase directas de modelos 113  Veja-se, por exemplo, GEPB sv “Parada do Bispo”. 114  Independentemente da identificação do verdadeiro protagonista, a famosa lenda de D. Tedo, referente ao concelho de Tabuaço, pode muito bem estar relacionada com o domínio da descendência de Rodrigo Tedonis na região entre o Távora e Lamego, pela extensão natural do seu senhorio desde terras do Côa. 115  Foi do curso médio do Vouga que partiram Mumadona Dias e Hermenegildo Gonçalves, para ocupar funções condais a norte do Douro e com sede em Guimarães. Deixados, quando ainda eram novos, numa posição relativamente secundária face às responsabilidades cometidas aos restantes filhos e genros de Diogo Fernandes e Onega, eles serão considerados por Ramiro, em 926, como os adequados representantes da corte de Viseu no coração do condado de Portucale.

asturianos. Isto dever-se-á, antes de mais, à figura tutelar do príncipe Bermudo Ordonhes, que vai permanecer na estremadura beirã cerca de uns trinta anos. Pensamos, também, que possa ter sido o fundador de San Salvador de Valdedios (Astúrias), templo posteriormente confiscado e que apresenta claros indícios de uma “damnatio memoriae” sobre mensagens epigráficas da primeira fase da construção. É possível que a sua primeira fundação, em território hoje português, tenha sido logo a igreja de S. Martinho das caldas de Lafões, cuja fraca qualidade construtiva revela bem as dificuldades em que se poderá ter deparado com a mão de obra local, numa altura em que ainda seria um refugiado com cabeça a prémio, por parte do seu irmão, Afonso Ordonhes, o rei Magno. Com a morte deste, é de presumir que se tenha iniciado um processo de afirmação regional de todo o clã, o qual pode estar relacionado com um impulso no movimento construtivo, em diversos locais da Beira interior. Encontrar-se-á nesta situação a basílica do Prazo, eventualmente à semelhança das de Lourosa, Trancoso, Sernancelhe, etc. Os elementos revelados pela escavação no Prazo não permitiriam, só por si, adiantar muito mais do que até ao momento havia sido revelado. Todavia, a reanálise dos dados existentes, à luz de um contexto mais amplo – histórico, arqueológico e artístico – levou a conclusões até há pouco insuspeitadas, inclusivamente para o autor deste estudo. E estamos convicto de que, com o imprescindível apoio do arqueólogo responsável pela estação arqueológica, ainda se poderá chegar mais longe, reconstituindo alguns passos do processo da escavação, interpretando-os, e publicando outros registos de pormenor efectuados durante os trabalhos de campo. Mas, desde já, uma coisa é certa: a estação arqueológica do Prazo, tal como ficou revelado para horizontes da Pré-história, impõe-se também como um local cimeiro no âmbito da arqueologia AltoMedieval, em território português.


O Significado da basílica do Prazo

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Vias medievais nos coutos monásticos de S. João de Tarouca e Sta Maria de Salzedas texto: Ana Sampaio e Castro Doutoranda em Arqueologia Histórica na F.L.U.P. (ana.sampaioecastro@gmail.com)

Resumo Apresenta-se os resultados de um primeiro estudo acerca da rede viária medieval nos coutos dos mosteiros cistercienses masculinos de S. João de Tarouca e Sta Maria de Salzedas (Tarouca, Viseu).

Abstract This paper presents the results of a first study of the medieval road network in the “coutos” of the Cistercian monasteries of S. João de Tarouca and Sta Maria de Salzedas (Tarouca, Viseu).

Palavras-chave Mosteiro; S. João de Tarouca; Sta Maria de Salzedas; Couto; Medieval; Vias

Key words Monastery; S. João de Tarouca; Sta Maria de Salzedas; “Couto”; Medieval; Roads.


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Ana Sampaio e Castro

1. INTRODUÇÃO

O

s mosteiros cistercienses masculinos de S. João de Tarouca e Sta Maria de Salzedas localizam-se nas freguesas homónimas, concelho de Tarouca, distrito de Viseu. A primeira notícia de que dispomos relativamente ao primeiro data de 1140, quando D. Afonso Henriques outorgou a carta de couto, dando-se o início da sua construção em 1154. No século XIII o couto inicial, de tamanho reduzido, foi ampliado (CASTRO, 2009: 19-23), passando de uma área de cerca de 11 km2 para 53 Km2. O mosteiro de Sta Maria de Salzedas recebe de D. Teresa Afonso a carta de couto em 1156116, sendo transferido de sítio da Abadia Velha para o local atual alguns anos mais tarde, iniciando-se a construção em 1168. O seu couto abrangia uma área correspondente a 34 Km2, sendo o limite Sul correspondente à linha Norte do couto ampliado de S. João de Tarouca (Figura 1). Desde a fundação até à extinção, ocorrida em 1834, toda a área dentro dos dois coutos foi sujeita a grandes transformações que levaram ao surgimento, desenvolvimento ou desaparecimento de alguns núcleos urbanos até à própria transformação da paisagem envolvente dando origem à construção de vias de comunicação ou aproveitamento das préexistentes, tendo por vezes como centro nevrálgico os cenóbios ou as grandes explorações agrícolas patrocinadas pela comunidade monástica. Neste contexto elaboramos um primeiro estudo117 relativo às vias medievais que ainda são possíveis de observar e seu hipotético traçado, tentando entrever as ligações terrestres que se tornaram tão importantes 116  Nesta data o mosteiro ainda se encontra localizado no sítio da Abadia Velha. De datas anteriores, nomeadamente 1152, 1153 e 1155 foi organizado o couto por parte de D. Teresa Afonso. Relativamente a estas questões consultar CASTRO, 2011, no prelo. 117  Foi já alvo de publicação uma primeira abordagem em relação ao mosteiro de S. João de Tarouca. Ver CASTRO & SEBASTIAN, 2008/2009.

para o desenvolvimento destes mosteiros. Tendo também alterado as relações Homem/Natureza, partindo assim do pressuposto lógico de que os grupos humanos são organismos vivos capazes de modelar o seu habitat ou, mutuamente, a influência que o meio ambiente desenvolve nas próprias atividades humanas, sejam elas de subsistência ou de construção. 2. METODOLOGIA

A

metodologia seguida para o estudo da rede viária medieval nos coutos monásticos de Salzedas e S. João de Tarouca abarcou as seguintes fases de pesquisa: recolha bibliográfica e documental; topografia, foto-interpretação e análise da paisagem; toponímia e hagiotoponímia e prospeção arqueológica. Relativamente à recolha documental esta centrouse nas já referidas cartas de couto, presentes nos Documentos Medievais Portugueses de Rui Pinto de Azevedo (1958); no cartulário medieval do mosteiro de S. João de Tarouca, publicado por A. de Almeida Fernandes em 1991 com o título «Taroucae Monumenta Historica»; nos dois manuscritos de Fr. Baltazar dos Reis118 «Livro da fundação do Mosteiro de Salzedas» e «Breve relação da fundação e antiguidade do Mosteiro de Santa Maria de Salzeda», ambas em fac-simile de 2002; e na informação contida no «Portugaliae Monumenta Historica. Inquisitiones». Infelizmente a mais preciosa fonte escrita – os arquivos monásticos – desapareceram num incêndio ocorrido em 1841 no edifício do seminário de Viseu, onde estavam depositados, dificultando-nos assim uma aproximação mais clara ao tema. O estudo de toda esta documentação revelou interessantes pistas relativas à rede viária, nomeadamente as designações pelos quais os caminhos aparecem referenciados, como «strada mourisca» ou «viam antiquam», refletindo a sua antiguidade (ALMEIDA, 1968: 48). 118  Fr. Baltazar dos Reis foi monge do Mosteiro de St.ª Maria de Salzedas e contemporâneo do abade Fr. Bartolomeu de Santarém, eleito em 1564 (VASCONCELLOS, 1934: XIII).


Vias medievais nos coutos monรกsticos

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1 - Coutos monรกsticos de S. Joรฃo de Tarouca e Sta Maria de Salzedas


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Considera-se como parte da segunda fase de investigação a análise topográfica e da paisagem e a foto-interpretação com recurso às Cartas Militares de Portugal à escala 1/25000, em edições mais antigas, onde encontramos os caminhos de maior interesse e às cartas geológicas à escala 1/50000. De forma a

verificar algumas informações retiradas das cartas anteriormente descritas foram utilizadas as fotografias de voo da USAF de 1958 à escala 1/25000 e as imagens atualmente disponibilizadas pelo Google Earth. A análise desta documentação fotográfica permitiu reconhecer alguns pontos de interesse, sendo possível

2 - «strada mourisca» referida na carta de couto concedida a D. Teresa Afonso em 1152


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traçar um percurso entre dois pontos através do estudo das linhas de passagem natural, obstáculos, geologia, natureza dos solos, capelas, encruzilhadas e mesmo localização de sítios de cronologia anterior (MANTAS, 1996: 167-168). Na terceira etapa selecionamos os topónimos de maior interesse para o tema em estudo, bem como a hagiotoponímia, recolhidos essencialmente nas Cartas Militares, nas Cartas Geológicas mais antigas e nos inquéritos que efetuamos aquando das saídas para o terreno. A última fase corresponde ao trabalho de prospeção arqueológica, elaborada a partir da seleção efetuada anteriormente que nos permitiu direcionar as nossas pesquisas para os pontos de maior interesse, abrangendo também os sítios de interesse arqueológico, como o caso de povoados, habitats, necrópoles …, uma vez que as vias tornam-se um pólo dinamizador do povoamento (MANTAS, 1996: 163), implantandose em zonas de anterior assentamento humano ou promovendo a sua fixação. 3. AS VIAS MEDIEVAIS 3.1. Couto do mosteiro de Sta Maria de Salzedas a) «strada mourisca» na carta de couto concedida em 1152 a Teresa Afonso por D. Afonso Henriques (AZEVEDO, 1958: 291); «viam covam» na carta de confirmação do couto a Teresa Afonso em 1155 (AZEVEDO, 1958: 315); «viam antiquam» na carta de firmidão ao mosteiro outorgada em 1161 (AZEVEDO, 1958: 354-355); b) «portum de Alvares» na carta de couto concedida em 1152 a Teresa Afonso por D. Afonso Henriques (AZEVEDO, 1958: 291); «portam de Alvares» na carta de firmidão ao mosteiro outorgada em 1161 (AZEVEDO, 1958: 354-355); c) «arcam de Mendo Hermezendiz» e «arcam de Pelagio Randis» na carta de confirmação do couto a Teresa Afonso em 1155 (AZEVEDO, 1958: 315); Relativamente à primeira referência conseguimos

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detetar esta via, através dos limites anteriores e posteriores da carta de couto, como sendo aquela que atravessa o sopé do Monte Raso, no sentido este-oeste, apresentando atualmente pouquíssimos vestígios de calçada. Pela análise da sua implantação topográfica verificamos que se encontra numa zona de planalto, evitando os abruptos declives que se encontram a oeste e sudoeste em direção ao rio Varosa (Figura 2). Nesta localização os solos são bastante permeáveis, sendo essencialmente constituídos por rochas calcossilicatadas e escarnitos, devido à presença de matriz carbonatada (FERREIRA & SOUSA, 1994: 15). Colocamos a hipótese desta via provir de Queimadela119 (e daí para Figueira em direção ao Douro) até Meixedo e Salzedas. De facto o sítio de Queimadela é já referido em 1153 numa venda de uma «hereditate» de D. Afonso Henriques a Pedro Viegas e Ouroana Daez, sua esposa, onde se lê: «omni illa que primitus fuerant tua et que domnus Mozo ceperat tibi», entrevendo-se uma cronologia ainda mais recuada. Também através das Inquirições de 1258 (PMH – IS, 1067) sabemos que Queimadela era já denominada de «villa», tendo aí propriedades o mosteiro de Salzedas, o mosteiro de Cárquere e a Sé de Lamego. Só encontramos o sítio de Meixedo num documento de 1209, onde consta a «villa Amexenedo» (FERNANDES, 1995: 211). «Portum de Alvares» ou «portam» remete-nos para a passagem do rio Varosa neste ponto que em 1364 teria poldras para facilitar a transposição do rio, como é referido numa carta de D. Pedro I120. A «arcam de Mendo Hermezendiz» e «arcam de Pelagio Randis», situados junto à via referida no ponto a), relaciona-se com túmulos de senhores colocados junto a caminhos, garantindo orações de devotos e viajantes (FERNANDES, 1985: 59). O nome de «Pelagio Randiz» surge-nos ainda recordado nas Inquirições de 1258 em Figueira (concelho de Armamar): «casale de veteri, dixit quod vocatur casale de Pelagio Randiz» (PMH – IS, 1068). 119

Freguesia homónima, concelho de Armamar.

120  «couto-lhe o dicto rio Barrosa des o direito do padrom que esta acima das poldras» (FERNANDES, 1995: 32).


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3 - Ponte de Ucanha. Fotografia de P. Martins. ©DRCN

Uma das conhecidas passagens do rio Varosa é a ponte de Ucanha (Figura 3) que apresenta quatro arcos quebrados, tabuleiro com parapeito e dois talhamares a montante. A torre que lhe está adossada foi construída já na segunda metade de século XV por iniciativa do abade de Salzedas D. Fernando, marcando a entrada no couto monástico e servindo como depósito do pagamento da portagem que os viandantes aqui entregavam para a transporem. É também este abade que aqui edifica um hospital, próximo da igreja, possivelmente no local onde ainda hoje se pode observar uma porta de cariz medieval (Figura 4) e que inicialmente se situava em frente ao mosteiro de Salzedas (REIS, 2002b: 84). A via que faria ligação a esta ponte continuava, para noroeste, em direção a Lamego, sendo ainda possível observar pequenos troços de calçada (Figura 5). Colocamos a hipótese de, para sudeste, o seu traçado continuar para a zona de Vila Nova de Paiva e a norte para Sanfins121, fazendo também a união à estrada que provinda de Lamego iria para Moimenta da Beira. É provável que esta estrada seja de filiação romana, pois segundo Jorge Alarcão (2004: 333) a via que vinha de Marialva, passando na Quinta da Lagoa, Rua, Aldeia de Nacomba e Beira Valente, bifurcava-se neste ponto para Lamego, validando a hipótese da existência de 121

Hagiotopónimo antigo «Sancto Fiiz».

uma ponte de cronologia romana. A topografia do terreno indica-nos, pelo menos na área onde ainda se preservam alguns vestígios de calçada, uma localização

4 - Porta medieval junto à torre de Ucanha, onde provavelmente funcionaria um Hospital. Fotografia de P. Martins. ©DRCN


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com suaves declives a partir do rio Varosa, sendo o granito grosseiro e porfiróide (FERREIRA & SOUSA, 1994: 30), semelhante àquele utilizado na construção da ponte e da torre de Ucanha. Ainda deste caminho sairia uma via para Salzedas (Figura 6), no sentido nordeste122, passando pela Portela, topónimo que sugere passagem. Exatamente neste local existe uma sepultura medieval escavada na rocha e vestígios à superfície de cerâmica comum e de construção. Este seguia o seu percurso até à atual capela de Nossa Senhora da Piedade de traça setecentista e

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5 - Calçada que seguia da ponte de Ucanha para Noroeste em direção a Lamego

122  Tanto esta via como a seguinte tinham sido já identificadas por António Ginja (2008).

6 - Via que da ponte de Ucanha segue o sentido Nordeste em direção a Salzedas


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que terá substituído a igreja de S. Salvador de Argeriz, cabeça do território com a mesma designação já mencionado em 1135123, sendo mesmo referido em 1144 como «Villa Plana de Argeriz» (FERNANDES, 1995: 204). Baltazar dos Reis (2002b: 23-24) indica a existência junto da igreja de S. Salvador de Argeriz de «alicesses e vestigios de edificios antigos, aonde parece que estava o dito lugar de Argeriz». Esta estrada, conservando pouquíssimos troços em calçada, segue através de uma topografia suave, evitando sempre as cotas mais elevadas, apresentando o mesmo tipo de granito encontrado nas imediações da ponte de Ucanha. Outra das vias ainda bem preservadas é aquela que se situa a norte da povoação da Murganheira (Figura 7). Embora possamos admitir a existência deste aglomerado durante o período medieval, o primeiro documento que o referencia é o foral de D. Manuel I. Iniciando-se a cerca de 100 m para oeste da Murganheira, junto à estrada municipal 1171, o caminho em calçada segue para norte, evitando uma pequena linha de água à sua esquerda, subindo desde a cota de 520 m até aos 540 m, sendo a partir deste ponto em terra batida e perdendo-se o seu traçado mais à frente. Nesta zona o granito é de grão fino de duas micas (FERREIRA & SOUSA, 1994: 26) e o solo apresenta bastante permeabilidade. Analisando a cartografia podemos colocar a hipótese desta via continuar o seu percurso para norte, sempre junto da linha de água que nasce nas proximidades da serra de S. Lourenço, indo juntar-se ao caminho já descrito que de Queimadela vinha até Meixedo/Salzedas (Figura 8). Ainda dentro do couto monástico de Salzedas encontramos a ponte de Vila Pouca (Figura 9), localizada a cerca de 200 m a sudoeste da povoação homónima. Atravessa o Varosa numa zona com bastantes afloramentos graníticos e onde o rio adquire, naturalmente, um percurso menos robusto. Tal como a de Ucanha é em cavalete e apresenta arco único de volta perfeita, encontrando-se assente diretamente no afloramento. Os silhares e aduelas que compõem o arco 123  «in termino de Argeriz subtus Ledanarium discurrentibus rivulis Torno et Barosa» (FERNANDES, 1995: 204).

7 - Calçada situada a Norte da povoação da Murganheira

não apresentam vestígios de marcas de canteiro que nos poderá indicar uma filiação mais recente, talvez de inícios da época moderna124. Contudo optamos por incluí-la no nosso estudo, tendo presente a dúvida quanto à cronologia da mesma. Relativamente à povoação de Vila Pouca a indicação mais antiga refere-se a uma doação efetuada em 1288, onde se lê «Villa Arteira (…) alem do lugar de Villa Pouca a par de Val Verde» (REIS, 2002a: 74). Do primeiro topónimo – Vila Arteira – não há atualmente memória, podendo talvez equivaler ao sítio da Quinta dos Castros, situado na encosta Norte de Vila Pouca, pois neste mesmo local foram encontrados diversos materiais cronologicamente enquadráveis no século IV, presenciando-se assim uma continuidade em 124  Não encontramos qualquer notícia referente a esta construção, mesmo a consulta das Memórias Paroquiais de 1758 (CAPELA & MATOS, 2010) revelou-se infrutífera.


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8 - Via que da Murganheira segue para Norte


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9 - Ponte de Vila Pouca no rio Varosa

10 - Troço de calçada, recentemente destruído, na margem direita do Varosa partindo da ponte de Vila Pouca

12 - Calçada na margem esquerda do Varosa a partir da ponte de Vila Pouca


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11 - Via que parte de Vila Pouca para Norte

termos de povoamento desta área. Da margem direita do rio Varosa até à ponte existia um grande troço de calçada (Figura 10) que recentemente foi destruída e substituída por paralelos. Esta iniciava-se mesmo junto à povoação de Vila Pouca, à cota de 430 m, continuando para sudoeste em direção à ponte, situada à cota de 330 m. Como vemos a inclinação é acentuada desde o primeiro ponto ao segundo, não invalidando a utilização deste caminho para transporte de cargas, pois como testemunhamos a calçada apresentava marcas de rodado. Também a partir de Vila Pouca encontramos a continuação deste percurso para norte, ora pontuado por calçada, ora por terra batida, dirigindo-se para Queimadela (Figura 11) e passando nas proximidades da referida

Quinta dos Castros. Fora do couto e no seguimento da ponte de Vila Pouca, na margem esquerda do Varosa125, ainda se conserva bastantes metros de calçada (Figura 12). Esta segue para oeste no sentido de Britiande e Ferreirim, sendo possível, aquando da sua construção a continuação para Lamego. Nesta área, até ao ponto onde termina, sobe suavemente de 330 m para 360 m, mantendo sempre esta última cota, podendose observar granitos porfiróides de grão médio (TEIXEIRA et al., 1969: 24-26) na zona envolvente e nas pedras que compõem a calçada em contraposição ao granito de grão fino localizado na margem direita do Varosa, na encosta de Vila Pouca. 125  Concelho de Lamego.


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3.2. Couto do mosteiro de S. João de Tarouca Na carta de couto do mosteiro aparece-nos a «estradam de Paredes siccas» (MARQUES, 1998: 68) que localizamos no terreno como sendo a via que de Sanfins126 segue para Sever127 e Alvite128 (Figura 13). Preserva ainda bastantes metros de calçada bem conservada, nomeadamente desde a capela de S. José para sudeste (Figura 14). Segundo A. de Almeida Fernandes (1976: 337-338) o topónimo de Paredes Secas, hoje desaparecido, pode ser situado entre Sanfins e Pinheiro, colocando a hipótese deste se referir aos «muros do castro»129 que faz fronteira entre a freguesia de Mondim da Beira e Sanfins. A reforçar esta hipótese está o documento de escambo do ano de 1287 onde aparece «dous casaes junto do lugar de Samfins em Paredes Sequa» (REISa, 2002: 179). O mosteiro de S. João de Tarouca possuía aqui uma granja que foi transferida nos finais de século XII, inícios de XIII (FERNANDES, 1976: 107), estando assim bem implantada junto a uma estrada de acesso a localidades importantes. Após a passagem por Sanfins é provável que se juntasse à estrada proveniente da ponte de Ucanha que se dirigia para a zona de Moimenta da Beira. Percorrendo um sentido norte-sudeste esta via segue a partir de Sanfins, à cota de 790 m, para as proximidades do castro de Mondim, atingindo aqui a cota máxima de 830 m, descendo para os 780 m e daí até a uma estrada atualmente asfaltada, podendo-se novamente observar depois da capela de S. José (Figura 13), entre as cotas de 790 m a 860 m, encontrandose numa zona de granito de grão médio a grosseiro (FERREIRA & SOUSA, 1994: 25). Junto ao mosteiro, a cerca de 200 m para Noroeste, situa-se a ponte de S. João de Tarouca sobre o rio Varosa. Apresenta tabuleiro em cavalete e arco único em volta 126  Freguesia de Passô, concelho de Moimenta da Beira. 127  Freguesia homónima, concelho de Moimenta da Beira. 128  Freguesia homónima, concelho de Moimenta da Beira. 129  Refere-se ao Castro de Sanfins ou de Mondim, situado numa elevação sobranceira a Mondim da Beira, concelho de Tarouca.

14 - Calçada desde a capela de S. José para Sudeste

perfeita, denotando-se várias fases de remodelação. De realçar a presença, no talhamar situado na margem direita, de uma marca de canteiro. A sua cronologia não é precisa, pois como referimos apresenta várias remodelações, podendo contudo ter aqui existido uma passagem já desde a época medieval. Atualmente não restam quaisquer vestígios de calçada na margem esquerda, apenas dois caminhos em terra batida, um deles seguindo o sentido de Mondim, acompanhando o curso do rio sempre à mesma cota para a ponte aí existente, e passando na zona baixa da Quinta do Granjão130. O segundo caminho toma a direção noroeste, passando pela capela de S. João da Boa Vista, de traça setecentista, pelo topo da Quinta do Granjão e continuando para o Monte Ladário, sendo, poucos metros à frente, substituído por estrada asfaltada 130  A Quinta do Granjão foi uma das primeiras granjas pertencentes ao mosteiro de S. João de Tarouca.


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13 - «estradam de Paredes siccas» de Sanfins para Sever


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15 - Vias desde a ponte de S. João de Tarouca até à ponte de Mondim e Tarouca

(Figura 15). Este percurso, iniciado a uma cota de 550 m, atinge os 600 m na capela de S. João da Boa Vista seguindo por esta altitude até ao pequeno planalto do Monte Ladário, evitando assim a topografia abrupta do topo desta elevação, na zona onde se entreve granitos de grão fino (TEIXEIRA et al., 1969: 48). Apesar deste caminho não apresentar qualquer vestígio de calçada e transformando-se mesmo em estrada asfaltada junto ao Monte Ladário, colocamos a hipótese de ter uma filiação medieval, pois como já foi demonstrado em publicação (CASTRO & SEBASTIAN, 2008-2009) existiria um pequeno aglomerado urbano na margem esquerda do Varosa antes da fundação do mosteiro de S. João de Tarouca, tendo sido aproveitado pela comunidade monástica e desenvolvido com a construção da referida ponte. Seguindo ainda este percurso encontramos a ponte

de Mondim da Beira, situada junto a esta povoação e ligando as duas margens do Varosa. Apresenta tabuleiro em cavalete e um único arco em volta perfeita, tendo contrafortes apoiados no afloramento do curso de água. Tal como a ponte de S. João de Tarouca denota-se a presença de várias reparações, existindo mesmo a notícia da sua reconstrução em 1638 (TEIXEIRA, 1993: 45). O mosteiro sempre deteve propriedades agrícolas em Mondim, embora o território a norte e este só fosse incluído no couto na ampliação ocorrida no século XIII, ficando assim patente a importância de uma ligação ao cenóbio e a outras localidades importantes como Tarouca ou a já descrita via que passava na ponte de Ucanha. Embora não existam vestígios de caminhos antigos podemos traçar hipoteticamente dois percursos que sairiam da ponte, um deles já referido até ao mosteiro e


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continuando pela margem do rio Varosa até Tarouca e outro, para nordeste, até à via de Ucanha (Figura 15). A última via identificada localiza-se em Almofala131, povoação situada no extremo sudoeste do couto e nele incluída só no século XIII, embora existindo aqui uma granja monástica132 ainda no século XII, comprovada por confirmação papal em 1163 (FERNANDES, 1976: 105). A cerca de 250 m para sul do aglomerado urbano testemunhamos a presença de uma calçada bastante bem conservada (Figura 16), seguindo o sentido sul à cota de 810 m e subindo até aos 850 m na encosta do Corgo do Altar, evitando o declive da Serra da Cascalheira (Figura 17), indo de encontro a uma estrada secundária, subsidiária da municipal n.º 1169. Toda esta área é pontuada por grandes afloramentos graníticos de grão médio (TEIXEIRA et al., 1969) e solos bastante impermeáveis. É também de realçar os topónimos bastante sugestivos aqui existentes com particular destaque para o Corgo o Altar, Mourisca, Laje ou Castelejo. Do lado este da elevação do Corgo do Altar encontramos mais uma via, também ela bastante bem preservada (Figura 18), partindo da ponte do Touro (Figura 17) que está situada sobre o Varosa. A reconstrução desta ponte data de 1839, não se observando qualquer elemento mais antigo. A calçada segue por um declive suave, desde o rio, para sul, acompanhando uma pequena linha de água até à já referida estrada secundária, tal como o caminho descrito anteriormente. É possível que esta e a anterior se juntassem em direção a Viseu e para norte, após a ponte do Touro, para Tarouca, passando Bustelo, Teixelo e Valverde. A reforçar encontramos em Teixelo alguns troços de calçada, nomeadamente à saída da povoação, próximo da capela da Senhora da Ajuda e mais a norte na zona da capela da Senhora dos Aflitos.

131  16 - Calçada de Almofala até ao Corgo do Altar

Freguesia homónima, concelho de Castro Daire.

132  A Noroeste da atual povoação existe o topónimo granja, indicador da presença monástica.


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17 - Vias junto a Almofala seguindo, possivelmente a direção Tarouca e Viseu


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18 - Calçada que parte junto à ponte do Touro

4. CONCLUSÃO

C

onscientes da dificuldade em muitos dos casos de atribuir uma cronologia precisa aos caminhos descritos, pensamos ter traçado um quadro aproximado da paisagem viária na área dos coutos monásticos de Sta. Maria de Salzedas e S. João de Tarouca. Observando a distribuição geral e a sua atribuição cronológica é clara a existência de certos percursos antes da implantação dos mosteiros que os aproveitaram como a forma mais segura para a circulação de pessoas e mercadorias. Embora não tenhamos aflorado os caminhos mais secundários é certo que deveriam existir, ligando pequenos núcleos humanos ou explorações agrícolas às rotas mais utilizadas. Estes deveriam ser bastante simples, provavelmente em terra batida, correndo o risco de durante as épocas de maior pluviosidade ficarem inundados e intransitáveis. Em outros casos podiam

agregar alguns troços de calçada, tal como as vias principais, em zonas de maior risco, como junto a linhas de água ou em cotas mais baixas. Apesar destes mosteiros se terem implantado numa área onde já existiam alguns caminhos, é certo que contribuíram para a abertura de novos e de travessias fluviais. Pensamos que serão responsáveis pelo traçado de pequenas vias que nos séculos posteriores, nomeadamente durante a centúria seiscentista e setecentista, foram profusamente utilizadas, ligando os núcleos urbanos que se desenvolveram devido à presença monástica, como aquela que de S. João de Tarouca segue para a povoação do Couto, formada após a fundação do cenóbio.


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«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»: a implantação dos edifícios religiosos e a expansão urbana de Lamego entre os séculos XVI e XVIII. texto: Nuno Resende - DCTP- UP/Citcem (nunoresende.m@gmail.com)

RESUMO Estudo-síntese que pretende compreender a evolução do urbanismo e do ordenamento periférico na cidade de Lamego durante o período moderno (séculos XVI-XVIII). Esta abordagem centra-se no estudo da evolução da malha e da morfologia urbanas a partir dos edifícios religiosos (igrejas, capelas e ermidas) pretendendo chamar a atenção para a importância destes edifícios como estruturantes de eixos ordenadores e catalisadores das relações sociais. Como assento de cátedra, Lamego foi, ao longo da modernidade, objecto de intervenções centralizadas na figura do bispo e das instituições religiosas que, quer no couto, quer no burgo, contribuíram para a expansão urbana e monumentalização da cidade. Palavras-chave: Urbanismo, hagiotopografia, hierotopografia, Idade Média, Renascimento, Barroco, ermida, capela, igreja, convento.

ABSTRACT This is a synthesis study that aims to understand the evolution of urban and peripherical planning in the city of Lamego during the modern period (XVI-XVIII centuries). This approach focuses on the study of the evolution of urban morphology centered in the construction of religious buildings (churches, chapels, convents) drawing attention to the importance of these buildings as structural axis in the urban space and as catalysts of social relations. As episcopal see, Lamego was throughout modernity subject of interventions centered on the figure of the bishop and other religious institutions, either in Couto (under the jurisdicton of the bishops) either in the borough. As we pretend to show, somes episcopates contributed to the urban sprawl of Lamego and its monumentalization. Keywords Urbanism, hagiotopography, hierotopography, Middle Ages, Renaissance, Baroque, chapel, church, convent.


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Nuno Resende

O TEMPO DOS HOMENS

D

ividido entre as perspectivas dos geógrafos, dos antropólogos, dos sociólogos e dos historiadores, o urbanismo, tomado como o conjunto de questões e problemáticas associadas ao estudo das cidades, tem permitido aprofundar aspectos globais ou específicos das relações humanas, da evolução da paisagem e da própria percepção e valorização do espaço e do território. Frequentemente os geógrafos quando se referem às cidades falam em eixos ordenadores encontrando-se dentro desta categoria as vias e ruas principais e os largos, praças ou terreiros. Associados a cada um destes espaços estão as igrejas, as capelas ou as ermidas que se inscrevem, ora como resultado de pré-existências, ora como novos elementos axiais do urbanismo e das relações sociais. Mas sobre o impacto destas estruturas a nível de ordenamento territorial, são escassos os trabalhos de investigação. A própria ideia de hierotopografia ou de hagiotopografia, que qualifica o estudo da implantação de templos no território e a relação dos seus cultos com o local e as comunidades, praticamente não tem sido aplicada pelos geógrafos e pelos historiadores em Portugal133. Neste estudo-síntese, essencialmente gizado pela leitura e revisão de bibliografia local e cartografia disponível, pretendemos compreender a evolução do urbanismo lamecense ao longo da época moderna, num período marcado pela reintrodução do ideal clássico seguido da reação ao mesmo de que resultou a disseminação do gosto e do espírito barrocos. A cidade de Lamego, assento de cátedra medieval, não deixou de impregnar-se deste espírito. Em nenhuma época o poder se expôs de forma tão evidente utilizando para tal a Arte e a Arquitectura como durante o barroco: abundantemente a ostensão deixou a privacidade das câmaras dos paços e das capelas das igrejas para tornar-se acessível a quase todos. No século XVIII qualquer ermida possuía um vistoso altar de talha, dourada ou policromada e pintura, esculturas, os tecidos e paramentos convergiam os sentidos para a harmonia e a totalidade que envolvia sacerdotes e fiéis na liturgia. 133  Sobre a terminologia o seu significado e a sua aplicação no estudo devocional de um território (Montemuro) veja-se o nosso trabalho: RESENDE, Nuno (2012), cap. III, PARTE 1.

Ainda que este universo fosse essencialmente religioso e, portanto, muitas vezes limitado aos lugares de culto, os leigos mais poderosos não deixaram de participar nesta dramaturgia do poder134. Casas nobres de fachadas antes sécias e fechadas, abriram-se e definiram os novos espaços das elites urbanas e rurais; construíram-se capelas que rivalizavam em ornamentação com igrejas; e, mesmo antes do Romantismo se assumir como período de culto do Passado, os fautores do Barroco português reconverteram a medievalidade materializada nas torres e merlões ou as virtudes cavaleirescas em artifícios de glória que serviam a cenografização dos novos palácios da nobreza local. Estas idiossincrasias que, da talha aos elementos arquitectónicos, compõem o estilo barroco aportuguesado incorporam não apenas uma tradição cultural bem firmada no devir histórico, mas reflectem, também, o desenho do lugar. Nos séculos XVII e XVIII um edifício não podia escapar à sua envolvência. Sobretudo se nos ativermos às características de um edifício destinado ao culto, naturalmente sujeito a obrigações de teor canónico e a formulações de ordem simbólica. Por outro lado, como importantes espaços catalisadores, para onde afluíam grandes conjuntos de fiéis, quer pela sua dimensão, quer ainda pela posição no território os templos modernos obrigaram a alterações significativas do espaço urbano. Os burgos medievais, estruturados em modelos de plantas nucleares ou radioconcêntricas de ruas estreitas e irregulares dificilmente admitiam novas construções de raiz. Frequentemente prevaleciam as soluções de reedificação e o aproveitamento de edifícios e materiais. Foi o ideal renascentista, com a sua tentativa de geometrização do território, que lançou as bases para a anulação dos volumes e da anamorfose do corpo urbano medieval. Mas, como sabemos para o caso português, restam desse período intervenções pouco expressivas. Lamego é um caso particularmente interessante para aquilatarmos de mudanças urbanísticas que romperam ou serviram de alternativa à planimetria medieval em torno da qual a urbe acastelada se estruturara ao longo da Idade Média. Por volta do século XII a cidade cindiu-se num tecido binuclear, ou seja, a vida social e política e, naturalmente, o urbanismo passaram a estruturar-se em redor de dois pólos urbanos: o do castelo numa cota 134

Cf, a este propósito, o nosso trabalho RESENDE, N. (2007).


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mais elevada e o da catedral, a uma cota inferior, junto ao rio Coura. Esta disposição de dois centros – o primeiro associado à jurisdição municipal e o segundo ao couto episcopal – definiu precocemente a morfologia urbana, pelo menos quando em volta da ermida de São Sebastião se organizou comunidade canónica e o edifício se transmutou em catedral – templo que, outrora, podia ter tido o seu assento na acrópole135. Tendo em conta, pois, a natureza topográfica do território, a bipolarização do poder (civil e eclesiástico), os agentes e as instituições da cidade, de que forma foi a evolução urbana desta cidade condicionada ou estimulada pela edificação dos edifícios religiosos ao longo da época moderna? A CIDADE BINUCLEAR

P

ara compreendermos a ocupação humana neste território, grosso modo articulado entre um esporão rochoso que quase no sentido norte-sul irrompe entre dois pequenos cursos de água, necessitaríamos recuar à Pré e Proto-História. Na falta de elementos arqueológicos, nada nos impede de conjecturar sobre a apetência do lugar para remota ocupação humana. Lugar abrigado, entre os 550 metros de altitude registados no cume do esporão, e os 500 metros junto às margens do rio Coura, seria o ponto ideal para a sobrevivência do Homem, quer como recolector ou assumindo já a uma condição agro-pastoril. As condições geomorfológicas descritas são, aliás, comuns à instalação das comunidades castrejas que procuravam outeiros semelhantes para a construção das suas povoações amuralhadas. É, porém, o período da Romanização que pode ter definido os alicerces urbanos da cidade medieval. Embora existam algumas perspectivas sobre o peso da romanidade em Lamego, e a importância de Lamecum em contexto imperial, a arqueologia não permitiu ainda avaliar verdadeiramente o peso do desenho clássico (a existir) sob o traçado medieval136. E é este traçado que importa compreender, pois ele marcará até bastante tarde a mancha urbana e a arti135  O autor do artigo Lamego na GEPB refere, citando Viterbo, a existência deste templo desde a subjugação da cidade por Afonso III (877), cf. [S.a] (1963), p. 611. 136  Embora não se tenha em conta a mobilidade e o aproveitamento de elementos pétreos de estruturas anteriores, o facto de terem aparecido ao longo dos últimos séculos peças integrais ou fragmentos de aras e outros monumentos epigráficos do período romano, é um valioso indicador da presença de estruturas da Antiguidade Clássica no território. Cf., entre outros VAZ, J. I. (1982).

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culação da cidade com os seus arredores, pelo menos até à primeira década do século XX137 (ver cartografia, mapas 1 e 2)138. Foram já três os autores que procuraram compreender e explicar a evolução morfológica da cidade ao longo da Idade Média, relacionando-a com os seus poderes e instituições: Maria João Queiroz Roseira (1981)139, Rita Costa Gomes (1988)140 e Anísio Saraiva (2002)141. Do ponto de vista da geografia, Maria Roseira, salientou a colina genética da cidade (um possível castro) e a sua evolução até à dominação romana e a passagem à cidade medieval. Sem conseguir um fio condutor, a autora aplicou o modelo disseminado por Alberto Sampaio e seguidores sobre a estruturação da paisagem agrária e os movimentos verticais das populações castrejas, entretanto romanizadas. O período suévico parece escoar-se em bruma até à intervenção muçulmana, marcada pelas conquistas e reconquistas e pela inexpugnabilidade da cidade que lhe permitiu resistir nas mãos ora de cristãos (877, 1057) ora de muçulmanos (987). Rita Costa Gomes incluiu Lamego numa análise comparativa com outras duas cidades do interior: Viseu e Guarda. Destacou o papel dos patriciados urbanos e das forças políticas internas e externas (facções oligárquicas, os Coutinhos, os bispos, etc.) e questionou (sem, contudo, responder) as marcas que as elites possam ter deixado no espaço urbano. Anísio Saraiva, desconhecendo que a supracitada autora havia já chamado a atenção para o carácter binuclear de Lamego, apresenta-nos com novidade o espaço urbano cindido, observado do ponto de vista da documentação eclesiástica dos séculos XIV-XV. O autor salienta a formação do couto (instituído por D. Sancho em 1191) e a dispersão da propriedade (maioritariamente eclesiástica) no seu território. Embora quer M. Roseira, quer A. Saraiva salientem a importância do eixo de circulação que atravessa o couto e o castelo no sentido norte-sul como ordenador do urbanismo, não assinalam, nem a interseção daquele com outras vias importantes, nem o posicio137  Com o liberalismo e as nacionalizações da República, alguns dos edifícios da cidade sofreram alterações profundas na sua estrutura, ou foram mesmo destruídos para dar lugar a novos projectos construtivos ou urbanísticos. 138  Mapa 1: [S.a.] (17--). Planta da cidade de Lamego e seus arredores, pub. em RESENDE, N. (2006), p. 48-65.; Mapa 2: [S.a.] (1981). Planta de Lamego, pub. em ROSEIRA, M. J. Q. (1981). 139  ROSEIRA, M. J. Q. (1981). 140  GOMES, R. C. (1988). 141  SARAIVA, A. M. d. S. (2002/2003).


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namento dos edifícios em relação às mesmas. De resto fica de fora da análise dos autores a posição e a importância da igreja de Almacave em relação à cidade amuralhada. Mesmo que dificilmente logremos aclarar porque é que a ermida de São Sebastião foi favorecida em detrimento do templo de Almacave, o facto é que junto a esta igreja terminava um dos principais caminhos de acesso à urbe142. Esta estrada que sulcava os campos de Fafel seguia a Medelo e Penude, providenciava a circulação do trânsito serra acima até à vila actual de Castro Daire e cruzava-se na Praça (principal centro de negócios do burgo) com o referido eixo norte-sul. Embora a questão da implantação estratégica da cidade tenha suscitado o interesse da maioria dos monógrafos lamecenses o assunto nunca foi analisado do ponto de vista territorial. Sim, o rochedo onde ainda assenta a muralha é efectivamente inexpugnável, nomeadamente a partir da encosta nascente, mas um ponto que interessa observar é a posição do lugar em contexto regional ou suprarregional. A cidade encontra-se na margem do sul do Douro, de onde dista cerca de 12 quilómetros e a sua posição assenta na intersecção de dois corredores naturais de passagem: o vale do Balsemão e o vale do Coura. Ambos permitem a ligação entre o vale do Douro e os planaltos de Montemuro e da Nave, unindo, portanto, a costa atlântica ao hinterland ibérico. Esta localização foi sempre favorável aos habitantes de Lamego, quer do ponto de vista defensivo, quer do ponto de vista económico. Efectivamente os primeiros caminhos aproveitavam a geomorfologia para ligarem mais rapidamente o ponto A ao ponto B, sem preocupações de pendor técnico que a engenharia romana introduzirá. Ao longo destes primeiros trilhos fundaram-se várias comunidades que na sua implantação aliavam protecção ao acesso célere a recursos naturais. É pois neste contexto supra-urbano que a cidade se constrói e expande, sobretudo depois do século XVI quando, quer o burgo amuralhado, quer o couto já não podiam conter os desígnios meramente comerciais de uma cidade-entreposto - pretensamente enfraquecida pelo desvio dos principais eixos de importação-exportação – que nunca deixou de ser importante centro burocrático religioso. 142  É provável que o templo dedicado a Santa Maria e São Sebastião seja anterior à fundação eclesial em Almacave, não obstante este lugar estar mais próximo do castelo – centro político e social da cidade em tempo de guerra. Recordemos que até o século XIX nunca a catedral, através do seu deão, deixou de superintender na igreja de Almacave.

APOGEU E DECLÍNIO?

A

maior parte dos autores tende a associar a Idade Média, em Lamego, a um período de apogeu económico ao qual se seguiu uma longa noite de declínio agravada com a expansão ultramarina e a com a dominação filipa. Estas razões fundamentam-se no facto de a cidade ter definhado na passagem de plataforma giratória comercial (de que as importante feiras seriam o motor)143 a centro da região produtora vinícola. Este assunto, o da bipolaridade económica e cultural de Lamego foi já apresentado por alguns autores, nomeadamente pela citada geógrafa Maria João Roseira, pelo autor do verbete Lamego na GEPB144 e por Joaquim Veríssimo Serrão que, durante a Comemoração dos centenários diocesanos, em 1977, aludiu à Projecção cultural do Bispado145. Ora a questão não é tão simples. Em primeiro lugar, porque a cidade não é una. O burgo segue um caminho diverso do couto episcopal, nomeadamente pelas distintas prerrogativas de cada um dos territórios. Compreendemos esta diferença pelas queixas de Rui Fernandes no início do século XVI: ao empreendedorismo episcopal no couto, opunha-se a má governança dos mesteres no burgo e até as desavenças entre o alcaide-mor e o prelado – Lamego evoluía a duas velocidades146. Por outro lado, o crescimento económico e provavelmente demográfico de Lamego na Idade Média não ocorreu nem de forma tão expressiva nem tão marcante que lhe possamos chamar época de ouro. Como esclarece Rui Fernandes, por volta da década de trinta do século XVI a cidade sentia dificuldades para escoar matéria-prima e produtos. A extinção da feira de Santa Marinha, o excesso de impostos (nomeadamente a sisa e os direitos de alcaidaria) e a falta de investimento grossista caracterizava os homens da terra como não sobejamente ricos. Mas estes pequenos mercadores, muitos deles mesteirais de vários ofícios, comercializavam o que a terra dava e, neste aspecto, o compasso era fértil e rico, embora no início do século XVI La143  Realizaram-se várias feiras em Lamego, ao longo da Idade Média e Moderna, em espaços cuja centralidade estava associada a edifícios religiosos: no campo do Tabolado, no castelo, no Rossio e no terreiro do convento de Santa Cruz, cf. SARAIVA, (2002/2003), p. 259. 144

[S.a] (1963).

145  SERRÃO, J. V. (1976). 146  FERNANDES, R. e BARROS A. J. M. (2012)..


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mego não fosse ainda uma cidade voltada às culturas do Douro, nem ao negócio do vinho, mas à exploração das serras que a contornavam. É por isso que Rui Fernandes dedica especial atenção a Montemuro, às usanças dos seus habitantes e sobretudo à importante fonte de alimento derivados da criação de gado bovino. Da serra provinha ainda a caça, o linho e a lã, as madeiras, o carvão, entre outras matérias que abasteciam a cidade ou aqui se armazenavam para distribuição e venda147. O notável número de almocreves confirma a vitalidade económica de Lamego que, não temos razão para pensar o contrário, prosseguiu ao longo do século XVII. Aliás, embora rareiem estudos económicos sobre esta centúria148, Lamego poderia encaixar-se no modelo da Corte de Aldeia, que Francisco Rodrigues Lobo glosou na sua obra de 1619. A centralização em Valhadolid e em Madrid dos poderes da monarquia dual pode ter revitalizado as antigas rotas ibéricas que durante a Idade Média aproximaram Lamego da meseta castelhana ou do sul andaluz. E o couto da Sé, não obstante as vacâncias ou as longas ausências de certos bispos, nunca deixou de fervilhar com uma população afecta à organização eclesiástica exigida para governar no temporal e no espiritual uma diocese com cerca de 23 mil fogos e 79 mil almas149. OS TRÊS PERÍODOS

O

nosso olhar sobre o urbanismo lamecense começa no século XVI e, embora se centre nos dois núcleos da cidade (burgo e couto) não pode dissociar-se da figura do bispo. Aliás, acrescentaríamos, nenhum estudo sobre economia, sociedade ou urbanismo pode eximir-se do papel das altas figuras eclesiásticas que, ou residiam ou estavam ligadas a Lamego por vínculos familiares. Embora, voltamos a frisar, não existam trabalhos sobre a acção do patriciado urbano no desenvolvimento urbano de Lamego, as grandes criações, encomendas e planos para a cidade estavam, sobretudo, nas mãos dos Homens da Igreja. Testemunho essencial deste aspecto é a dedicação da obra cronística que Rui Fernandes faz ao bispo D. Fernando Meneses Couti-

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nho, em 1532. O antístite, mentor do formoso jardim, terreiro e cerco de muro, poço e carreira e outras mui formosas benfeitorias que Vossa Senhoria tem feitas é o modelo do governante empreendedor150. A avaliar pelas palavras do cronista, que define as intervenções do prelado no couto da Sé como a melhor coisa desta cidade, dever-se-ia a D. Fernando a tentativa de criação de um plano urbanístico clássico em redor da catedral e do paço episcopal. A atenção dirigida ao Rossio – primitivo terreiro sulcado pelo rio Coura e paulatinamente fechado por edifícios de uso religioso – define a introdução de noções de centralidade e de espaço que a tratadística renascentista apresenta como fórmulas para a cidade ideal151. Mas se são apenas ecos as notícias que nos chegam sobre os planos de criação de espaços ou estruturas públicas destinados ao embelezamento ou enriquecimento da cidade pelos prelados - como o poço e carreira referidos em 1532 – possuímos registos mais concretos e mais completos sobre a directa intervenção episcopal na malha urbanística. Referimo-nos à construção ou reconstrução de edifícios religiosos. Nesse sentido é particularmente activo o episcopado de D. Manuel de Noronha (22-4-1551 a 23-9-1569)152 (ver cronologia). D. Manuel provinha das famílias proeminentes que integravam o movimento expansionista português: pelo lado do pai era bisneto de João Gonçalves Zarco, descobridor da Madeira e donatário do Funchal e pela mãe descendia de altos funcionários régios, como o vedor da fazenda Gonçalo Vaz Castelo Branco, senhor de Vila Nova de Portimão, seu avô materno. Esta proximidade aos círculos de poder conduziu-o à importante cátedra de Lamego e a Roma, onde alcançou o lugar de camarista pontifício. Naturalmente o seu percurso biográfico esclarece-nos sobre o poder e o gosto do ilustre prelado. Durante o seu episcopado não só prosseguiu os melhoramentos e ampliações em decurso na catedral – nomeadamente na crasta onde mandou instituir três capelas – e no Rossio, mas reformou e ordenou a também construção ou reconstrução de novos tem150

FERNANDES, R. e BARROS, A. J. M. (2012).

148  Para o século seguinte existem alguns estudos de fundo sobre a economia local e regional, cf. OLIVEIRA, J. N. d. (2006), p. 94-103.

151  O próprio leito do rio Coura foi intervencionado a mando do bispo D. Fernando, para permitir o aproveitamento de uma maior porção do espaço - e, naturalmente facilitar a ampliação da castra que o mesmo prelado ordenou reconstruir no princípio do segundo quartel do século XVI, cf. COSTA, M. G. (1982), p. 18

149  Mais concretamente 23765 fogos e 79265 almas. Os dados estatísticos são de 1739, cf. FREIRE, A. d. O. (1739).

152  As datas extremas dos episcopados seguem a proposta de PAIVA, J. P. (2006), p. 581.

147  Sobre este aspecto ver o nosso trabalho RESENDE, N. (2012).


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plos dentro e fora do couto, nomeadamente a ermida de Santo Estevão (?-1568), cuja invocação medieval foi substituída por culto mariano. Atribuem-se-lhe ainda as fundações das capelas da Senhora dos Meninos (1555?), nas margens do Balsemão e do Divino Espírito Santo, junto ao Coura, onde o seu brasão, na falta de outros documentos, atesta a directa intervenção. Ambas as edificações, situadas nos limites do couto, pretendem claramente assumir-se quer como novos espaços de culto numa cidade em crescimento, quer como novos eixos que influenciaram a morfologia urbana de Lamego nos séculos seguintes. Porém, o caso mais paradigmático da intervenção de D. Manuel de Noronha no reordenamento e expansão urbana da cidade episcopal foi a criação do santuário mariano dedicado à Virgem. Aproveitando as ruínas de uma ermida mandada levantar em meados do século XIV pelo seu antecessor na cátedra D. Durão (1350-1362), o camarista de Leão X lançou as bases para um novo eixo - primeiro visual, depois urbanístico – da cidade, ao mesmo tempo alargando a influência directa dos prelados lamecenses para lá dos limites do couto e criando, numa cidade pouco dotada de matéria sacra, um foco de romagem. A construção da ermida dedicada à Virgem dos Remédios parece ter sido, aliás, mais do que uma simples obra votiva, já que a mudança do sítio original do templo titulado a Santo Estevão implicou alterações significativas na paisagem e o aproveitamento dos recursos naturais locais, nomeadamente certas águas mais tarde disputadas entre Mitra e o convento de Santa Cruz – caudal aquífero que devia abastecer a magnífica fonte à romana mandada construir por D. Manuel de Noronha no seu Rossio153. Aceitamos a divisão definida por M. Gonçalves da Costa para os períodos de bispos à frente da diocese e, naturalmente na gestão do património da Mitra, no período em análise: bispos pré-tridentinos (de D. João de Madureira a D. Simão de Sá Pereira); Bispos da época filipina (de D. António Teles de Meneses a D. Miguel de Portugal), bispos do pré-Barroco (de D. Luís de Sousa a D. José de Meneses) e bispos do Barroco (de António de Vasconcelos e Sousa a D. Manuel de Vasconcelos Pereira)154. 153  Cf. AZEVEDO, J. d. (1877), p. 13 Ainda no século XVIII estas águas provocavam a discórdia, de tal forma que a memória cumulou de milagrosa a resolução do conflito a favor dos eclesiásticos seculares, cf. MARRANA, J. A. (1957), p. 41-42. 154  COSTA, M. G. (1982) e COSTA, M. G. (1986).

Mas do ponto de vista do estudo da arquitectura e do urbanismo limitamo-nos a gizar três grandes períodos associados aos episcopados referidos: um tempo do classicismo que tenta a introdução dos modelos renascentistas e maneiristas, balizado entre D. João Madureira e D. Miguel de Portugal (1502-1644), um período intermédio a que poderíamos chamar de transitório, condicionado pelo afastamento pós-restauracionista a Castela e pela lenta introdução de elementos protobarrocos e, finalmente, o tempo do barroco pleno, materializado num conjunto expressivo de intervenções construtivas e decorativas que terminará com o episcopado de D. Manuel de Vasconcelos Pereira (1670-1786). Naturalmente a passagem de certos prelados em tão dilatado período (1502-1786) fosse pela brevidade do seu episcopado ou ainda pela distância geográfica que mantiveram com a cátedra praticamente não deixou marcas no urbanismo lamecense. Outrossim foram fecundos em obra e encomendas algumas vacâncias da cátedra, nomeadamente no que respeita a intervenções na sé, como a que trouxe a Lamego António Pereira e Nicolau Nasoni (1734-1739). Destacam-se, contudo, nesta longa duração alguns episcopados mais activos, cujo tempo foi fundamental para determinar alterações na malha urbana – ou através da construção de novos eixos ordenadores ou através da revitalização de espaços de cultos obscurecidos. OS EDIFÍCIOS E O TERRITÓRIO

N

o século XVI Rui Fernandes não assinalou na paisagem urbana de Lamego os edifícios religiosos. O cronista destacou os aspectos mundanos do governo da urbe, aludindo apenas às casas da audiência, às da Relação, junto à Praça; ao bairro do castelo com a fortaleza, a cisterna e os paços dos Coutinhos; e, no couto da sé, às casas dos cónegos, beneficiados e nobres e ainda às benfeitorias públicas de D. Fernando de Meneses. Estranhamente, ou não, a arquitectura religiosa foi eliminada da memória pelo tratador de lonas e bordates. Mas em 1532 um pequeno conjunto de templos destacava-se no horizonte da cidade: a igreja de Almacave, a igreja ou capela do Salvador, no castelo, junto aos paços arruinados dos alcaides da cidade e a catedral - conjunto que era, nesse princípio do século XVI, claramente insuficiente para servir uma cidade repartida por duas paróquias e uma população com cerca 2250 habitan-


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tes155. Nos arredores, a ermida de São Sebastião, junto ao campo do Tablado e a nascente, a gafaria de São Lázaro com o seu pequeno templo, compunham a topografia religiosa da paisagem de Lamego. D. João de Madureira que parece ter falecido numas casas junto à capela do Salvador (sinal da permanência do lugar como espaço importante na malha do castelo) iniciou um projecto de ampliação e nobilitação do espaço da catedral que prosseguiu pelos séculos e episcopados seguintes156. De resto a sé foi sempre o principal alvo das atenções dos prelados. Apenas com os episcopados de D. Manuel de Noronha e D. António Teles de Meneses é que se iniciará uma multiplicação do número de templos ao serviço de uma população em crescimento, receosa das constantes vagas epidémicas que obrigavam à encomenda dos corpos e das almas a um rol de hagioterapeutas. A igreja da Misericórdia edificada em 1519 fora de muros e cuja fachada abria para uma nova via que circuitava o burgo amuralhado do lado oeste inaugurou a edificação moderna na morfologia medieval do burgo lamecense, fora do couto episcopal157. A nova rua, paralela ao pano ocidental da muralha, facilitará a ligação entre as zonas baixa e alta da cidade e conhecerá uma rápida transformação como espaço privilegiado no urbanismo lamecense (Figura 1). Só cerca de meio século mais tarde se edificaram ou reedificaram as ermidas do Espírito Santo, da Virgem dos Meninos e da Virgem dos Remédios, já fora do burgo e todas junto a vias ou a lugares de demarcação quer do couto quer da paróquia da Sé. O leitmotiv de tais construções ou reconstruções158 parece explicar-se não apenas pelo reforço ou afirmação do poder episcopal (patente na exibição das armas do prelado), mas também na disseminação de novos cultos, em sítio isolado ou junto a pequenos núcleos populacionais. De facto a cidade muniu-se de uma autêntico cordão profiláctico, formado por um expressivo conjunto de ermidas situadas junto às principais entradas da cidade, todas de fundação particular. D. António Teles de Meneses continuou a autorizar 155  Para a contabilização utilizamos o numeramento, fonte estatística que, cerca de 1527, aponta para a cidade de Lamego (freguesias de Almacave e Sé) uma população distribuída por 563 moradores ou fogos. João José Alves Dias indica o coeficiente 4 para desdobramento dos indivíduos por casa, o que resulta no número apresentado, cf. DIAS, 1966.

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1 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--): Área do Castelo

e a estimular talvez a edificação de templos nos limites da urbe, virando a sua atenção para o burgo, nomeadamente para o Campo do Tablado (um terreiro em forma de quadrilátero onde existia já uma capela de São Sebastião) e para o Cerdeiral e a Seara locais afectos ao património da Mitra e onde, em 1587, se sagrou a ermida da Virgem da Esperança (Figura 2)159. Outrossim, no ano anterior se fez procissão inaugural de Almacave até à ermida da Virgem da Saúde, também nos limites do burgo, junto à estrada para o Douro, edificada às custas de um certo António Soares. Embora se atribua a fundação quinhentista à ermida do Desterro (Figura 3), erguida num espaço sensível do ponto de vista do trânsito, a fábrica que ainda persiste é de 1640. Edificada no limite meridional do couto episcopal, com a fachada virada à principal via de acesso da cidade, havia de tornar-se um dos templos mais importantes de Lamego, não apenas pelas dotações que lhe faziam irmãos e confrades das agremiações ali sedeadas, mas por tornar-se ponto de partida para as solenes entradas barrocas dos bispos que vinham ocupar a sua cátedra. A implantação destas ermidas ou capelas, paralelas ou perpendiculares às vias, sem respeito pela orientação canónica (cabeceira voltada a nascente) traduz-se numa forma de articulação dos edifícios com a malha pré-existente ou, perifericamente (no caso dos Remédios) de traçar novos caminhos e permitindo um acesso visual directo ao templo pelos fregueses da cidade. Tais características sublinham a estratégia subjacente às construções: intervir no espaço urbano e periférico alargando a zona de influência dos poderes episcopais

156  Cf., a respeito das suas casas no castelo, COSTA, M. G. (1982), p. 15. 157  Referências a este caminho em ibid. p. 460 158  M. Gonçalves da Costa assinala, no caso da Virgem dos Meninos, a reconstrução de uma ermida anterior, cf. Ibid., p. 470.

159  O bispo possuía umas hortas no lugar da Seara. Aqui se instalará uma comunidade popular composta por mercadores e cristãos-novos que tinha na ermida da Esperança o seu templo comunitário, Cf. Ibid., p. 472 e RESENDE, N. (2012), p. 485.


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e o fomento ou criação de lugares catalisadores de devoção e, naturalmente, eixos ordenadores do urbanismo – onde a visão desempenha um papel importante. De facto a orografia da cidade proporcionava um jogo visual que aliava a distribuição e implantação concêntrica dos edifícios à sua contemplação pelos fiéis, como forma de reforçar a protecção comunitária. Mas não foram apenas as ermidas que a partir do século XVI marcaram o território urbano e periférico de Lamego. Também as casas conventuais redefiniram a morfologia do burgo ao longo da época moderna. De facto não foi sem consentimento dos prelados que as ordens religiosas paulatinamente invadiram o espaço urbano de Lamego, sobretudo na área sob a jurisdição municipal – já que o couto se isentou de receber qualquer instituição monástica160. Os franciscanos, como ordem de cariz urbano foram os primeiros a estabelecer-se em Lamego, mas o seu percurso determinou o abandono da ordem feminina (no século XIII), a mudança dos religiosos claustrais para capuchinhos e uma refundação masculina no século XVII161. D. Manuel de Noronha ainda terá

tentado a reforma, mudando a observância masculina para feminina, procurando assim proteger as donzelas da cidade que não tinham onde se recolher, mas o projecto ficou por realizar162. Seria D. António Teles de Meneses o mentor da primeira casa feminina de clarissas edificada em Lamego a partir de 1588. O século XVII foi, em Lamego, profícuo na edificação de casas religiosas. Embora praticamente todas tenham sido fundadas com o beneplácito episcopal, as dos religiosos de Santo Agostinho junto à Praça, e a casa dos Lóios, a sul do Couto, foram instituídas ou patrocinadas leigos. O convento da Piedade, dos Eremitas de Santo Agostinho, planeado e construído entre 1630 e 1649 surgiu da intervenção piedosa do desembargador do paço Francisco de Almeida Cabral que para o efeito cedeu as casas onde habitava163. A construção da igreja, do dormitório e da cerca ajudou a delimitar a norte o Campo do Tablado confinando com os quintais das casas do Cerdeiral e da rua da Seara – uma área do burgo particularmente urbanizada (Figura 2). Não seria, porém, sem alguma apreensão por parte

160  Ver delimitação do couto em SARAIVA, A. (2002/2003), p. 252.

162  COSTA, M. G. (1984), p. 565.

161  COSTA, M. G. (1979), p. 566 ss.

163

Cf. AZEVEDO, C. A. M. (2011), p. 211-212.

2 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--): Praça, Bairro da Seara e conventos de Santa Clara e de Santo Agostinho (da Piedade)


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164  COSTA, M. G. (1982), p. 64. Para a ampliação da igreja de São Francisco, foi também difícil obter esmolas dos moradores da cidade, valendo aos frades apenas as intervenções dos capitulares e do prelado, cf. COSTA, M. G. (1984), p. 567 ss.

ainda durante o episcopado de D. António Teles de Meneses, prolongou-se pela centúria seguinte e afirmou-se como uma das maiores construções religiosas de Lamego (Figura 3). O século XVII foi marcado pelo prosseguimento da actividade construtiva iniciada na centúria anterior e, sobretudo, pela introdução dos novos gostos que a Lamego chegavam por via dos artistas ao serviço dos bispos e dos próprios religiosos. É possível que a impermanência dos prelados na cidade ou as longas vacâncias na cátedra que se prolongaram até 1677 tenham influído na diminuição de encomendas ou na autorização de grandes obras construtivas. Mas, apenas a título de nota, embora a centúria de seiscentos seja um período de estagnação construtiva, o barroco invadiu paulatinamente os espaços interiores das capelas, ermidas e igrejas de Lamego, como evidenciam as múltiplas referências a artistas e encomendas neste período166. Os anos de setecentos fecharam o ciclo empreendedor começado pelos prelados D. Fernando Meneses, D. Manuel de Noronha e D. António Teles de Meneses. As atenções dos antístites dirigiram-se para as novéis ou renovadas igrejas de São Francisco (Figura 6) e de Santa Teresa, para a ermida do Desterro e, claro, as-

165  A este propósito leia-se o que escreve Orlando Ribeiro, RIBEIRO, O. (1994)..

166

do povo que as ordens se instalavam na cidade. Efectivamente quando o bispo D. Martim Afonso de Mexia tentou obter a autorização para a instalação na cidade de um convento de frades Carmelitas o projecto foi aceite pela câmara mas Filipe III negou o intento justificando a sua decisão com o fundamento de o povo já se encontrar já demasiado agravado com tantas fundações164. De facto estas fundações retiravam espaço urbanizável à cidade, admitindo isenções e excepções que feriam ou prejudicavam as prerrogativas das outras classes165. O convento de Santa Cruz destaca-se na morfologia urbana como a maior construção do género em Lamego. Edificado fora dos limites do couto da sé a sua cerca ocupava uma vasta área entre o rio Balsemão e a estrada para Arneirós, paróquia moderna criada nos arrabaldes da cidade. Também esta casa, entregue ao cuidado dos Cónegos Seculares de São João Evangelista ou dos Lóios, se concretizou graças à doação da quinta de Vila de Rei por um nobre leigo chamado Lourenço Mourão Homem. Projecto iniciado em 1596, na sequência da reforma do mosteiro de Recião,

Cf. entre outras obras, ALVES, A. (2001)..

3 Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--): Área do Couto


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4 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--): periferia de Lamego e a construção do escadório dos Remédios


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5 - Cronologia da actividade construtiva e episcopados de lamego (1500-1799)

6 - Excerto de bilhete postal ilustrado, não datado. Em segundo plano, central, o convento de São Francisco

sim o pedia a espiritualidade barroca, para o santuário da Virgem dos Remédios, cujo escadório, iniciado em 1777, constituiu um dos elementos mais marcantes na monumentalização urbana (Figura 4). A instalação de um novo convento na cidade, o recolhimento de Santa Teresa (Figura 7), também marcou a paisagem ficando, a partir de 1702, o couto episcopal delimitado por dois grandes edifícios religiosos: este recolhimento e o convento de Santa Cruz (Figura 3). Uma das obras que, não constituindo empreitada saliente, interveio na morfologia urbana – através da

definição de um percurso processional –, foi a construção da via-sacra que, em 1734, sublinhou dentro da planta de Lamego o eixo principal de circulação que desde a Idade Média ligava a parte baixa à parte alta da cidade. Aproveitando o declive, usou-se a orografia da cidade para reproduzir o percurso sacrificial de Cristo até ao monte Gólgota. Ainda persistem algumas edículas com os passos da paixão do Salvador que traçam desde a ermida do Desterro à igreja das Chagas o trajecto processional, passando pela catedral, pela rua da Misericórdia e pela ermida da Virgem da Esperança.


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7 - Excerto de bilhete postal ilustrado, não datado. Em segundo plano, central, o recolhimento de Santa Teresa

CONCLUSÃO

C

onfinada à colina genética, a comunidade de Lamego resistiu aos avanços e recuos dos seus conquistadores até ao século XI. A expansão da sua urbanização estruturou-se já em tempo de paz ao redor de dois templos: o de São Sebastião, a uma cota inferior à da acrópole, e o de Santa Maria de Almacave, quase às portas do burgo amuralhado. Com a definição paroquial em torno dos principais templos urbanos e a criação régia do couto episcopal a cidade cindiu-se em dois territórios: o primeiro entregue ao governo municipalista e o segundo sujeito ao poder episcopal, onde os prelados nunca deixaram de centrar no Rossio e na catedral a sua atenção. Mas o domínio temporal dos antístites, bem presente nas intervenções renascentistas de D. Fernando Meneses Coutinho a D. António Teles de Meneses - que claramente delinearam projectos públicos de embelezamento do seu couto-, alargou-se ao burgo e aos seus arredores, impondo na morfologia urbana e na paisagem envolvente, um domínio indirecto, fosse pelo apadrinhamento de certas obras (inclusive a instalação de casas monásticas), fosse pela reabilitação de lugares de cultos obscurecidos. Estes edifícios ocuparam sítios chave da cidade e criaram elementos e pontos estruturantes, tais como novas vias ou espaços alargados (praças ou adros) que determinaram novos trajectos na morfologia urbana e/ou periférica – por motivos religiosos ou económicos (ex. romagens e feiras). A sua construção pode

ser vista do ponto de vista estratégico: instituição de novos lugares de atracção cultual, extensão do poder eclesiástico (nomeadamente episcopal) e até a monumentalização do urbanismo – dentro de um espírito ou mesmo consciência da importância da intervenção mecenática (dos pontos de vista educativo e mesmo político) no espaço público. Este aspecto reflecte-se não apenas no couto com as benfeitorias de certos prelados, mas nas obras executadas ao longo dos primeiros episcopados do século XVI e nos do século XVIII, em áreas periféricas, até onde era possível aumentar os limites urbanos ou o domínio (ainda que informal) da Mitra. São disto exemplos a construção do mosteiro das Chagas que aproveitou um dos lados do terreiro do Tabolado (associado desde a Idade Média à vida comercial de Lamego) e o convento de Santa Cruz implantado num pequeno plano sobre o couto (que se tornará lugar de mercado e negócio – ambos os projectos acalentados por prelados lamecenses. Actualmente é impossível dissociar as principais obras quinhentistas ou setecentistas, como as ermidas do Espírito Santo ou da Virgem do Remédios, da morfologia urbana contemporânea. Ainda que, em alguns casos, não tenha sido respeitada a importância visual e a percepção do espaço, que os homens dos séculos XVI e XVIII reconheceram ou atribuíram àqueles edifícios e à sua envolvência – eles constituem um dos principais motivos de engrandecimento e expansão que a cidade de Lamego conheceu ao longo da época moderna, em parte graças à ação dos seus prelados.


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Painel 2

ARQUEOLOGIA NO/DO DOURO Susana Cosme Paulo D贸rdio Pedro Pereira Ant贸nio S谩 Coix茫o


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O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas na economia e povoamento dos séculos IV-VII no Douro. texto: Susana Rodrigues Cosme, Archeo’Estudos, Ltd, CITCEM, (susanarodriguescosme@gmail.com)

Resumo: A importância das pars rustica e pars fructuária das villae romanas como base da actividade económica e sua relação com o povoamento na região do Douro durante a transição da época romana para a alta idade média (séculos IV/VII). Estado da investigação sobre as estruturas destas dependências, suas características e funcionalidades, que ruturas e continuidades se encontram nesta transição de períodos.

Palavras Chave: villae rusticas, villae fructuarias, economia, povoamento, Douro.

Abstract: The importance of pars rustica and pars fructuária of villae Romans as base of the economic activity and its relation with the populating in the region of the Douro during the transition of the time Roman for the high average age (centuries IV/VII). State of the inquiry on the structures of these dependences, its characteristics and functionalities, that ruptures and continuities if find in this transition of periods.


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Susana Rodrigues Cosme

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1 - NOTAS INTRODUTÓRIAS uando me solicitaram que escrevesse sobre Arqueologia no Douro em época romana, fiquei algo apreensiva sobre o que escrever, não que o assunto não seja vasto e não haja muitos motivos de interesse sobre o que falar, mas porque, se bem que tenha iniciado os meus trabalhos de investigação167 nesta área geográfica, há muito que não me debruçava sobre a ocupação humana destes montes e vales da bacia hidrográfica do Douro. Embora o meu percurso profissional me tenha afastado geograficamente do Douro, não me afastou da investigação arqueológica, nem do meu interesse pelo período romano e principalmente, na transição deste para o período alto-medieval. Também o facto de em 2012, ao fim de 10 anos portanto, ter voltado a trabalhar na região, desta vez no vale do rio Sabor168, levou-me a aceitar escrever algumas considerações/inquietações com que me tenho debatido nos últimos tempos. Ao resolver escrever sobre as villae rústicas no Douro começam as problemáticas, a começar pelo próprio conceito de villae, suas características e funcionalidades. Sobre as villae no Douro, esbarramos com os muitos sítios referenciados como villae, mas muito poucas dessas referências foram objecto de intervenções arqueológicas ou de qualquer outro tipo de análise. Tentar incidir este trabalho na pars rústica e pars frutuária das villae, ainda pior, pois a monumentalidade da pars urbana das villae continua, ainda, a cativar mais, quer os promotores de trabalhos, quer o público em geral, mas principalmente, os investigadores. Este trabalho tem como objectivo caracterizar as estruturas existentes numa pars frutuária de uma villa, apontar sugestões para uma melhor compreensão das mesmas, relembrar os casos conhecidos através da bibliografia no Alto Douro e chamar a atenção aos investigadores da importância de dar conhecer e de estudar este tipo de estruturas para uma melhor compreensão da economia romana, não esquecendo de alertar para a dificuldade que é reconhecer algumas dessas estru-

turas através do registo arqueológico. Por fim, tentar perceber se este modelo de povoamento, vingou nos séculos seguintes e/ou que alterações sofreu, será sempre um objectivo presente. 2 - O CONCEITO DE VILLAE

A

167  “Projecto de Investigação do Monte do Castelo/Calábria” em 1995 com o apoio do GEHVID e com PNTA entre 1998-2002 do qual resultaram diversas publicações e uma tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto sob o título “Entre o Côa e o Águeda – Povoamento nas épocas romana e alto-medieval”, em 2002.

o estudar-se o povoamento romano, os núcleos habitacionais são classificados consoante a sua importância dentro do aparelho político de Roma e consoante a sua funcionalidade: civitas, vicus, villa, casais, povoados mineiros, mutacios, etc, não nos podemos esquecer que todos se encontram dependentes de uma civitas capital de província e em última instância de Roma. Normalmente, os estudos de povoamento baseiam-se em prospecções de superfície que depois resultam em cartas arqueológicas169 com mapas cheios de pontinhos maiores ou menores consoante os resultados dessa mesma prospecção. Apesar de se reconhecer a importância destes trabalhos como base para estudos futuros, não podemos deixar de chamar a atenção para que a leitura que se faz dos mesmos seja cuidadosa e sempre critica, pois como veremos, para o caso das villae, elas não são iguais entre elas e o mesmo acontece para os outros tipos de habitat. Genericamente compreende-se o termo villae como um tipo de propriedade que engloba uma casa principal do proprietário, a chamada pars urbana, as casas dos trabalhadores, a pars rústica e os anexos relacionados com as actividades de exploração económica, pars fructuaria a que a villa estava vocacionada com lagares, celeiros, fornos, forjas, estábulos. Fazia ainda parte deste modelo o fundus com os campos cultivados (agri), as pastagens (saltus) e os bosques (silva). O modelo romano para as villae não é estanque, e como refere André Carneiro é “um conceito que hoje sabemos polissémico, com muitos significados e materializações vivenciais” (CARNEIRO: 2010, 228). Seria bem mais fácil, mas não mais interessante, se a conceito de villa fosse mais estanque e homogéneo, mas não é, ele varia ao longo do período cronológico, varia consoante a área geográfica em que se insere, varia consoante o poder económico ou importância politica ou até mesmo do gosto pessoal do seu proprie-

168  Dirigindo em colaboração com João Niza a intervenção arqueológica no EP189 (Quinta de Crestelos, Meirinhos, Mogadouro), sob a coordenação de Sérgio Pereira para o ACE/AHBS, pela empresa de arqueologia Archeo’Estudos, Lda. desde Fevereiro de 2012 até Novembro de 2013.

169  Algumas teses que apresentam listagem de sítios romanos para o período aqui abordado: AMARAL: LEMOS: 1993; Coixão: 2000; Cosme: 2002.


O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas

tário, varia consoante a actividade económica a que se dedica, enfim as variáveis são muitas para podermos estabelecer um conceito de villae perfeita e temos de estar atentos à sua constante mutação não só conceptual mas também física. Sobre a evolução da villae em período alto-medieval, não existe um critério fixo. Algumas villae são completamente abandonadas, outras são continuamente ocupadas, sofrendo algumas alterações urbanísticas, mas mantendo a mesma funcionalidade económica, deixando de estar sob a alçada de uma civitas para passar a responder a uma vila cabeça de terra, outras, por sua vez, são abandonadas e criam-se estruturas novas em zonas contíguas que respondam às necessidades de uma nova forma de política (junto a castelos), de religião (em torno de uma capela) ou até de actividades económicas diferentes como serão os casos de povoados mineiros que foram abandonados e as suas gentes vêem-se obrigadas a canalizar a sua força produtiva para outras áreas económicas. Uma proposta dessa evolução até um período mais recente foi a apresentada em 1998 por Ricardo Teixeira ao fazer uma aproximação das villae romanas às quintas do Douro. É um estudo comparado muito interessante, principalmente, se o fizermos em termos urbanísticos e funcionais, tal como as antigas villae, as quintas têm também elas no ver do autor “um modelo de propriedade, uma forma de gerir e explorar os recursos agro-pecuários, de organizar o parcelário rural, de dispor as construções e os edifícios” (TEIXEIRA: 1998, 86), muito própria. Estas quintas ou evoluíram para aldeias ou quando isoladas mantêm a casa de habitação, o lagar, o forno, os currais, a eira e em certas zonas a destilaria, são normalmente construções pobres em alvenaria seca (com pedras de xisto ou granito consoante a zona), com coberturas em telha vã sobre traves de madeira ou em colmo. No entanto, e como mais uma vez André Carneiro nos chama a tenção e muito bem, “ver a villa unicamente como uma unidade de produção agro-pecuária” (CARNEIRO: 2010, 230) também não deixa de ser redutor. Embora a economia se mantenha fiel ao cereal, olival e vinha e a maioria das vilas fosse auto-suficiente, algumas delas especializaram-se em certos produtos específicos e de qualidade que serviam não só de moeda de troca mas que entravam nas grandes rotas de comerciais ou então dedicavam-se a produtos de difícil percepção aos olhos do arqueólogo, como tecidos, couros, ou produtos alimentares.

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3 – ESTRUTURAS DA PARS RUSTICA

A

s estruturas da pars rustica são essencialmente as casas de habitação dos trabalhadores da villa, seja qual for a sua condição: de escravo ou de liberto. Estas construções também podem ser maiores ou menores, mais ricas ou mais pobres consoante o poder económico do próprio dono da villa. São estruturas que apresentam paredes com muros em xisto ou granito, consoante a área geográfica, usando argamassa como ligante. As paredes podem ser rebocadas e alguns desses rebocos podem ter pinturas. Normalmente os pavimentos são em terra batida e apenas algumas divisões apresentam pisos em opus signinum. Os telhados são em tegula e/ou imbrex sobre ripas de madeira. As cozinhas apresentam lareiras nos centros das divisões ou num dos cantos e são normalmente feitas em pedra, tijolo ou tegulae invertidas. Podemos encontrar divisões de habitação, cozinha, latrinas, armazéns e muitas das vezes nas villae do Douro a pars rústica e pars frutuária não são zonas separadas mas sim fundem-se num único edifício. Mas a villa urbana também tem divisões para os criados, com cozinhas e salas para trabalhos mais delicados e em certos casos temos algumas estruturas da pars frutuária como lagares na pars urbana, por isso mais uma vez a divisão tripartida da villa tem de ser tida como um ponto de partida mas não seguida à letra. 4 – ESTRUTURAS DA PARS FRUTUÁRIA

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stas estruturas como vimos estão intimamente ligadas com a actividade económica praticada na villa e essa depende da sua localização geográfica das condições dos solos, da proximidade ou não de linhas de água, da proximidade de matérias primas como minerais, madeiras (bosques), das condições climatéricas, enfim de uma infinidade de factores. 4.1 – Lagares (torcularium) e adegas (cella vinária ou cella olearia) As estruturas mais comuns presentes nas villas do Douro são os lagares e as adegas, o maior problema é relacioná-los com a produção vinícola ou com o azei-


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te. Para chegar a essa distinção ou se fazem recolhas de sedimentos para análises ou são detectados caroços de azeitonas ou grainhas de uva ou ainda se tem a sorte de encontrar mós olearias tronco cónicas. Ter em atenção para a presença de pesos de lagar, de mós, de restos de madeiras ou tecidos. Não esquecer também que para a obtenção do azeite é sempre necessário mais água que para o vinho e como tal os lagares de azeite devem ficar junto a linhas de água ou ter forma de a fazer chegar até junto do lagar. Segundo Vitruvio, o torcularium devia permanecer junto da cozinha ou em íntima relação com a adega, o lagar devia estar um pouco mais elevado na sua implantação e a ligação entre os espaços fazer-se por uma porta. A cella vinária devia estar orientada a Norte, o que a tornaria fria e quase obscura, devia estar longe de sítios com maus odores, como termas, fornos, latrinas ou instalações de animais, já para cella olearia recomenda-se um espaço ameno para o azeite não coalhar. Para complementar o estudo destas estruturas deve-se estar atento ao tipo de alfaias agrícolas encontradas que são distintas na viticultura e na olivicultura. Outro aspecto que devemos ter em conta é a presença de gado bovino na ajuda

1 - Lagar do Olival dos Telhões (Almendra. Vila Nova de Foz Côa)

ao trabalho do lagar. Em dois casos por nós escavado o do Olival dos Telhões (Almendra, Vila Nova de Foz Côa) e o da Insuínha, (Pedrógão, Vidigueira) surgiram associados aos lagares badalos ou guizos de bovinos. Não nos podemos esquecer da imensa quantidade de lagares rupestres, existentes na região duriense, principalmente nos planaltos graníticos que embora não estejam integrados nas villae muitos estão dentro dos seus respectivos fundi e foram utilizados em época romana. Os exemplos dos lagares da Fonte do Milho, Olival dos Telhões (Fig. 1) (Almendra, Vila Nova de Foz Côa), Rumansil, Prazo, Zimbro (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa), Vale de Mouro (Coriscada, Meda). 4.2 – Armazéns (granaria) e celeiros (horrea) e moinhos (molinum). Outra das grandes actividades económicas era a produção cerealífera e como tal devíamos encontrar no registo arqueológico as estruturas de armazena-


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2 - Celeiro da Quinta de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro)

mento: silos, dolia ou sacos de tecido (estes mais difíceis de detectar) e os próprios armazéns, horrea, onde estes recipientes seriam guardados e protegidos das intempéries e dos animais predadores. Estes armazéns deviam fazer parte integrante dos anexos da pars rústica e por isso nem sempre são caracterizados isoladamente. Dentro desta actividade são referidos os granaria para os grãos de cereal, os fenile para os depósitos de feno e os farrariia para os silos de trigo, todos eles deveriam ser construídos em local alto e ventilado, afastados de fontes de calor ou fogo. Os granaria ou celeiros, são os mais facilmente detectados no registo arqueológico, predominam na zona duriense os de pavimento sobre-elevado, apresentando uma série de muros construídos sob a tabulata, que deveria ser em madeira, mas que também nos surge em lajeado de pedras de xisto. Outro tipo de celeiros são os construídos sobre pilares tipo palheiros ou espigueiros, neste caso o registo é de mais difícil percepção. Ainda ligado

ao cereal não podemos esquecer os fornos de pão, os moinhos de cereal, quer de mós manuais, moinhos de água ou de vento. Associado a tudo isto, temos de estar atentos à presença dos pesos de tear, dos cossoiros, das placas de tear, das mós e mais importante, recolher sempre amostras de sedimento para realização de flutuações e análises de macro-restos. Os exemplos dos celeiros de Vale dos Mouros (Coriscada, Meda) (Figura 2) e da Quinta de Crestelos (Figura 3) (Meirinhos, Mogadouro). 4.3 – Pecuária e criação de gado As estruturas ligadas à pecuária e criação de gado que deviam aparecer são as que ainda hoje se usam numa quinta, currais, vacarias, galinheiros. Estas estruturas são mais difíceis de detectar, embora algumas construções existentes nas villas aqui estudadas, sejam


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3 - Celeiro de Vale dos Mouros (Coriscada, Meda)

apontadas como cavalariças, por serem espaços muito compartimentados e estreitos no Vale de Mouro em mais nenhum dos casos aqui apresentados nos mostram estruturas desta tipologia que tivessem como funcionalidade a proteção dos animais. No entanto têm surgido algumas estruturas de forma oval ou elipsoidal que têm vindo a ser apontadas como currais de bovídeos noutras zonas do país ou para outros períodos. O exemplo da Casa dos Mouros 241 (São Marcos da Serra, Silves) de época romana e os da Quinta de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro) de época alto-medieval. Chama-se a atenção para as estruturas de buracos de poste ou paliçadas muito utilizadas neste tipo de estruturas, bem como uma recolha cuidadosa da fauna mamalógica exumada em cada sítio arqueológico e perceber se os veados se encontram mais numa zona que outra, ou as cabras, ovelhas, vaca/boi, galinhas, coelhos, patos, enfim, percebendo não só o tipo de alimentação que faziam à época mas também que animal prevalecia e para que servia se só alimentação ou se eram animais de trabalho (de tração).

4.4 - Fornos Numa villa rústica ou villa frutuária podemos encontrar fornos de pão, fornos de cerâmica, de vidro, de fundição de metal, de cal. Os fornos apresentam normalmente uma câmara de combustão, sobre a qual é colocada uma grelha que depois seria coberta com uma abóbada. A tipologia de fornos também varia ao longo dos anos e dos materiais que iriam a cozer, tornando-se ao longo da ocupação romana cada vez mais elaborados e a atingir temperaturas mais elevadas: podemos encontrar simples covachos abertos no solo de base e que serviram como câmara de combustão ao mesmo tempo que se colocavam as peças no meio, junto com a madeira e se chegava o fogo, tapando com terra e deixando cozer em soenga; a fornos de pão também escavados no substrato rochoso e apresentando paredes e chão do forno muito rubfatada, fornos para redução de ferro como é o exemplo do encontrado no Olival dos Telhões (Almendra, Vila Nova de Foz Côa). Estrutura semi-circular constituída por lajes de xisto, com um leito


O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas

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4 - Estrutura de curral em elipse da Casa dos Mouros 241 (São Marcos da Serra, Silves)

de placas de xisto, revestida a argila e grandes blocos de argamassa. Associada a esta estrutura detectou-se uma grande quantidade de cinzas e uma sua observação macroscópica revela que a argila foi sujeita a elevadas temperaturas. Descrições semelhantes, nomeadamente numa propriedade do Carvalhal, Moncorvo170, são comuns, retratando um determinado tipo de fornos romanos para uma pequena oficina metalúrgica de ferro, de carácter artesanal e local. 170

CUSTÓDIO, 1984, p.30.

Os fornos mais conhecidos e cuja tipologia se manteve até à actualidade são os fornos de cerâmica, tratam-se de fornos grandes ovalados ou rectangulares, com uma câmara de combustão em arcos de tijolo ou pedras, com um pilar central ou com vários pilares que sustentem os arcos. Grelhas robustas em tijolos e argila e abóbadas em tijolo ou em argila e xisto partido. Estes fornos também podem surgir em pedra como são os casos dos fornos do Rumansil. (Figura 5).


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5 - Estrutura de curral em elipse da Quinta de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro)

6 - Forno do Rumansil (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa)

5 - NOTAS FINAIS

A

s actividades económicas realizadas nas villas eram a base e o motor da economia em época romana, quase todas eram auto suficientes e muitas delas produziam em excesso o que lhes permitia por esses produtos nas rotas comerciais. A ocupação do território com as características sócio-políticas romanas, mantiveram-se até inícios/ meados do século VI, altura em que o território sofreu a ocupação sueva e visigoda durante o final do século VI inícios do século VIII. As alterações sentidas em termos de povoamento não foram muito significativas, as alterações fizeram-se sentir mais no aspecto inova-

dor da religião. Passou a existir a divisão do território em bispados e estes por sua vez em paróquias. Se a estes bispados correspondiam as áreas de influência das antigas capitais de civitas ou se às paróquias correspondiam a área dos vicus, isto é, se se mantiveram as fronteiras físicas das antigas divisões administrativas, para as divisões religiosas da Idade Média é um aspecto ainda por esclarecer.


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6 – BIBLIOGRAFIA ALARCÃO, Jorge de (1988) - Roman Portugal. Gazetter. Warminster: Aris e Phillips Ltd., 4 vols. ALMEIDA, Carlos Alberto Brochado de (1992/1993) - “O passado arqueológico de Carlão – Alijó”. Portugalia, Nova Série, 13-14. Porto. ALMEIDA, Carlos Alberto Brochado de (1996) – O cultivo da vinha durante a antiguidade clássica na região demarcada do douro. Ponto da situação”. Douro: Estudos & Documentos. Porto: GEHVID. N.º 2, p. 21-30. ALMEIDA, Carlos Alberto Brochado de (2006) – A Villa do Castellum da Fonte do Milho. Uma antepassada das actuais quintas do Douro. In Douro, Estudos e Documentos, 21. Porto: GEHVID, p. 209-228. CARNEIRO, André (2010) – Em pars incerta. Estruturas e dependências agrícolas nas villae da Lusitânia. «Conímbriga», 49. Coimbra: IAFLUC, p. 225-250. COIXÃO, António do Nascimento Sá (2000) - Carta Arqueológica do Concelho de Vila Nova de Foz Côa. Vila Nova de Foz Côa: Ed. da Câmara de Vila Nova de Foz Côa. COIXÃO, António do Nascimento Sá (2008) – Proto-história e romanização do Baixo Côa: Novos contributos para a sua caracterização. In LUIS, Luís (coord.) – Prot-História e Romanização: guerreiros e colonizadores. III congresso de arqueologia trás-os-montes, alto douro e beira interior: actas das sessões. Porto: ACDR de Freixo de Numão, vol. 3, p. 29-55.

COSME, Susana Rodrigues; MARTINS, Carla (2001) - Monte Calabre- “Estudo analítico do espólio metalúrgico de Aldeia Nova/Olival dos Telhões (Almendra, Vila Nova de Foz Côa). In Actas do III Congresso de Arqueologia Peninsular. Porto: ADECAP. vol. 9, p. 215-221. COSME, Susana Rodrigues (2001a) – “O lagar romano de Aldeia nova/Olival dos Telhões (Almendra, Vila Nova de Foz Côa)”. In Actas do II Simpósio Internacional de História e Civilização da Vinha e do Vinho – “A Vinha e o Vinho na Cultura da Europa”. Porto: Ed. do GEHVID, 12 Porto, 2001, p. 55-62. COSME, Susana Rodrigues (2002) - Entre o Côa e o Águeda – Povoamento nas épocas romana e alto-medieval. Tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Texto Policopiado. CUSTÓDIO (1984) BARROS, G. Monteiro, O ferro de Moncorvo e o seu aproveitamento através dos tempos, Moncorvo, Ferrominas EP, p. 30. LEMOS, F. de Sande (1993) – Povoamento Romano de Trás-os-Montes Oriental. Braga: ed. Universidade do Minho. Texto policopiado. TEIXEIRA, Ricardo (1998) – O Côa, as quintas e o povoamento romano subjacente. In Terras do Côa / da Malcata ao Reboredo, os valores do Côa. Guarda: Estrela-Côa – Agência de desenvolvimento territorial da Guarda. p. 209-213.


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Investigação e Desenvolvimento no Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor texto: Paulo Dordio Investigador do CITCEM/FLUP Coordenador Geral do PSP do AHBS

Resumo

Abstract:

A construção de uma nova barragem hidroeléctrica na região de Trás-os-Montes - Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor (AHBS) - promoveu o desenvolvimento de um ambicioso plano de minimização dos impactes da empreitada de obra sobre um conjunto muito alargado de elementos patrimoniais, entre os quais grande número de sítios arqueológicos. Orientado por um documento próprio elaborado para o efeito - Plano de Salvaguarda do Património (PSP) – centra-se sobre um território, o Baixo Sabor, e desenvolve uma aproximação integrada que visa a investigação das dinâmicas de transformação desse território na longa duração, da Pré-história aos nossos dias.

The construction of a new hydroelectric dam in the Trás-os-Montes region – Baixo Sabor Hydroelectric Plant (AHBS) – was behind an ambitious plan to minimise the impact of the construction works on a very extensive set of heritage assets that include a large number of archaeological sites. Under the guidance of a special document drafted for the purpose, the Heritage Protection Plan (Plano de Salvaguarda do Património) (PSP), we look at the Baixo Sabor area and develop an integrated approach designed to examine the transformation dynamics of this territory in the long term, from prehistory to the present day.


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Paulo Dordio

1 - O Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroelétrico do Baixo Sabor é um plano de execução das Medidas de Minimização do Impacto de uma Grande Obra de Construção Civil, duas barragens e respetivas albufeiras afetando 23 freguesias distribuídas por 4 concelhos ao longo de 60 km do curso final do rio Sabor.

1. INTRODUÇÃO

O

Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor171 encontra-se em execução plena desde 2010 e, praticamente encerrados todos os trabalhos de campo (incluindo as tarefas de selagem de sítios arqueológicos e preservações in situ) até final do passado ano de 2013, estão em fase de conclusão 171  O Plano de Salvaguarda do Património (PSP) faz parte da Empreitada Geral do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor promovida pela EDP, Produção, e cuja execução é da responsabilidade do Baixo Sabor, ACE, constituído pelo consórcio ODEBRECHT/Bento Pedroso Construções S.A. e LENA, Construções. O Plano de Salvaguarda do Património tem a seguinte estrutura de coordenação: Coordenação Geral: Paulo Dordio; Coordenação de Equipas e de Estudos: Filipe Santos (Cilhades), José Sastre (Proto-história), Luís Fontes (Idade Média), Paulo Dordio (Edificado), Rita Gaspar (Pré-história), Sérgio Antunes (Acompanhamento) Sérgio Pereira (Romanização), Sofia Figueiredo (Arte Rupestre), Susana Lainho (Conservação). O Plano de Salvaguarda do Património (PSP) integra a Área do Ambiente, Qualidade e Segurança da Empreitada Geral, área coordenada por Augusta Fernandes.

neste momento, no 1º semestre do corrente ano de 2014, o conjunto dos relatórios finais de cada um dos sítios e elementos patrimoniais intervencionados e já a iniciar-se a elaboração das Monografias que, uma vez editadas, concluirão os estudos desenvolvidos no âmbito do PSP do AHBS. O Plano, que integra um núcleo de Estudos Específicos (A Pré-história do Baixo Sabor, A Arte Rupestre, A Proto-história, A Romanização, A Idade Média ou a Paisagem Tradicional) bem como Programas Especializados (Protecção e Monitorização de Valores Patrimoniais, Acompanhamento de Obra, Preservação in Situ, Trasladação de Elementos Patrimoniais,…), implicou uma inusitada concentração de recursos humanos e materiais com o objetivo da implementação de um projeto de investigação patrimonial numa delimitada região deprimida do interior transmontano e duriense.


Investigação e Desenvolvimento

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O processo está a potenciar muitas e diversificadas iniciativas paralelas que, privilegiando uma constante e intensa interação com a comunidade local, perspetivam a futura continuação da investigação e do desenvolvimento a partir dos valores do património cultural, histórico e natural. 2. BREVE CRONOLOGIA DO PLANO DE SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO 1992 Estudos Prévios 2004 Declaração de Impacto Ambiental (DIA) 2008 Início da obra e da execução das primeiras medidas de minimização 2009, Maio/agosto - Definição final do Plano de Salvaguarda do Património (PSP) do AHBS 2009, Dezembro/2010, Fevereiro - Entrada ao serviço da atual estrutura e equipa de execução do PSP 2010, Agosto /setembro - Conclusão da execução das medidas de minimização prioritárias para desbloqueamento das frentes de obra 2011, Março - Início das escavações arqueológicas na área das albufeiras 2011, Abril - Início da prospeção arqueológica intensiva e sistemática na área das albufeiras 2011, Dezembro- Conclusão da prospeção arqueológica intensiva e sistemática na área das albufeiras 2013, Dezembro - Conclusão dos trabalhos de campo 2014 Conclusão dos trabalhos de gabinete e redação dos relatórios finais ou Monografias dos Estudos

2 a 5 - Baixo Sabor.

3. PAISAGENS E TERRITÓRIOS NO BAIXO SABOR

O

Vale do Baixo Sabor impõe-se a quem o observa cavando o curso vigoroso através de uma paisagem de planaltos a perder de vista. As formas são robustas e esmagadoras. Na maior parte do curso, as encostas são abruptas configurando


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um vale muito encaixado entre arribas. Mas, por vezes, o vale abre, multiplicando-se os subsidiários que rasgam os planaltos de ambos os lados do rio, aplanando as encostas das margens onde se identificam antigos terraços fluviais. São esses nichos alveolares que as populações mais antigas, desde que se começaram a sedentarizar e a criar aldeamentos permanentes, escolheram para centro dos seus territórios. Atualmente, porém, nessas mesmas zonas, não se implanta uma única aldeia. Todas se situam

nos planaltos adjacentes. A ruptura e mudança de paradigma parecem ter ocorrido no último milénio, da Baixa Idade Média ao Presente.

6 - As zonas de concentração da antiga ocupação humana (até c. de 1000 dC.): Escavações Arqueológicas no âmbito do PSP do AHBS. Áreas de Escavação: situação em agosto de 2013, prévia ao Plano Final de Crestelos.


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4. EXECUÇÃO DO PLANO DE SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO EM NÚMEROS Parâmetro

Quantidades

Comentário

Prazo de Execução

5 anos

2010 - 2014

Área de Afetação

c. 3 093 hectares

2 albufeiras e estaleiros

243

À data de 2008

2411

À data de 30/10/2013

115

À data de 30/10/2013

c. 24 000 m2

À data de 30/10/2013

c. 200 a 250 técnicos

Variável/máximos atingidos (não inclui laboratórios, unidades de investigação e colaboradores externos)

Sítios/Elementos Patrimoniais individualizados (RECAPE) Sítios/Elementos Patrimoniais individualizados (PSP) Sítios/Elementos Patrimoniais objeto de Intervenção Arqueológica Área total de Escavação Arqueológica Dimensão total equipas internas

5. DESENHO DO PROJETO. DESENHO DO PLANO DE SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO (PSP)

I

nformada pelos Estudos Prévios realizados a partir de 1992, que visaram a identificação e avaliação dos valores e elementos patrimoniais arqueológicos, arquitetónicos, históricos e etnográficos existentes na área a inundar e a afetar como resultado do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor (AHBS), a Declaração de Impacto Ambiental (DIA)172 de 2004 definiu e estabeleceu um conjunto de condições a que o Projecto de Execução do AHBS deveria obedecer. Posteriormente, o Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução (RECAPE) desenvolveu e especificou de forma mais completa essas condições, identificando entre as 17 Medidas de Minimização elencadas, a obrigação de ser elaborado um Plano de Salvaguarda do Património (PSP). Encetada a Fase de Obra em 2008, foi, em paralelo, iniciada a execução de diversas tarefas de minimização e de monitorização de impactos na área 172  A Declaração de Impacto Ambiental (DIA) do AHBS foi publicada no «DIÁRIO DA REPÚBLICA — II SÉRIE», N.o 233 — 2 de Outubro de 2004, p. 14719 - 14726. Disponível em <http://www.ambs.pt/index.php/ documentos/category/5-decaracao-de-impacto-ambiental>. [Consulta realizada em 3/02/ 2014]

do património arqueológico e arquitetónico. Mas é já num momento avançado do ano de 2009 que surge o Plano de Salvaguarda do Património (PSP), estabelecendo, num único documento coordenador e globalizante, os objectivos e as especificações concretas e pormenorizadas do projeto de salvaguarda do património do Baixo Sabor, assinalando os recursos humanos e materiais mínimos adequados à dimensão das tarefas em vista e definindo metodologias. Aquele documento faz a afirmação de três principais vetores de atuação, com plena consciência da novidade introduzida na prática corrente deste tipo de aplicação de medidas minimizadoras de impacto e afetação de obra: 1. Ao estabelecer que a salvaguarda do património não se realiza apenas através do Registo, Monitorizações ou Preservações in situ mas, em primeiro lugar, através da Produção de Conhecimento, concebe o Plano como um plano de estudo de um território e de uma paisagem estruturando-o através de um núcleo de estudos ou investigações específicas de âmbito cronológico (Estudo da Pré-história do Baixo Sabor, da ProtoHistória, da Romanização, da Idade Média e o Estudo das Idades Moderna e Contemporânea),


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geográfico (Estudo da Área de Cilhades) ou temático (Estudo da Arte Rupestre). 2. Ao recusar uma visão atomística do património, propõe para o estudo dos elementos patrimoniais - sítios arqueológicos, edificado ou modos de vida e memórias das populações atuais - uma investigação integrada, perspetivando-os na sua inter-relação e na relação significativa com o território e a paisagem em diacronia. 3. Ao valorizar patrimonialmente e fazer incluir na Salvaguarda o Momento Atual da Paisagem, aproximando-se dele não só como o momento de chegada de uma longa diacronia mas também como um continuum multidimensional (macro e micro edificado, coberturas vegetais, gestos, memórias e representações dos seus habitantes). Foi, deste modo, no entendimento daquele documento que o âmbito do «património cultural integra não somente o conjun­to de bens materiais e imateriais de interesse cultural pertinente, como também os respetivos contextos que, pelo seu valor testemunhal, possuam com aqueles uma relação interpretativa e informativa»173. Assim, determina o referido documento que «os estudos a realizar, articulando as variadas fontes existentes, deverão espelhar uma análise diacrónica e sincrónica das realidades crono­culturais identificadas, permitindo avaliar a persistência do modelo de organização do espaço (...) abordando a estru­tura do povoamento como fenómeno de longa duração. (...) A realização de diversos estudos especializados sobre o património do Vale do Sabor deverá procurar garantir as condições para a reconstituição narrativa e gráfica desta realidade territorial na sua vertente histórico-patrimonial. Por isso far­-se-á um registo integrado (relacionado) quer do ponto de vista espacial, quer tem­ poral de todos os elementos patrimoniais (...) evitando uma abordagem atomizada, casuística e descontextualizada dos elementos patrimoniais existentes»174.

A preocupação de se passar para um nível de interpretação global fica claramente expressa neste documento orientador e traduz a procura da transposição para a prática do enquadramento teórico da mais atualizada problematização sobre a salvaguarda do património cultural que as convenções internacionais ratificadas pelo Estado português vêm consignando175. Estamos perante o esforço de interpretar a evolução da ocupação humana do território, desde a pré-História 173  Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção, EDP, 2009, 86 p. 174  idem 175  FERREIRA, David; DORDIO, Paulo; LIMA, Alexandra Cerveira (2013) – Paisagem Como Fonte Histórica. In Actas Congresso Internacional Arqueologia Moderna. Lisboa. 2011. CHAM

à época contemporânea, percebendo a forma como se constituiu a paisagem atual. Poderemos dizer que as principais novidades passam pelo objeto de estudo assumir toda a diacronia e por se exigir um registo não descritivo, mas interpretado. Fica postulada uma aproximação multidisciplinar à ocupação mais recente, numa abordagem da mesma natureza da que é feita à ocupação humana datável das cronologias mais antigas. Desaparece a consideração de elementos arqueológicos, arquitetónicos ou etnográficos individualmente considerados, e encaram-se todos estes elementos como partes de um todo históricoarqueológico que importa interpretar176. 6. OPERACIONALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO DO PLANO DE SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO (PSP)

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niciada a execução em “obra” do PSP, foi desde logo evidente a necessidade de criar um Sistema de Informação Geográfica (SIG/GIS), único instrumento capaz de apoiar a eficaz gestão e controlo do volume de informação georreferenciada expectado. Na verdade, não é apenas o volume de produção da informação georreferenciada que adquire rapidamente proporções gigantescas. É o volume de produção de informação procedente das mais diversas fontes de informação (registos arqueológicos, inquéritos antropológicos, levantamentos gráficos e arquitetónicos, registos de fontes arquivísticas, …) e suportes (texto, imagem, vídeo, áudio) que atinge uma dimensão difícil de gerir e controlar, bem como de articular entre si, de modo a alcançar os objetivos propostos. Paralelamente, houve que equacionar o modo como toda a informação e conhecimento produzidos deveriam ser devidamente organizados e preservados para futuro num Sistema de Base de Dados devidamente integrado com o Sistema de Informação Geográfica (SIG/GIS), capaz de gerir, controlar e preservar a informação e conhecimento produzidos. Do mesmo modo, e uma vez que, quer em fase de Estudos Prévios, quer já em fase de RECAPE (Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução), todos os trabalhos de prospeção, identificação e inventariação dos elementos patrimoniais existentes 176  idem


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na área a afetar haviam sido realizados com critérios e metodologias de malha excessivamente larga, surgia agora como prioritária a execução de uma Prospeção Sistemática e Intensiva em Fase de Obra. Desde logo porque a execução da “prospecção Intensiva, durante a fase de construção, da totalidade da área afectada” constituía uma das Medida de Minimização dos Anexos da Declaração de Impacte Ambiental (DIA) do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor de 2004. Mas ainda, porque, apenas com a realização dos primeiros trabalhos não sistemáticos de prospecção pelas equipas do PSP em 2010, os 253 Elementos Patrimoniais identificados em RECAPE (2008) haviam rapidamente sido incrementados para cerca de 900 sítios, o que demonstrava sobejamente quanto o património do vale do Baixo Sabor se encontrava subavaliado. Foi assim concebido e implementado um plano de ação com a dimensão e os recursos necessários a que, num prazo de tempo que se apresentava manifestamente escasso, fosse possível realizar uma

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prospeção de malha apertada em cerca de 2500 ha de terreno acidentado, com difíceis acessibilidades e, na maior parte da área, coberto com densa vegetação177. O resultado obtido pelas equipas de prospeção alterou profundamente o conhecimento do património arqueológico, arquitetónico e etnográfico do vale, tendo multiplicado por 10 o número de Elementos Patrimoniais inventariados (2411 Elementos Patrimoniais à data de 30/10/2013).

177  Memória Descritiva. Prospecção Intensiva de Toda a Área de Afectação Durante a Fase de Construção do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor. 04.03.2011. AHBS/NTPSP.08.00, 25 p. + 4 ANEXOS.

7 - Situação em março de 2011: prévia ao Plano de Prospecção Sistemática e Intensiva


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8 - Situação em fevereiro de 2012: posterior à execução do Plano de Prospeção Sistemática e Intensiva

Outro importante desenvolvimento em fase de execução do Plano de Salvaguarda do Património (PSP) foi o da estruturação e organização autónoma de uma Área de Conservação, Laboratório e Arquivo de Espólio e Materiais, não prevista como tal na formulação original do Plano mas que, fruto das necessidades identificadas no decurso da experiência da sua operacionalização, viria a ser objecto de formalização em Adenda ao documento original do PSP178. Deverá ser do mesmo modo realçada a importância que a componente de reconstituição Paleo-ambiental tem vindo a assumir ao longo da execução do Plano de Salvaguarda do Património (PSP). Esta parece ser aliás a consequência lógica de um Estudo centrado num território e na sua longa diacronia. O Plano especificava

já o objetivo de um estudo especializado sobre os Terraços do Sabor e da Evolução Geomorfológica do Rio Sabor mas deixava outras dimensões deste tipo de aproximação numa formulação muito mais vaga. O concurso e colaboração de vários especialistas, laboratórios e unidades de investigação externas viriam a permitir concretizar o arranque de programas de estudo e analíticas especializadas não apenas sobre a dinâmica fluvial mas igualmente sobre a dinâmica de vertentes, a identificação dos recursos ambientais e da sua manipulação antrópica (paleobotânica, zooarqueologia, recursos minerais – nomeadamente os metais, pétreos e as argilas) assim como o estudo das populações humanas (antropologia física incluindo uma analítica bio-antropológica)179. Ensaia-se deste modo um esforço de reconstituição paleo-ambiental

178  Plano de Salvaguarda do Património, Adenda. Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção. 12.01.2012 e Revisão 1 do mesmo datada de 09.03.2012. AHBS/ADPSP.01.01.

179  Neste âmbito está a ser ultimado um protocolo de colaboração com o CIAS, Departamento de Ciências da Vida - Universidade de Coimbra


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global e multi-disciplinar180. O diálogo que tem vindo a ser implementado entre os diferentes investigadores e especialistas envolvidos, cruzando os sucessivos avanços obtidos no conhecimento, começa a permitir a problematização das dinâmicas da ocupação humana na longa diacronia do Baixo Sabor sobre uma base empírica e analítica de largo espetro. O aprofundar da reconstituição paleoambiental e o emergir da importância das dinâmicas e relações entre a zona do vale e os planaltos adjacentes está também a mostrar a urgência da abertura de uma área de amostragem nesta 180  Estão neste momento envolvidos investigadores, laboratórios e unidades de investigação como o CIBIO, Faculdade de Ciências – Universidade do Porto, Cegot, Faculdade de Letras - Universidade do Porto, UNIARQ – Universidade Nova de Lisboa, ITN – Universidade de Lisboa, Universidade do Minho, e Grupo de Tecnologia Mecânica y Arqueometalurgia - Universidade. Complutense, Madrid. Um indicador quantitativo da dimensão do esforço empreendido é, por exemplo, o do volume de sedimento arqueológico sujeito a flutuações para estudos astrobotânicosue se contabilizava à data de 30/10/2013 em 38 505 litros! No que respeita ao programa de datações absolutas através de radiocarbono estão envolvidos diversos laboratórios nos EUA e na Holanda, as datações TL estão a cargo do ITN – Universidade de Lisboa e Paleo-magnetismo da responsabilidade do GPM - Universiddad Complutense, Madrid.

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última zona do planalto uma vez que todo o processo de intervenção no âmbito do PSP se centra, quase em exclusivo, no fundo do vale, a área futuramente inundada pelas albufeiras.


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9 a 12 - Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). No topo de um esporão com amplo domínio visual, no local hoje conhecido por Castelinho, as escavações arqueológicas puseram a descoberto um sítio fortificado proto-histórico (Idade do Ferro). Já a ocupação humana dos períodos subsequentes, mesmo a romana, parece privilegiar as zonas de topografia mais baixa e de maior proximidade com o próprio Rio Sabor, no Cemitério dos Mouros e no Laranjal. Muito embora os vestígios da ocupação humana mais visíveis atualmente se prendam com construções tardias, diretamente relacionadas com o aproveitamento sazonal dos terrenos agrícolas ali existentes – edifícios de apoio agrícola, muros de socalco, muros apiários, poços de captação, levadas de água... – há neste pequeno lugar claras evidências de uma ocupação continuada no tempo, iniciada ainda na Pré-história Recente (c. 3000 aC). Bastante mais expressivas são as marcas deixadas durante a Idade do Ferro, o período romano e medieval até, praticamente, aos nossos dias. Cilhades manteve-se, até aos anos de 1980, como uma zona de passagem fluvial importante, servida por uma barca que garantia o acesso de pessoas e bens entre as duas margens do Rio Sabor. A importância desta passagem fluvial, documentado desde pelo menos a Época Moderna, é assinalável, observando-se este lugar destacado na cartografia portuguesa mais antiga, datada do século XVI, como Barca de Silhades. Esta embarcação só seria suplantada em 1982 pela construção, nas proximidades do local de travessia, de um pontão.


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13 a 16 - O sítio de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro) está localizado num meandro do Sabor onde o rio abre uma ampla bacia propiciadora da ocupação humana e de características semelhantes às de Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). Os estudos realizados nesta área revelaram uma ocupação humana intensa desde o Paleolítico, no sítio do Medal, passando pelo Calcolítico, Idade do Bronze, Idade do Ferro, período romano, Idade Média e a era Moderna, prolongada até hoje com a Quinta de Crestelos que estava ainda em exploração no início da intervenção no âmbito do PSP. O povoado da II Idade do Ferro revela um modelo pela primeira vez reconhecido na região em que um pequeno esporão fortificado, com várias linhas de muralha e fossos, se associa a uma extensa área habitacional aberta implantada no sopé da elevação. As principais construções de época romana e medieval (sécs. II-III a XIII) identificaram-se imediatamente a Oeste dos actuais edifícios da Quinta de Crestelos, prolongando-se por debaixo destes. Estas edificações de alvenaria, exibindo uma densa e complexa sequência construtiva, utilizaram diversas soluções arquitectónicas desde a casa de uma única divisão a casas de planta de pátio central. Conexas desta fase identificaram-se dois cemitérios com numerosos enterramentos. Regista a memória local na aldeia de Meirinhos que a Quinta de Crestelos era baldio da comunidade e apropriada pela família Távora, detentora de grande poder e influência na região, uma vez que foi entregue pela população àquela família apenas por três vidas, ou seja três gerações, em troca da construção da Capela de Santa Cruz, situada na aldeia, e da ponte de arco pleno que atravessa o ribeiro de São Pedro, ligando os termos de Meirinhos e de Valverde. A documentação arquivística e as fontes históricas entretanto identificadas no âmbito do PSP, estão a permitir reconstituir e entender melhor os pormenores da difícil e conflituosa relação mantida ao longo dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, desde que a família Távora se estabelece na região no final da Idade Média e é obrigada a contrariar a resistência das comunidades locais à construção do seu extenso domínio territorial.

17 e 18 - Sondagens nas pinturas parietais da capela da Santo Antão (Parada, Alfândega da Fé), localizada na margem oposta à Quinta de Crestelos, permitiram identificar três campanhas sucessivas sendo a primitiva, datada de meados do século XVIII, de uma enorme qualidade artística e valor patrimonial, provavelmente associada a uma encomenda da família Távora a um pintor da Corte ainda não identificado. A descoberta das pinturas no decurso da intervenção do PSP obrigou à reformulação do projeto inicial de salvaguarda que passou a incluir a trasladação integral das pinturas murais e o restauro de todo o recheio artístico.


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8. DESENVOLVIMENTO DE UMA METODOLOGIA ADEQUADA AO REGISTO E ESTUDO DO CONTINUUM MULTIDIMENSIONAL QUE É A PAISAGEM MAIS RECENTE E ACTUAL: O ESTUDO DO EDIFICADO.

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patrimoniais individualizados (EP) em «processos», «técnicas», «vivências», «práticas» ou «expressões» de nível superior. Verifique-se a especificação extraída do PSP182: «os levantamentos patrimoniais realizados no vale do Sabor durante o EIA e o RECAPE do empreendimento identificaram um número elevado de estruturas que se relacionam com a ocupação do território durante a Época Moderna e Contemporânea (...). Estes elementos patrimoniais contemplam habitações, estruturas da arquitetura de produção, caminhos, muros de propriedade, obras de contenção de terras e modelação do solo, obras de aproveitamento do rio e manifestações de religiosidade popular. Ainda que alguns destes elementos apresentem um valor próprio pela sua tipologia, expressão arquitetónica ou artística, singularidade ou caráter simbólico e social, a maioria deles só ganha expressão quando integrada no conjunto de testemunhos dos processos de assentamento, das técnicas construtivas, da vivência social, da prática económica ou da expressão simbólica das comunidades que ocuparam o vale do Sabor. «Neste sentido entende-se que é essa dimensão integrada de conjunto, no que diz respeito à integração histórica strito senso e formal (formas que tal património assumiu na dinâmica da ocupação histórica) que deve ser objeto deste estudo. De modo simplificado, diremos que o registo das manifestações da arquitetura tradicional e de todas as atividades desenvolvidas no vale do Sabor em época que cremos ser moderna e contemporânea, tem como principal objetivo um estudo que personificará a sua salvaguarda na memória futura. As visões de conjunto caminham a par com este registo».

stabelecendo o PSP uma estratégia de abordagem em que todos os estudos parcelares e ações a realizar deverão ser perspetivados de modo articulado e integrador, com o objetivo último de estudar na longa duração a construção de uma paisagem, a do Baixo Sabor, é talvez na investigação que o Plano de Salvaguarda designa como «estudo sobre os elementos edificados e construídos de caráter arqui­tetónico e etnográfico no Vale do Sabor» que se levantaram os maiores desafios no desenvolvimento de uma metodologia adequada aos objetivos apontados uma vez que aqueles mesmos elementos tem vindo a ser considerados de forma diversa noutras intervenções de Minimização de Impactos. Foi entendimento da coordenação da equipa em campo, em articulação com a tutela, que o objeto central do estudo proposto em PSP se foca sobre o que designaremos paisagem tradicional entendida como o momento de organização da paisagem imediatamente anterior às profundas roturas que no prazo de apenas meio século, entre 1950 e 2000, fariam reduzir o peso da população rural portuguesa de valores superiores a 50% para valores inferiores a 5%. Perspetivada na longa duração, a paisagem tradicional preenche o período que se estende entre a Idade Média Plena (século XI) e o auge da ocupação demográfica do espaço rural que acontece nas décadas de 1950 e 1960. A necessidade de compatibilizar a macro com a micro arquitetura, o registo do material com o registo das memórias e das representações dos habitantes181, perspetivando a paisagem e o território como um continuum, conduziu a reflexão metodológica à eleição do “prédio rústico” como a unidade de informação base nas tarefas de descrição e interpretação. Importa realçar o que na formulação do Plano de Salvaguarda surge como a «dimensão integrada de conjunto», bem como a necessidade de integração, expressa nesse documento, dos elementos

Para a execução dos objetivos propostos em PSP entendeu-se que a operacionalização no registo e no estudo da dimensão integrada de conjunto deveria assentar na consideração do cadastro como enformador das unidades funcionais (prédios rústicos) através das quais é possível integrar diversos elementos patrimoniais individuais (EP) que passam deste modo a relacionar-se no interior de uma unidade de paisagem. A integração é assim operacionalizada não apenas na extensão ou espaço, como igualmente no tempo e na História. Na verdade, cada uma daquelas unidades de paisagem: - é uma propriedade, quer dizer uma extensão sobre a qual se exercem direitos associados a determinados indivíduos ou famílias; os quais foram, ao longo do tempo e das sucessivas gerações, objeto de herança ou alienação; - é uma unidade de exploração agrícola, quer dizer um conjunto de recursos organizados de acordo com as tecnologias disponíveis de forma a garantir subsistência e rendimento que sofreram ao longo do tempo processos de maior ou menor intensificação ou de abandono; - é uma memória, quer dizer um lugar

181  As entrevistas e inquéritos de caráter antropológico junto dos habitantes do Baixo Sabor no período de 28/09/2009 a 25/09/2013 totalizaram 1067 inquéritos e entrevistas a 389 informantes tendo sido obtidas 938 h de registos áudio e/ou vídeo.

182  Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção, EDP, 2009, ponto 4.7. Estudo sobre elementos edificados e construídos de caráter etnográfico no Vale do Sabor.


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identificável pela comunidade por nome próprio (micro-topónimo) no qual se acumulam e ao qual se associam vivências e expressões que fazem parte da memória e da História da mesma comunidade. O passo seguinte neste processo de estudo da paisagem, que visa uma compreensão global da

ocupação deste território pelas gentes da época moderna e contemporânea, é o de uma integração de nível sucessivamente superior das unidades de paisagem de forma a dar conta do tecido contínuo e dinâmico que a paisagem do Vale do Sabor constitui.

19 e 20 - Foz da Ribeira de Zacarias: olgas espraiadas e muito férteis; concentração de quintas: Crestelos e Barrais; Quinta Branca; Quinta de São Gonçalo (Freguesia de Meirinhos- Mogadouro; Cerejais e Ferradosa - Alfândega da Fé). Levantamento Arquitetónico da Quinta Branca. Alçados do Núcleo Central.


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21 e 22 - Moinho do Freitas (entre Vilar Chão, Alfândega da Fé e Paradela, Mogadouro). Moinho de submersão, de caráter sazonal, constituindo o tipo de moagem mais comum no passado do curso do Baixo Sabor. A vontade e a persistência do seu proprietário e moleiro – Sr. António Freitas – mantinham ainda em funcionamento este moinho, até ao ano de 2011. Último descendente de uma família de moleiros, permitiu o registo vivo do fazer e saber fazer bem como da memória de várias gerações ligadas à utilização tradicional da força do rio como elemento essencial de uma paisagem de pão como foi a do vale e planaltos do Baixo Sabor.

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9. INVESTIGAÇÃO E QUE DESENVOLVIMENTO?

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róximos do momento da conclusão do processo enunciado no Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroelétrico do Baixo Sabor - que se completará com a publicação e difusão da síntese do conhecimento produzido, já prevista sob a forma de uma colecção de Monografias correspondentes a cada um dos Estudos desenvolvidos – deverá ser-nos permitido traçar um esboço de balanço do que de mais positivo e, paralelamente também, de mais negativo, resultou desta experiência e projecto.

Negativo

Positivo

Escasso conhecimento prévio dos valores patrimoniais em presença no Baixo Sabor

Descobertas inesperadas e produção de conhecimento arqueológico e histórico com contributos excecionais e novos paradigmas

Dificuldades e atrasos ocasionados pelos processos burocráticos de expropriação ou de abate de árvores Dificuldade e atrasos na mobilização de recursos humanos e materiais

Alargada concentração de recursos técnicos e científicos que transformou o PSP do AHBS num dos maiores projetos arqueológicos realizados em Portugal

Escassos indicadores à superfície do solo com a ocultação dos níveis arqueológicos sob espessos depósitos de fundo de vertente ou nos terraços do rio; forte ação destrutiva dos níveis arqueológicos pela dinâmica do rio

Necessidade muitas vezes de um diálogo musculado entre as partes e interesses envolvidos: Dono de Obra, Empreiteiro Geral, Investigadores e Tutela

Inexistência de um Plano de Comunicação ao longo da execução do projecto Atraso na definição e elaboração de uma Estratégia e Plano de Valorização e Difusão Futura

Compatibilização entre uma obra de construção civil de grande complexidade e um projecto de estudo e salvaguarda patrimonial muito ambicioso num contexto de prazos muito apertados

Empenho e metodologia de proximidade na ação dos organismos e técnicos da Tutela do Património

Experiência acumulada de redefinição de objetos de atuação, desenvolvimento de metodologias mais adequadas de registo e estudo e de instrumentos de gestão


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23e 24 – Dinâmica e iniciativas do grupo informal Aldeia Viva*. O envolvimento e a proximidade de elementos das equipas do PSP com as comunidades locais potenciou uma sequência de iniciativas conjuntas, que tiveram origem e continuam a ter lugar de forma paralela e autónoma ao processo institucionalizado de Minimização de Impactos, mas que criaram seguramente raízes para futuro. *As actividades do grupo Aldeia Viva podem ser acedidas através dos seguintes links: http://grupoaldeiaviva.wix.com/aldeiaviva; https://www.facebook. com/aldeia.viva.5?ref=tn_tnmn; http://www.flickr.com/photos/97386232@N03/"


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Por último, quatro do que penso deverem ser princípios estratégicos de um desenvolvimento regional futuro potenciado pelos valores patrimoniais identificados e estudados no âmbito do Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor. 1. A participação e envolvimento das comunidades e dos decisores locais é a chave da sustentabilidade de qualquer projecto local. 2. Mais do que criar novas estruturas importa requalificar estruturas já existentes na região e promover redes e parcerias. 3. Os valores patrimoniais em presença sustentam absolutamente uma ambição muito elevada nos futuros projectos a implementar. 4. Não é possível fazer valorização e educação patrimonial de qualidade sem um continuado suporte em investigação e produção de conhecimento sobre esse mesmo património. A futura investigação e produção de conhecimento sobre o património do Baixo Sabor deverá promover uma estratégia regional de investigação prosseguindo e potencializando as problemáticas abertas e a articulação com linhas de acção complementares do projecto de investigação desenvolvido no âmbito do PSP do AHBS, procurando contrariar a tendência sempre mais comum de “começar tudo de novo a cada vez”. Neste sentido, será importante identificar uma Rede regional de sítios arqueológicos e patrimoniais prioritários e de elevado potencial bem como promover a criação de uma linha editorial devotada à difusão de qualidade dos resultados da investigação. A conclusão e o encerrar do Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor, com um balanço que, neste momento, só pode ser considerado positivo, deverá constituir um novo desafio, em particular para os técnicos envolvidos neste tipo de processos de Minimização de Impactos de Obra. Aqui chegados, importa agora, em futuros empreendimentos, fazer a Regra do que se condescendeu aceitar, a mais das vezes, como uma Excepção irrepetível.

BIBLIOGRAFIA Declaração de Impacte Ambiental (DIA) do AHBS (2004) - Diário da República, II Série, N.º 233 — 2 de Outubro de 2004 [4719 – 14726]. Disponível em <http://www.ambs.pt/index.php/documentos/ category/5-decaracao-de-impacto-ambiental>. [Consulta realizada em 3/02/ 2014]. FERREIRA, David; DORDIO, Paulo; LIMA, Alexandra Cerveira (2013) – Paisagem Como Fonte Histórica. Velhos e Novos Mundos. Estudos de Arqueologia Moderna. Lisboa: CHAM – FCSH/NovaUAC. Memória Descritiva. Prospecção Intensiva de Toda a Área de Afectação Durante a Fase de Construção do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor. (2011.04.03) AHBS/NTPSP.08.00, 25 p. + 4 ANEXOS. (policopiado). Plano de Salvaguarda do Património, (Adenda). Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção. (2012.01.12) e Revisão 1 do mesmo datada de (2012.03.09) AHBS/ ADPSP.01.01. (policopiado). Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção (2009). EDP. (policopiado).


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De vino ac vineas viticultura romana no Vale do Douro texto: Pedro Pereira (UMR 5138 Archéologie et Archeonometrie (CNRS) e do CITCEM-FLUP (FCT)

Resumo No século Iº a.C., Estrabão escreve uma das primeiras obras conhecidas, a Geografia, em que a Lusitânia é referida. No primeiro parágrafo do terceiro capítulo do terceiro livro, descreve os povos do Norte da Lusitânia enquanto consumidores de zithos, um tipo de cerveja, “(...) mas são escassos de vinho, e o vinho que teem bebem-no rapidamente em festas de casamento com seus familiares.”. A Arqueologia, pelo seu lado, tem vindo a comprovar este mesmo consumo, pelo menos entre elites, na bacia do Douro pelo menos desde o século IIº a.C. Todavia, a massificação de consumo e produção de vinho serão fruto do processo de romanização, empreendido a partir do século I a.C. e que consta da triologia de produção romana, a passo com as produções cerealífera e oleícola. A vinicultura romana é desde muito cedo associada ao Douro na historiografia tradicional do século XIX, mas será apenas em meados do século XX que será comprovada a sua antiguidade na região, com as escavações do Alto da Fonte do Milho. Este será um momento fundamental para a história do vinho no Douro e a partir do qual a Arqueologia do Vinho no Douro nasce. Palavras chave: vinho; Douro; romanização

Abstract Strabo, on the Ist century B.C., writes one of the fisrt known works on Lusitania, Geographia. On the first paragraph of the third chapter of the third book, he describes the people of Lusitania as drinkers of zithos, a type of beer, “(…) they are short of wine, and when they have it, they drink it hastily during weddings with their kin.”. On the other hand, Archaeology has proved this consumption, at least among the elites, around the Douro basin at least since the IInd century BC. However, the increase of consumption and production of wine will be a reality only during the Romanization of the area. Starting mostly around the Ist century BC, it’s part of the roman production classic trilogy, along with the cereal and olive oil productions. Early on the traditional XIXth century historiography, roman wine production has been associated the Douro Valley. Yet, it will only be during the XXth century, that this will be proven, with the excavation of the Alto da Fonte do Milho. It is an important moment for the history of wine in the Douro region and it’s when the Archaeology of Wine is born in the region. Keywords: wine; Douro; Romanization


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Pedro Pereira

Em 1947, Fernando de Russel Cortez chega à estação de caminhos-de-ferro de Peso da Régua com uma bolsa do Instituto do Vinho do Porto para realizar uma prospecção arqueológica no Vale do Douro. Um dos seus objectivos é deveras específico: o de comprovar a antiguidade do vinho na região. Seguir-se-ão vários anos de escavação no que virá a ser conhecida como a primeira estação arqueológica de cronologia clássica com produção de vinho descoberta em território português, o Alto da Fonte do Milho (Canelas). Em 2007 realizamos um trabalho de mestrado sobre a produção romana de vinho no Vale do Douro, no qual abordamos todos os sítios arqueológicos com produção e vestígios de consumo de vinho durante a época romana. Em seguimento a este trabalho, estamos a realizar um doutoramento sobre tecnologia e economia vinícola na Lusitânia. No decurso destes dois trabalhos académicos, realizamos centenas de prospecções, sondagens, escavações e estudos de ma-

1 - Lagar do Alto da Fonte do Milho (Pedro Pereira, a partir de F.R. Cortez, 1947).

teriais e de sítios arqueológicos intervencionados anteriormente. Durante a sistematização do nosso estudo, estabelecemos sete conjuntos de elementos que se revelam essenciais para compreender o papel que o vinho joga no processo de aculturação que normalmente chamamos de romanização e na economia regional. Em primeiro plano, o estudo das estruturas produtivas, tanto as estruturas de exploração agrícola de maiores dimensões, como as villae, tanto como as estruturas menos importantes, como os casais rústicos, e as estruturas de produção de elementos de armazenamento e transporte, normalmente associados ou estabelecidos a curta distância das estruturas de produção de vinho. Estes três tipos de sítios, muitas vezes concomitantes, permitem-nos elaborar sobre como, onde e quando é que o vinho era produzido e, muitas vezes, compreender o seu destino final. Em segundo plano, o estudo dos elementos utilizados para a plantação e tratamento da


De vino ac vineas

vinha, dos elementos utilizados para a produção de vinho e dos elementos utilizados para o armazenamento e transporte de vinho, permitem-nos compreender a cadeia operatória de produção neste período e, em conjunto com elementos variados, relacionados com a vida quotidiana e/ou de carácter religioso, permitem-nos não só compreender como e quando se desenvolve a viti-vinicultura no período romano nesta região mas também como é que esta actividade, com uma matriz cultural tão forte, se implanta e floresce. Num total de 19 sítios romanos com actividade vinícola comprovada conhecidos na Lusitânia, seis encontram-se na zona do Vale do Douro. Destes seis, apresentaremos quatro dos mais representativos e dois outros sítios, a Norte, na Hispania Tarraconensis, mas ainda na zona do Douro. O sítio do Alto da Fonte do Milho, o primeiro a ser descoberto ainda na década de 30 do século passado183, consiste num provável povoado proto-histórico ou castro, assimilado algures durante o século IIº da nossa Era numa estrutura de exploração rural. Nesse momento, o ponto mais alto do castro é totalmente

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transformado e é construída uma série de estruturas de apoio, típicas de uma villa, aproveitando o terreno acidentado do Douro enquanto possível. Aqui é estabelecido um lagar e construída uma cella vinaria de estrutura rectangular, embora durante as primeiras escavações R. Cortez apenas tenha, aparentemente, identificado o primeiro. O lagar do Alto da Fonte do Milho consistiria numa estrutura simples, de contrapeso ancorado na parede do edifício (arbol). A viga exercia pressão sobre uma estrutura de madeira que, por sua vez, faria com que as uvas, que estariam dentro de sacos de fibra vegetal ou fiscinae, libertassem o seu sumo. A fermentação seria realizada directamente no interior dos dolia, recipientes cerâmicos de grandes dimensões revestidos com pez, na cella vinaria. O sítio do Prazo (Freixo de Numão) foi intervencionado entre as décadas de 80 e 90 do século XX. No decurso desse trabalho, foi identificado um território utilizado enquanto habitat humano durante pelo me-

183  TEIXEIRA, 1939.

2 - Prazo (ACDR de Freixo de Numão).


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Pedro Pereira

piso elevado em opus signinum, aparentam ser parte de um lagar. Da mesma forma, a própria orientação e forma do edifício são similares a outras cellae vinariae presentes na Lusitânia, como Torre de Palma (Monforte) ou Vale do Mouro (Coriscada). Da mesma forma, nos níveis relativos à cronologia romana, foi descoberta uma grande quantidade de dolia recobertos com pez. Foi também descoberto um bloco deste material, associado a uma lareira.

3 - Rumansil I (Pedro Pereira, a partir de T. Silvino, 2003).

nos 8000 anos. No período tempo cronológico relativo à época romana, foram identificadas uma série de estruturas que aparentam corresponder, pelo menos parcialmente, à pars urbana, ou casa senhorial, de uma villa. Entre outras, aparenta ter especial interesse um edifício rectangular, re-ocupado durante a Alta Idade Média e onde foram encontrados três tanques, parcialmente destruídos. Estas estruturas, associadas a um

O sítio de Rumansil I (Murça do Douro), à primeira vista, aparenta ser um casal rústico de pequenas dimensões. Todavia, a identificação do sítio de Rumansil II, entretanto destruído, aparenta ilustrar a funcionalidade deste complexo artesanal como uma fracção da pars rustica de uma villa, da qual o Prazo faria parte enquanto pars urbana. Uma explicação que poderemos apresentar para a presença de duas cella vinarias numa única villa pode prender-se com os terrenos difíceis onde Rumansil I se implanta e a distância entre os dois núcleos. Ao mesmo tempo, a proximidade de Rumansil I ao rio Douro facilitaria certamente um escoamento da produção.

4 - Calcatorium, lacus e lacus musti de Vale do Mouro (Pedro Pereira).


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Para além de uma cella vinaria extremamente completa e num estado de conservação excepcional, com uma série cinco de tanques escavados directamente sobre um rochedo e cobertos com opus signinum, o sitio de Rumansil I possui também dois fornos de produção cerâmica, um dos quais de produção de dolia. As formas detectadas em Rumansil I aparentam ter todas sido utilizadas para o armazenamento de vinho184. O sítio de Vale do Mouro (Coriscada) é, até ao momento, a villa de maiores dimensões conhecida no Douro português. Com uma área intrevencionada ligeiramente superior a 5.000 m2 e com uma dispersão de materiais superior a 12.000 m2, esta villa tem também o lagar romano de vinho em melhor estado de conservação presente na região duriense. Composto por uma área de prensagem e três tanques, o lagar é completado por uma cella vinaria com uma dimensão superior a cerca de 150 m2. A produção de vinho aparenta iniciar-se durante o século II da nossa Era, período, aliás, do estabelecimento da planta em peristilo que podemos observar ainda hoje em dia, uma evolução da planta linear original. Nesse momento e com os dados que possuímos, pensamos que a produção era exclusivamente armazenada em tonéis, que não deixaram vestígios no registo arqueológico. Num segundo momento da produção, a partir do século IV e a par de alterações arquitectónicas na villa, aparentemente assistimos a uma alteração de paradigma, com a utilização de dolia vinários em zonas que, anteriormente, teriam funções distintas, facto bem patente na pars urbana, mas não só. O sítio de Olival dos Telhões (Almendra), intervencionado na década de 1990 constitui outro exemplo de uma exploração rural romana no Douro. Situado numa zona de planície, entre o Douro e o Côa, a intervenção realizada neste sítio permitiu identificar um lagar romano de vinho. Infelizmente, a fraca potência estatigráfica e o facto de estarmos numa zona arada com frequência não permite identificar exactamente como se desenvolveria a estrutura, tendo-se descoberto apenas o lacus, calcatorium e zona de implantação do praelum. Para além das estruturas de exploração agrícola de médias e grandes dimensões existem outras, muito menos visíveis tanto ao nível do espólio como das 184  MAZZA et SILVINO, 2003.

5 - Lagar escavado na rocha III de Pegarinhos (Pedro Pereira).

estruturas. Os elementos mais visíveis que temos destes casais são os lagares escavados na rocha. Todavia, a própria morfologia do terreno do Douro é tacitamente propícia à implantação de estruturas de menores dimensões e ao que aparentam ser minifundia. Assim, os lagares escavados na rocha, enquanto forma simples de garantir a produção de vinho em zonas de difícil acesso, mas também de garantir a construção a valores inferiores aos de um lagar em maçonaria, perduram até aos nossos dias, sendo na maioria dos casos muito complicado atribuir-lhes datações precisas. Todavia, é possível compreender como é que são utilizados e desenvolvemos uma tipologia simplificada que, em 11 variantes, permite-nos identificar o esquema produtivo, necessidades específicas e, em alguns casos, excluir determinadas datações e utilizações, como as produções de azeite ou mel, entre as cerca de duas centenas de lagares escavados na rocha conhecidos no Vale do Douro. Chegamos assim aos elementos de armazenamento e transporte, que se caracterizam entre cerâmicos e perecíveis. A forma cerâmica mais facilmente associada ao vinho durante a época romana é a ânfora. Todavia, a sua existência na zona do Douro é relativamente escassa e encontra-se normalmente associada ao transporte e armazenamento de produtos, entre os quais podemos contar com o vinho, exógenos à região. Da mesma forma, não são conhecidos ateliers cerâmicos de produção na região e, entre as formas produzidas na Lusitânia, apenas uma é associável ao transporte de vinho, embora apenas devido à sua morfologia formal185. 185

Aqui referimo-nos naturalmente à ânfora de tipo Lusitana 3, cujo


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Pedro Pereira

A segunda forma cerâmica é o dolium. Infelizmente, o estudo destes recipientes foi remetido para segundo plano durante muito tempo, sendo que apenas recentemente se têm vindo a realizar estudos mais abrangentes sobre este tipo de forma cerâmica. Ao mesmo tempo, a dimensão e forma desta tipologia permitiria, quando cheios, uma deslocação que podemos classificar como muito reduzida. Nos últimos anos temo-nos dedicado ao estudo e à identificação deste tipo de recipientes em várias estações arqueológicas de período romano na Lusitânia, sendo que estabelecemos uma tipologia de dolia vinários, dos quais pelo menos os cinco primeiros tipos, de sete, eram produzidos no Vale do Douro. A possibilidade que levantamos de que dolia poderão ter sido transportados no Vale do Douro186 parece comprovar uma deslocação, ainda que reduzida, deste tipo de forma cerâmica de armazenamento. Assim, e embora o registo arqueológico não nos permita vislumbrar recipientes de vinho de formas perecíveis no Douro, a iconografia, com as cupae, estátuas funerárias em forma de tonéis, e a etnografia, com os odres, associados ao transporte de líquidos em terrenos acidentados, à inexistência de outros tipos de recipientes nos sítios arqueológicos de produção e de consumo de vinho e às fontes clássicas permitem-nos pelo menos colocar a hipótese de que estes tipos de recipientes tenham sido utilizados, sobretudo a partir da segunda metade século IIº da nossa Era, quando a própria importação de ânforas vinárias para a bacia do Douro apresenta uma forte queda. Ao mesmo tempo, a comparação das cupae em pedra, monumentos funerários romanos que se encontram em toda a faixa Sul da Península Ibérica, com tonéis do mesmo período descobertos na Europa do Norte e Central, revela-nos uma série de similitudes, sobretudo ao nível das tipologias formais e volumes. Assim, todas as cupae conhecidas em território nacional inserem-se perfeitamente as cinco tipologias detectadas por Elise Marlière na sua tese doutoral187. No Vale do Douro, e embora apenas se conheça um exemplar deste tipo188, pensamos que a utilização de cupae

6 - Rochedo afeiçoado para poderem ser enconstados dolia, Rumansil I (A. Sá Coixão, 2000).

e de odres poderá ter sido extensiva para o transporte e o armazenamento de vinho na época romana. Este facto deve-se à parca existência de recipientes de tipo anfórico utilisáveis para vinho de produção regional e a uma fraca densidade de dolia que, quando existem em quantidades suficientes para o abastecimento da estrutura de exploração agrícola onde se encontram, como sucede em Rumansil I (Murça do Douro), não aparentam ser utilisáveis, pelo menos em larga escala, para o transporte de vinho. O estudo dos elementos associados à agricultura da vinha, à produção de vinho e, sobretudo, à cultura do vinho no período romano constituem outra das vertentes que consideramos essenciais para compreender não só o esquema produtivo mas também como é que a cultura do vinho inicia a sua progressão na malha social e na psique duriense. Existem dados que suportam a existência de um consumo, ainda que apenas por elites, de vinho no Douro, como é o caso do sítio de Pintia. Em contexto funerário, análises cromatográficas a várias peças

perfil ovalado a classifica como candidata ideal ao armazenamento de vinho. 186  PEREIRA, 2012. 187  MARLIÈRE, 2000. 188  FAUVRELLE, 2001.

7 - Cupa de Trevões (N. Fauvrelle, 2003).


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BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, C.A.B. (2006) – História do Douro e do Vinho do Porto - Volume I - História Antiga da Região Duriense. Porto: Afrontamento. FERNANDES, A. A. (1968) – Paróquias Suevas e Dioceses Visigóticas. Viana do Castelo. GUIMARÃES, F.G. (1984) – O Castelo de Gaia propostas para um estudo actual. Livro do Congresso, Segundo Congresso sobre Monumentos Militares Portugueses. Lisboa. COIXÃO, A. N.S., MAZZA G. et SILVINO, T. (2003) – Os fornos de cerâmica de Rumansil I (Murça do Douro, Vila Nova de Foz Côa). Coavisão, n.º 5. Vila Nova de Foz Côa. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de doutoramento. 8 - Mosaico representando o triunfo de Baco, Vale do Mouro (Pedro Pereira).

recuperadas de vários túmulos189 escavados na zona revelaram consumo de vinho a partir do século II a.C. Todavia, será apenas com o apogeu da incursão de Decimus Junius Brutus em 138 a.C. e com as campanhas cantábricas, levadas a cabo por Augusto no final do século II a.C. que a integração do território onde se insere o Vale do Douro no território administrativo imperial e a subsequente aculturação romana será mais evidente. A cultura do vinho é retratada extensivamente na iconografia peninsular durante o período romano, não sendo a região de fronteira a que corresponde o vale do Douro uma exceção. Desde representações de cenas agrícolas até à iconografia de teor religioso, como o comprova o mosaico do triunfo báquico de Vale do Mouro, o vinho e a vinha surgem representados na vida quotidiana das populações locais desde pelo menos o século II d.C., marcando a vida dos durienses até aos nossos dias.

189  MÍNGUEZ, C. S., CARNICERO, F. R., GAÑÁN, C. G. et DE PABLO MARTÍNEZ, R., 2009; MÍNGUEZ, C. S., CARNICERO, F. R. et GAÑÁN, C. G., 2010.

MINGUEZ, C. S., CARNICERO, F. R. et GAÑAN, C. G. (2010) – El vino en Pintia: nuevos datos y lecturas In Ritos y Mitos (MOTOZA, F. B. ed.) In VIº Simposio sobre Celtiberos. Fundación Segeda – Centro de Estudios Celtibéricos. PEREIRA, P. (2007) - A produção de vinho no Vale do Douro durante a Romanização. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Seminário de Projecto do Curso de Arqueologia. PEREIRA, P. (2008) - Economie et Production du vin dans la vallée du Douro (Portugal) dans l’Antiquité tardive. Mémoire de Master II Recherche. Lyon : Maison de l’Orient et de la Méditerranée. (Policopiado) PEREIRA, P. (2012) - Materiais esquecidos - o espólio cerâmico de armazenamento (dolia) do Alto da Fonte do Milho, Peso da Régua. Almadan. 17. Tomo 1. Almada. PEREIRA, P. (2013) - Uma história de dolia – uma primeira análise aos recipientes cerâmicos de armazenagem de Vale do Mouro (Coriscada, Meda). Porto: CEM 3, CITCEM.


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Pedro Pereira

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1980/2013 33 Anos de investigação arqueológica nos concelhos de Vila Nova de Foz Côa e Meda texto: António do Nascimento Sá Coixão / Museu da Casa Grande (sacoixao@hotmail.com)

Resumo A partir do ano de 1980, o autor deste artigo iniciou a investigação arqueológica na área do concelho de Foz Côa. Os dois primeiros sítios a serem intervencionados foram a villa Romana do Prazo e o Complexo Industrial Romano do Rumansil I. Seguiram-se intervenções nas Villae Romanas do Salgueiro e Zimbro II, bem como trabalhos de prospeção e inventário de sítios e todo o concelho, culminando com a publicação da Carta Arqueológica (já com duas duas edições). Em 1996, é inaugurado o Museu de Arqueologia da Casa Grande em Freixo de Numão. No ano de 2003, o autor inicia trabalhos arqueológicos no concelho de Mêda, com escavações no vicus Romano de Vale do Mouro, Castro de S. Jurge e Templo de Marialva. Em paralelo, procede a trabalhos de prospeção que culmina com a publicação da Carta Arqueológica do Concelho de Meda, em 2009. Palavras-chave: Arqueologia, Douro, Vila Nova de Foz Côa, Meda

Abstract Since 1980, the author has started a series of projects in the area of Foz Côa. The two first sites to be excavated were the roman villa of Prazo and the roman industrial complex of Rumansil I. The dig of the roman villae of Salgueiro and Zimbro II soon followed, as well as surveying and the inventory of other sites throughout Vila Nova de Foz Côa, which would later be published in the local Carta Arqueológica (already on its second edition). In 1996 the Casa Grande Archaeological Museum was inaugurated in Freixo de Numão. In 2003 started a project in the Mêda region, with the dig of the roman site of Vale do Mouro, the Castro de S. Jurge and the Templo de Marialva. The surveys he made in the region were published in the local Carta Arqueológica in 2009. Key-words: Archaelogy – Douro – Vila Nova de Foz Côa – Meda


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António Sá Coixão

OS 33 ANOS DE INVESTIGAÇÃO

N

o ano de 1980, mais precisamente a 19 de maio, é celebrada a escritura pública da “Associação Cultural Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão” (mais conhecida por ACDR). Dão-lhe corpo um grupo de jovens que tinha como propósitos a defesa e divulgação do património Cultural e como mote “Em busca de uma identidade”. Nesse verão iniciam-se trabalhos arqueológicos com duas sondagens no sítio do Prazo. Nos anos seguintes, durante toda a década, foram intervencionados os sítios arqueológicos do Rumansil I, Zimbro II, Salgueiro, Quintal da Casa Grande. Já na década de 90, após aquisição dos terrenos do PRAZO (cerca de 4 hectares) foram organizadas várias campanhas de escavação, com uma equipa na área do Romano, tendo como responsável o autor deste artigo e, na área da pré-história, o professor da Faculdade de Letras do Porto, Dr. Sérgio Rodrigues. Foram ainda intervencionados os sítios da Mutatio das Regadas e

1 - Planta geral das escavações arqueológicas do sítio do Prazo (Freixo de Numão – Foz Côa)

Colodreira/Escorna Bois, todos no termo da Vila de Freixo de Numão. Já nos finais da década de 80 (mais precisamente no ano de 1989) iniciaram-se trabalhos de investigação no sitio pré-histórico do Castelo Velho de Freixo de Numão, sob a orientação da Professora da Faculdade de Letras do Porto, Professora Doutora Suzana Oliveira Jorge, trabalhos esses que se prolongaram por mais de uma década, com participação de estudantes de universidades espanholas e inglesas. O sítio foi adquirido pelo IPPAR que executou um projeto de musealização. Graças à disponibilidade de verbas comunitárias (do II QCA), foram entregues candidaturas na CCRN, tendo em vista a musealização de diversos sítios arqueológicos na área geográfica da Vila de Freixo de Numão, tendo-se salvaguardado e tornado visitáveis os sítios que viriam a integrar o “ Circuito Turístico-Arqueológico de Freixo de Numão”. De todos, o mais emblemático continua a ser o sítio arqueológico do Prazo, onde foram registados níveis e materiais de vários períodos da pré-história: Paleolítico, Mesolítico, Neolítico, Calcolítico e Bronze (este, já na fase final), uma importante villa Romana com três fases de ocupação, uma basílica paleocristã com ocupação até ao século XIII, bem como vestígios de ocupação dessa fase tardo-romana e, ou, alto medieva. No sítio do Salgueiro, iniciou-se o estudo de uma villa Romana associada à exploração de uma pedreira de aplito (rocha granítica esbranquiçada e mole, fazendo lembrar a chamada pedra “de Ançã”). Essa pedreira teve exploração desde o período romano até pelo menos o século XVIII. Fachadas de edifícios, brasões, colunatas, essencialmente associadas ao barroco, têm como matéria-prima o “Aplito do Salgueiro”. Emblemático, no aspeto arqueo-industrial, o sítio romano do Rumansil I. Ali cavando as rochas, os homens deram corpo a um lagar de vinho, ao respetivo pio de receção, ao calcatorium, ao armazém de vinhos, com concavidades nas paredes laterais de rochedos, onde a pança dos dolia encostava e fermentava debaixo de tampas de xisto e em vasilhas com paredes interiores revestidas a pêz. A recolha de uma provadeira em bronze poderá colocar-nos perante a hipótese de, nos séculos III/IV d.C., já se ter armazenado vinho naquele local, em pequenas pipas de madeira. Através da peneiração, e posterior trabalho de flutuação de carvões e terra carbonizada, foi possível recolher duas dúzias de grainhas de uva.


30 anos de investigação arqueológica

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2 - Planta geral das escavações arqueológicas do sítio do Vale do Mouro (Coriscada – Mêda) até ao ano de 2012


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3 - Foto geral das estruturas postas a descoberto no sítio arqueológico do Prazo

Poderá falar-se na existência de um “complexo industrial”, porque no conjunto dos edifícios, apenas um compartimento poderá ter sido utilizado como “habitáculo”. Os restantes apresentam ou forno de fundição de chumbo, forjas de trabalho de ferro, trabalhos de canteiro, fabrico e armazenamento de vinhos, dois for-

4 - Lagar Romano e outras estruturas do sítio arqueológico do Rumansil I

nos de cozer cerâmica (a maior para cozedura de dolia, o mais pequeno para cozedura de pondus e cerâmicas finas (vermelhas ou cinzentas). Milhares de fragmentos cerâmicos foram exumados na área exterior dos citados fornos. De realçar que a flutuação de algumas cinzas e terra carbonizadas, proveniente destes fornos, apresentavam a existência de grainhas de uva! Certamente que o denominado bagaço das uvas terão servido para combustível dos mesmos, a par da urze. Com os trabalhos de prospeção foi possível fazer um inventário quase exaustivo de sítios arqueológicos, da pré-história, à história, salientando-se um levado número de lagaretas cavadas na rocha (a maioria em rocha granítica). Na área do concelho de Mêda, já Adriano Vasco Rodrigues, na sua obra Por Terras da Meda, havia referenciado a existência de duas ou três dezenas de lagaretas nos termos das freguesias de Marialva, Longroiva e Mêda. Dentro da problemática de localização da ainda


30 anos de investigação arqueológica

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5 - Fornos de cozer cerâmica postos a descoberto no sítio arqueológico do Rumansil I

não descoberta cidade romana de Meidobriga, o investigador Professor Jorge d’ Alarcão inclina-se para a atual freguesia de Numão, onde foram inventariadas algumas epígrafes, essencialmente rupestres. Na área do concelho de Mêda salienta-se a investigação já efetuada no Vicus de Sangoabonia, atualmente denominado de “sítio do Vale de Mouro”, termo da freguesia de Coriscada. Desde o ano de 2003 que uma equipa Luso-Francesa (com arqueólogos de Lyon), vem investigando cerca de 3 hectares de terreno. Foi posta a descoberto uma casa senhorial (villa propiamente dita) com as termas, as salas com pavimento em mosaico policromo, onde se salienta o Painel de Baco, o Triclinium, igualmente com pavimento em mosaico, o lagar de vinho e o correspondente armazém, salas com pavimento em opus signinum, lareiras, braseiros (localizados ao centro das salas), entre outros. Na zona envolvente, um conjunto significativo de edifícios, onde a presença de um grande celeiro, de fornos de fundição e forjas, de áreas funcionais asso-

ciadas à tecelagem e à moagem nos levam a considerar estarmos perante edifícios que pertenciam a homens-livres, pertencentes ao vicus. Na área dos fornos de fundição, foi exumado um

6 - Mosaico Romano policromado, denominado “Painel de Baco”, posto a descoberto no sítio do Vale do Mouro


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7 - Tesouro Monetário de 4600 moedas datadas de finais do seculo III e inícios do seculo V d.C., associado a artefactos de ferro, exumado no sítio arqueológico do Vale do Mouro no ano de 2007

tesouro de 4600 moedas datado entre finais do século III d.C. e inícios do século V d.C., juntamente com alguns artefactos em ferro. Na zona da Devesa (Marialva) registamos a existência, no interior de um imóvel, da base de um templo (podium) dedicado a Júpiter. Também uma ação de limpeza no local denominado de LAGO permitiu-nos o registo de uma imponente barragem romana. No termo da aldeia de Ranhados, junto à barragem do Rio Torto, temos estudado um castro romanizado, denominado “Castro de S. Jurge”. Vestígios da Idade do Bronze, das 1.ª e 2.ª Idades do Ferro, ocupação romana (de pelo menos desde 35/36 a.C) e ainda uma ocupação medieval, para já presente através de ruínas de uma pequena igreja dedicada a S. Jurge e de dois enterramentos no seu adro. A arte rupestre, através da representação de cerca de 1.000 fossetes ou covinhas, serpentiformes, podomorfos e outras figuras, está presente em mais de 80

rochas e, ou, estelas, já inventariadas. Nas áreas dos concelhos de Foz Côa e Mêda, as várias epígrafes dedicadas a Júpiter (IOVI) levam-nos a justificar a forte ocupação romana nesta zona do Douro: certamente a existência de um grande potencial mineiro, através da exploração de metais como o ouro (quartzítico ou de aluvião), do chumbo, do estanho e do ferro. Recentemente, no interior da igreja de Longroiva, embutida numa das paredes, foi registada uma epígrafe, onde se faz referência à divindade PLUMBVS, certamente associada à exploração do chumbo, ali bem perto, na zona dos Areais. Foi já feito pelo autor, um ensaio da rede viária no tempo dos romanos, nas áreas destes dois concelhos, salientando-se a existência de grandes vias com traçado de Sul para Norte (ou vice-versa), todas elas atravessando o rio Douro. Igualmente com orientação Este-Oeste, temos um conjunto de vias secundárias que cortam o rio Côa em


30 anos de investigação arqueológica

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8 - Um dos 80 painéis com arte rupestre inventariada no Castro de S. Jurge (Ranhados – Mêda) – rocha que denominámos de “Fraga Formosa”

ambas as margens. Um conjunto significativo de vias cruza a civitas Aravorum (atual Marialva). BIBLIOGRAFIA ALARCÃO, Jorge de (1988) – Roman Portugal. Gazetter. Warminster: Aris e Phillips Ltd., vol. 2. COIXÃO, António N. Sá (2009) - Carta Arqueológica do Concelho de Meda. Mêda: Câmara Municipal de Meda. COIXÃO, António N. Sá (1999) - Rituais e Cultos da Morte na Região de Entre Douro e Côa. Freixo de Numão: ACDR de Freixo de Numão.

COIXÃO, António N. Sá (2000) - A Ocupação Humana na Pré-História Recente, na Região de Entre Côa e Távora. Freixo de Numão: ACDR de Freixo de Numão/Museu da Casa Grande. RODRIGUES, Adriano Vasco (1983) – Natureza, Cultura e Património, 1.ª ed. Mêda: Câmara Municipal de Meda. RODRIGUES, Adriano Vasco (1961) – Necrópole da Civitas Aravorum. Marialva (Meda). «Revista Lucerna». Porto, n.º 1 (I-II), p. 22-28.


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Painel 3

HISTÓRIA NO/DO DOURO Carla Sequeira Manuela Vaquero Gaspar Martins Pereira Otília Lage


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A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense (1926-1949) texto: Carla Sequeira - Investigadora do CITCEM. Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT (carla.m.sequeira@sapo.pt)

Resumo: Reflexão sobre a Oposição desenvolvida na Região Duriense, entre o 28 de Maio de 1926 e a candidatura presidencial de Norton de Matos, em 1949. Procuraremos compreender em que medida a defesa dos interesses regionais conduziu a uma aparente colaboração com o novo regime. Examinaremos a evolução política regional, centrando-nos no confronto entre Situacionistas e Oposicionistas, desde a revolta reviralhista de Fevereiro de 1927, até à tentativa de regresso ao regime constitucional através de uma «via pacífica», concretizada na adesão, em 1931, à Aliança Republicana Socialista. Abordaremos a campanha da candidatura de Norton de Matos à presidência da República, como uma nova tentativa de transição de regime através da via eleitoral. Palavras-chave: Ditadura Militar; Estado Novo; Oposição política; Elites

Abstract: Reflection on the Opposition developed in the Douro Region between the 28th May 1926 and the presidential candidacy of Norton de Matos, in 1949. We will seek to understand to what extent the defense of regional interests led to an apparent collaboration with the new regime. We will also examine the evolution of regional policy, focusing on the confrontation between the Situationists and Oppositionists since the «reviralhista» insurgency of February 1927, until the attempt of a ‘peaceful’ return to the constitutional regime through the 1931 association with the Socialist Republican Alliance. Finally, we will discuss the presidential campaign of Norton de Matos as a new attempt of regime transition through an electoral route. Keywords: Military Dictatorship; «Estado Novo»; Political opposition; Elites


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Carla Sequeira

1.

190  A comissão executiva era constituída por João da Silva Bonifácio (presidente), António Cardoso da Fonseca Mirandela, Artur Gonçalves Martinho e Manuel Pinto de Magalhães.

Vila Real (Infantaria 13 e GNR)195. Durante os acontecimentos, registaram-se confrontos na Régua, entre o destacamento de Lopes Mateus (governamental), que vinha de Viseu, e uma força de Infantaria 13, de Vila Real (a caminho do Porto), comandada pelo major Fernandes Varão, na tentativa de impedir que aquele atravessasse o rio Douro pela ponte da Régua. De acordo com a imprensa local, viveu-se um cenário de guerra civil e temia-se pelo destino do Douro, uma vez que se acreditava que a Ditadura viria mudar a sorte regional e agora «todo um programa em seu benefício pode cair por terra»196. Em Lamego, onde se verificara a adesão do regimento de Infantaria 10197, alguns elementos civis procuraram apoderar-se da administração do concelho mas foram repelidos pelas autoridades. Além dos factos referidos, registaram-se ainda intentonas em Alijó e Valpaços198. Os principais líderes durienses assumiram uma postura de não comprometimento com a Revolta. Na sequência do 28 de Maio, Antão de Carvalho decidira demitir-se também do cargo de presidente da CVRD. As suas motivações eram não apenas políticas mas também económicas, uma vez que o Alto Douro atravessava uma grave crise de escoamento e as culpas eram assacadas a este organismo. Tornava-se patente a necessidade de novas formas de intervenção. Agregados em redor da defesa dos interesses ligados ao sector vitícola, os notáveis regionais fariam ressurgir o movimento dos paladinos do Douro, que pretendia constituir-se como órgão de representação perante os poderes públicos. Na sua liderança, surgia Antão de Carvalho que, assumindo-se como um republicano independente, se abstinha de tomar posições políticas de modo a não prejudicar os interesses regionais, representados pela efectivação do «entreposto único e exclusivo para os vinhos generosos do Douro em Vila Nova de Gaia». A defesa do Entreposto de Gaia levaria Antão de Carvalho a, aparentemente, colaborar com a Ditadura Militar. Disso poderia ser indício a participação na conferência proferida pelo major Alberto Lelo Portela, na Régua, com a assistência de Cunha Leal, Craveiro Lopes e Mendes Cabeçadas. Contudo, Antão de Car-

191  Cf. Autoridades administrativas. «O Povo do Norte», 1 Agosto 1926, p. 2. Gaspar Monteiro era também, à data, presidente da Associação Comercial de Peso da Régua e da Direcção do Sindicato Agrícola da Régua.

195  Pina de Morais viria ainda a assumir a chefia dos serviços de comunicações durante os acontecimentos revolucionários (SEQUEIRA, 2007: 284-285).

192  Viria a ser presidente da comissão administrativa da Régua em 1934.

196  Hora de luto. «A Defesa do Douro» 13 Fevereiro 1927, p. 1.

193  FARINHA, 1998: 47.

197

FARINHA, 1998: 69.

194  FARINHA, 1998: 15.

198

FARINHA, 1998: 39.

O golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 trouxe mudanças à realidade política da Região Duriense. Assistir-se-ia, a partir de então, a uma crescente clarificação política entre Situacionistas e Opositores. Pelo decreto nº 11.875, de 13 de Julho desse ano, foram dissolvidos todos os corpos administrativos. Republicanos históricos, como Antão de Carvalho, Carlos Richter ou Macedo Pinto, abandonaram os cargos políticos. A Câmara da Régua, onde Antão de Carvalho era vereador190, foi demitida e substituída por uma comissão administrativa, que integrava personalidades como Gaspar Henriques da Silva Monteiro191 e António Pereira do Espírito Santo (como substituto)192, ambos pertencentes à primeira comissão republicana reguense, em 1895.

2.

Ainda em 1926, teriam lugar algumas acções conspiratórias contra a Ditadura Militar. Contudo, a primeira manifestação organizada teria lugar em Fevereiro de 1927, com o apoio político dos Partidos Radical, Democrático, Esquerda Democrática, Acção Republicana e Seara Nova193. Inaugurava-se, assim, a primeira fase de resistência à Ditadura Militar, conhecida pelo Reviralho, devido às suas características revolucionárias de luta armada, marcado por uma forte participação dos militares, e que predominaria até meados da década de 1930. Para Luís Farinha, o Reviralho «constituiu-se como a mais importante frente de combate à Ditadura»194, empreendida por sectores democráticos e liberais que, tendo apoiado a Ditadura numa fase inicial, deixam de se reconhecer nela e passam a combatê-la. A Revolta eclodiu no Porto, a 3 de Fevereiro, e previa-se uma acção simultânea em vários pontos do país. A participação regional duriense fez-se sentir de diversas formas. Em primeiro lugar, na fase da preparação, através da colaboração de Pina de Morais, que conseguiu angariar a adesão das unidades militares de


A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense

valho declarara não ter aderido ao novo regime, embora também não fosse seu opositor. Afirmava que a única política que lhe interessava era a da Região. E era nessa perspectiva que manifestava o seu apoio ao ministro da Agricultura, Alves Pedrosa, pela criação do Entreposto, que considerava a melhor obra da Ditadura Militar, e que era necessário não deixar desaparecer devido à influência da viticultura do Sul e do sector comercial. Seria também nessa perspectiva que faria deslocar a Lisboa centenas de viticultores, em Fevereiro de 1928, prometendo a participação regional nas eleições presidenciais de Março desse ano para legitimação de Carmona no cargo de Presidente da República, a troco da manutenção do Entreposto de Gaia199. Esta postura de fidelidade aos interesses regionais acarretar-lhe-ia a ostracização dos democráticos de Lisboa, que o acusavam de trair os seus antigos ideais.

3.

A fragmentação da elite política regional acentuou-se com a adesão de vários republicanos históricos à União Nacional. A primeira tentativa de organização da União Nacional ocorreu em 1927 (sendo então denominada de União Nacional Republicana) e, também na Região Duriense, se promoveram inscrições nesta data. Tinha por objectivo consolidar politicamente o regime saído do 28 de Maio200. Nesse sentido, uma das suas tarefas consistiu na preparação das eleições presidenciais de 1928, desaparecendo de seguida. Em 1930, seria fundada a União Nacional, no intuito de solucionar o problema político ainda em aberto201. Para Manuel Braga da Cruz, o Estado Novo era inimigo do sistema partidário mas não do sistema representativo, pelo que necessitava «de um instrumento político que activasse os mecanismos de sufrágio e de representação que pretendia ver salvaguardados»202. Foram implantadas comissões promotoras nas capitais de distrito e nas sedes de concelho. As inscrições atingiram um número avultado logo em 1931, integrando antigos membros dos partidos da Primeira República, dos mais moderados aos mais radicais. Segundo Braga da Cruz, o distrito de Vila Real era um dos com maior 199  Segundo a imprensa local (Cf. QUEIRÓS, Amâncio de - Eleição. O Douro cumpriu. «A Defesa do Douro», 1 Abril 1928, p. 1), teria havido uma forte participação regional, calculada em 81,4% por Manuel Braga da Cruz (CRUZ, 1988: 219). 200

CRUZ, 1988: 130.

195

implantação203. Contudo, de acordo com o mesmo autor, Vila Real foi também dos distritos que, conhecendo um grande número de adesões na fase inicial, progressivamente foi perdendo inscrições. Do ponto de vista da composição política das comissões concelhias da União Nacional na Região Duriense, tomemos como exemplo a de Peso da Régua, constituída unicamente por monárquicos e evolucionistas (a que juntariam antigos unionistas, como António Pereira do Espírito Santo). As restantes forças políticas do concelho – lealistas, portelistas, radicais, democráticos – unir-se-iam, a partir de Junho de 1931, na Aliança Republicana Socialista, também conhecida como Frente Única. Estava-se, portanto, num novo momento de clarificação política por parte das elites locais. A ARS era uma conjunção de opositores ao regime, de carácter nacional e com sede em Lisboa. O seu Directório era constituído por Norton de Matos (PRP), Tito de Morais (Nacionalista), Crispiniano da Fonseca (Esquerda Democrática), Mendes Cabeçadas (União Liberal Republicana), Maurício Costa (Acção Republicana), Almeida Arez (Partido Radical), Azevedo Gomes (Seara Nova), Ramada Curto (Partido Socialista), António Luis Gomes, Azevedo e Silva, Paulo Falcão e Duarte Leite (independentes)204. A ARS fora criada com o propósito de conseguir a transição de regime de forma pacífica, «através de eleições»205. A primeira oportunidade surgia com as anunciadas eleições municipais de 1931, que se transformaram na primeira tentativa de participação eleitoral da Oposição. Aproveitando as novas disposições legais eleitorais (decreto nº 19694, de 5 de Maio de 1931) a ARS levou a cabo uma campanha para a inscrição de eleitores nos cadernos eleitorais. A adesão na Região do Douro foi imediata e global, assistindo-se à formação de delegações da ARS em diversos concelhos e freguesias: Peso da Régua, Alijó, Tabuaço, Freixo de Espada à Cinta, S. João da Pesqueira, Mesão Frio, Armamar, Vila Real, Carrazeda de Ansiães, Santa Marta de Penaguião, etc. As comissões concelhias eram formadas por eminentes vultos locais, como Antão de Carvalho, João de Araújo Correia ou Carlos Richter, reunindo em sua volta diversos quadrantes políticos. Com a finalidade de disputar as elei203

CRUZ, 1988: 228.

201  CRUZ, 1985: 366.

204  Seria também nomeada uma comissão de propaganda, da qual fazia parte Raul Lelo Portela.

202  CRUZ, 1988: 164.

205

FARINHA, 1998: 17.


196

Carla Sequeira

ções, iniciaram-se acções de propaganda e de recenseamento eleitoral. Porém, sucediam-se na imprensa as denúncias das dificuldades encontradas, devido ao boicote das autoridades locais. Por outro lado, a própria União Nacional contribuía para esse boicote, ao projectar pedir ao Governo a irradiação de todos os funcionários que não votassem com eles. Esta primeira tentativa de transição de regime por via eleitoral não surtiria efeito. Como refere Luís Farinha, a participação activa de dirigentes da ARS na revolta reviralhista de 26 de Agosto de 1931, foi o subterfúgio da Ditadura para adiar sine die umas eleições que nunca haviam estado marcadas. Em 1933, o motivo próximo da contestação prendia-se com a Constituição, sufragada em 19 de Março desse ano. O novo texto constitucional consagrava a confirmação do monopartidarismo e da representação, atribuída à União Nacional, a separação de poderes e a representação política através de uma assembleia com capacidade legislativa e fiscalizadora dos actos do Governo. Revestia também uma dimensão autoritária através do reforço e independência de um «executivo bicéfalo, partilhado entre o Presidente da República e o do Conselho, e isento de responsabilidades perante a assembleia»206. Consequentemente, desencadeou-se a reacção, não apenas dos opositores do regime, mas também «do sector liberal republicano dos fautores do 28 de Maio»207. Em protesto contra a unicidade da representação política ratificada no texto da Constituição, Antão de Carvalho absteve-se no dia do sufrágio, manifestando publicamente o seu acto. Por outro lado, organizava e presidia a reuniões no sentido de fazer reviver a ARS no concelho da Régua, que considerava absolutamente fundamental naquele momento. Neste contexto, a influência de Antão de Carvalho continuava a ser reconhecida, como o comprova o aliciamento que lhe foi feito para que integrasse a União Nacional. Argumentava-se com as declarações de Antão de Carvalho, de ser partidário da Ditadura, e prometia-se-lhe a nomeação para a presidência da Casa do Douro. Todavia, se, num primeiro momento, Antão de Carvalho parecera colaborar com a Ditadura Militar, essa atitude devera-se à sua fidelidade aos interesses regionais. Antão de Carvalho continuava a afirmar-se republicano, desejando o regresso ao regi206  GÓMEZ, 2011: 32. 207  CRUZ, 1985: 368.

me constitucional através de uma «via pacífica», não tendo aceite o convite.

4.

Em 1945, inaugurou-se um segundo ciclo de resistência essencialmente eleitoralista, isto é, «assente sobretudo na exploração das oportunidades legais-eleitorais»208. A dissolução da Assembleia Nacional e o anúncio, pelo Governo, de eleições legislativas (reguladas pela legislação de 22 de Setembro de 1945), foi vista pela Oposição como uma nova oportunidade. A 8 de Outubro, o Movimento de Unidade Democrática, reunido no Centro Almirante Reis (Lisboa), fez publicar um manifesto em que se exigiam eleições livres, o adiamento das eleições por seis meses para organização de partidos da oposição, representação política às minorias, fiscalização eleitoral, liberdade de candidaturas e um novo recenseamento eleitoral. Vastos sectores se reviam nestas reivindicações, desde os democratas liberais, Esquerda Democrática, republicanos do PRP, monárquicos independentes, socialistas, comunistas, anarquistas e nacionais-sindicalistas, aos democratas-cristãos do grupo Era Nova, a par de personalidades das artes, letras, ciências e forças armadas. O Manifesto de 8 de Outubro foi recebido com entusiasmo na Região Demarcada do Douro por parte dos opositores ao regime. Em contrapartida, os apoiantes do Governo identificavam o MUD com o Reviralho, devido à sua ligação ao Partido Comunista e à memória da I República209. Imitando o movimento de Lisboa, convocou-se uma reunião em Vila Real, no dia 15 de Outubro, a que acorreram republicanos de todo o distrito. De seguida, constituíram-se comissões concelhias do MUD, nos distritos de Vila Real e Viseu, algumas delas denotando a influência de Nuno Simões. Na Régua, a comissão concelhia do MUD era constituída por Antão de Carvalho, António Cardoso Mirandela, António Silva Correia, Cândido Bonifácio Gouveia e João de Araújo Correia, entre outros. Esta comissão empenhou-se particularmente na recolha de assinaturas de apoio ao MUD, mas, tal como em 1931, teve de enfrentar a política de intimidação das autoridades que, de imediato, intimou dois dos seus elementos a esclarecerem o motivo da recolha, levando a um protesto formal «contra tal arbitrariedade e desrespeito àquilo que foi autoriza208

ROSAS, 2010: p. 11.

209  Veja-se como exemplo, o artigo O que eles querem. «Ordem Nova». 28 Outubro 1945, p. 1.


A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense

do pelo Chefe do Governo»210. Em solidariedade com as decisões tomadas no Centro Almirante Reis, diversas comissões durienses enviaram telegramas ao chefe de Estado, secundando o pedido de eleições livres. Segundo a imprensa211, republicanos de todos os concelhos do distrito de Vila Real decidiram pedir autorização ao Governador Civil para realizarem reuniões a fim de decidirem a estratégia perante o acto eleitoral. Todas estavam programadas para o mês de Outubro: em Vila Real, dia 12; Chaves e Santa Marta de Penaguião, dia 14; Mesão Frio e Sanfins do Douro, dia 15; Valpaços, dia 16; Alijó e Régua, dia 17. Também em Lamego, a cuja comissão concelhia pertencia Alfredo de Sousa, foi solicitada autorização ao Governador civil de Viseu para uma reunião política no Teatro Ribeiro Conceição. Revestia-se de uma especial expectativa a reunião projectada para Santa Marta de Penaguião, onde participariam representantes do MUD dos concelhos do sul do distrito e de vários da Guarda e Viseu (incluídos na região duriense), além de delegados do mesmo Movimento, no Porto. Como seria de esperar, todas as reuniões foram proibidas nas vésperas das eleições, com o argumento de que já não era possível apresentar candidaturas. Em resposta, a comissão do MUD de Peso da Régua resolveu endereçar um telegrama de protesto ao Governador Civil de Vila Real. Nos anos seguintes, o MUD manteve actividade no distrito de Vila Real, havendo indícios de reuniões em Favaios e Pegarinhos (concelho de Alijó), presididas por Nuno Simões e nas quais participaram Carlos Amorim, Joaquim Pinto Furtado e Camilo Botelho, entre outros, vindo a ser, por esse motivo, vigiados pela PIDE.

5.

O MUD viria a ser ilegalizado em Março de 1948. Concorrer às eleições presidenciais de 1949 dava-lhe uma nova possibilidade de voltar a uma actuação legal e o candidato escolhido foi Norton de Matos (membro da comissão consultiva do MUD), decisão que lhe fora comunicada por ocasião do seu aniversário natalício, em Março de 1947. O apoio à candidatura de Norton de Matos vinha de um amplo sector, incluindo de «muitos membros 210  Um protesto da comissão da Régua. «República». 11 Novembro 1945, p. 5. 211  Cf. O momento eleitoral. «República». 31 Outubro 1945, p. 4-5.

197

do Directório do Partido Republicano, previamente contactados pela província»212. No Alto Douro, um dos rostos visíveis desse apoio era Antão de Carvalho que, por ocasião do aniversário do General, em 1947, dava conta a Nuno Simões das iniciativas empreendidas na Régua «de manifestação ao senhor General Norton de Matos», de onde haviam sido enviados muitos telegramas individuais e um colectivo com 66 assinaturas de republicanos «de destacada categoria social»213. Apenas em Abril de 1948 Norton de Matos viria a aceitar formalmente, declarando que aceitava concorrer desde que a campanha e os actos eleitorais tivessem características democráticas de liberdade e independência214. Como referem Fernando Rosas e Armando Malheiro da Silva, a candidatura e campanha de Norton de Matos correspondia ao fim do «segundo ciclo de resistência»215, iniciado em 1945, mantendo-se na senda de uma «via ordeira de contestação ao regime»216. A candidatura, com um programa de democratização semelhante ao do MUD, seria apresentada ao Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Julho de 1948. Na Região do Douro, formaram-se diversas comissões (concelhias e de freguesia) de apoio à candidatura de Norton de Matos. Algumas como, por exemplo, a da Régua, continuavam a denotar a influência de Nuno Simões na sua constituição. Ao mesmo tempo, demonstravam a continuidade de uma elite política opositora, de cariz familiar, de que era testemunho a presença de João Macedo Pinto na comissão concelhia de Tabuaço. Em Lamego, a oposição continuava a ser liderada por Alfredo de Sousa. Além da constituição de comissões, organizou-se uma vasta actividade de propaganda através da afixação de cartazes e distribuição de folhetos, bem como de realização de comícios e conferências em diversas localidades, das quais destacamos Peso da Régua, Vila Real, Murça e Alijó. Várias destas sessões contaram com a presença de personalidades eminentes da Oposição Democrática. 212

CRUZ, 1983: 713.

213  ADVRL – Fundo Nuno Simões – Correspondência recebida, Carta de Antão de Carvalho para Nuno Simões, 23 de Março de 1947. 214  Durante a campanha eleitoral ficaria patente que as condições pedidas por Norton de Matos não haviam sido tidas em conta. Prova disso era o corte de milhares de nomes do recenseamento eleitoral, entre os quais o de Alves Redol. A falta de condições de liberdade de propaganda, realização e fiscalização do acto eleitoral levariam Norton de Matos a desistir da candidatura a 12 de Fevereiro, véspera do acto eleitoral. 215

ROSAS, 2010: 9.

216

SILVA, 2010: 62.


198

Carla Sequeira

Em Lamego, o comício realizou-se a 2 de Fevereiro, no Teatro Ribeiro Conceição, e foram oradores Alfredo de Sousa, Santos Almeida, Pina de Morais217 e F. Fonseca Almeida. Pina de Morais marcaria também presença na sessão realizada na Régua, juntamente com o tenente-coronel Lelo Portela, Artur Castilho e Alberto Gonçalves, entre outros. Em Murça, registou-se a intervenção de Virgínia Moura (membro da Comissão Distrital de Candidatura do Porto), e ainda de Artur Castilho, João Correia Guimarães e José Alberto Rodrigues. Virgínia Moura seria novamente interveniente no comício de Vila Real, em 10 de Fevereiro, ao lado de Rui Luís Gomes e Alves Redol. A par do movimento de apoio a Norton de Matos, ocorriam manifestações dos apoiantes de Carmona, de que era exemplo o artigo publicado por Vítor Queirós de Vasconcelos – filho de Amâncio de Queirós, já falecido à data – no jornal Notícias do Douro, de 10 de Fevereiro de 1949. Em artigo intitulado O Douro e a sua organização corporativa. As próximas eleições e o direito que o Senhor Marechal Carmona tem ao nosso voto, o autor defendia que, por uma dívida de gratidão em vista da organização corporativa da viticultura, toda a Região Duriense devia votar no Marechal Carmona.

e, até a sindicalização da lavoura, através da criação da Casa do Douro (embora esta contivesse disposições contrárias ao movimento associativo e representativo, com as quais os seus mentores não concordavam). Quanto aos momentos e estratégias de oposição, ficou patente a integração no quadro nacional de Oposição. A forma de contestação privilegiada foi a via pacífica variando entre um «intervencionismo até ao fim» (1931), abstenção (1945) e «desistência à boca das urnas» (1949)218. De realçar, a forte capacidade de mobilização das elites regionais; sintoma da permanência de clientelas e das antigas estruturas partidárias, permitia a rápida constituição de comissões e organização de acções de propaganda, particularmente entre as classes mais ilustradas. À luz dos dados até agora recolhidos, não surgem indícios de uma participação activa das classes mais baixas da sociedade nos movimentos de oposição no Douro entre 1926 e 1949.

6.

Em conclusão, entre 1926 e 1949 assistiu-se a uma divisão política das elites durienses, entre Situacionistas e Opositores ao novo regime. Essa situação foi particularmente visível no concelho da Régua. Assim, enquanto Antão de Carvalho, fundador da primeira comissão municipal republicana reguense, em finais do século XIX, se situou do lado da oposição do Regime, outros republicanos também de longa data, aderiram à Situação, passando a integrar as comissões administrativas nomeadas pelo Governo. Contudo, a divisão em campos políticos opostos não prejudicou a defesa dos interesses regionais. Na verdade, a primazia dos interesses vitícolas sobrepôs-se à evolução política no Douro, como o demonstra a postura de Antão de Carvalho, de uma oposição moderada, o que possibilitou a concretização de várias reivindicações regionais, como o Entreposto de Gaia 217  Após o regresso do exílio, abandonara a defesa da via revolucionária para a mudança de regime, manifestando a intenção de fazer oposição ao Estado Novo no quadro da legalidade instituída; nesse sentido, aderira ao MUD, em 1945, e viria a desempenhar papel político de relevo na campanha de Norton de Matos (Cf. SEQUEIRA, 2007: 543).

218

CRUZ, 1983: 703.


A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense

199

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SIGLAS ADVRL – Arquivo Distrital de Vila Real ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo ARS – Aliança Republicana Socialista CVRD – Comissão de Viticultura da Região do Douro MUD – Movimento de Unidade Democrática PRP – Partido Republicano Português


200


O Tribunal da Inquisição de Lamego texto: Manuela Vaquero – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro – Centro de Estudos em Letras / Museu de Lamego * (mvaquero@sapo.pt)

* Regime de voluntariado

Resumo: Pretendeu-se trazer à luz do dia um Tribunal, que embora de vida efémera (1541 – 1547) desempenhou um importante papel a nível da sociedade lamecense. Uma das prioridades do trabalho foi tentar compreender o porquê do estabelecimento do Tribunal da Inquisição na cidade de Lamego, avaliando o desempenho do bispo que doutrinava a diocese durante este período, D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, primo de D. João III, bem como do cardeal D. Miguel da Silva e a possível influência que ambos tiveram na formação do Tribunal da Inquisição de Lamego. Após transcrição do Livro de Denúncias referente à Inquisição de Lamego efetuou-se uma pesquisa e levantamento das mesmas, bem como dos Processos dos cristãos-novos lamecenses daí resultantes, arquivados na Torre do Tombo. Palavras-chave: Inquisição, Lamego, denúncias, cristãos-novos

Abstract: This study intended to expose a Tribunal that, although short-lived (1541 - 1547), played a somewhat devastating role at the societal level in Lamego. One of the priorities of our work was to try to understand why the Tribunal of the Inquisition was established in the city of Lamego, evaluating the performance of the bishop who indoctrinated the diocese during this period, D. Fernando de Menezes Coutinho and Vasconcelos, a cousin of D. João III, as well as the Cardinal D. Miguel da Silva and the possible influence that both had in shaping the Tribunal of the Inquisition of Lamego. After the full transcript of the Livro de Denúncias relating to the Inquisition of Lamego, it was undertooked a thorough research and survey of the same book, as well as of the Processes of the New Christians of Lamego, filed in the Torre do Tombo.


202

Manuela Vaquero

E

sta análise terá de inédito trazer à luz do dia o Tribunal da Inquisição de Lamego, tema muito pouco estudado, e mesmo praticamente suprimido nos muitos documentos e ensaios sobre o tema. O estabelecimento da Inquisição em Portugal foi resultado de um longo e complexo processo de adaptação de normas e cânones, com a finalidade de reprimir a heresia e consagrar a pureza da fé católica, de acordo com a filosofia anunciada. Antes da sua existência formal, houve no reino inquisidores da fé que exerciam a sua atividade temporariamente, embora coubesse ao tribunal diocesano o julgamento de todos os casos de heresia, feitiçaria ou blasfémia, coadjuvado pela justiça secular. Os conflitos entre os judeus e cristãos limitavam-se, em geral, a pequenos tumultos, sem graves consequências, provocados de ambos os lados pelo ódio religioso e o consequente sectarismo ou por circunstâncias de natureza financeira pois, desde a Idade Média, os judeus desfrutavam de tolerância e proteção real, conforme a ordenação de D. João I, situação que se manteve até ao reinado de D. Afonso V, considerado como o último período sereno dos judeus em Portugal. No entanto, com a expulsão dos judeus de Espanha, em 31 de março de 1492, no reinado de D. João II, dar-se-ia início à Inquisição em Portugal, ainda que oficialmente o seu estabelecimento viesse a ocorrer apenas em 1536, por bula do papa Paulo III . Durante este período de tempo, muitas negociações são efetuadas, quer com Roma quer com os próprios judeus, tendo em vista os interesses políticos e económicos da nação portuguesa . Trazer à luz do dia um tribunal – o Tribunal da Inquisição de Lamego – que, embora de vida efémera (1541–1547), desempenhou um importante papel a nível da sociedade lamecense foi o repto, para tentar compreender e explicar o porquê do seu estabelecimento na cidade, a sua escassa durabilidade e as circunstâncias da sua fundação – preocupando-nos o aparente desinteresse a que o estudo da Inquisição de Lamego tem sido votado, fazendo ele parte integrante dos primórdios do estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, quando estava ainda numa fase inicial, procurando a sua consolidação no reino. É certo que na urbe, bem como nas suas cercanias, existia uma comunidade judaica próspera e erudita, com uma significativa importância económica, social e cultural mas tal facto, só por si, não justificava a formação de um tribunal.

Como em muitas outras terras, também em Lamego os judeus se organizaram de forma particular embora, na prática, convivessem normalmente com os cristãos. Apesar de viverem nas judiarias, as portas nem sequer eram cerradas ao anoitecer, nem vigiadas como acontecia nas restantes espalhadas pelo território. Lamego tornou-se um caso à parte onde não eram cumpridas as leis provenientes do Estado que procuravam, o mais possível, separar cristãos de judeus. Era enorme o número de famílias hebraicas que habitavam o velho burgo, radicando-se em duas judiarias que, no ano de 1436, eram povoadas por cerca de quatrocentos judeus e considerada uma comunidade muito numerosa . Em 1541, no ano em que foi instituído o Tribunal da Inquisição de Lamego, os judeus residiam especialmente na Judiaria Grande ou Judiaria Nova – cujos indícios ainda hoje perduram, acabando por dar o nome à atual Rua Nova. A sociedade judaica concentrava-se ainda entre o bairro do Castelo, a rua da Seara e no núcleo envolvente à igreja de Santa Maria Maior de Almacave, sendo nas imediações deste santuário que se situava o cemitério judaico onde se enterravam, em covas virgens, os seus mortos, facto que tantas delações viriam a originar. O Livro de Denúncias da Inquisição de Lamego , do qual fizemos a transcrição e que é parte integrante deste estudo, nem sempre é rigoroso quanto à morada dos judeus; muitas das denúncias referem apenas os acusados como moradores em Lamego, mas quando indicam as ruas constata-se que os judeus, muitos deles cristãos-novos, residiam além da rua Nova, na Praça, rua da Seara, rua da Cruz … todas elas situadas nas imediações da Judiaria Nova. O antagonismo entre cristãos e judeus era grande, os conflitos estavam latentes; às razões habituais deste antagonismo soma-se o facto de, em Lamego, o comércio e a produção agrícola serem controlados por cristãos-novos, avolumando as razões que os tornaram alvo de profundas invejas e, depois da instituição da Inquisição, levariam a que cristãos-velhos os denunciassem compulsivamente. Os Breves e Bulas papais que permanentemente se contradiziam desde o ano de 1532, ora beneficiando ora acusando os cristãos-novos, muito contribuíram para que o ódio entre cristãos e judeus se desenvolvesse e o medo tomasse proporções desmedidas na consciência dos cristãos-novos, originando a fuga de muitos do aro do burgo. Não por acaso, as manifestações de júbilo registadas na cidade de Lamego, quando constou que o Tribunal da Inquisição iria aí ser estabe-


O Tribunal da Inquisição de Lamego

lecido, foram enormes. D. Agostinho Ribeiro, então bispo da cidade, recebeu do rei D. João III, com data de 30 de junho de 1541, um traslado com os preceitos que deveria tomar, para que no bispado de Lamego e no de Viseu, sob a sua jurisdição, se formasse o Tribunal da Inquisição, alegando que o executasse com a maior brevidade possível, em virtude do grande serviço que se iria prestar a Nosso Senhor. Esta carta foi enviada em simultâneo para o bispo do Porto e para o reitor da Universidade de Coimbra . Na missiva podemos ler as disposições que o soberano estabelecia para que os oficiais, de que a instituição iria necessitar, não usufruíssem de qualquer pagamento e fossem pessoas da maior confiança, devendo aceitar o cargo pelo grande prestígio que este lhes proporcionaria. Estávamos, claramente, numa fase experimental da Inquisição em Portugal, onde não tinha sido elaborado ainda um Regulamento para que todos os tribunais espalhados pelo reino se pudessem orientar e, por esse motivo, o cardeal-infante D. Henrique e inquisidor-geral, por nomeação de seu irmão, o rei D. João III no ano de 1539, iria ainda escrever mais uns despachos aos supracitados bispos transmitindo-lhes mais instruções. Os inquisidores iriam desfrutar, portanto, de toda a autoridade podendo nomear para funcionários do tribunal as pessoas que reconhecessem competentes e com as habilitações requeridas pelo monarca. A Inquisição de Lamego teve por inquisidores, para além do bispo D. Agostinho Ribeiro, homem descrito como de bom caráter, muito humano e letrado, o doutor Manuel de Almada, cónego da sé de Lisboa e o doutor Gonçalo Vaz. Foram seus notários os bacharéis António Gonçalves e Diogo Rodrigues, cabendo a Sebastião Rodrigues e a Fernão Esteves as funções de meirinho e carcereiro, respetivamente. A Inquisição estabelecida em Lamego, para além de transitória, foi também controversa e não admitida por alguns historiadores lamecenses muito bem conceituados e que muito escreveram sobre a grandeza desta urbe na época. Não restam dúvidas nem faltam documentos que comprovem a importância que a cidade tinha a nível do reino neste período, pois os produtos manufaturados na região contribuíam para o engrandecimento e riqueza do país, e a sua diocese tinha uma jurisdição enorme a nível eclesiástico, sendo governada nos anos 30 do século XVI pelo bispo D. Fernando de Meneses

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Coutinho e Vasconcelos, primo do rei D. João III que, em simultâneo, exercia as funções de capelão-mor da corte e conselheiro do monarca; posteriormente acedeu ao cargo de inquisidor-mor no ano de 1536, quando ainda doutrinava o bispado de Lamego e, segundo a nossa ótica, foi a sua grande influência na corte e junto do monarca, uma das causas do estabelecimento do Tribunal da Inquisição em Lamego. De salientar, que foi este antítese o patrono de uma obra, considerada de referência pelos historiadores, Descripção do Terreno ao redor de Lamego duas leguas [1531-1532], da autoria de Rui Fernandes, cidadão lamecense tratador de lonas e bordatas de El-rei e mercador – cristão-novo – de ascendência judaica conforme registo no Livro de Denúncias da Inquisição de Lamego, onde aparece acusado, ele e os seus familiares, por crimes de judaísmo em várias delações. A descrição contida na obra de Rui Fernandes proporciona uma informação detalhada sobre a cidade e suas redondezas, facultando uma perspectiva do dia-a-dia das suas gentes, do seu viver e do seu pensar. Através da sua leitura podemos concluir que a região de Lamego tinha um enorme intercâmbio com a cidade do Porto, centro escoador dos seus inúmeros produtos. Em meados do século XVI, entre as produções do seu aro são de salientar os cereais, o sumagre, as sedas, frutas, azeite, panos de linho e os vinhos, particularmente os “vinhos cheirantes” de Lamego. Apesar do Tribunal da Inquisição de Lamego ter tido uma duração breve, os cristãos-novos da cidade protestaram veementemente contra a sua forma de atuar, por causa do comportamento dos inquisidores em relação às disposições da Bula de 23 de maio de 1536, pois os abusos eram enormes sendo difícil controlar o poder que lhes era oferecido. Os cristãos-novos temiam as irregularidades das prisões que eram efetuadas, receavam as acusações verdadeiras ou forjadas dos atos de judaísmo, pois tudo justificava a perseguição aos acusados e esta população de origem hebraica vivia aterrorizada pela chegada do terrível tribunal e pela nomeação de inquisidores com tão fraca reputação, apesar de serem ainda bastante jovens – Manuel de Almada tinha sido vigário capitular no arcebispado de Lisboa e fora aí um flagelo para o próprio clero; e o licenciado Gonçalo Vaz era laico e comprovadamente bígamo. Nada abonava em favor destes inquisidores. Não existem dados concretos para que possamos conhecer com pormenor a limitação ou o desregramento com que se houveram os inquisidores, embora estejamos con-


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victos, pelos poucos dados existentes e lidos nos Processos, que os excessos seriam desmedidos, quer pela falta de rigor especificada nas leis, que praticamente não existiam, o que originava a que cada inquisidor actuasse mediante a sua própria consciência; quer pelo número de réus que faziam apelações para o Tribunal de Lisboa para aí serem julgados e sentenciados. O Tribunal da Inquisição de Lamego nunca dispôs de sede própria. A casa do despacho da Santa Inquisição, situava-se no paço episcopal de D. Agostinho Ribeiro, localizado no Rossio e mandado reedificar pelo seu antecessor D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, ou nas pousadas de Manuel de Almada ou de Gonçalo Vaz. Também o aljube era o episcopal ou cárceres privados em casa dos inquisidores. Outras questões surgem: apesar de D. Agostinho Ribeiro ser considerado o menos cruel dos três inquisidores, era ele que, do alto do púlpito e no meio das solenidades religiosas, impunha aos fiéis como um dever vingarem a paixão de Cristo, indo dar testemunho contra os cristãos-novos. O povo era, portanto, estimulado pela Igreja a denunciar o amigo, o parente ou o vizinho que, vivendo lado a lado, tinham criado entre si laços de estima e situações de familiaridade, mesmo com crenças bem diferentes. Em Lamego, como já dito, o convívio entre cristãos e judeus tinha sido amistoso e, portanto, o judaísmo era vivido praticamente a descoberto. Estes laços de convivência foram então alterados pela palavra da Igreja, na qual a sociedade daquele tempo se apoiava quase exclusivamente. Alexandre Herculano descreve assim o descontentamento dos cristãos-novos lamecenses: alguns réus que insistiam em não os aceitar por juízes [Vaz e Almada] eram mandados para Lisboa. Velhos, mulheres honestas, donzelas pudibundas marchavam em levas para a capital, e esse largo trânsito convertia-se em dilatado martírio. Os guardas que os conduziam eram parentes de Gonçalo Vaz, a cada um dos quais os réus deviam pagar dois cruzados por dia. Entretanto o processo prosseguia em Lamego, sem audiência dos interessados, tomando-se, conforme se dizia, testemunhas que faziam ofício de depor contra os suspeitos de judaísmo e pagas para isso. (…) prendiam-se alguns indivíduos antes de denunciados: depois é que se tratava de lhes achar culpa. Para isto recorria-se não raro aos escravos e criados, que, conduzidos ao tribunal, quando de bom grado não queriam acusar os seus senhores, eram a isso compelidos. (HERCULANO, 1975: 108-109)

E contámos, no Livro de Denúncias, quarenta e uma delações de criados e escravos que incriminavam os seus antigos amos acusando-os de práticas de judaísmo dizendo tê-las presenciado quando com eles viviam. O supradito Livro de Denúncias abrange o período compreendido entre 20 de agosto de 1543 e 22 de dezembro de 1544, ou seja engloba 489 dias e contém 308 denúncias onde aparecem 997 acusados. Muitos dos denunciantes são serviçais, vizinhos, amigos e familiares dos incriminados, o que consideramos muito relevante e nos indicia bem o espírito que norteava as acusações, que têm por base, quase exclusivamente, o judaísmo confirmado como heresia mais grave que qualquer outro tipo de delito e os judeus seu alvo primeiro. Neste Livro, profundamente analisado, as denúncias apresentam-se bem clarificadas e prevalecem muitos casos de ajuntamentos sucessivos aos sábados; falar e possuir livros hebraicos; circuncidar os filhos; de guardar os sábados, não trabalhando e vestindo-se de festa; executar algum trabalho ao domingo e dia santo de guarda; limpar candeeiros e deixá-los acesos sexta-feira à noite até que se apagassem; não comer peixe de pele ou rejeitar a carne de porco; jejuar o jejum maior, que era em setembro, não comendo todo o dia até ao nascer das estrelas; solenizar a Páscoa comendo pão ázimo. Estes sinais, entre muitos outros, todos eles do foro íntimo de cada família, eram os factos considerados passíveis de acusação pela Inquisição e fazem parte integrante da tipologia de acusações que o Livro contém. Mas é, contudo, sobre as mulheres que recaem o maior números de denúncias e processos, pois elas eram as grandes mestras da crença e as que mais sofreram por ela manifestando um sentimento de religiosidade maior, já que era dentro de casa que a maior parte dos “crimes de judaísmo” eram praticados, dado o seu caráter especificamente doméstico, apesar da religião judaica ser pelos seus rituais predominantemente masculina. Registámos não só o judaísmo mas todo o tipo de denúncias contidas no livro, mesmo que o seu número seja muito reduzido pois foram tidas em conta neste tribunal:


O Tribunal da Inquisição de Lamego

Judaísmo.....................................................................827 Blasfémias e palavras proferidas contra a fé.......... 55 Manifestações contra o dogma................................ 33 Bigamia....................................................................... 6 Feitiçaria..................................................................... 3 Contra o Santo Ofício............................................... 7 Formulação de conteúdo erótico-sexual................ 3 Motivos extravagentes.............................................. 6 Diversos...................................................................... 44 Suborno...................................................................... 10 Culpas não definidas................................................. 3

Tipologia das Denúncias

Consideramos que o conteúdo do Livro de Denúncias encerra quase só delitos menores de heresia, onde praticamente apenas há judaísmo, que é um dos tipos de denúncia mais consistente para o Santo Ofício, mesmo que a sua objetividade possa ser posta em causa; mas o Tribunal de Inquisição de Lamego, tal como os outros tribunais instituídos no reino, têm algo a tratar que examinam com uma severidade extrema – o Judaísmo – que pensamos seria praticado, nestes tempos, sem grande secretismo, em virtude dos judeus viverem desde o reinado de D. Manuel e após as perseguições que lhe foram feitas com uma certa liberdade e imunidade. A comunidade cristã-nova nesta cidade vivia com os seus usos e costumes mais ou menos a descoberto, sem grandes sigilos, praticava os seus rituais judaicos com um certo à vontade, sem sentir que necessitava de grande discrição ou de se esconder. Daí a enorme quantidade de denúncias que relatam que os cristãos-novos guardavam o sábado e nele faziam ajuntamentos, em casa uns dos outros ou à porta de casa, sem qualquer tipo de precaução, o que não passava despercebido aos vizinhos que abraçavam outra crença e outros ideais. É de salientar que, nesta fase em que a Inquisição dava os primeiros passos, não existia ainda um tipo de inquérito absolutamente preciso, pelo que se constata que, muito poucas vezes, são mencionadas as relações entre acusados e acusadores; também como denunciantes aparecem cónegos, vigários e clérigos, embora o seu número seja insignificante, apenas dezassete. Temos ainda a acrescentar que a crença foi normalmente omitida nos acusadores onde apenas 16 são considerados cristãos-novos e os outros apresentam crença desconhecida; já no grupo dos acusados tal não acontece e dos 997 apenas cinco têm crença específica, os restantes 992, mesmo que não estejam todos designados por cristãos-novos, as acusações feitas deixam

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antever a sua fé; com esta análise conseguimos o acesso às vítimas sentenciadas, examinando a tipologia das denúncias e crimes, constituição dos agrupamentos familiares, proveniências geográficas, representações sociais, bem como reconhecer as principais famílias desta comunidade de cristãos-novos. Ao reconstituir as famílias sobre as quais recaíram maior número de delações também constatámos que as denúncias da Inquisição de Lamego deixam antever alguma ambição referente aos cristãos-novos de maiores possibilidades económicas ou com estatuto social mais elevado. Eram eles o alvo de mais denúncias por parte dos cristãos-velhos que revelavam um certo contentamento em ver os judaizantes, seus conterrâneos, presos. É o caso da família de Pedro Furtado, que tem um número significativo de denúncias pois era médico de prestígio na cidade e arredores, onde atendia clientes de elevada posição social; foi julgado e preso pela Inquisição e num traslado de culpas são incluídos quase todos os membros da família, sendo um acusado de receber dinheiro dos cristão-novos para impedir o negócio da Inquisição em Roma. Todos os Processos arquivados na Torre do Tombo incidem nos agregados familiares por nós identificados e grande parte recaem sobre elementos das mesmas famílias, chegando uma delas, com doze elementos, a deter treze processos levantados e abrangendo apenas seis dos seus membros; detectámos a existência de processos absolutamente inconclusivos, chegando o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, para onde os réus apelavam frequentemente, a pronunciar a sentença num dos processos e a incluir nela os restantes elementos da linhagem a quem a sentença também abrangia, embora não se chegue a saber o que lhes sucedeu. Nos Processos, não encontrámos qualquer sentença que puna verdadeiramente os cristãos-novos, apenas abjurações, absolvições e a grande maioria não contém qualquer sentença: Não contêm sentença...............................................23 Abjurações.................................................................12 Novamente interrogados...........................................5 Incompletos.................................................................5 Absolvições..................................................................3 Soltas sob fiança..........................................................2 Ré ausente....................................................................1 Inutilizado...................................................................1

Sentenças dos Processos levantados na Inquisição de Lamego


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Podemos afirmar que não existiu em Lamego qualquer auto-de-fé e que no Tribunal do Santo Ofício da cidade iniciaram-se e concluíram-se somente vinte e cinco processos, dos cinquenta e dois por nós encontrados e analisados. Por estes dados somos levados a afirmar que o Tribunal da Inquisição de Lamego não foi tão punitivo para os cristãos-novos como os outros tribunais espalhados pelo reino na mesma época. Na sequência do estudo feito estamos convictos de que o Tribunal da Inquisição foi estabelecido no bispado de Lamego, tendo sob sua jurisdição o bispado de Viseu, por influência do seu bispo D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos que, sendo homem de grande influência na corte, o fez instituir no bispado, que acabava de abandonar, quando no reino eram, em simultâneo, criados outros tribunais. De referir que a ausência de documentação é a primeira dificuldade que nos surge para podermos chegar a uma conclusão definitiva que confirme estas afirmações, o que não implica, no entanto, que não tivéssemos desenvolvido as investigações de molde a conseguir obter dados mais consistentes e concretos que nos conduzissem a respostas mais precisas e comprovadas. Também ponderamos a interferência, se bem que indireta segundo o nosso parecer, do bispo e posteriormente cardeal D. Miguel da Silva, relativa à criação do Tribunal do Santo Ofício em Lamego. Mesmo não possuindo dados suficientemente claros que confirmem na totalidade esta nossa asserção, há uma interdependência percetível entre o seu afastamento do bispado de Viseu e a sua nomeação a Cardeal in petto no ano de 1539, e a defesa por ele assumida com tenacidade, junto do Sumo Pontífice, em relação aos cristãos-novos e a criação do Tribunal da Inquisição em Lamego. No ano de 1541 recebeu as insígnias de cardeal, no entanto, D. João III não aceitou bem a sua nomeação e tudo fez para evitar que ela se concretizasse219. Em função desta circunstância, somos levados a considerar a hipótese do Cardeal da Silva, embora, de forma indireta, ter tido influência na criação do Tribunal do Santo Ofício no bispado de Lamego com a diocese de Viseu sob a sua jurisdição. O rei e o inquisidor-geral pretenderam com a submissão do bispado de Viseu, onde D. Miguel ainda pontificava, a um Tribunal de Inquisição recém-formado no patriarcado Lamego, humilhá-lo e depreciá-lo pois D. Miguel da Silva era, como provado, um dos defensores dos cris-

tãos-novos junto da corte de Roma. Também a importância estratégica da cidade, a sua antiguidade e o seu poder sócio-económico no reino tiveram, por certo, grande peso na formação do referido tribunal. Subsiste como memória da existência deste tribunal de vida tão efémera um Livro de Denúncias completo, um macete com sete documentos soltos e um fragmento de um outro Livro de Denúncias, que fomos identificar na Torre do Tombo e que confirma a existência de outros livros de denúncias que desapareceram; também os cinquenta e dois processos levantados pela Inquisição de Lamego, embora bastante inconclusivos, vão facultar-nos uma visão mais elucidativa sobre os efeitos que esta instituição teve a nível social, incriminando especialmente as mulheres; no entanto, não há registo de qualquer Livro de Reconciliações que tenha chegado aos nossos dias; apenas encontrámos num dos documentos soltos uma confissão/abjuração, onde um Pêro Rodrigues, morador em Lamego, pede perdão das suas culpas e, num outro documento apenso, a respectiva sentença pecuniária (1544)220. Como reminiscência da Inquisição, não só em Lamego mas em todo Portugal, ficaram frases e ditos que se propagaram através das gerações e fazem ainda parte do nosso quotidiano, sem que nos apercebamos da sua verdadeira essência e do horror que elas causaram a quem as sofreu na pele: “Ano da Graça”; “Levar couro e cabelo”; “Dar neste e naquele”;“Dar o braço a torcer”;“Ficar sem pinga de sangue”;“Gastar cera com ruins defuntos”; “Negar a pés juntos”;“ Tens medo de entalar o rabo?”;“Qual carapuça”; “Rabos de palha”;“O debaixo é meu, o de cima é dum judeu”, entre muitas outras. As leis não tiveram força para vencer os costumes e a fé – ao longo dos tempos alguns cristãos-novos mantiveram-se fiéis às suas crenças; outros mesmo, tendo a perceção da sua proveniência, eram já cristãos, embora todos saibamos que os cerimoniais aprendidos e apreendidos na família e repetidos ao longo das gerações, deixam marcas profundas na identidade de cada indivíduo e não são esquecidos com facilidade, nem as pessoas deles se libertam num curto espaço de tempo continuando, por esse motivo, a praticar rituais ancestrais, mesmo que eles não tenham a conotação que lhes era atribuída. A presença da Inquisição em Lamego causou muita intranquilidade entre as suas gentes, na medida em que deixou em evidência as complexas relações entre

219  Cf. sobre o assunto: ALMEIDA, 1971: 666-669; KAYSERLING, 2009: 274; Corpo Diplomático Português, 1884: 141-144, Tomo IV.

220  Documento nº 5, faz parte de um macete arquivado no ANTT que possui sete documentos soltos da Inquisição de Lamego.


O Tribunal da Inquisição de Lamego

os cristãos-novos, a sociedade lamecense e demais habitantes da região. As acusações eram inúmeras e criaram um ambiente de desconfiança entre as pessoas, porque muitas delas apresentavam-se na Casa do Despacho do Tribunal, sem qualquer fundamento, denunciando atos praticados há mais de três, quatro, cinco ou mesmo dez anos. Poderemos ainda concluir que, ao contrário do que nos parece hoje absolutamente ilógico, o Tribunal do Santo Ofício foi muito ansiado e pretendido pela grande maioria da população lamecense221, bem como a de todo o reino; ele era desejado porque representava a purificação das almas hereges, numa época em que o religioso se confundia com o social, o económico, o político e o espiritual.

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BIBLIOGRAFIA Manuscritos: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) – Fundo do Santo Ofício Inquisição de Lisboa: Livro [1] da Inquisição de Lamego (20/08/1543 – 22/12/1544): Denúncias 1 Macete – Sete documentos soltos da Inquisição de Lamego. Fragmento de Livro da Inquisição de Lamego (1546). Cinquenta e dois Processos. Impressos: ALMEIDA, Fortunado de (1968-1970) – História da Igreja em Portugal. 4 vols. Barcelos: Livraria Civilização Editora. AZEVEDO, D. Joaquim de (1877) – Historia Ecclesiastica da Cidade e Bispado de Lamego. Porto: Typographia do Jornal do Porto. AZEVEDO, João Lúcio de (1921) – Historia dos Christãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Editora. AZEVEDO, D. Joaquim de (1877) – Historia Ecclesiastica da Cidade e Bispado de Lamego. Porto: Typographia do Jornal do Porto. AZEVEDO, João Lúcio de (1921) – Historia dos Christãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Editora. BETHENCOURT, Francisco (1996) – História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália. vol. I. Lisboa: Temas e Debates. COSTA, Manuel Gonçalves da (1977-1993) – História do Bispado e Cidade de Lamego. 6 vols., Braga: Oficinas Gráficas de Barbosa & Xavier, Limitada. DIAS, Augusto (1947) – Lamego do Século XVI. Edições «Beira Douro».

221  Cf. Corpo Chronologico, parte 1ª, maço 75, doc. 75.


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FERNANDES, Rui (2001) – Descrição do Terreno ao redor de Lamego duas duas léguas [1531-1532]. Edição Crítica de Amândio Morais Barros. Beira Douro: Associação de Desenvolvimento do Vale do Douro. FERREIRA, Maria Manuela de Sousa Vaquero Freitas (2012) – A Inquisição de Lamego – Contributo para o Estudo da Inquisição no Norte de Portugal. Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Tese de doutoramento FRANCO, José Eduardo; Assunção Paulo de (2004) – Metamorfoses de um Polvo - Religião e Política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa (Séc. XVI – XIX). Lisboa: Prefácio. GÓIS, Damião (1619) – Chronica do Felicissimo Rey Dom Emanvel da Gloriosa Memoria. Lisboa: Antonio Aluarez Impressor, & Mercador de Liuros. GRIGULÉVITCH, Iossif (1990) – História da Inquisição. Tradução de José António Torres Rodrigues. Lisboa: Editorial Caminho. KAYSERLING, Meyer (2009) – História dos Judeus em Portugal. São Paulo: Editora Perspectiva S. A. Introdução e notas de Anita Waingort Novinsky. HERCULANO, Alexandre (1975) – História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Tomo I, II e III. Lisboa: Livraria Bertrand. MEA, Elvira Cunha de Azevedo (1997) – A Inquisição de Coimbra no Século XVI – A Instituição, os Homens e a Sociedade. Porto: Fundação Eng.º António de Almeida. NUNES, Eduardo Borges (2009) – Abreviaturas paleográficas Portuguesas. Lisboa: Edições Cosmos. REMÉDIOS, J. Mendes dos (1895) – Os Judeus em Portugal. 2 Vols. Coimbra: F. França Amado – Editor. RODRIGO, D. Francisco Xavier G. (1884) – História Verdadeira da Inquisição. 2 vols. Guimarães: Centro de Propaganda Catholica em Portugal. SARAIVA, António José (1956) – A Inquisição Portuguesa. Lisboa: Publicações Europa-América.

TAVARES, Maria José Pimenta Ferro (1984) – Os Judeus em Portugal no Século XV. vol. II. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica. (1987) – Judaísmo e Inquisição. Estudos. Lisboa: Editorial Presença. VASCONCELOS, José Leite de (1958) – Etnografia Portuguesa. 4 vols. Lisboa: Imprensa Nacional. VITERBO, Sousa (1904) – “Ocorrências da vida Judaica”. in Arquivo Historico Portuguez. Lisboa: II. Off. Typ. – Calçada do Cabra.


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Entre a Etnografia e a História: os romances durienses de Alves Redol texto: Gaspar Martins Pereira* (FLUP/CITCEM)

* Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais da FLUP. Investigador do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória».

Resumo: Para lá da trama ficcional dos quatro romances que Alves Redol escreveu sobre o Douro, rio e região — Porto Manso (1946), Horizonte Cerrado (1949), Os Homens e as Sombras (1951) e Vindima de Sangue (1953) —, tentamos compreender, nesta breve comunicação, as condições de produção desses romances, as fontes de informação de que o escritor se serviu, desde elementos da observação etnográfica e de análise histórica de documentação da época até testemunhos orais, e a forma como os incorporou na narrativa literária. Cruzando tempos diversos, entre o tempo dos acontecimentos históricos e o tempo vivido e partilhado pelo escritor no imediato pós-guerra, os romances de Redol oferecem-nos um valioso quadro histórico e antropológico das gentes do Douro, baseado na observação da vida das aldeias durienses, da faina fluvial dos barqueiros e dos trabalhos da vinha, dos rituais e tradições, mas também das preocupações e aspirações dos diversos grupos sociais da complexa sociedade duriense.

Abstract: Beyond the fictional plot of the four novels that Alves Redol wrote about the Douro, river and region — Porto Manso (1946), Horizonte Cerrado (1949), Os Homens e as Sombras (1951) and Vindima de Sangue (1953) —, we shall try to understand, in this brief communication, the conditions of production of these novels, the sources of information used by the writer, from the elements of ethnographic observation and the historical analysis of contemporary records to the oral testimonies, and the ways in which these elements where incorporated in the narrative. Trough time, crossing the time of historical events and the time lived and shared by the writer in the immediate postwar period, the novels of Redol offer a valuable historical and anthropological framework of the people of Douro, based on the observation of life on Douro villages, the work of the «barqueiros» (the Douro river boatmen) and of the work in the vineyards, the rituals and traditions, but also the concerns and aspirations of the various social groups of the complex Douro society.

Palavras-chave: Douro, Alves Redol, História, Etnografia, Literatura.

Keywords: Douro, Alves Redol, History, Ethnography, Literature.


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INTRODUÇÃO

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ois dos trabalhos em que me envolvi nos últimos tempos222 levaram-me a revisitar os quatro romances que Alves Redol escreveu sobre o Douro e a compreender melhor as condições de produção desses romances, as fontes de informação de que o escritor se serviu e a forma como incorporou na narrativa literária elementos da observação etnográfica e de análise histórica. Nesta breve comunicação, e integrando-me num painel sobre «História no/do Douro», gostaria de destacar alguns desses aspectos da obra duriense de Redol que, a meu ver, ultrapassa muito o domínio da Literatura e constitui um valioso contributo para o conhecimento da região, nos planos da Etnografia e da História, cruzando tempos diversos, com a liberdade da ficção. Tempos cruzados Entre o tempo em que Redol escreveu os seus romances, desde meados dos anos quarenta ao início da década seguinte, e o tempo em que os situou, recuando, no caso do «Ciclo Port Wine», às primeiras décadas do século XX, intrometem-se, aqui e ali, por vezes nas entrelinhas, outros sentidos e dimensões do tempo. Por um lado, seguindo as concepções do realismo socialista, Alves Redol valorizou, numa dimensão intemporal ou de longa duração, o papel heróico do povo na epopeia da criação da região vinhateira do Douro e do vinho do Porto. Na epígrafe de abertura do romance Horizonte Cerrado, o escritor comunista vincava a sua admiração pelo trabalho das gentes do Douro: «‘Port Wine’ é o vinho dos Ingleses. Chamam-lhe sol engarrafado, mas só os Durienses sabem o preço das tragédias e heroísmos que viveram para criar esse sol — fazer um astro com as mãos é tarefa de gigantes». E, logo a seguir, na dedicatória «Aos Durienses», sublinhava: «Sonhei erguer, com este ciclo de romances, um monumento à vossa epopeia, soberana entre as demais que o homem empreendeu». Numa entrevista concedida a Francisco Tavares Teles, em Setembro de 1947, para ser publicada no jornal Trasmontano, do Clube Transmontano de Angola, Redol destacava, entre os principais motivos do seu 222  PEREIRA, 2013a; PEREIRA, 2013b.

interesse pelo Douro, os problemas «sempre latentes» que, ao longo dos séculos, caracterizaram a lavoura da região: […] a riqueza de tipos durienses foi o principal atractivo que o Douro me lançou. Ora eles não existem com interesse quando não há problemas. Os do Douro são dos mais complexos da vida nacional: o desbravamento dos montes quase inacessíveis que hoje orgulham a nossa condição de homens, as vidas que por ali se gastaram, o vinho depois com as suas crises constantes, a luta entre produtores e especuladores, a filoxera que foi um dos mais dramáticos passos do país, as flutuações de riqueza, misérias confrangedoras e riquezas principescas…223. Nessa mesma entrevista, como em muitos dos seus romances, deixava transparecer uma mensagem de futuro, de libertação do homem, de valorização do trabalho e de correcção das injustiças e desigualdades sociais na sociedade que haveria de vir, em consonância com os ideais comunistas que perfilhava. À questão «E acha que os lavradores do Douro poderão um dia resolver esses problemas — descansar enfim?», Redol respondeu: Sem dúvida. O homem que já é capaz de vencer desertos, saberá dominar também estes problemas. Um organismo colectivo que defenda os pequenos proprietários da agiotagem, concedendo-lhes créditos e colocando directamente os seus produtos nos mercados consumidores, será a grande obra de defesa do viticultor e do trabalhador durienses. É anti-nacional o que até hoje vem sucedendo — que um dos maiores valores de exportação do país só deixe angústia e fome àqueles que são os seus mais devotados realizadores. A solução deste problema exige tudo; não podem haver obstáculos que não sejam destruídos para se obter essa justiça elementar. / Criem-se lagares em cooperativa ou mobilizem-se os que já existem, conceda-se-lhes um longo crédito de base para que os seus vinhos sejam beneficiados, armazenados e vendidos por conta própria, não só para criar uma agricultura próspera, mas para salvar dos cardenhos, da sub-alimentação, e da morte precipitada, os saibradores e os cavadores, as vindimadeiras e os lagareiros do Douro, todos aqueles que fizeram, através [de] gerações, de uma região fragosa e inóspita uma das mais ricas 223  A entrevista seria publicada, no ano seguinte, no jornal Trasmontano, comemorativo do 35º aniversário do Clube Transmontano de Angola, sob o título O Douro encontrou o seu romancista, uma entrevista com o romancista Alves Redol, por Francisco Tavares Teles, com a indicação do local e da data (Pinhão, Setembro de 1947). Cf. PEREIRA, 2013a.


Entre a Etnografia e a História

províncias de Portugal.224 Esta mesma projecção de uma economia cooperativa do Douro vinhateiro surgiria, pela voz do médico Pimenta, nos romances do «Ciclo Port Wine»225. O futuro mistura-se, a cada passo, nos sentimentos e aspirações, nos gestos e trabalhos, ligados pela memória e pelas tradições, no fio das gerações, na relação dos homens com a terra. Entre muitos outros exemplos, leia-se aquela passagem em que Francisco Teimas se senta no degrau da escadaria de um socalco, recordando as palavras do pai, que acabara de falecer, a propósito do assentamento das pedras de xisto: «Não, assim não, Francisco!», dissera-lhe o pai. «Mete essa pedra mais a direito. Isso!... É um degrau para pôr os pés, mas não é só a gente que aí vai passar… Serão os teus filhos e os teus netos…».226 Ou, ainda, o desenlace do romance Porto Manso, em que a vitória do caminho-de-ferro sobre os barcos rabelos, se, por um lado, trazia a morte da ancestral actividade fluvial dos barqueiros, por outro, se transformaria em «cavalo de Tróia para o futuro»227, dando «uma vida nova» ao Douro. Era a mensagem neo-realista de esperança e libertação trazida pelos operários, construtores da sociedade nova sobre os escombros da tradição: É da morte que a vida ressurge. São as batalhas perdidas que caldeiam o esforço novo da última batalha para vencer. O anseio de cada lutador caído vai florescer no coração de centenas de outros homens. E depois serão milhares. E depois milhões. / E essas flores não se desfolham nem murcham, porque são vivas como sangue e rijas como aço, são flores estranhas com perfume para uns e espinhos para outros, são flores com alma — flores de alma eterna que vem das cavernas e caminha para o futuro. E o futuro não se lhe pode negar, porque a certeza dos que tombam é a certeza dos que ficam. E todos permanecem até ao fim. Todos. Até os mortos. Porque estes mortos não vão a enterrar — o seu sacrifício floresce no coração de centenas de outros homens. E depois serão milhares. E depois milhões. / É nesta morte que a vida ressurge e canta.228 E, no diálogo final entre o velho arrais António do Monte e o seu filho, que se tornara ferroviário, Redol 224  Idem, ibidem. 225

Por exemplo, em REDOL, [1951]:182-187; REDOL, [1953]: 195.

226

REDOL, [1953]: 287.

227

REDOL, [1946]: 315.

228

REDOL, [1946]: 337.

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reflectiu esse embate de tempos e representações: — Sim. Foi o comboio que matou tudo isto: os homens e o rio, a alegria e até a honra. Os rapazes abalam; as mulheres morrem sem marido. — Que tenho com isso?... — És um dos que andam a fazer o cavalo do Diabo. Um filho meu!... O destino não perdoa; nunca perdoa. — O destino são todos os homens. — Os homens!... O destino da aldeia é a devastação. São os vícios e a fome, a morte dos barcos e as terras para novos donos que nunca lhe meteram a enxada. O comboio arrasou tudo. — E há-de construir tudo. O futuro anda já com ele. — Um futuro de miséria, António. Tu não sabes… — Sei uma coisa que o pai não viu ainda. O comboio desencadeou todo o mal que queira; mas, lá dentro, vinham também os fogueiros, os maquinistas e os homens das oficinas. Vinham os descarregadores e todo o outro pessoal. Ele não tem culpa de haver uma companhia. Aproximou-se do pai e apertou-lhe o braço, como se quisesse transmitir-lhe a sua certeza. Um sorriso luminoso abriu-se no seu rosto tisnado; no olhar passou uma firmeza de aço, que parecia capaz de transformar o mundo. — O pai talvez não compreenda; mas o comboio… — Trouxe a companhia, como tu disseste. — Mas trouxe também os operários. Quatro romances do pós-guerra Alves Redol escreveu os seus quatro romances sobre o Douro entre 1945 e 1952, no contexto do pós-guerra, quando a região vinhateira sofria o impacto de uma conjuntura comercial desfavorável para o sector do vinho do Porto. Por essa altura, a sociedade duriense mantinha ainda os quadros de vida tradicionais, com uma forte ruralidade em torno do trabalho manual das vinhas, com grandes desigualdades sociais e profundas carências acumuladas desde o período filoxérico, na segunda metade do século XIX, e sucessivamente agravadas, depois, com o esforço de reconstrução do vinhedo, com as crises comerciais e, mais proximamente, com as condições impostas pela guerra, gerando enormes dificuldades de escoamento dos vinhos, a par da sua depreciação, o que se reflectia na vida miserável da maior parte das aldeias. Foi esse Douro do imediato pós-guerra que Redol captou nos seus romances, independentemente da época histórica em que situou os respectivos enredos. Era ainda um tempo em que alguns rabelos continuavam a sulcar o


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rio na faina do transporte das pipas de vinho para os armazéns de Gaia, apesar da concorrência do comboio, retratada em Porto Manso, e mesmo já de camiões. Seria preciso esperar pelos revolucionários anos sessenta e pela construção da barragem do Carrapatelo para que a faina fluvial dos rabelos se extinguisse de vez, coincidindo com outras transformações, não menos radicais, na paisagem física e social das aldeias do Douro, de que se poderiam destacar os movimentos migratórios dos pobres e mais jovens para as cidades e para a Europa, despovoando os lugares e impondo novas relações laborais, devido à falta de mão-de-obra, numa conjuntura comercial de grande crescimento, mais favorável aos produtores. Mas o Douro de Redol é o Douro anterior a todas essas transformações, coincidente, em múltiplos aspectos, com as representações de muitas outras obras de escritores de diversas correntes literárias, que fizeram dos anos quarenta o período áureo da literatura duriense. Basta recordar, sem preocupações de exaustividade: os contos de Pina de Morais, reunidos nos livros Sangue Plebeu e Vidas e Sombras, publicados em 1942 e 1949; ou os de João de Araújo Correia, Contos Durienses, Terra Ingrata e Três Meses de Inferno, de 1941, 1946 e 1947, na sequência de Contos Bárbaros, saído em 1939; Miguel Torga publicou os Contos da Montanha e os Novos Contos da Montanha, em 1941 e 1944, a que se seguiria o romance A Vindima, em 1945; O caminho para lá, de Domingos Monteiro, saiu a público em 1947; depois de publicar A Aldeia das Águias, em 1939, Guedes de Amorim daria à estampa Os Barcos Descem o Rio, em 1945; ainda dos anos quarenta é o romance de Sousa Costa, As Filhas do Pecado, saído em 1946. Nunca a literatura duriense foi tão pródiga como nessa década, enriquecida também com os romances de Redol, Porto Manso (1946) e Horizonte Cerrado (1949), primeiro volume do «Ciclo Port Wine», a que se seguiriam mais dois, Os Homens e as Sombras (1951) e Vindima de Sangue (1953). Por outro lado, vale a pena compreender as condições de produção da obra duriense de Redol, do ponto de vista das vicissitudes que rodearam então a vida do escritor e dos constrangimentos que lhe foram impostos pelo regime, através da censura prévia. Alves Redol esteve pela primeira vez no Douro em Setembro de 1943. Nessa altura, o escritor pretendia reunir informações relacionadas com o trabalho na região duriense, para um livro que deveria integrar uma colecção sobre O Trabalho em Portugal, a lançar

pela Editorial Inquérito229. Nessa sua primeira estadia no Douro, encontrou-se com José Arnaldo Monteiro, editor da Régua230, que o terá acompanhado por vários lugares, nomeadamente ao Pinhão, onde o apresentou a Francisco Tavares Teles, de quem se tornaria amigo para toda a vida231. Com 31 anos, Alves Redol era já um escritor reconhecido e sê-lo-ia também no Douro, sobretudo nos meios intelectuais de Oposição ao regime. Além de colaboração dispersa na imprensa, em especial em O Diabo e Sol Nascente, tinha publicado diversas obras, desde Glória, Uma Aldeia do Ribatejo (1938), avançando, de forma pioneira, para uma estética neo-realista com o romance Gaibéus (1939), a que se seguiram Marés (1941), Avieiros (1942) e Fanga (1943)232, entre outros. Mas esse primeiro projecto duriense de Redol não teve sequência imediata, provavelmente porque se intensificou, logo a seguir, a militância política do escritor, com a sua participação nas actividades do Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista (MUNAF)233 e na mobilização dos meios operários da zona ribeirinha do Tejo. Na sequência do importante movimento grevista de Maio de 1944, Alves Redol seria preso pela polícia política, dada a sua intimidade com Soeiro Pereira Gomes234, seu compadre235 e um dos organizadores da greve, que passaria, entretanto, à clandestinidade. Redol esteve quase três meses na prisão, só sendo libertado em 5 de Agosto. O apertar da vigilância policial poderá ter levado Redol a regressar ao seu projecto duriense, no início de 1945, instalando-se então em Porto Manso, uma aldeia de barqueiros, no concelho de Baião, onde recolheu informações para o seu primeiro romance sobre o Douro. De regresso a Lisboa, continuaria a envolver-se, sobretudo a partir do final da Guerra, em actividades políticas e em iniciativas culturais. Nos últimos meses desse ano, participou activamente na criação do 229  Cf. entrevista de Redol, publicada no jornal A Tarde, Porto, ano 1, n.º 45, 21.02.1945, p. 1 e 4. 230  O jovem José Arnaldo Monteiro (?-1964) foi um reguense oposicionista ao salazarismo, com ligações ao Partido Comunista. Apaixonado pelas letras e pelos livros, formou em 1935 uma sociedade (Figueiredo, Correia & Monteiro, Lda.) com o médico e escritor João de Araújo Correia e com Domingos Macedo de Figueiredo, para criar a Imprensa do Douro, na Régua. 231

TELES, 1975: 49.

232  Sobre a importância da obra de Redol no neo-realismo português, veja-se: FERREIRA, 1992; VIÇOSO, 2011. 233

PEREIRA, 1999: 349; GODINHO, 2001: 103-104.

234

FALCÃO, 2005: 115; REDOL, 2011: 265.

235

Era padrinho do filho de Alves Redol, António Mota Redol.


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MUD - Movimento de Unidade Democrática, a cuja Comissão Central chegou a pertencer. Ao mesmo tempo, desenvolvia acções nas colectividades locais, como o Ateneu Artístico Vilafranquense, e envolvia-se na fundação de importantes organismos culturais, integrando a Comissão dos Escritores, Jornalistas e Artistas Democráticos, sendo-lhe atribuída a redacção do «manifesto contra o regime fascista», publicado em Novembro de 1945236. Ainda nesse ano, participou na criação do Círculo de Cultura Teatral e, no início de 1946, do Teatro-Estúdio do Salitre, onde seria representada a sua peça de teatro Maria Emília, publicada no ano anterior na revista Vértice. Nesse ano de 1946, empenhou-se também na fundação do PEN Club, integrando a sua primeira direcção, como secretário-geral. Redol terá escrito Porto Manso nesse período agitado da sua vida, entre o Verão de 1945 e os primeiros meses de 1946. Talvez por isso, o resultado o tivesse deixado insatisfeito do ponto de vista literário. Dirá, mais tarde: «Porto Manso, por exemplo, que vou tentar refundir, é um romance característico do que se não deve fazer em literatura»237. Quanto aos romances do «Ciclo Port Wine», cuja ideia terá partido de conversas com José Arnaldo Monteiro e Francisco Tavares Teles, provavelmente ainda em 1945, a sua concretização foi também afectada por contínuos contratempos e pelas multifacetadas actividades do escritor. No Verão de 1946, após a publicação de Porto Manso, Redol retomou a preparação do Cancioneiro do Ribatejo, que viria a publicar em 1950, envolvendo-se ainda em outros projectos, entre os quais a adaptação ao cinema de Porto Manso, que acabou por não se concretizar. A partir de finais de Setembro, e durante alguns meses, Redol viveu em Paris, num hotel do Quartier Latin, multiplicando-se em contactos para recolher informações para um novo livro, A França — da Resistência à Renascença, que começaria a publicar em fascículos, no início de 1948. No entanto, esse livro já deveria estar concluído ou muito avançado no Verão de 1947, quando o escritor anunciou ao seu amigo Tavares Teles a sua intenção de começar a recolha de informações para o seu romance sobre o Douro: «É desta vez que me disponho a fazer o romance do seu Alto Douro. Tenho aí no Pinhão uma pensão ou taberna onde se arranje uma tarimba

e umas sopas?»238. No início de Setembro, estava instalado na Pensão Douro, iniciando as suas pesquisas. Durante cerca de uma semana, compilou elementos, deslocando-se à Régua, Lamego, Valença, S. Salvador do Mundo e outros locais. Em Janeiro de 1948, já Redol começara a escrever o primeiro volume do «Ciclo Port Wine». Nessa altura, pensava dedicar ao Ciclo quatro volumes, pedindo a opinião de Tavares Teles sobre os títulos que tencionava dar-lhes: Esganados, Sangue dos homens ou Horizonte fechado, Estrela a Estrela e Raízes na terra239. Porém, logo a seguir, novas contrariedades na vida de Alves Redol vieram perturbar a prossecução do seu projecto. As relações com a Inquérito, que publicava os seus livros desde 1944, degradaram-se até ao ponto de ruptura e Redol teve de assumir funções de editor, à frente da ARS – Editorial, para a publicação de novos fascículos de A França. Mesmo assim, não deixaria de se deslocar ao Douro, pouco depois, para assistir às cavas240. E, em Julho, estava já a fazer a revisão o livro, com o título Horizonte Fechado, esperando poder dispor de uma pausa «para subir ao Douro» e ler o texto aos amigos241. No início do Agosto, enquanto preparava a edição da peça de teatro A Forja, procedeu a uma nova revisão do Horizonte Fechado242, antes de participar no Congresso Internacional de Intelectuais para a Paz, que decorreu em Breslávia (Wroclaw), na Polónia, entre 25 e 28 de Agosto243, e que reuniu alguns dos maiores escritores, artistas e cientistas de todo o mundo e onde Redol falou em representação dos intelectuais portugueses. Não sabemos se Redol chegou a ir às vindimas do Douro nesse ano, como planeara, mas no início de Outubro entregaria o original do livro à censura244. E, em Dezembro, estava na tipografia, já com o título Horizonte Cerrado, ficando pronto em Janeiro ou Fevereiro do ano seguinte. Pelo meio, a vida conturbada de Redol enfrentou outros problemas, des-

236  REDOL, 2011: 268.

243

237  Diálogo com Alves Redol. «Gazeta Musical e de Todas as Artes», n.º 118, Janeiro 1961, p. 174.

244  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 11 de Outubro de 1948, publicada em PEREIRA, 2013a.

238  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 15 de Agosto de 1947, publicada em PEREIRA, 2013a. 239  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 27 de Janeiro de 1948, publicada em PEREIRA, 2013a. 240  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 29 de Março de 1948, publicada em PEREIRA, 2013a. 241  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 7 de Julho de 1948, publicada em PEREIRA, 2013a. 242  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 3 de Agosto de 1948, publicada em PEREIRA, 2013a. Cf. REDOL, 2011: 274-275.


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de o envolvimento na empresa de materiais de construção, Redol & C.ª, que criara com o pai e o cunhado em finais de 1947245, até à degradação da sua relação conjugal com Maria dos Santos Mota, que conduziu à separação do casal, em Outubro de 1948, com um consequente maior afastamento de seu filho António, então com cinco anos, que ficaria a viver com a mãe. Redol teve de encontrar um quarto para recomeçar a vida, com a sua nova companheira, Natália Cruz246, com quem viveria durante cerca de quinze anos, até 1963. A escrita do segundo volume do «Ciclo Port Wine», inicialmente intitulado Terra Mártir, foi ainda mais penosa. As dificuldades financeiras obrigavam-no a dedicar-se a tempo inteiro ao trabalho na empresa Redol & C.ª, tirando-lhe ânimo para prosseguir, como confessou a Tavares Teles, em Agosto de 1949: «O segundo volume do ciclo continua na mesma — e se não tivesse escrito o primeiro deixaria o encargo para outros. A empreitada é difícil e sem estímulos torna-se penosa. É que isto de fazer literatura a pensar em pagamentos de renda de quarto e de comida é tarefa superior a um cérebro já cansado e que não pode achar repouso»247. Mas, como é sabido, Redol oscilava entre períodos de desânimo e outros de grande entusiasmo, em que escrevia sem parar. Menos de três meses depois, em Dezembro, já o escritor dava por concluído o segundo volume do «Ciclo», entregando o original à Censura, que o sujeitou a inúmeros «cortes»248. Só seria publicado mais de um ano depois, no final de Abril de 1951, com muitas alterações. Ainda em Janeiro desse ano, Redol revelava a Tavares Teles: Entretanto cá prossigo, vencendo os inimigos exteriores e mais este que mora dentro de mim, dizendo-te que “heroicamente” refiz por duas vezes Terra Mártir e só agora o considero um romance digno do meu propósito: o de dar ao ciclo o meu melhor trabalho. Alterei quase tudo, para não dizer tudo, e modifiquei-lhe o título que será agora Os Homens e as Sombras, reservando o outro, o primitivo, para o 3.º volume. A publicação deve ainda demorar, porque não me abunda o dinheiro e não procuro editor.249 245  REDOL, 2011: 268. 246  Natália Cruz terá sido a «mulher da sua vida», segundo REDOL, 2011: 275 e 303. 247  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 19 de Agosto de 1949, publicada em PEREIRA, 2013a.

Certamente, o reconhecimento público da obra de Redol, a par da atribuição, em 1950, do Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, ao romance Horizonte Cerrado, animou o escritor a prosseguir. Em 1951 e 1952, trabalhou afincadamente no terceiro e último romance do «Ciclo». Em Maio de 1951, tinha já imenso material recolhido, pedindo ao seu amigo Tavares Teles para lhe arranjar um local para dormir e comer em Valdigem ou Cambres, onde tencionava passar alguns dias «para colher os últimos elementos» de que necessitava250. Nesse ano e no seguinte, Redol deslocou-se algumas vezes ao Douro, continuando a dividir-se entre a actividade comercial do negócio familiar de materiais de construção, em Vila Franca, a vida em Lisboa, a escrita e o cinema251. Em Novembro de 1952, anunciava a Tavares Teles a conclusão de Vindima de Sangue: Ando em revisão do 3.º volume do ciclo, contente algumas vezes, descontentíssimo noutras, embora a tipografia comece esta semana a imprimi-los. Mas até ao fim há «espinhos» por arrancar, ficando ainda com a certeza de que tantos outros permanecem, como a avisar o pobre escriba que a literatura já se não pode fazer por amadorismo. / Acabo, porém, o ciclo com a impressão de que deixei nele o melhor que consegui até hoje — e lembro-me quase todos os dias, eu que sou um falhado de memória, naquilo que te prometi ao iniciá-lo. Tive vontade — sincero desejo mesmo — de subir até ao Douro e fazer uma leitura contigo e o Zé Arnaldo.252 Observação etnográfica e análise histórica Na construção dos seus romances durienses, Alves Redol seguiu o método já utilizado em obras anteriores, desde Gaibéus, procurando que a narrativa não só se aproximasse de um «documentário humano» da vida popular, mas que emanasse também do povo, que penetrasse nas suas mais profundas preocupações e aspirações, numa lógica mimética, como salientou Vítor Viçoso253. Para isso, Redol utilizou a metodologia etnográfica de recolha de informação, combinada com 1951, publicada em PEREIRA, 2013a. 250  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 24 de Maio de 1951, publicada em PEREIRA, 2013a. 251  Elaborou o argumento do filme Nazaré e os diálogos de Vidas sem Rumo, ambos realizados por Manuel Guimarães e que seriam severamente amputados pela censura. Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 27 de Agosto de 1952, publicada em PEREIRA, 2013a.

248  Cf. REDOL, 2011: 137 e 277.

252  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 19 de Novembro de 1952, publicada em PEREIRA, 2013a.

249  Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 1 de Janeiro de

253

VIÇOSO, 2011: 35.


Entre a Etnografia e a História

o que chamaríamos hoje de «observação-participante», método correntemente utilizado pelos antropólogos. Desde o seu primeiro livro, Glória: Uma Aldeia do Ribatejo, publicado em 1938, uma obra de etnografia, inspirada nos trabalhos de Leite de Vasconcelos, Redol nunca deixou de usar o «trabalho de campo» para recolher informações sobre acontecimentos, situações, termos populares, alfaias de trabalho, tradições, formas de pensar, de dizer, de fazer e de viver dos personagens e ambientes que pretendia trabalhar nos seus romances e que ia reunindo nos seus cadernos de notas. Recorria também ao uso da fotografia. Em 1945, para escrever Porto Manso, acompanhou os barqueiros do Douro, em viagens perigosas de transporte de vinho pelo rio. Em Fevereiro desse ano, sob o título O humano romancista da Fanga, barqueiro entre barqueiros, foi instalar-se em Porto-Manso, aquém-Baião, onde prepara um livro sobre a trágica vida dos mareantes do Douro, o diário portuense A Tarde abria uma entrevista ao escritor com as seguintes palavras: Chegou ao Porto e desembarcou na Ribeira. Veio num rabelo carregado com 16 pipas de vinho fino e, durante dois dias e duas noites, pés descalços, camisola de lã grossa a tapar-lhe o peito forte, a inseparável gorra azul a cobrir-lhe a cabeleira espessa, fez vida de barqueiro. Em Entre-os-Rios, com a força da corrente e o espesso nevoeiro — de cortar à faca — o barco bateu num pegão e correu risco de naufrágio. Nem assim se intimidou. Voltará para Porto-Manso pelo Douro acima e lá ficará até colher todos os elementos de que precisa para o seu próximo romance.254 No caso dos três romances do «Ciclo Port Wine», em que descreveu a vida de uma família de pequenos viticultores do vale do Rio Torto no início do século XX, Redol baseou-se em grande parte, como já o tinha feito em Porto Manso, nas informações colhidas localmente, quer transmitidas pelos seus amigos durienses, em especial José Arnaldo Monteiro e Francisco Tavares Teles, aos quais dedicou o romance Horizonte Cerrado e com quem trocou abundante correspondência. Muitas cartas de Redol para Tavares Teles deixam perceber a importância deste último como seu informador privilegiado, com quem discutia os romances ou parte deles, antes de fixar a versão final255. De resto, as estadas de Redol no Douro permitiram-lhe conviver com o povo das aldeias, observar fainas agrícolas 254  A Tarde, Porto, ano 1, n.º 45, 21.02.1945, p. 1 e 4. 255  PEREIRA, 2013a

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(surribas, podas, cavas e vindimas, ceifas e malhadas, etc.), ouvir os modos de falar locais, a que dava grande importância, perceber as preocupações das pessoas, colhendo materiais para os seus livros256. Neste ciclo de romances, cujo enredo se situa, cronologicamente, entre finais da Monarquia e os primeiros anos da República, Redol traçou, além disso, um notável painel da história do Douro nesse período dramático que sucedeu à reconversão pós-filoxérica, marcado pela crise comercial, por formas de concorrência desleal, com imitações e falsificações, pela desvalorização do vinho do Porto e pelas dificuldades de escoamento, que provocaram a pauperização das aldeias durienses e uma forte agitação social, culminando no trágico motim popular de Lamego de 20 de Julho de 1915. Nestes romances, Redol revela um profundo conhecimento histórico, situando com bastante rigor cronológico e factual, situações e acontecimentos regionais, nacionais e europeus. Além das informações locais, Redol procedeu a uma intensa pesquisa de fontes documentais. Alguma documentação que estudou foi-lhe fornecida por amigos da região, mas completou-a, depois, nas bibliotecas da capital, com leituras de jornais da época, actas das sessões da Câmara dos Deputados e do Senado, memórias de políticos e diplomatas, etc.257 NOTAS FINAIS

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onsiderando as fontes de informação de que Alves Redol se serviu e a forma como incorporou na narrativa literária elementos da observação etnográfica e da análise histórica de documentação da época, não é difícil perceber a importância da sua obra para aprofundar o conhecimento sobre o Douro, em diversos campos e sentidos. Antes de mais, como procurámos salientar, oferece-nos um quadro antropológico do Douro no pós-guerra, baseado na observação apurada da vida nas aldeias durienses, na faina fluvial dos barqueiros e nos trabalhos da vinha, nos rituais e tradições, desde as «pulhas» carnavalescas às canções de trabalho, como a «Maria Cavaca» dos cavadores, mas também às preocupações 256  A este propósito, vale a pena ler o depoimento de TELES, 1975: 4957. 257  Como Alves Redol refere na coda do livro Vindima de Sangue: «Os três volumes de que se compõe o ‘Ciclo Port-Wine’ abarcam os primeiros quinze anos deste século, que se não pretendem historiar, embora o romancista se tenha documentado para o enquadramento das suas personagens nos problemas da época». Também na correspondência para Francisco Tavares Teles se refere à leitura de memórias e documentos da época.


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e aspirações dos diversos grupos sociais da complexa sociedade duriense. Por outro lado, tendo em conta a interacção do discurso literário com as representações colectivas, a leitura atenta destes romances permite-nos perceber a importância e os significados que as pessoas com quem Redol contactou no Douro atribuíam aos fenómenos que marcaram os movimentos populares do final da Monarquia e no início da República e a sua integração nos movimentos regionais mais amplos. Finalmente, o contributo para o conhecimento de diversas situações e acontecimentos marcantes da história regional. Alguns deles, como o motim de Lamego de 1915, apesar da sua importância, foram, até há pouco tempo, praticamente ignorados pela historiografia nacional, que lhes concedeu, quando muito, mesmo em obras de maior fôlego, algumas linhas258, para não falar na deturpação dos acontecimentos259. É verdade que a historiografia mais recente sobre a região do Douro tem vindo a desenvolver análises mais detalhadas e fundamentadas sobre este período260. Mas não é menos verdade que só começou a fazê-lo várias décadas depois da publicação dos romances de Alves Redol261. Porto, Setembro de 2013

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258  Veja-se, por exemplo: PERES, 1954: 118-119; MARQUES, 1978: 159. 259  Por exemplo, na obra recente de António José Telo sobre a I República, pode ler-se a seguinte interpretação: «As vagas de assalto são sobretudo um resultado da conjuntura de guerra e não podiam ser dela dissociadas. A prova surge em Julho de 1915, quando o que tinha começado por ser um movimento exclusivamente urbano se alarga às zonas rurais. Começam nesse mês as “revoltas camponesas”, com as populações rurais a “invadirem” Lamego para assaltar armazéns e destruir tudo o que lhes cheirasse a Estado que encontrassem pela frente, a começar na câmara municipal». TELO, 2010: 328. 260  A propósito dos antecedentes e do contexto histórico em que se situam os romances de Alves Redol do «Ciclo Port Wine», veja-se SEQUEIRA, 2000; SEQUEIRA, 2003: 77-86; PEREIRA & SEQUEIRA, 2004: 59-77; SEQUEIRA, 2011. 261  Já antes, Pina de Morais tinha centrado um dos seus textos no motim de Lamego. No entanto, ao estilo de Pina de Morais, trata-se de um texto breve, sem avançar para a contextualização ampla que Redol desenvolveria nos seus romances. MORAIS, 1942.

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Entre a Etnografia e a História

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Revoltas populares no Douro Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego), no final da Monarquia e início da República: representações sociais e identidades a partir da imprensa da época texto: Maria Otilia Pereira Lage / Investigadora do CITCEM e Professora Associada da Universidade Lusófona do Porto

Resumo: Faz-se uma aproximação socio-histórica, com base na imprensa local e nacional, aos movimentos sociais e revoltas populares durienses verificados em Carrazeda de Ansiães, Vila Flor, Sabrosa, Alijó, Régua e Lamego, entre 1909-1910 e 1915, reflectindo-se, no contexto da “Questão do Douro”, tonada questão nacional, e da defesa da “marca regional” do vinho, sobre a emergência de representações sociais e identidades conjunturais/ contextuais, em situação de crise, cujas dinâmicas de construção e afirmação específicas, se tentam qualificar, na perspectiva de análise sociológica dos levantamentos populares.

Abstract: Makes it a socio-historical approach, based on the local and national press, about social movements and popular uprisings seen in Douro ( Carrazeda Ansiães, Vila Flor, Sabrosa, Alijó Ruler and Lamego), between 1909-1910 and 1915, reflected whether in the context of the “question of the Douro,” made a national issue, and the defense of “regional brand” wine, on the emergence of social representations and identities situational / contextual, in crisis, whose dynamic construction and affirmation specific if they attempt to qualify the perspective of sociological analysis of popular uprisings.

Palavras-chave: Motins e revoltas populares; Região do Douro; século XX; Identidades e representações sociais

Key words: Riots and uprisings; Douro region; the twentieth century; identities and social representations


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Maria Otília Lage

INTRODUÇÃO

A

Região do Douro Vinhateiro é historicamente uma espácio - temporalidade altamente regulamentada e profundamente normativizada, em especial desde que, com o Marquês de Pombal, se tornou na primeira região vitivinícola demarcada e cadastrada do mundo. Considera-se que tal regulamentação, que desde então oscilou entre o proteccionismo e o livre-cambismo, é factor de uma latente e constante conflitualidade de interesses, melhor ou pior representados, mobilizando fortemente em momentos de crise e ameaça de ruptura as populações locais, as quais, em diferentes conjunturas, assumiram formas extremas de manifestações sociais: motins, tumultos, levantamentos, sublevações populares, comícios e outras formas de protesto que importa estudar no seu conjunto, para melhor compreender o seu significado histórico. Nos finais da Monarquia e durante os primeiros anos da Republica, milhares de trabalhadores e pequenos proprietários da Região Vinhateira do Douro se manifestaram em revoltas e motins populares que ocorreram, sucessiva e alternadamente, em diferentes concelhos (Régua, Santa Marta, FozTua, Carrazeda de Ansiães, Alijó, Vila Flor e Lamego), de 1910 a 1915, tal como sucedeu noutras regiões vinhateiras da Europa de que é exemplo, o significativo movimento dos vinhateiros franceses no Languedoc em 1907, com desfecho trágico e grande amplitude, chegando a juntar cerca de 600.000 pessoas em Montpellier. (Gaspar Martins Pereira e Carla Sequeira262). No Douro, as contestações populares configuraram um dos aspectos sociais e políticos mais relevantes da designada “Questão do Douro”, cuja resolução institucional iria ser tentada, por legislação reguladora da produção e comércio dos vinhos generosos e pela nova demarcação franquista da região Duriense vinhateira (1907-1908). É neste processo social da história contemporânea do Douro, profusamente informada pela imprensa, mas historicamente pouco estudada, que se centra agora o nosso interesse.

262  PEREIRA, Gaspar Martins, SEQUEIRA, Carla - Da Missão de Alijo ao Motim de Lamego: crise e revolta no Douro Vinhateiro em inícios do século XX publicado em “Revista de História da Faculdade de Letras do Porto”, Série III:vol.5, pág.59-77.

1. QUADRO TEÓRICO E METODOLÓGICO DE ANÁLISE

D

esde a época moderna que a região Vinhateira do Douro tem sido um espaço de forte tensão social e palco de recorrentes manifestações populares. A sua análise, enquanto fenómenos isolados ou enquadrados noutras temáticas tem merecido interesse esporádico dos historiadores que os estudam, em regra, sob a perspectiva das suas motivações, consequências e lideranças, em contextos históricos mais latos, e não como fenómeno sócio-histórico autonomamente considerado, embora caracterizado por traços e características gerais próprias, no quadro da Região Duriense, cuja história social, o seu estudo reflexivo e crítico, em concreto, melhor ajudará a iluminar. Tenta-se então descrever e analisar com enfoque em Lamego e Carrazeda e num enquadramento socio-histórico, as reivindicações e revoltas durienses dos finais da Monarquia e primeiros anos da República, período marcado por aguda crise comercial, superprodução e agitada conjuntura social em que tem lugar a nova demarcação franquista. 1.1. Lutas sociais e imprensa Dada a importância e protagonismo dos órgãos de comunicação social no contexto dos movimentos populares em observação, (Régua, Santa Marta de Penaguião, Armamar, Carrazeda, Alijó, Vila Flor e Lamego com episódios idênticos noutros concelhos) num arco temporal de 5 anos, a fonte principal — um manancial inesgotável — há-de ser sempre a imprensa da época. Tendo sido alvo de vasta cobertura da imprensa nacional, regional e local, estas manifestações podem ser reconstituídas, recorrendo-se aos seus registos jornalísticos, embora seja delicada a tarefa do historiador, já que “ a voz jornalística” sempre pretende conferir objectividade a suas opiniões particularistas induzidas pelos interesses financeiros, políticos e contextos sociais em que os jornais agem e tentam sobreviver, sem se afastar muito do universo de seus leitores cuja opinião pretendem formar. Sabe-se que os meios de comunicação estão em constante disputa pela sua sobrevivência que reside nos seus públicos, cujas necessidades tentam conhecer não para satisfazê-las mas para os não perder, móbil


Revoltas populares no Douro Vinhateiro

do carácter empresarial do jornalismo.263 Tal não inviabiliza porém o uso destas fontes, pois se podem encontrar em suas páginas - “os rostos” da multidão, editoriais sobre o assunto - , informações valiosas sobre as descrições dos acontecimentos, tentativas da explicação dos factos, mesmo que parcelares e facciosas, conhecimento de como a cobertura foi feita, de como chegou ao público leitor, quais as suas posições dominantes, como explicá-las e ainda poder descobrir, aspectos e características da composição social dos revoltosos e lideranças. É ainda de considerar a imprescindibilidade de pesquisa e análise das notícias jornalísticas sobre as revoltas sociais pela exiguidade ou até inexistência de outras fontes directas sobre tais acontecimentos mais ou menos “espontâneos e sigilosos”. 1.2. Para uma aproximação socio-histórica aos levantamentos populares durienses Impondo-se por outro lado, uma referência teórica consistente para o estudo socio-histórico destas sublevações populares, recorremos à perspectiva dos novos estudos sociais e históricos, estabelecida por I. Wallerstein, sociólogo americano, director do Centro Ferdinand Braudel, reportando-nos aqui, em especial, a uma sua análise reflexiva actual dos mais recentes levantamentos populares em vários países do mundo264, que caracteriza em 5 aspectos principais: 1 - contestação da legitimidade do estado, com uma tonalidade de “esquerda” na arena política, pautada pela repressão que age no curto prazo e/ou cedências; 2 - dificuldade destes levantamentos em manter-se por muito tempo em alto nível; 3 - protestos que deixam um legado, mudando sempre alguma coisa na política, para melhor; 4 - muitos, quase sempre “de direita” que se juntam mais tarde a estes levantamentos, não fortalecem os seus objectivos iniciais, antes os pervertem; 5 - todos os levantamentos populares são envolvidos pela luta geopolítica, o que exige perceber as suas consequências em termos de sistema mundo.

263  MARCONDES Filho citado por CHARLESTON José de Sousa Assis - Grande imprensa e lutas sociais: os jornais e os populares na revolta popular carioca de 1987, pág.10, Disponível em www.encontro2010.rj.anpuh. org/.../1276740123_ARQUIVO consultado em 2 /5/2013. 264  WALLERSTEIN, I. - Commentary No. 356, July 1, 2013. “Uprisings Here, There, and Everywhere”. Disponível em http://www2.binghamton. edu/fbc/commentaries/archive-2013/356en.htm, consultado em 3/9/2013

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2. DESCRIÇÃO DE SUBLEVAÇÕES POPULARES NO DOURO E CONTEXTO HISTÓRICO

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situação no Douro, no início do séc. XX, caracteriza-se por uma profunda miséria geral provocada por um vasto conjunto de dificuldades inerentes em grande parte, aos múltiplos problemas de produção, escoamento e comercialização dos seus vinhos com especial destaque para o Vinho do Porto, principal produto de exportação, e respectiva legislação reguladora. Nesse ambiente de crise generalizada e confrangedora desgraça, tornada questão nacional premente de solidariedade, fraternidade e intervenção humanitária, designadamente em toda a imprensa, a “Miséria do Douro” era denunciada, através dos males sociais que atingiam a região, as suas populações e centenas de trabalhadores e lavradores: fome, doença, morte, promiscuidade primitiva dos casebres, emigração crescente, despovoamento, fisco implacável, velhos, mulheres e crianças à espera da caridade alheia, num quadro generalizado e pavoroso a que era urgente valer. Caldeava-se assim um pano de fundo social gerador de peditórios públicos e campanhas de solidariedade através da imprensa e, em casos limite, revoltas e motins populares. 2.1.Tumultos em Carrazeda de Ansiães, Alijó, Vila Flor… (1910-1912) Por exemplo, no concelho de Carrazeda de Ansiães, espaço significativo da RDD, o frio, a fome e as exíguas condições de vida, por extrema falta de trabalho que nem a cultura do tabaco então aí iniciada conseguiu atalhar, chegaram a provocar vítimas mortais e explicam que recorrentemente se implore a caridade pública. Veja-se por exemplo, o que noticiava o “Primeiro de Janeiro” em Fevereiro de 1909: “Escrevem-nos de Carrazeda de Ansiães a propósito da miséria que lavra naquele concelho. É uma senhora que se nos dirige. Começando por aplaudir a nossa atitude e traçando depois o quadro de infortúnio que ali presencia dia a dia, jornaleiros e pequenos lavradores não têm pão para comer. Os últimos ainda têm algum vinho mas é quase o mesmo que não ter nada, visto que oferecem 7$000 réis por cada pipa posta em Foz - Tua. Ora só carreto custa 2$500 réis… A nossa leitora pede-nos que lembremos o seguinte (…) - que se examine com mais atenção e justiça, a área


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Maria Otília Lage

demarcada da região privilegiada do Douro, a fim de serem atendidos os pobres daquela comarca.” Continua a aflorar aqui, como na Representação às Cortes dos Viticultores de Carrazeda, de 1907, a invocação de justiça e de um olhar atento para a Região Demarcada do Douro. Por sua vez, a Liga dos Lavradores do Douro representava ao Governo, em 4 de Fevereiro de 1909, sugerindo medidas e criticando as contradições da nova legislação dita em favor do crédito de genuinidade dos vinhos desta região e, advogando a causa dos operários pede-se “ao Estado que auxilie os operários com obras nos caminhos que são ainda quase os mesmos da época em que se iniciou o comércio dos vinhos do Douro há quase 300 anos” 265 Pela mesma ocasião, em Fevereiro de 1909, “O Primeiro de Janeiro”, divulga uma grande foto de crianças famintas nas ruas de Favaios, e publica carta de um transmontano, com idênticas denúncias e o seguinte alvitre conciliador: “É sabido que há milhares de pipas de vinho sem sequer ter pretendentes e que ainda não se fixou preço a cada pipa, devido a não ter aberto preços a “Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro”, conhecida vulgarmente por “Companhia Velha” que é a reguladora dos preços dos demais compradores…. Perante tamanha desgraça, sendo certo que a prosperidade da Companhia é devida à excelência dos vinhos do Douro, haverá quem censure os seus directores por pagarem os vinhos daquela região por preço que sem prejudicar a Companhia, beneficie tanto infeliz?” Esta fortíssima onda social de queixas aflitivas, denúncias de males “in extremis”, recorrentes representações dos viticultores e proprietários às Cortes, contra as fraudes e visando influenciar as leis que o Governo preparava, acaba por explicar a súbita e sucessiva emergência de motins e sublevações de milhares de indivíduos e o alastramento da excitação popular, de umas povoações a outras. Em 1914, cresce ainda mais, no Douro, a agitação social (imponentes comícios em Vila Real, Régua…) reclamando do governo maior fiscalização e protecção para os seus vinhos generosos e garantias de exportação do Vinho do Porto, cuja proveniência de origem se defendia face às fraudes e concorrências protegidas por leis, contestadas por não garantirem a marca ex265  “O Primeiro de Janeiro”, Fevereiro de 1909.

clusiva dos vinhos durienses, circunstâncias agravadas pela escassez das colheitas de anos anteriores, falta de trabalho e miséria dos trabalhadores. 2.2. O Motim de Lamego (1915) Numa primeira fase, a designada “missão de Alijó”, conferenciou com sindicatos, associações e várias câmaras da região, com reuniões na Câmara de Lamego, gerando-se um forte movimento institucional visando a alteração do artº 6 do Tratado de Comércio Luso-britânico (12 de Agosto de 1914) de forma a garantir os direitos da região do Douro como único produtor do Vinho do Porto para exportação. Numa segunda fase (Jan. -Jun. de 1915), perante o impasse das negociações com o governo, a instabilidade governativa, visando afastar do poder os republicanos, a carestia e escassez de géneros intensificada pelo alastrar da Guerra na Europa, assiste-se ao Motim de Lamego, expressão máxima de enorme exaltação popular. A 20 de Julho de 1915, o povo das aldeias de Cambres, Valdigem, Sande e Figueira, formando “uma marcha da fome” de cerca de cinco mil pessoas, dirigiu-se à cidade de Lamego, manifestando-se em frente ao edifício da Câmara. No momento em que a comissão de representantes se encontrava a conferenciar com a Comissão executiva da Câmara de Lamego, ocorreu a tragédia. De acordo com os relatos dos jornais (“ A Fraternidade”, Lamego, 24 de Julho de 1915, p.1) tudo corria pacificamente, quando de repente, a população foi atacada com bombas, caindo mortos ou feridos vários manifestantes e debandando a maioria. Com a população em fuga, mais nove pessoas seriam atingidas, mortalmente pelas costas, por tiros disparados das janelas traseiras da câmara. 266. O balanço trágico do “motim de Lamego” somou doze mortos e vinte feridos. As entidades oficiais, a começar pela Câmara Municipal de Lamego, procuraram atribuir as culpas aos manifestantes, posição adoptada também por parte da imprensa de Lamego, afecta ao Partido Democrático 267 . O povo era acusado de ter provocado as forças militares com desacatos. Por outro lado, conferindo um carácter político aos acontecimentos, afirmava-se que os manifestantes se deixaram aliciar por elementos monárquicos que pretendiam derrubar a República.268 266

“A Defesa do Douro” Peso da Régua, 26 de Julho de 1125, p.3

267

“A Tribuna”, Lamego, 25 de Julho e 29 de Agosto de 1915, p.1

268

PEREIRA, Gaspar Martins, SEQUEIRA, Carla, ob. cit.


Revoltas populares no Douro Vinhateiro

A versão oficial dos factos, incluindo relatórios e pareceres judiciais acusava o povo de Lamego, portador de armas brancas e de fogo, de provocar as forças militares e os poderes instituídos e de premeditar a repetição dos acontecimentos de Armamar e da Régua; pelo contrário, a percepção regional viu na acção popular, um acto heróico em defesa dos interesses da Região, considerando os mortos “mártires” da causa que unira na luta as populações do Douro. Em idêntico sentido, a imprensa269 lembra ainda, recentemente, esses acontecimentos: “(…) Há 90 anos, várias dezenas de explorados pelos grandes proprietários do Douro foram recebidos a tiro por um destacamento militar, quando se dirigiam à autarquia para reclamar melhores condições de vida. Mesquita Montes, da Confraria dos Enófilos da Região Demarcada do Douro, contou ao JN o significado da evocação “Serve para lembrar aqueles que, numa altura em que o Douro vivia uma crise que parecia inultrapassada, apenas pediam pão e trabalho nas vinhas. Mas as forças da ordem, por razões que não tem qualquer tipo de explicação, acabaram por metralhar gente de chapéu”. (…) Na sequência das revoltas vinhateiras do início do século XX, em que o Douro enfrentou uma crise comercial aguda e o país vivia uma conjuntura económica depressiva,270 tem-se defendido271 a existência de “uma empenhada intervenção das elites regionais” na liderança dos movimentos populares e “um marcado carácter regionalista” nos protestos durienses de 19141915, pela defesa da denominação de origem de Vinho do Porto, para os vinhos produzidos no Douro.

269  Jornal de Noticias, 21/7/205. 270  Texto disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9644. pdf, consultado em 3 de Jan. de 2012. Ver da mesma autora o artigo Do poder local ao poder regional: o movimento dos paladinos do Douro. Disponível em http://academia.edu/1368742/Do_poder_local_ao_poder_regional_o_movimento_dos_paladinos_do_Douro . Consultado em 10 Jan.2012. 271  SEQUEIRA, Carla - “Da ‘Missão de Alijo’ ao ‘Motim de Lamego’: repercussões do tratado luso-britânico de 1914 no sector do Vinho do Porto”. Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2375.pdf, consultado em 3 Jan.2012

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3. ANÁLISE DE JORNAIS - REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E IDENTIDADES

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anteriormente exposto, é ponto de partida para a análise em concreto que, balizada pelas noções de representações sociais272 e identidades273, vamos agora fazer dos discursos transcritos de alguns jornais que noticiaram, em regra, denunciando, como violentas estas manifestações populares e reclamando forte repressão das forças da ordem para se lhes pôr cobro. 3.1. Comentário analítico de algumas notícias jornalísticas As sublevações e motins ocorridos em Carrazeda, Alijó, Sabrosa, Vila Flor, Santa Marta, Armamar, Régua e Lamego (1910-1915) eram assim noticiados na imprensa: Em Abril de 1910, decorridos 5 dias sobre os levantamentos populares de Carrazeda, “O Villarealense”, Folha Regenadora274 que dá ainda noutro lugar, a noticia “alarmante” do assalto aos armazéns do Tua, inclui na primeira e segunda páginas a seguinte noticia, com base em informações telegráficas recebidas de Carrazeda, “Tumultos em Carrazeda de Anciães – a questão duriense – assalto à repartição de Fazenda – documentos e mobília reduzidos a cinzas – situação alarmante” (…) “Depois dos acontecimentos do Tua recrudesceu a indignação entre o povo de Carrazeda que queimando a repartição de fazenda e arrombando as portas da recebedoria. (…) Carrazeda de Anciães, 17, às 9h da manhã – Pela uma hora da noite, mais de oitocentos homens armados com espingardas, cacetes e machados, entraram 272  Representações sociais, elementos simbólicos, sistema de interpretação da realidade, de composição polimorfa, são um conjunto de conceitos, proposições e explicações com origem na vida quotidiana no desenrolar das comunicações interpessoais (Moscovici,2003) isto é, “comportamentos em miniatura” (Leontiev,1978). São aqui tomadas como saber popular, mitos, crenças, costumes, condensados de memórias e expressão de identidades múltiplas, convergentes e contraditórias que confluem num senso comum e que são histórica e socialmente partilhadas. 273  Identidades sociais definidas num processo de identificação em que os actores se integram num conjunto mais vasto de referência/pertença, através do qual tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, por mecanismos de identificação a dois níveis: produção de identidades concorrentes – identidades locais e regional - que coexistem sem se anular; e consolidação da identidade social, pelo acesso ao mercado gerando instabilidades e rebeliões. 274

5ªfeira, 21 de Abril de 1910


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nesta vila e arrombaram as portas da casa onde está a repartição de fazenda e recebedoria retirando de lá tudo quanto existia para o meio da praça onde lhe pegaram o fogo, deitando-lhe algumas latas de petróleo para ajudar. Alguma gente que tentou chegar às janelas foi obrigada a retirar-se, ameaçada pelas espingardas e pedras. Às quatro horas, depois de estar a papelada e móveis queimados, retiraram-se, fazendo grande algazarra e dando tiros para o ar. Carrazeda de anciães, 17 – Consta que chega hoje aqui uma força de infantaria, (…) Eram quatro horas quando tudo se retirou fazendo uma balbúrdia infernal. As Novidades referindo-se a este procedimento comentam da seguinte forma: a miséria do Douro é grande mas não há miséria que justifique os factos criminosos referidos nos telegramas de Carrazeda de Anciães. (…) Aí de mistura com a miséria e a ruína há evidente anarquia nos espíritos que ninguém já pode modificar e cujos ímpetos somente podem ser contidos pela presença da força pública, à semelhança do que se passa há mais de um ano em Sabrosa, onde a tropa ocupa a repartição de fazenda e recebedoria. Aqui deixamos de novo consignado o nosso protesto contra o vandalismo de incendiar repartições públicas, o que além de ser um gravíssimo crime, tira à causa do Douro a simpatia que ela devia merecer aos poderes públicos. (…)” No dia seguinte é o “Jornal Nordeste”, semanário regional de Bragança, especializado em comunicação da informação dessa região, que cobre também assim a matéria que qualifica como “estado de loucura a que chegaram os povos daquela região”: “Os arrombamentos da Estação do Tua – Na noite de sexta para sábado da semana passada, uma grande multidão… de perto de oitocentos homens dos concelhos limítrofes da estação de Foz-Tua, invadiram o recinto dela, exigiram pela violência, do chefe da estação que lhes fosse abrir o cais fechado, e uma vez ali retiraram e fizeram em estilhaços três cascos de vinho, que vinham do sul para os Cortiços do concelho de Macedo de Cavaleiros. O acto daqueles indivíduos constitui um crime grave e sem que haja atenuantes a desculpá-lo porque os Cortiços ficam fora da região do Douro, e aonde por isso, nos termos do regulamen-

to, podem dar entrada vinhos de fora desta região”.275 Outra notícia do mesmo dia e jornal dá também conta do “Incêndio da repartição de fazenda de Carrazeda – Na madrugada de domingo, 17 do corrente (…) A proximidade deste facto com o da estação do Tua, o mesmo número aproximado de indivíduos, os vivas à Pesqueira e a Alijó e principalmente a Presandães, um lugarejo deste último concelho, fazem presumir que daqueles concelhos sejam também os incendiários. Partiram para Carrazeda contingentes de cavalaria e infantaria e também o governador civil do distrito para dirigir as investigações policiais. Ficaram porém iludidos em seus projectos os incendiários…os magistrados procurarão reconhecê-los através das máscaras, com que alguns cobriam os rostos; também na repartição de fazenda do distrito existe a relação das dívidas relaxadas… e existem todas as cadernetas para a reconstituição das matrizes…”276 Os “Motins no Douro” são ainda noticiados e comentados em 1910, por F. d’ Almeida e Brito em “A Vinha Portuguesa”– publicação periódica da especialidade: “Na madrugada do dia 16 deste mês [Abril] deram-se na Estação do Caminho de Ferro do Tua, no Douro, graves tumultos que provam bem o estado de excitação desta província. Cerca de 2.000 pessoas, armadas dirigiram-se à Estação do Tua, fizeram levantar o chefe da Estação, obrigaram-no a abrir-lhes as portas dos armazéns e verificando que aí se encontrava vinho, proveniente do Sul, do Valado, arrombaram as pipas a machado e rolaram outras para o rio. (…) O vinho que se achava em trânsito dirigia-se para o distrito de Bragança, Estação de Cortiços, linha de Mirandela. O decreto com força de lei, de 1 de Outubro de 1908, no seu artº 5º proíbe a entrada de vinhos de pasto, sem serem engarrafados, nas regiões de vinho licoroso, e de vinho de pasto, anexa, portanto, desde que as autoridades e a Comissão da Régua não vigiam esta determinação, os povos do Douro exercem por suas mãos, e violentamente, essa fiscalização. Mas o que o facto sucedido mostra é a tristíssima situação em que o Douro se encontra. Sem vender as 275

“ O Nordeste”, 22.04.1910, p. 2

276

ibidem


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suas colheitas ou obtendo por elas preços miseráveis os povos estão no último extremo. (… ) A lei do exclusivo da Barra do Douro, tão ardentemente solicitada, proclamada nos comícios como o único salvatério! já não presta! (…)”277 Decorridos dois anos, motim idêntico ocorre em Vila Flor, em 1912, sendo a propósito os acontecimentos de Carrazeda, fortemente criticados: “Os incendiários de Vila Flor -… um magote de dementados do concelho de Vila Flor veio, com o incêndio posto aos papéis da secretaria e tesouraria de finanças daquele concelho, acrescer a má fama, que os anais da justiça penal tem criado à gente do nosso distrito….E o crime foi premeditado e preparado com muita antecedência, como se revela do facto de ser praticado por indivíduos de diversas povoações e todos os actos serem dirigidos a toque de apito por um comandante. E nada se soube em Vila Flor! Mas o que fazem os regedores por essas aldeias?...Quando dos incêndios de Alijó e Carrazeda de Ansiães todos atribuíram o facto a questão política. Seria agora a mesma causa? Mas nesse caso é um acto de rebelião, porque os partidos republicanos não estão ainda organizados em Vila Flor para tentarem um golpe daqueles, nem eles por si o tentariam sem que tivesse repercussão noutros concelhos (….) Se os incendiários de Carrazeda tivessem sido punidos…já agora não haveria tanta facilidade de se cometer o crime de Vila Flor… E não é só aos incendiários de Vila Flor que é necessário fazer justiça: é também aos de Alijó e de Carrazeda…e a República não pode deixar ficar esquecidos os crimes cometidos mesmo antes da sua proclamação…. Como suspeitos estão já presos sete indivíduos e parece que alguns se resolvem a falar.” 278 Esta vaga de rebeliões populares que uniam populações de vários concelhos contra os efeitos perniciosos das fraudes, concorrência desleal, desemprego e miséria absoluta de trabalhadores, o fisco, autêntico garrote dos pequenos lavradores, e outras circunstâncias adversas, como a não aplicação ou ausência de fiscalização de novas leis e a inconsequência dos governos, repercutiu-se em 1915, de norte a sul do Douro não só em Lamego mas também na Régua, com motins de centenas de pessoas, incêndios da Conser-

vatória do Registo Predial e das Finanças, para onde foi deslocado um grande aparato de forças militares,279 como sempre aconteceu nas rebeliões durienses. Observando as motivações, espaços, lideranças, resultados e significados destas sublevações populares com manifestações violentas e violentamente reprimidas, verifica-se que: 1 - os factos referidos de natureza mais ou menos espontânea a que certa imprensa atribui carácter de premeditação e motivos políticos, ou uma situação de crise social generalizada, apresentam lideranças difusas e difusamente identificadas; 2ocorreram numa vasta e disseminada área da região duriense; 3 - tendo-lhe sido atribuídas diversas causas ou motivações - miséria generalizada; inconsequência dos governos face à resolução dos graves problemas de produção e comércio dos vinhos durienses, acusados de favorecerem os vinhos e aguardentes do Sul contra os do Norte; legislação regulamentadora de 1908 da nova demarcação e exclusivo da Barra do Douro, sua não aplicação efectiva, e deficiente fiscalização, dificuldades extremas de escoamento da produção, esta, por sua vez, em crise profunda. Quanto aos resultados e consequências, a generalidade da imprensa regista insistentes avisos ao governo para que tire dos tumultos as ilações necessárias e tome providências enérgicas para proteger a Região do Douro. As peças noticiosas que se lhe referem são genericamente de denúncia acerva e crítica acérrima dos actos tidos por criminosos e violentos, premeditados, em que o povo é induzido por forças e interesses obscuros, a par da defesa insistente da repressão pelas forças militares e judiciais, destes movimentos e seus lideres, julgados e presos. 3.2. Representações sociais e identidades conjunturais emergentes Prosseguindo a análise interpretativa desse movimento de sublevações, socorremo-nos das noções de representações sociais e identidades conjunturais no sentido de que a identidade é relacional e não essencial, como um processo em constante refiguração com especial visibilidade em situações de crise, identidades que (des)aparecem, em função de interesses conjunturais. (Clifford, 1998:10-11). Numa observação de conjunto, verifica-se que são recorrentes as seguintes representações sociais: indignação / onda de revolta / anarquia / vandalismo/ in-

277  Ano 25, Abril nº4 (1910), p.117-118. 278  “O Montanhês do Norte”, 10.11., 1912, p. 2

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“A República”, 18 e 19 de Julho de 1915.


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cendiários / dementados/ punir e fazer justiça/quem os iludiu?/crime grave sem atenuantes / factos criminosos que nem a grande miséria justifica/ aviso ao governo /graves tumultos /estado de excitação desta província/ violentamente impedidos [chefes] de cumprir seus deveres/ reclamando-se a perseguição e repressão feroz dos manifestantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

E

merge assim um processo de construção identitária nas populações do Douro Vinhateiro, forjado em numerosas lutas da Região, com as mesmas motivações mas diferentes níveis de identificação e experiências enraizadas em problemas locais/ internacionais, em que as relações com as instituições do poder são factor fundamental na estruturação e diferenciação de estratégias de uma unidade possível, num contexto de diferenciação/identificação em que os mais afastados das instituições do poder político se identificam, mais facilmente, com as pertenças localistas/regionais, que afloram em contextos de crise. Foram, aliás, crises económicas da região duriense que levaram à criação sucessiva das suas instituições enquadradoras: Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro (1756), Comissão de Viticultura da Região Duriense (1907) e Casa do Douro (1932), cuja acção tem operado para homogeneizar uma identificação regional. Evidenciam-se factores comuns à Região, numa base forte de identificação local/regional com problemas fiscais, dificuldades de trabalho e subsistência de jornaleiros e pequenos proprietários, em tensão subterrânea com fortes interesses e influências económica, social e política de grandes proprietários, comerciantes e exportadores do Vinho do Porto, com mais condições de liderança nacional/global. Transpondo para o caso das revoltas populares durienses nos inícios do séc. XX, a explicação sociológica de Wallerstein dos levantamentos populares actuais, podemos isolar, sem perigo de anacronismo, os seguintes dispositivos analíticos tidos em conta, para um melhor entendimento deste processo de rebeliões populares: a) Características gerais: tonalidades da arena política e da arena social: grupos e interesses em confronto; movimentos de repressão e de concessões do

poder político; Objectivos dos levantamentos, evolução, aumento de escalada e legados idênticos. b) Aspecto geopolítico, mais visível por exemplo no Motim de Lamego em que entre outros motivos, se contestavam disposições do tratado luso-britânico que abriam formalmente os mercados ingleses a todos os vinhos de Portugal, sem atender à especificidade da região duriense, e seus efeitos nefastos na exportação do Vinho do Porto e defesa da denominação de origem e marca. Lembre-se por fim que à época deste movimento de rebeliões, Portugal tomava parte activa na I Guerra Mundial onde o que estava em causa como pano de fundo socio-histórico era a passagem da hegemonia, dentro do mesmo sistema mundo capitalista, da dominação inglesa para a americana.


Revoltas populares no Douro Vinhateiro

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consultado em 3 Jan.2012. SEQUEIRA, Carla - Do poder local ao poder regional: o movimento dos paladinos do Douro. Disponível em http://academia.edu/1368742/Do_poder_local_ao_poder_regional_o_movimento_dos_paladinos_do_Douro . Consultado em 10 Jan.2012. SILVA, Francisco Ribeiro da (1990) – Absolutismo Esclarecido e Intervenção Popular. Os motins do Porto de1757. Lisboa: INCM. WALLERSTEIN, Immanuel -Commentary No. 356, July 1, 2013”Uprisings Here, There, and Everywhere”. Disponível em http://www2.binghamton.edu/fbc/commentaries/archive-2013/356en.htm, consultado em 3 Set. 2013. FONTES “A Defesa do Douro” Peso da Régua, 26 de Julho de 1915 “Jornal de Noticias”, 21 de Julho de 2005. “O Montanhês do Norte”, 10 de Novembro de 1912. “ O Nordeste”, 22 de Abril de 1910 “O Primeiro de Janeiro”, Fevereiro de 1909. Relatório da sindicância aos acontecimentos ocorridos em Lamego no dia 20 de Julho de 1915, do juíz da comarca de Mogadouro, Dr. António Sérgio Carneiro, publicado no semanário lamacense “A Tribuna”. Lamego: Tipografia de A Tribuna, 1916. “A República”, 18 e 19 de Julho de 1915. “A Tribuna”, Lamego, 25 de Julho e 29 de Agosto de 1915 “O Villarealense”, Folha Regenadora, 5ª feira, 21 de Abril de 1910. “A Vinha Portuguesa” Ano 25, Abril nº4 (1910), p.117-118.


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Painel 4

HISTÓRIA, Património e Acção Local/Regional Teresa Soeiro Nelson Campos Alexandra Cerveira Lima


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Requiem pelo património fluvial vernacular do Douro texto: Teresa SOEIRO - UP/FLUP - CITCEM (msoeiro@letras.up.pt)

Resumo: Neste texto procuramos sumariar o património fluvial vernacular do Douro, material e imaterial, não só o perdido desde o início do séc. XX, como aquele de que ainda restam testemunhos físicos in situ e memória oral, fortemente ameaçados pelas transformações da sociedade e do território. Recordamos as actividades de transporte, pesca e moagem, as respectivas infra-estruturas edificadas, o equipamento, o saber e o quotidiano da gente do rio e dos que sazonal ou pontualmente desciam até esta artéria fundamental para a região. Destacamos o impacto negativo dos projectos de aproveitamento hidroeléctrico sobre o património vernacular vinculado às águas e a derradeira oportunidade que representam os afluentes para o estudo e preservação de exemplares paradigmáticos. Palavras-chave: rio Douro; património fluvial; tecnologia vernacular; imaginário do rio

Abstract: Our aim in this paper is to give an overview of the Douro’s fluvial cultural heritage, both tangible and intangible. We cover what was gradually lost since the beginning of the 20th century as well as the physical evidence still remaining in situ and recalled in oral memory, which is highly threatened by changes in society and territorial transformations. We review the transportation, fishing and milling of grains activities, the related built infrastructures, the equipment, the knowledge and the daily life of the riverine areas inhabitants, including the people who, seasonally or occasionally, would come down to this waterway/trade artery so vital for the region. We emphasize the negative impact of the hydroelectric projects on the vernacular heritage tied to the waters, and how the tributaries constitute a last chance for the preservation of prime examples of this heritage. Keywords: river Douro; fluvial culture heritage; vernacular technologies; river imaging.


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1 - Paredão de pesqueira do rio Douro (S. João da Pesqueira. Fot. T Soeiro, 2003)

C

ompletou-se uma década sobre o trabalho de investigação e diagnóstico do património fluvial do Douro que realizei no âmbito da Estrutura de Projecto para o Museu do Douro, missão liderada por Gaspar Martins Pereira, entre 2001 e 2004. Pude então verificar quão pouco restava na área do Alto Douro Vinhateiro das estruturas construídas e dos meios técnicos afectos quer à navegação do rio e à pesca, quer ao aproveitamento das suas águas como força motriz para a moagem de cereal. No percurso de Mesão Frio/Resende à desembocadura do Sabor, apenas permanecia intacto o paredão da margem sul de uma pesqueira frente a Foz Tua, cuja preservação foi recomendada à Câmara Municipal de S. João da Pesqueira (Figura 1 e 2), sendo que, mesmo neste caso, a estrutura complementar da margem norte (Carrazeda de Ansiães) tinha sido desmontada para alargamento do canal de navegação. Junto à Alegria (Linhares, Carrazeda de Ansiães) afloravam também ruínas de outra pesqueira. Nenhum conjunto moageiro se montou nos últimos cinco decénios, os respec-

tivos açudes de suporte desapareceram, destruídos ou submersos. Em simultâneo com a desactivação e abandono deste edificado (permanente e sazonal) perdeu-se a tecnologia associada. Se a navegação de carga e passageiros que vi ao longo do rio também em nada se assemelhava com a prática tradicional, já a pesca mostrou maior resiliência. Embora sem pesqueiras, nasseiros ou caneiros, sem os migradores sáveis e lampreias (e o solho-rei) a subir para a desova, condicionada por metros de profundidade onde antes se iam armar as artes a pé, continuou a ser praticada, obrigando o pescador a reaprender o rio e as espécies, a utilizar novos aparelhos de rede e outro modo de pescar. Os barcos eram ainda da família rabela, construídos em ribadouro mas já difíceis de manter ou substituir por outros idênticos, dada a falta de carpinteiros de ribeira. Se claudicassem, disseram, no seu lugar passariam a figurar embarcações de produção industrial. Apesar deste cenário pouco promissor, talvez por vício de arqueólogo, pareceu-me que se escavasse um pouco na memória da gente da beira do


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2 - Paredão de pesqueira com rede cabaceira Armada (rep. de Baldaque da Silva, 1892:205)

rio e nas arrecadações poderia encontrar pontos de referência que por um lado materializassem em peças musealizáveis, por exemplo, o equipamento piscatório (artes e aparelhos) que aprendera nas fontes documentais e bibliográficas terem existido, e por outro revelassem o quotidiano ligado não só a essa prática de captura de importantes recursos alimentares, como à presença sazonal das moagens, à utilização das barcas de passagem, à construção e reparação das embarcações ou mesmo à participação na vida aventurosa de arrais e marinheiro. Foi do cruzamento do saber aprendido dos livros, documentos de arquivo e imagens com o adquirido a ouvir os relatos, ver as demonstrações e a manipular património móvel que nos foi facultado (para ver, ser emprestado ou integrar a colecção do MD) que surgiu o núcleo da exposição Jardins Suspensos dedicado ao rio, e o texto - Douro, um rio de vida - publicado no volume Viver e saber fazer (2003: 359-413). Sumariei então artes e aparelhos, além de locais onde ainda se encontravam pescadores a exercer a faina, para a qual preservavam barcos de modelo rabelo. Pude recolher para o Museu redes já obsoletas como a chumbeira, e armadilhas como o côvo e a nassa de varas, por exemplo. O estudo pormenorizado de caso não cabia no tempo de realização daquele projecto, mas podia ainda ser concretizado junto de pescadores isolados, com memória familiar da profissão, e no remanescente dos aglomerados piscatórios (p.e.) de Godim e Foz do Sabor. Meio século de ausência tinha quase varrido

da memória a experiência da moagem de cereais (OLIVEIRA et alii, 1983), com raríssimas excepções. Mas essa recordação pode (e deve) também ser procurada junto da população que, vivendo mais afastada do grande rio e habituada aos pequenos moinhos de ribeiro, percepcionou cada descida estival às azenhas do Douro, feita na infância/juventude, como uma aventura singular, marcante pelo esforço da caminhada e imponência da paisagem, assim nos narraram em Armamar. Quanto à construção de barcos de modelo rabelo (de carga, travessia e pesca) tive oportunidade de confirmar que eram encomendados ou adquiridos a mestres e carpinteiros de ribeira pertencentes a outra área do rio, para jusante de Mesão Frio. Foi também aí, a Lavadouros (Paços de Gaiolo, Marco de Canaveses), que me desloquei para solicitar a um destes antigos profissionais a feitura de miniaturas que contemplassem as diferentes fases da construção do rabelo, exemplares destinados à exposição e colecção MD. Lamento que não tenha sido viável então realizar a investigação que suportaria o núcleo museológico dedicado ao rio, pensado para Barqueiros. Esta foi uma comunidade excepcional, dependente da faina fluvial e implantada num local de transição para as características da navegabilidade, que era também uma barreira onde o controle da região demarcada, com toda a sua carga administrativa e policial, mais se fazia sentir. Pelas informações transmitidas, coincidentes com as colhidas em outras fontes de informação,


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3 - Moinhos temporários do rio Tâmega (Amela, Penafiel/ Fasteilá, Marco de Canaveses. Foto Albano, 1964)

grande parte desta actividade tradicional do rio terá esmorecido bastante desde a década de cinquenta, vindo a colapsar na seguinte, quando à transformação socioeconómica do país a caminho da modernização se juntou o êxodo para a Europa e a migração para os centros urbanos. No rio, podemos dizer que o encerramento da barragem de Carrapatelo em 1971 (e as obras que o precederam) foi como que um novo Cachão, tornou muito difícil a ligação fluvial entre as áreas produtoras e o mercado portuense. Ao mesmo tempo submergiu as estruturas implantadas no leito e margens do Douro até à Régua, onde em 1973 se fecharia nova barragem, Bagaúste, que estendeu o contínuo de albufeiras até ao Tua. Como era prática comum na época, nenhum registo sistemático do património cultural vernacular foi realizado nesta extensa área. Curiosamente, são dois documentários de objectivos

díspares que nos mostram realidades e reconstituições próximas do que seria a labuta ao longo do percurso, que para o almirante Sarmento Rodrigues (RODRIGUES, 1972), um homem do regime, se estendeu de Barca de Alva até ao Porto. Acompanhando esta Última descida do rio Douro em barco rabelo (RTP - José Maria Tudela, 1971) tomamos contacto com as artes de navegar e o tráfego, vemos a paisagem a partir do rio, passamos pontes e cais, paredões de pesqueiras e pescadores empoleirados na penedia. Por fim ouvimos o almirante justificar que as perdas e mudanças na vida daquelas gentes ribeirinhas seriam amplamente compensadas pela riqueza energética gerada «para bem da nação». Numa perspectiva bastante diferente, o realizador Adriano Nazareth, em Barcos rabelos do Douro (RTP 1960) deixa-nos imagens impressivas das dificuldades da navegação e do quotidiano dos arrais e marinheiros na sua tare-


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4 - Derradeiro ano de montagem dos moinhos (Amela, Penafiel/ Fasteilá, Marco de Canaveses. Fot. Teresa Soeiro, 1986)

fa de transportar o vinho generoso desde a região vinhateira até às caves de Gaia e à cidade do Porto. Não lhe faltam aspectos que hoje classificaríamos como património imaterial, desde questões técnicas de carga, transporte e navegação à pobre gastronomia e ao respeito pelo sagrado, especialmente marcado na quase mítica passagem pela Senhora da Cardia. O que podemos fazer para suprir esta lacuna no registo? Certamente que pouco, mas mesmo esse continua em espera, sendo de sublinhar a urgência de colher testemunhos directos desta faina interrompida, porque os participantes, mesmo que então crianças ou jovens, hoje terão idade avançada. Algumas experiências na procura de conhecidos construtores de embarcações já nos mostraram a fragilidade destas testemunhas, que de boa vontade marcam sessões de trabalho, mas depois não as concretizam por impossibilidade física. Outra perspectiva será espreitar as raríssimas oportunidades em que as albufeiras têm de ser esvaziada para nesse curto lapso temporal fazer

o levantamento do pouco que restar das estruturas construídas, a exemplo do trabalho realizado em 1985 por Ricardo Teixeira relativamente à Ponte dos Piares. A esta valeu-lhe o estatuto de monumento medieval, o património vernacular ficou mais uma vez esquecido pela tutela, como sucederia também aquando do PROZED - Plano Regional de Ordenamento do Território da Zona Envolvente do Douro (1991). Para montante da área central do Alto Douro Vinhateiro há um curto tramo com especial interesse por o nível das águas não se ter elevado demasiado, entre a foz do Tua e o paredão da Valeira (fechado em 1976). É aqui que, por exemplo, se vislumbram as pesqueiras, como dissemos antes. Além disso, o aglomerado de Foz Tua (Carrazeda de Ansiães) continua a apresentar uma significativa ligação ao rio, não como porto de carregação que foi, mas sobretudo no binómio pesca/gastronomia. Este aspecto é ainda mais forte na Foz do Sabor (Torre de Moncorvo), onde bastava olhar para o número de embarcações com aparelhos


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5 - Moinho e engenho de linho no Museu de Penafiel (MMPNF/ Fot. Manuel Ribeiro)

para nos apercebermos da maior persistência desta comunidade piscatória, onde não faltam barcos de pesca na linha do rabelo. O Sabor teve também boas bateiras para travessia publica em locais convencionados (LADRA e PINHO, 2010-11) e deixava ver quase até à foz pequenos exemplares, de estrutura simples e construção local, para uso privado dos lavradores com terrenos nas duas margens, que ali convivem com os modelos do grupo rabelo. Infelizmente, na albufeira da Valeira (1976) como na obra mais tardia do Pocinho (1983) nada se fez em prol do estudo do património fluvial vernacular, atitude pouco desculpável. Não se esperariam essas preocupações aquando da construção dos aproveitamentos hidroeléc-

tricos portugueses no Douro Internacional, que entraram em funcionamento entre 1958 e 1964. Perscrutando imagens anteriores às obras, mais uma vez encontramos na profundidade do vale os açudes com as unidades moageiras sazonais e os locais propícios para a passagem em barca, de que a documentação nos fala. No entanto, mesmo para esta área de transformação mais antiga, algumas tentativas de recuperação da memória se mostraram relevantes, e tomamos como exemplo a bem sucedida missão de Octávio Lixa Filgueiras na busca da jangada de botos (FILGUEIRAS, 1984), que em 1981 acabou por ver remontada e a navegar.


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6 - Conjunto moageiro e engenho de maçar linho da Feitoria (Amarante. Fot. E. Biel)

A poente do Alto Douro, ou melhor para jusante da barragem de Carrapatelo, fica uma extensa área em que não havia aproveitamentos moageiros apoiados em estrutura permanente. Predominava a instalação de pesqueiras, nasseiros e canais de pesca, que ganhava subida importância (SOEIRO, 1998; 2001; 2008), o mesmo sucedendo com a construção de rabelos. Daqui provinham os mestres carpinteiros de ribeira, os arrais e muitos dos marinheiros. Foi por isso alvo principal da investigação sobre as embarcações tradicionais do Douro levada a cabo, por exemplo, por Armando de Matos (1940), François Beaudouin (1964) e, com particular intensidade, por Octávio Lixa Filgueiras (publ. 1955-93). A obra do primeiro foi republicada em 2006, pela Associação de Amigos de Pereiros; relativamente à última, coordenei para o Museu do Douro uma colectânea com todos os textos do autor referentes às embarcações do rio, que devia ter sido apresentada em simultâ-

neo com a (re)edição em DVD do documentário Arquitectura do Rabelo, produção da SinalVídeo (1992), e a abertura ao público da exposição temporária intitulada Embarcações Tradicionais do Douro: Homenagem a Octávio Lixa Filgueiras, integrada no projecto Rios Douro, de 2009-2010. Esta mais do que merecida manifestação de dívida e gratidão do Douro a este especialista que divulgou as embarcações rabelas e a região junto da comunidade científica mundial continua a aguardar, enquanto os barcos rabelos desapareceram, incluindo um dos últimos exemplares de grandes dimensões que teve o cuidado de fazer recolher por instituição pública com obrigações patrimoniais, pensando talvez que assim seria preservado. Baldado esforço para nossa vergonha, que o vemos desfazer-se sem remédio, enquanto o rio se enche dessas formas estranhas que ainda viu despontar, com incómodo, chamando-lhes pseudo-rabelos.


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7 - Azenha e moinhos temporários da Feitoria (Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)

Sobram-nos uns quantos rabões com a sua carga de pipas vazias, permanentemente ancorados ao cais de Gaia/Porto, que ganharam nova função ao serviço da publicidade, e outros que no Alto Douro ainda fazem pequenos circuitos de passeio. Para a referida exposição, o Museu do Douro recuperou um rabão pertencente à Casa do Douro, antes usado para publicidade frente à Régua, hoje no espaço do museu. Dos barcos de pesca remanescentes falámos antes, das barcas de passagem fica-nos o exemplo de Bitetos (Marco de Canaveses), outrora um importante ponto de cruzamento do rio, onde o barqueiro continua (2012) ao serviço dos transeuntes com um espécime de linha rabela já gasto e mal remendado, por não saber onde o levar para consertar. Cabe aqui recordar o esforço de associações em defesa deste património fluvial, nomeadamente a recolha feita desde a década de oitenta pela Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico-Cultural de Castelo de Paiva, que nas

instalações do Parque das Tílias (Castelo de Paiva) mantém o espaço visitável designado Sala do Barco Rabelo e do Arquitecto Filgueiras e, no exterior, a sua embarcação rabela. O Museu Municipal de Resende, aberto em 2006, expõe também artes de pesca fluvial e referentes da navegação. O valboeiro, muito usado de Entre-os-Rios para jusante, será, pela sua dimensão, facilidade de construção e versatilidade, o mais bem sucedido modelo desta família rabela e aquele que continua a ser encomendado para utilização na pesca e em deslocações, agora adaptado à utilização de motor. Melres e Avintes são os centros onde se concentrou a actividade construtiva nas últimas décadas do século XX. Mas, mesmo para estas embarcações, o risco mantém-se, como verificamos ao vê-las desaparecer, por exemplo, de Entre-os-Rios, o mais importante porto fluvial na transição para o Baixo Douro. E não foi apenas esta embarcação que deixou aquelas águas, há quase meio século que os rabelos e rabões também o fizeram, e depois deles os barcos de pesca


Requiem pelo património fluvial vernacular do Douro

e passagem, que tinham encontrado refúgio no Tâmega, até à conclusão, em 1988, da barragem do Torrão (SOEIRO, 1987/88 e 2013). No Museu Municipal de Penafiel guardam-se dois destes exemplares, uma barca de pesca/passagem e um valboeiro com a respectiva vela. A subida das águas devida ao encerramento do aproveitamento hidroeléctrico de Crestuma (1985) representa, por sua vez, o fim das pesqueiras do Baixo Douro destinadas à captura de sáveis e lampreias que subiam o rio para a desova. Não só as estruturas construídas ficaram submersas ou foram destruídas, como as artes de pesca e toda a vivência da ribeira se alterou definitivamente, pondo fim a um processo de abandono que já se fazia sentir nas décadas anteriores, com o desactivar das companhias que trabalhavam as vargas, rede de arrastar para os grandes areios, e mesmo dos alares, estacada com armadilha montada a cruzar o leito (SOEIRO, 1998; 2001; 2008). Perdidos que estão esta prática e o saber com ela construído - o conhecimento da morfologia do rio, das correntes e marés, das espécies e suas características - não deixa de ser bizarro vermos os municípios e agentes turísticos apoiar a gastronomia tradicional baseada naquele bem, que já não é seu nem pela natureza nem pelo saber e mobilização dos habitantes locais para a faina. Ficou a prática de, quando a lampreia é trazida de outras águas, a manter viva durante algum tempo nestas, supostamente para que ganhe determinadas características antes de ser cozinhada com o sabor local, um património imaterial que tornou a região afamada. Submerso que foi, em grande medida, o património fluvial vernacular do rio Douro - em sentido literal pela subida das águas das albufeiras e figurado pela obsolescência socio-económica estávamos confinados às hipóteses de estudo que nos proporcionam os seus afluentes, nenhum deles, porém, replicando as características físicas e de usufruição do grande rio. Em um destes, o rio Tâmega, foi programado o primeiro levantamento sistemático de estruturas construídas de época moderna e contemporânea a submergir por uma albufeira, executado entre 1984 e 1986, aquando da construção do aproveitamento hidroeléctrico do Torrão (Baixo Tâmega).

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8 - Mecanismo e estruturas em degradação na azenha da Feitoria (Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)

Na área era particularmente relevante a presença de açudes (aqui dizia-se paredes) que atravessavam o rio, suporte para moagens de cereal, engenhos de macerar linho e também barreira para abertura de boqueiros de pesca destinados às espécies migradoras. Coube ao Instituto Português do Património Cultural, através do Departamento de Etnologia dirigido por Henrique Coutinho Gouveia, a iniciativa de promover o inventário, que contou com o apoio logístico da EDP. O investigador no campo foi Joaquim Roque Abrantes, autor do relatório publicado em 1985 com o título Património etnográfico afectado pela barragem do Torrão (ABRANTES, 1985), responsável também pela investigação de suporte ao documentário gravado em vídeo, editado em 1989 pelo IPPC - Departamento de Etnologia. Em simultâneo, a Câmara e Museu Municipal de Penafiel completaram, com maior detalhe, o


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9 - Canal ou caniço para a pesca no Tâmega (Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)

levantamento na área do município afectada, tendo sido por nós registadas em desenho e imagem todas as estruturas existentes no rio, bem como o património móvel que lhes era pertinente, tanto moinhos amovíveis com todo o seu equipamento, um engenho de linho que há algumas décadas não era montado, como várias artes de pesca usadas nas pesqueiras ou individualmente e as barcas de passagem e pesca presentes. A estes bens materiais, edificados e móveis, os últimos oportunamente retirados para preservação no Museu Municipal, uma vez que no local a mesma não era viável, juntámos informação documental existente em arquivo, bibliografia e, sobretudo, na memória oral recolhida junto das pessoas que utilizaram estes recursos, fossem proprietários, responsáveis pela exploração e clientes, ou simplesmente vizinhos, lembrados da sua existência. A sucessão de imagens (Figura 3 a 5) da Parede da Amela (Boelhe-Penafiel)/Fasteilá

(Vila Boa do Bispo-Marco de Canaveses) ilustra bem este processo de desinteresse pela actividade económica, neste caso a moageira: estava em pleno funcionamento quando foi fixada por um fotógrafo local (Fot. Albano) em 1964; já quase desactivada no verão de 1985 em que percorremos o rio, com apenas um moinho a funcionar e outro montado para obter a compensação; submersa e recuperados, em contexto museológico (2009), exemplares de moinhos e um engenho de linho, após os primeiros terem sido danificados na cheia de 1986, quando já fora programada a sua remoção devido ao fecho da barragem e subida das águas. No relatório Penafiel: o Tâmega de ontem (SOEIRO, 1987/88) ficaram compilados os resultados obtidos. Esta oportunidade de retirar bens com interesse patrimonial que iriam ficar abaixo da cota prevista para a albufeira seria, perante a insistência de Penafiel, oferecida pela EDP aos três muni-


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10 - Caniço de pesca do Tâmega (rep. de PINHO, 1995-08: 454)

cípios afectados, sendo que o primeiro, além da diversificada informação, integra hoje na colecção do Museu diversas peças com esta proveniência. Infelizmente, apenas o município de Amarante tinha então, e ainda mantém, a possibilidade de preservar no rio significativos exemplares que documentam as vivências deste original afluente do Douro, que por não ser navegável facilitou a implantação de dezenas de açudes-barragem para suportar moagens e um sem número de pesqueiras e pesqueirões, particularmente importantes nas áreas a jusante, onde chegavam em maior quantidade as espécies migradoras que o subiam para a desova. A controvérsia então gerada pela elevada cota das águas pretendida pela EDP e o seu pernicioso efeito na cidade de Amarante bloqueou o diálogo e quase condenou o conjunto da Feitoria, onde uma azenha pétrea instalada na margem convivia com moinhos temporários montados com materiais perecíveis e um engenho de maçar linho, um caso exemplar a que urge atender (Figura 6 a 8). A jusante da cidade, junto ao periférico bairro da Torre e no ribeiro de S. Lázaro estão, na margem direita, as azenhas dos Morleiros, umas permanentes e outras de uso temporário, relíquia da

actividade moageira que envolvia toda a comunidade, estando muitas casas construídas sobre o ribeiro ou as levadas para que a água tocasse durante grande parte do ano os moinhos de rodízio que possuíam nos pisos baixos. Quando escasseava, recorria-se às azenhas do Tâmega que, pelo contrário, eram insustentáveis durante os meses de inverno devido ao caudal, testemunho de uma complementaridade bem conhecida e imperativa em todo o vale do Douro. Agora que o património fluvial edificado do Tâmega está também ameaçado para montante de Amarante (a partir de Fridão), esperam-se novos estudos de impacte resultantes da planeada construção das sucessivas barragens. Exemplos raros de técnicas de pesca (Figura 9 e 10), como a documentada pelo canal ou caniço da Quinta das Chouzas (Fridão), ficam em questão e precisam que a sua preservação seja equacionada, visto estarmos perante casos remanescentes, se não únicos, de edificado e tecnologia que durante séculos, pelo menos desde os centrais da Idade Média, serviram os habitantes da região do Douro (PINHO, 1905-08; SOEIRO, 2009: 271). Outras formas de pesca, como a tão disputada colocação de alares (SOEIRO, 1987/88:124 e


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2013:103) ou o uso da chumbeira, são inviáveis no Baixo Tâmega. Raríssimas barcas da família rabela, que serviram as passagens e a pesca, seguem no rio, no tramo final, mas é mais uma vez Amarante que tem condições favoráveis à manutenção de embarcações de modelos originais, bem documentadas por Lixa Filgueiras (p.e. 1963), neste caso guigas e gamelas que poderiam bem ser usufruídas para fins recreativos no parque ribeirinho da cidade, embora saibamos que pelos construtores e exploradores deste filão é dada preferência à construção em metal, mais rápida, duradoura e segura, em detrimento do uso da madeira. Outros afluentes do Douro têm merecido a atenção e o cuidado de associações de defesa especificamente dedicadas, bem como estudos monográficos, sirvam de exemplo o rio Bestança (VENTURA, 1999), ou o Paiva (OLIVEIRA e outros 1999). No extremo oposto do Douro português, o projecto transfronteiriço Arquitecturas da Água investiga e procura preservar a memória das moagens dos rios Côa e Águeda, bem como do troço internacional do Douro, registando património moageiro construído e o imaterial ligado a esta actividade, sob a forma de publicação e documentário - Mó - realização solicitada pela Direcção Regional da Cultura do Norte (PINTO e RODRIGUES 2013). Mas foram mais uma vez os polémicos aproveitamentos hidroeléctricos dos grandes afluentes do Douro que obrigaram a realizar levantamentos sistemáticos, agora também atentos ao património vernacular. Assim se fez no vale do Côa, tarefa de início (1992-94) a cargo de uma pequena equipa liderada por Nelson Rebanda. Interrompida que foi a construção da barragem, terá ficado aberta a via da preservação em condições protegidas pela classificação do Vale e instalação do Parque. De novo se lançaram as equipas para o terreno no Sabor (2009), sob a coordenação de Paulo Dórdio, mas com recursos antes impensáveis, ao abrigo das medidas de minimização dos impactos negativos da construção. Segue-se a área da albufeira do Tua. Fazemos votos para que, parecendo inevitável tamanha destruição do património vernacular, no mínimo dele fique bom registo para memória futura.

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PROJECTO ARQUEOLÓGICO DA REGIÃO DE MONCORVO, 1983-2013 BREVE BALANÇO DE CERCA DE 30 ANOS DE ACTIVIDADE texto: Nelson Campos - Direção do PARM e Investigador do CITCEM

Um primeiro balanço da actividade do PARM foi realizado pelo signatário e pelo então presidente da direcção desta entidade, Dr. Eduardo Carvalho, no 1º Encontro de Arqueologia Trasmontana, realizado em Mirandela em 18-19/03/2005. O presente texto partiu dessa apresentação, que não chegou a ser publicada.

Resumo: Partindo de um programa de trabalho elaborado em 1983 por um grupo de então estudantes de Arqueologia, que se viriam a constituir em associação em final de 1986, o autor faz um balanço da investigação arqueológica, preservação do património, acção formativa e intervenção cívica na região de Moncorvo, sul do distrito de Bragança. É destacado o papel da associação na recuperação e gestão do Museu do Ferro, desde 1995. São referidas as dificuldades e obstáculos passados e actuais. A bibliografia inclui trabalhos realizados, impressos ou ainda inéditos. Palavras-chave: Associativismo, Arqueologia, Património, Moncorvo

Abstract: On the basis of a Work Programme drawn up in 1983 by a group of then archaeology students, which would later constitute as an association in late 1986, the author makes a review of archaeological research, heritage preservation, formative actions and civic intervention in the region of Moncorvo, in the Southern District of Bragança. Is highlighted the role of the Association in the recovery and management of the Iron Museum since 1995. Making reference to the past and current difficulties as well obstacles. The bibliography includes research undertaken, published or still unpublished. Keywords: Associations, Archaeology, Heritage, Moncorvo


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Nelson Campos

INTRODUÇÃO – o que é o PARM?

O

PARM é uma associação de estudo, defesa e divulgação do património arqueológico, histórico e etnográfico, com iguais preocupações relativamente ao meio natural envolvente, centrada na “região” de Moncorvo, definida como o concelho de Torre de Moncorvo e concelhos limítrofes. A associação teve por base um grupo de então estudantes do curso de História-Variante de Arqueologia, da Faculdade de Letras do Porto280, que em 1983 deram seguimento a um primeiro levantamento arqueológico do concelho de Torre de Moncorvo, iniciado pelo signatário (1981), com objectivo de se concretizar uma Carta Arqueológica do concelho o mais completa possível.

1 – emblema do PARM. Berrão das Cabanas de Baixo, achado em 1895 (desenho do Prof. Santos Júnior)

Este trabalho não pretendia ser apenas um mero registo arqueológico, pois tinha por trás um programa científico, resultante de uma série de debates internos, que culminou na publicação de um texto intitulado precisamente “Introdução a um programa de investigação regional – Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo”281, o qual passou a valer como uma linha de rumo orientadora do grupo de trabalho que então se reunia regularmente no Porto e, temporariamente, em Torre de Moncorvo. Partindo de uma crítica do modus faciendi da

arqueologia à época, assente num paradigma de especialização segundo períodos cronológicos, o grupo do PARM procurava centrar a sua acção no “território”, tal como defendiam as correntes mais vanguardistas da Arqueologia, nomeadamente da “New Archaeology”. Procurava-se assim intervir na realidade “região”, não só ao nível do conhecimento da sua evolução e construção, mas também como agente de preservação e transformação cultural, na linha do que então já apontava Cláudio Torres e sua equipa, em Mértola. Deste modo, entendia-se que os três pólos da actividade do grupo deveriam ser: «1) a nível científico, a proposta e resolução de um problema do passado da região – o conhecimento das sucessivas “paisagens” no seu processo evolutivo até aos nossos dias; 2) a criação de um espaço de aprendizagem onde os elementos do grupo [pudessem] aperfeiçoar os seus conhecimentos e métodos de trabalho; 3) intervir culturalmente no sentido da valorização da região e das suas populações e no sentido do reconhecimento da função social do arqueólogo»282 E, nesse texto fundador, acrescentava-se ainda: «Ao desviar a atenção do arqueólogo de um ponto único – a estação arqueológica – de modo a fixálo sobre a região, estamos a enriquecer a nossa perspectiva de encarar os problemas acerca das populações do passado e, ao mesmo tempo, a possibilitar uma intervenção cultural ao nível dessa região»283. Nesse sentido, logo após um primeiro trabalho de identificação, cartografia e registo dos sítios arqueológicos do concelho de Torre de Moncorvo, foram tentadas cartas de síntese para cada um dos principais momentos da ocupação humana do território, sendo o produto desse trabalho dado a conhecer através de uma Exposição sobre a Arqueologia e História da região, realizada no Mercado Municipal de Torre de Moncorvo em 1986, a qual voltou a ser reeditada numa versão mais abreviada, em 1987, aquando de uma visita do então Presidente da República Dr. Mário Soares. Nessa exposição se propunha uma retrospectiva

280 Fizeram parte desse grupo os seguintes elementos: Alexandra Pinto, António Leal, Carlos Ferreira, Joaquim Henriques, Jorge Almeida, Maria João Coelho, Miguel Rodrigues, Nelson Rebanda, Paulo Amaral, Paulo Dórdio e Ricardo Teixeira.

282

PARM, 1985: 144

281  PARM, 1985.

283

Idem, ibidem.


Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo

da história regional, através de textos, fotografias, mapas de síntese e diversos vestígios da chamada “cultura material” (fragmentos cerâmicos, moedas, mós manuárias, estelas funerárias romanas, um pequeno sarcófago de granito, etc.). Esta mostra fez-se tendo em conta a preocupação já referida de dar conhecer junto das pessoas locais o produto do trabalho do grupo de jovens investigadores, recém-licenciados. O acolhimento por parte do público foi bastante receptivo, o que encorajou o referido grupo a constituir-se em associação (sem fins lucrativos), podendo assim aglutinar muitas das pessoas que se haviam manifestado mais interessadas nas questões de arqueologia e património. A escritura notarial foi feita em 21 de Novembro de 1986, tendo sido publicada no Diário da República, em 7 Janeiro de 1987. Desde então para cá, a associação manteve-se, de modo ininterrupto, apesar de altos e baixos na sua actividade resultantes de condicionalismos diversos, como seja o rumo pessoal e profissional de cada um dos elementos do grupo fundador, tornando-se cada vez mais numa associação de defesa do património. Prosseguindo os seus desígnios no que à missão social diz respeito, a associação assumiu a herança de um pequeno núcleo museológico dedicado ao Ferro, o antigo museu da empresa Ferrominas criado precisamente em 1983, quando o PARM se encontrava no seu início. O encerramento da empresa em 1986, e o relativo estado de abandono deste pequeno museu, levou à sua transferência para a sede do concelho, em 1995, por protocolo entre a Câmara de Torre de Moncorvo e a Empresa de Desenvolvimento Mineiro, entregando depois o município a gestão do museu ao PARM, através de outro protocolo entre estas duas entidades. Passemos agora a um breve balanço da actividade do grupo, depois associação, e do seu contributo para a Arqueologia da região Sul do distrito de Bragança (e não só).

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1 - A VERTENTE CIENTÍFICA

D

ecorrendo paralelamente aos trabalhos de realização da Carta Arqueológica do concelho de Torre de Moncorvo, tendo em vista uma leitura totalizante do território, fizeram-se também “incursões” nos concelhos vizinhos de Vila Flor e Freixo de Espada à Cinta, onde, através de elementos do PARM, se identificaram o importantíssimo sítio pré-histórico do Cabeço da Mina (Assares) e as pinturas rupestres de Fraga do Gato (Poiares)284. Outros trabalhos, essenciais a essa compreensão sincrónico-diacrónica do território foram levados a efeito: levantamento toponímico do Vale da Vilariça e resto do concelho de Moncorvo; um trabalho de cariz mais etnográfico sobre as Quintas e Quinteiros da região de Moncorvo/Freixo de Espada à Cinta; inventariação arquivística, com transcrição de alguns dos pergaminhos do Arquivo Municipal, etc. Após o primeiro balanço que constituiu a referida Exposição de Arqueologia de 1986, tendose constatado uma problemática bastante rica no que à época medieval dizia respeito, ilustrada por sítios tão emblemáticos como a “mítica” Santa Cruz da Vilariça, o local da torre roqueira do Baldoeiro com as ruínas da igreja de S. Mamede (descobertas no âmbito de prospecções), várias necrópoles de sepulturas escavadas na rocha, igreja tardo-românica de Adeganha, restos dos castelos de Torre de Moncorvo e de Mós, além de abundante documentação medieval para a Baixa Idade Média (parte dela hoje felizmente resguardada no Arquivo Histórico Municipal), o núcleo de investigadores do PARM decidiu abrir uma via de pesquisa sobre esta época, apresentando ao Conselho Consultivo do então IPPC, um projecto de investigação intitulado: “A região de Moncorvo na Idade Média”, o qual foi aprovado em 1986285. 284  As primeiras estelas calcolíticas do Cabeço da Mina, Assares, achadas pela família Ochoa Pimentel Gonçalves, proprietários do terreno, foram dadas a conhecer a inicialmente a Mª. João Coelho, N. Rebanda e M. Rodrigues em Dezº.1983, que depois as revelaram à comunidade científica. Quanto às pinturas rupestres da Fraga do Gato, foram comunicadas a N. Rebanda e F. Ochoa Morgado em 1985, que inicialmente as apresentaram no 1º Congresso sobre o Rio Douro, V. N. Gaia, Maio de 1986 – cf. REBANDA 2008. 285

LIMA et al., 1989.


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2 – Grupo de elementos do PARM, junto das pinturas rupestres da Fraga do Gato, Poiares, Freixo de Espada à Cinta, 1986

Foi já no âmbito deste programa de investigação na época medieval, que se fizeram várias campanhas de escavações no sítio do Baldoeiro (entre 1987 e 1991), Santa Cruz da Vilariça, também conhecida por Vila Velha ou Derruída (entre 1989 e 1991), Castelo de Torre de Moncorvo (entre 1988 e 1989), trabalhos que foram sendo publicados em revistas especializadas (revista Arqueologia, do GEAP, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Actas das Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-medieval de Tondela, etc.)286 Ainda ao abrigo deste projecto, fizeram-se prospecções geofísicas no sítio romano de Vila Maior (vale da Vilariça), onde se viria a localizar posteriormente uma inscrição dedicada a Júpiter, que permitiu identificar esse local como sendo um “vicus”287. Ainda no mesmo local, por elementos do PARM, foi descoberta uma importante estela antropomórfica do período

Calcolítico288, que, juntamente com o núcleo de estelas congéneres do Cabeço da Mina (Vila Flor)289, Quinta do Couquinho e o chamado “ídolo de Moncorvo”, indiciam um relevante foco de povoamento do IIIº milénio a.C. centrado no vale da Vilariça, culturalmente com afinidades ao mundo mediterrânico, até aí desconhecido.

286  Vd. Bibliografia no final do texto.

288  Descoberta por Ricardo Teixeira e Paulo Dordio Gomes, actualmente exposta no Museu do Ferro & da Região de Moncorvo – vd. CUSTÓDIO & CAMPOS 2002: 161-162.

287  Esta ara foi identificada primeiramente por N. Rebanda em 1994, que a registou e deu a conhecer a outros investigadores nesse mesmo ano (F. S. Lemos) e anos seguintes (A. Coelho e A. Redentor).

Entretanto, continuou-se a actualização da Carta Arqueológica do concelho, cujo Relatório e respectivo ficheiro foram cedidos à Câmara Municipal de Torre de Moncorvo para inclusão no PDM em 1993. No seguimento desse trabalho foi o PARM solicitado para acompanhamento de obras particulares na vila de Torre de Moncorvo, tendose efectuado um levantamento do casco urbano medieval, incluído no Plano de Salvaguarda do Centro Histórico. Escavações de emergência em

289  Ver nota 6.


Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo

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3 – Escavações arqueológicas na vila deserta de Santa Cruz da Vilariça, 1990

alguns pontos da vila de Moncorvo, conduzidas pelo signatário, se bem que no quadro do IPPAR, contaram também com o apoio do PARM (Largos Balbino Rego, 1996, e General Claudino, 1997, solar da Biblioteca, 1999, Praça Francisco Meireles, 2002, casa nº 15 da R. dos Sapateiros, 2005), além de outros trabalhos (p. ex. prospecção no traçado de acesso de Moncorvo ao IP-2, 19982001) e monitorização de sítios arqueológicos, constatando ameaças ou destruições. No que à etnografia diz respeito, fizeramse alguns trabalhos de recolha e estudo, nomeadamente sobre o centro oleiro do Larinho e Felgar, documentado desde o séc. XVII, contextualizados no âmbito de outros centros oleiros do distrito de Bragança e zona fronteiriça de Espanha290.

290  RODRIGUES & REBANDA, 1995b), RODRIGUES & REBANDA, 1996.

No tocante ao património edificado e artístico, além do registo de capelas, solares e fontenários, foi realizado um estudo sobre a igreja matriz de Torre de Moncorvo, monumento nacional do séc. XVI, de que resultou uma monografia de autoria de dois elementos do PARM291. Posteriormente, um destes investigadores, Eugénio Cavalheiro, também presidente da mesa da Assembleia-Geral da associação, publicaria mais dois trabalhos da maior importância sobre outros relevantes monumentos concelhios: a capela de Senhora da Teixeira (Açoreira) com as suas famosas pinturas a fresco292 e igreja tardo-românica de Adeganha293. Em 2002 foi estudada e publicada a colecção temática do ferro herdada do núcleo museológico da Ferrominas e ora patente no Museu do Ferro294. 291

CAVALHEIRO & REBANDA, 1998.

292

CAVALHEIRO, 2000.

293

CAVALHEIRO, 2011.

294

CUSTÓDIO & REBANDA, 2002.


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2 – ESPAÇO DE APRENDIZAGEM

E

nquanto espaço de aprendizagem, é de referir que os investigadores constituintes do núcleo inicial do PARM deram aqui os primeiros passos das suas carreiras profissionais no âmbito do património cultural e arqueologia. O trabalho de campo, sobretudo no tocante à prospecção sistemática, funcionou como verdadeira escola de aprendizagem, culminando na detecção de vestígios arqueológicos de primeira grandeza, como foi o caso das gravuras rupestres do vale do Côa. A participação nos trabalhos de campo e contacto com a associação, decerto contribuiu para a opção de alguns jovens colaboradores do PARM pelas áreas da Geologia, Arqueologia e História. Entre 1997 e 1999 o PARM, em colaboração com o IEFP e apoio do município, organizou um curso CPC (Conservação do Património Cultural), frequentado por oito jovens formandos, alguns dos quais vieram a trabalhar em museus da

4 – Sessão do curso CPC, durante uma visita de dirigentes do IEFP, 1998

região (Freixo de Numão e Museu do Ferro) e no Posto de Turismo de Torre de Moncorvo. Mas, quando se fala em aprendizagem, não nos podemos cingir apenas às orientações profissionais. Foram muitas dezenas os jovens de Torre de Moncorvo (e não só) que ao longo dos anos passaram pelas escavações do PARM, através dos programas ocupacionais apoiados pelo Instituto da Juventude (OTL, OTJ, IJOVip). Para esses jovens, alguns dos quais mantêm ligação à associação, embora tenham seguido outros rumos, foi uma oportunidade que tiveram de contactar com a arqueologia, de conhecer melhor o património da sua terra e, a partir daí, desenvolverem uma atitude pró-activa e uma sensibilidade perante estas questões que, de outro modo, talvez não tivessem. Além disso, a experiência associativa e o voluntariado foram, para alguns, um campo de formação cívica, no sentido de uma melhor cidadania.


Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo

3 – INTERVENÇÃO CULTURAL NA COMUNIDADE – O PROJECTO “MUSEU” E OUTROS TRABALHOS

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m relação ao resto da comunidade para além do círculo dos mais interessados, percorreu-se um caminho árduo e difícil, desde o tempo em que ainda se questionava a utilidade das “pedras, dos cacos e do ferro velho” até se ter a percepção da importância “destas coisas” enquanto elemento identificador das pessoas locais e interessando também a “gente de fora”. Para este efeito, sempre entendemos como essencial a existência de um espaço de reunião da informação recolhida e (re)produzida, que funcionasse como espelho da comunidade, onde as pessoas se pudessem rever. Como tal, desde o início que se entendeu que o Museu deveria ser o corolário lógico de toda a actividade do PARM: museu enquanto local de recolha, mas também estabelecimento educativo e célula de sensibilização para as questões do património. Numa nota do “texto fundador” referido inicialmente, dizia-se: «A abertura em Dezembro de 1983 do Museu do Ferro, é algo de novo no panorama cultural local, mas ele não resolve, pelo seu âmbito muito específico [a temática do Ferro], a necessidade de um Museu Regional de Moncorvo»295. Devemos dizer que o desejo de um museu local era uma ideia antiga, à época com quase um século. Com efeito, foi em 1895 que o Abade José Augusto Tavares, pioneiro da arqueologia do Sul do distrito de Bragança, defendera um Museu Municipal de Moncorvo, no que foi apoiado pelo seu amigo José Leite de Vasconcelos296, fundador do actual Museu Nacional de Arqueologia. Por falta de vontade política dos poderes públicos locais esta ideia não foi avante. Logo de seguida surgiu o Museu Municipal de Bragança (1896), mais tarde absorvido pelo Museu Regional, depois chamado do “Abade de Baçal”, ficando Moncorvo à espera, indefinidamente. Isto levou a que muitas peças arqueológicas importantes saíssem do concelho, como foi o caso das já mencionadas estelas calcolíticas do Couquinho e “ídolo de Moncorvo”, a ara que refere a “cividade” dos 295  PARM, 1985: 148. 296  VASCONCELLOS, 1895.

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Banienses, os berrões das Cabanas de Baixo (um dos quais adoptado como emblema do PARM297), entre outras peças. O encerramento das minas de ferro de Moncorvo, em 1986, e a liquidação da empresa “Ferrominas” em 1992, provocando a letargia do pequeno Museu do Ferro, inicialmente localizado no bairro mineiro do Carvalhal, levaram a negociações entre o Município de Torre de Moncorvo e a nova empresa concessionária das minas, a EDM, no sentido de se transferir o núcleo museológico do Ferro para a sede do concelho. A essa decisão não foi alheia a chamada de atenção, por parte do PARM, sobre o estado de abandono em que se encontrava o Museu do Ferro da Ferrominas, desde os finais dos anos 80. Assim, após a promessa da cedência do espólio desse Museu à Câmara Municipal, pela EDM, veio a estabelecer-se um protocolo entre a Autarquia e o PARM, no sentido de se criar, na sede do concelho, um museu que reunisse as duas vertentes: a Arqueologia & História, por um lado, e o núcleo do Ferro, por outro. Esse primeiro protocolo foi firmado em 27.11.1993. Com base neste documento, fez-se a inventariação de todo o espólio e, tendo-se assente a escolha do edifício do antigo quartel da GNR (um solar do séc. XVII entretanto devoluto), para sede do novo Museu, foi o mesmo aqui instalado em 20.02.1995. As deficientes condições das novas instalações, apesar de algumas obras de conservação nos inícios dos anos 90, levaram a associação do PARM a recorrer a fundos comunitários para recuperação do edificado, bem como para uma melhoria da exposição permanente dedicada ao Ferro. As obras ficaram concluídas em 2000 e a instalação museológica ocorreu em 2002, ainda sem a componente de Arqueologia e História por não ter chegado a dotação financeira.

297  Este corresponde ao javali das Cabanas de Baixo (freg. de Cabeça Boa) o melhor conservado do conjunto, guardado no Museu Nacional de Arqueologia (Lisboa) sob o nº. E-5249. Além da importância da peça, os responsáveis do PARM fizeram questão de usar um desenho do Prof. Santos Júnior (1901-1990) incluído na sua obra Berrões proto-históricos do Nordeste de Portugal (1975), também como forma de homenagear este distinto investigador, com fortes ligações a Torre de Moncorvo. A autorização foi solicitada, e concedida, por escrito, em 1987.


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5 – Fachada principal do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo, após as obras de 2000

A concretização do Museu tem sido, assim, desde 1993 e, de modo mais efectivo desde 1995, a grande obra da associação do PARM. Paralelamente realizou-se o 1º. Colóquio sobre Mineração e Metalurgia do Ferro, em 1996 e editaram-se algumas publicações, nomeadamente o Catálogo do Museu, dedicado à parte do Ferro298. A aposta na formação de pessoal qualificado para museus e postos de turismo da região, levou o PARM a organizar um curso de Conservação do Património Cultural (CPC), em colaboração com o Centro de Emprego/IEFP, como se referiu no ponto 2. No campo da animação cultural, o PARM, no âmbito do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo e desde 1995 desenvolveu muitas dezenas de actividades, designadamente exposições de fotografia, pintura, artes decorativas, sobre personalidades, arqueologia, etnografia, além de palestras e outros eventos (passeios culturais, jornadas de campo, participação no programa Ciência Viva – Geologia, Arqueologia 298  REBANDA et al., 1996, CUSTÓDIO & CAMPOS, 2002.

e Ambiente), envolvendo a população local e visitantes externos. Além de trabalhos de maior envergadura, como a revisão do Inventário Arqueológico do concelho de Torre de Moncorvo para integração no novo PDM299 e o Inventário de Arte Sacra da igreja matriz de Moncorvo300, digamos que a actividade do PARM, nos últimos anos, se confunde um pouco com a do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo. Isto deve-se sobretudo à necessidade de concentração no objectivo principal protocolado com a autarquia que é a gestão da estrutura museológica. Por outro lado, os afazeres profissionais dos membros mais activos da associação deixam pouca margem de tempo para os demais objectivos estatutariamente previstos. 299  PARM 2008a) 300  Este levantamento foi iniciado nos anos 90, com apoio do IPJ e posteriormente no âmbito do curso CPC, sob orientação da Drª. Maria João Moita. Foi revisto e ampliado em 2008 pelo signatário e Dr. Rui Leonardo, tendo em vista a selecção de peças para o Museu de Arte Sacra a instalar na Misericórdia, mediante protocolo entre o município, Diocese de Bragança e Miranda e DRCN – Cf. PARM 2008b).


Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo

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6 – Visita guiada à igreja românica de Adeganha, organizada pelo PARM.

Goradas as expectativas de criação de um gabinete de arqueologia no âmbito municipal301 que pudesse integrar quem melhor conhecia a realidade do terreno, tentou-se (sem êxito) que a autarquia criasse um quadro de pessoal do museu com uma direcção efectiva, nem que isso implicasse a sua municipalização integral, conferindo-lhe assim uma base mais profissional e estável para a prossecução das funções museológicas, a saber: recolha, inventário, estudo e publicação de materiais em reserva, assim como recuperação e valorização de sítios arqueológicos, com vista à criação de rotas específicas, tais como uma Rota do Património Medieval (integrando o Castelo de Torre de Moncorvo > Vila Velha > 301  Durante algum tempo (início dos anos 90) o PARM integrou uma comissão de Arte e Arqueologia municipal, sendo chamado a dar pareceres e a intervir em algumas situações de obras particulares. Posteriormente foi constituído um gabinete de Património (sem a componente de Arqueologia), integrado na estrutura municipal, sendo o PARM arredado dos processos.

Baldoeiro > igreja de Adeganha) ou uma Rota do Ferro (escoriais > Felgueiras > forja do Felgar > bairro mineiro > galerias do Cabeço da Mua > Minas da Carvalhosa > Vale de Ferreiros). Assim se daria corpo (e alma) à tal leitura das diversas “paisagens” que se formaram no passado e que estruturaram a “região” até à realidade presente, conforme referido no “documento fundador”. Todavia, o máximo que se conseguiu foi a requisição temporária do signatário (entre 2006 e 2010), alguns estágios e contratos a prazo com jovens licenciados, em que boa parte do trabalho realizado incidiu na organização de eventos temporários, de maior interesse e visibilidade para a autarquia302, além dos trabalhos de revisão do inventário arqueológico e inventário de arte sacra da igreja matriz, atrás referidos. 302  Segundo o protocolo entre o município e o PARM para a gestão do Museu, é disponibilizada uma verba mensal para pagamento ao pessoal (funcionários da associação), funcionamento e eventos.


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DIFICULDADES E CONSTRANGIMENTOS

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obre as dificuldades e constrangimentos verificados ao longo destes 30 anos muito haveria a dizer, embora alguns sejam idênticos aos de outras organizações do chamado Terceiro Sector, mormente associações sem fins lucrativos. Em termos gerais, a linha de rumo definida à partida, de independência e autonomia face ao poder político não ajudou, sobretudo tratando-se de uma entidade que por vezes tinha de intervir civicamente em prol do património (cultural e natural), de que resultaram conflitos indutores de uma certa marginalização da entidade e dos seus dirigentes303. Entre os problemas mais correntes, noutros tempos, situaram-se os financeiros e logísticos, com várias mudanças de sede304 e consequente transferência de mobiliário, equipamentos e espólio resultante de prospecções e escavações para vários depósitos (alguns sem condições), obrigando a bastante trabalho de encaixotamento, transporte, estiva, e reorganização, o principal do qual ocorreu antes e depois das obras no edifício do museu. Hoje em dia, resolvidos alguns desses aspectos, o problema principal reside na falta de novos colaboradores empenhados, o que decorre da desertificação humana e inerente ausência de massa crítica. O decréscimo populacional, as transformações sociais e maior diversidade da oferta em termos de lazer (novas tecnologias, desporto, música, etc.) não favorecem a adesão dos jovens a causas ou interesses patrimoniais ou ambientais, assim como as saídas profissionais limitadíssimas neste campo também não aconselham opções futuras pelas ciências que 303  Referimo-nos a posições críticas da associação face a demolições (ou tentativas de) de edifícios antigos no Centro Histórico da vila de Moncorvo – p. ex. actual Biblioteca Municipal e Casa Leopoldo Henriques. 304  Logo após a constituição a associação foi desalojada de uma sede provisória que tinha no mercado municipal, ficando cerca de um ano à espera de se conseguir uma nova sede, na que viria a ser a Casa das Associações, obtida em acção concertada com outras associações. Aí viria o PARM a inspirar e a integrar também um projecto de Rádio Local (198889), que está na base da estação emissora ainda hoje existente. Depois de muitas vicissitudes e mudanças de sede, só em 25.04.2013 passámos a dispor de um espaço mais definitivo, através de contrato de comodato com o município por período de 20 anos, no r/c da Casa Leopoldo Henriques, na rua Tomás Ribeiro, em Torre de Moncorvo.

estudam o passado humano. Conclui-se também que uma cada vez maior exigência (e incerteza) profissional dos colaboradores seniores, para além da vida familiar, deixa cada vez menos tempo livre para a “carolice” e para o voluntariado ou participação em actividades, sobretudo quando os membros mais activos estão condenados a trabalhar fora da região. Vemos assim com séria apreensão o futuro associativo, até pelo seu carácter temático bastante especializado. A menos que se transforme numa estrutura profissionalizante, de tipo empresarial, o que induziria a alteração do pacto social. Todavia essa solução também não se afigura a melhor num cenário de crise sem fim à vista e tendo como pano de fundo um neoliberalismo que preconiza uma autossustentabilidade irrealizável no campo da Cultura. Para mais numa região deprimida do interior em que a progressiva desertificação humana é facto sem retorno. Talvez o PARM represente o fim de um tempo, que foi o do voluntarismo, do chamado “amor à camisola”; mas também o tempo dos “antiquários” e dos “amadores”, no sentido “de aqueles que amam” as “antiguidades”, se bem que com outras preocupações científicas e uma visão aggiornata. Quiçá o tempo de uma maior autenticidade na luta em prol do património, face a novos profissionais da arte que trabalham, sem rebuço, a soldo de grandes obras públicas e privadas305. Talvez o tempo do fim da inocência... Mas, em jeito de conclusão, uma coisa nos parece certa (se bem que estejamos a ser juiz em causa própria): o contributo directo (e indirecto), do PARM para a Arqueologia e para o Património regional e até nacional, parece-nos ser incontornável. Pelo que, apesar das vicissitudes, terá valido a pena esta aventura.

305  Para não causar mais problemas com o poder local, a associação decidiu, em assembleia geral realizada em 28.02.2004, não se pronunciar oficialmente sobre uma grande barragem em construção no concelho, e que se sabia que iria afectar um imenso património natural, arqueológico e etnológico. Todavia não participou de modo algum nesse crime de lesapatrimónio, demarcando-se do processo.


Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo

BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Nelson (2001) - Museu do Ferro e da Região de Moncorvo. - Um museu em construção. «Centros Históricos. Revista da Associação Portuguesa dos Municípios com Centros Históricos», ano II, 2ª. série, nº. 7, Abr./Jun. 2001. Santarém: Assoc. Portuguesa dos Municípios com Centro Histórico, p. 18-19 CAMPOS, Nelson; RODRIGUES, Miguel (2005) Permanências e rupturas nas estratégias de povoamento da Idade do Ferro à Idade Média na região de Moncorvo. Colóquio «Castro, um lugar para habitar», 5-6 Novº. 2004 (Actas). «Cadernos do Museu», nº. 11. Penafiel: Museu Municipal de Penafiel, 2005, p. 317-339 CAMPOS, Nelson (2011) - O museu como espaço de investigação e instrumento de comunicação: reflexões a partir do caso do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo, in PALAVRAS, Armando, coord. - Trás-osMontes e Alto Douro: mosaico de ciência e cultura. S. l. (Lagoaça): Comissão de Festas de Nossa Senhora das Graças, p. 219-224. CAVALHEIRO, Eugénio; REBANDA (1998) - A igreja matriz de Torre de Moncorvo. Mirandela: João Azevedo Editor, 1998. CAVALHEIRO, Eugénio (2000) - Os frescos da Sr.ª da Teixeira. Mirandela: João Azevedo Editor, 2000. CAVALHEIRO, Eugénio (2011) - Igreja de Santiago da Adeganha. Mirandela: João Azevedo Editor, s/d [2011] CUSTÓDIO, Jorge; CAMPOS, Nelson, coord. (2002) - Museu do Ferro e da Região de Moncorvo. Catálogo do Museu, vol. 1. Museu do Ferro & da Região de Moncorvo, 2002. 270 pp. LIMA, Alexandra; RODRIGUES, Miguel, REBANDA, Nelson, GOMES, Paulo Dordio, TEIXEIRA, Ricardo (1989) - A região de Moncorvo na Idade Média. «Projectos de investigação em Arqueologia. Documento de trabalho e planeamento». Porto: SEC/IPPC/Serviço Regional de Arqueologia da Zona Norte, Janº. de 1989, p. 105-113 LIMA, Alexandra; RODRIGUES, Miguel, REBANDA, Nelson, GOMES, Paulo Dordio, TEIXEIRA, Ricardo (1988) - Escavações arqueológicas na igreja de S. Mamede (Torre de Moncorvo). «Trabalhos de Antropologia e Etnologia», vol. XXVIII,

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fasc. 3-4 (1988) (Actas do Colóquio de Arqueologia do Noroeste Peninsular, de 22-24/09/1988). Porto: SPAE, p. 188-204+VI. PARM (1985) - Introdução a um programa de investigação regional - Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo (P.A.R.M.). «Arqueologia», nº. 11, Junho de 1985. Porto: GEAP, p. 144-148. PARM (2008a) – Inventário de património arqueológico e de alguns valores arquitectónicos do concelho de Torre de Moncorvo. PDM (Plano Director Municipal) de Torre de Moncorvo, 2009, PARM/ Município de Torre de Moncorvo, 2008. 3 vols., policop., disponível “on line”. PARM (2008b) – Inventário de arte sacra da igreja matriz de Torre de Moncorvo – selecção de peças para o Museu de Arte Sacra. Torre de Moncorvo, 2008. 2 vols., policop. (trabalho realizado para o município de Torre de Moncorvo) REBANDA, Nelson; GOMES, Paulo Dórdio (1994) - Igreja de S. Mamede, Baldoeiro (Torre de Moncorvo). «Informação Arqueológica», nº. 9. Lisboa: SEC/ IPPAR1994, p. 16-17 REBANDA, N.; RODRIGUES, Miguel; MASCARENHAS, Ana (1996) - Museu do Ferro e da Região de Moncorvo. Introdução a um programa museológico. “Trabalhos do Museu”, nº. 1. Museu do Ferro e da Região de Moncorvo, 1996, p. 1-38. REBANDA, N. (1997) - Sondagem arqueológica de emergência no Largo General Claudino Pimentel (antigo Largo do Rossio), Torre de Moncorvo. Relatório de escavação depositado no IPPAR, Setembro de 1997, inédito. REBANDA, N. (2008) – As pinturas rupestres da Fraga do Gato, Poiares, Freixo de Espada à Cinta, segundo um apontamento de 1986. Freyxeno, 9, Setembro 2008, p. 68-81. RODRIGUES, Miguel (1994) - Cerâmicas medievais da região de Moncorvo. Porto: FLUP. Tese de mestrado, inédita. RODRIGUES, Miguel Areosa; REBANDA, N. (1995a) - Cerâmicas medievais do Baldoeiro (Adeganha – Torre de Moncorvo). «1.as Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval – Métodos e Resultados para o seu Estudo» (Tondela, 28 a 31 de Outubro de 1992). (Actas). Câmara Municipal de Tondela, Porto, 1995, p. 51-66.


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Nelson Campos

RODRIGUES, Miguel; REBANDA, N. (1995b) - Centros oleiros do distrito de Bragança - olarias de Felgar e Larinho. «1.as Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval – Métodos e Resultados para o seu Estudo» (Tondela, 28 a 31 de Outubro de 1992). (Actas). Porto: Câmara Municipal de Tondela, 1995, p. 207-220 (editado posteriormente em separata pelo Museu do Ferro e da Região de Moncorvo, 1996, 16 p.) RODRIGUES, Miguel; REBANDA, Nelson (1996) - Produções de olaria na Terra de Miranda e o seu enquadramento regional. «I Encontro de Etnografia Trasmontana e Alto-Duriense» (Vila Real, Maio de 1995). «Tellus», nº 25, Junho de 1996, Vila Real: Câmara Municipal de Vila Real, p. 25-38. VASCONCELLOS, José Leite de (1895) – Museu archeológico em Moncorvo. «O Archeólogo Portuguez», tomo 1, nº 1. Lisboa: Museu Etnographico Portuguez, p. 175-176.


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Arquivo de Memória 2010-2013 Entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional texto: Alexandra Cerveira Lima ACOA — Associação de Amigos do Parque e Museu do Coa (acerveiraplima@sapo.pt)

Resumo: O Arquivo de Memória promove encontros entre gerações, regista testemunhos, digitaliza e conserva pequenos arquivos familiares. Recorrendo às novas tecnologias e a partir das recolhas de informação e documentação realizadas, o projeto contribui para a dinamização do conhecimento e da investigação, estimulando os laços intergeracionais e a ligação da comunidade ao património. São objetivos: - Melhorar a qualidade de vida dos idosos, particularmente dos idosos integrados nos lares - Dinamizar relações intergeracionais em torno da construção da História Regional

- Promover a utilização de novas tecnologias - Promover a investigação - Promover a aproximação das comunidades ao património

Abstract: The project Arquivo de Memória promotes communication between young and old people, makes records of life stories, scans and preserves small family archives. Using new technologies and from the collections of information and documentation, the project contributes to the promotion of knowledge and research, encouraging intergenerational ties within the community and a greater attachment to its heritage. Goals:

-Improve the life quality of seniors, particularly of the ones integrated at nursing homes -Promote intergenerational relationships around the joint construction of Regional History -Promote the training and the use of new technologies -Promote research -Promote community approach to cultural and natural heritage

2010/2011 - projeto-piloto, Vila Nova de Foz Côa 2011/2012 - Parque Natural do Douro Internacional (no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo) e aldeia de Serranillo (Ciudad Rodrigo). 2013 - Alargamento ao Vale do Coa e Douro Superior (apoio PROVERE do COA).

2010/2011 - The pilot project took place at Vila Nova de Foz Coa. In 2011/2012, it was extended to the International Douro Natural Park, in the county of Figueira de Castelo Rodrigo, and to the village of Serranillo (Ciudad Rodrigo). 2013 - extension to the Coa Valley and the Upper Douro region.

Palavras-chave: Arquivo de Memória; Intergeracional; História

Key-words: Memory File; Intergenerational; History


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Alexandra Cerveira Lima

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o painel História, Património e ação local/ regional, optámos por apresentar o projeto Arquivo de Memória que tem vindo a ser desenvolvido pela ACOA – Associação de Amigos do Parque e Museu do Coa, através do Clube UNESCO Entre Gerações. O projeto iniciou-se em 2010 com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Da memória descritiva que integrou a candidatura apresentada ao PROVERE do COA, entretanto publicada306 retiraremos descrição do projeto piloto que decorreu em Vila Nova de Foz Coa ao longo do ano letivo de 2010/2011. 1. O Projeto-piloto307 Foi candidatado o projeto Arquivo de Memória do Vale do Côa ao programa Entre Gerações, no âmbito do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano308, cujo principal propósito era «promover a coesão social e diminuir o isolamento dos idosos, através do estreitamento das relações entre os diferentes grupos etários». Concorrendo com mais de 300 projetos, a candidatura realizada em nome da ACÔA foi aprovada. 1.1. Ficha Técnica do projeto-piloto Duração do pro- Dezembro 2010 – Dezembro 2011 jeto Montante atribuí- 30,000.00€ do Equipa do projeto Ideia original: Alexandra Cerveira Lima Coordenação geral: Alexandra Cerveira Lima e Mafalda Nicolau de Almeida Coordenação executiva: Bárbara Carvalho Antropologia: Inês Melhorado Atividades, divulgação e novas tecnologias: Maria Sottomayor Disseminação do projeto em F. C. Rodrigo: Ondina Monteiro/ Alexandra Cerveira Lima Logótipo do projeto

306  LIMA et al., 2013: 9-18. 307

CARVALHO & SOTTOMAYOR, 2011: 57-68.

308  FCG (2009) — Entre Gerações, «PG Desenvolvimento Humano». Disponível em <http://www.gulbenkian.pt/section154artId2196langId1. html>. [Consulta realizada em 15/10/2013].


Arquivo e Memória

Parceiros por temáticas

Sinopse

Jovens e idosos: - Santa Casa da Misericórdia – Lar N.ª Sra. da Veiga - Escola Secundária de Vila Nova de Foz Coa Logística e articulação com a comunidade: - Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Coa - Junta de Freguesia de Vila Nova de Foz Coa Património cultural: - Parque e Museu do Coa - Comissão Nacional da UNESCO Gestão da informação e documental: - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Sistemas de Futuro - ACDR de Freixo de Numão Disseminação do projeto: - ICNB (DGACN/Parque Natural do Douro Internacional) - Lares e Centros de Dia de Figueira de C. Rodrigo - Junta de Castela e Leão, Fundação Duques de Sória e Associação Civitas Através da articulação entre escolas, lares e centros de dia, o Arquivo de Memória promove encontros entre jovens e idosos, regista histórias de vida, digitaliza e conserva pequenos arquivos familiares. Recorrendo às novas tecnologias e a partir das recolhas realizadas, cria-se um arquivo que deverá contribuir para a dinamização do conhecimento e investigação na região, criando laços entre a comunidade.

Esquema de ação: 1.2. Ações realizadas e resultados Idosos

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64 idosos envolvidos 21 visitas dos alunos ao Lar N.ª Sr.ª da Veiga 51 entrevistas 221 documentos cedidos para acondicionamento 8 atividades intergeracionais complementares


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Alexandra Cerveira Lima

Esquema: Mafalda Nicolau de Almeida

Jovens

Aulas inseridas na disciplina de Área de Projeto Frequência: semanal 12º ano - 3 alunos - 79h30m 7º ano - 21 alunos - 46h30m Total ano lectivo: 126h 1º Período – Formação: recolha de histórias de vida; vídeo e som; fotografia; acondicionamento de arquivos familiares; design e comunicação Total de horas de formação : 21 horas 2º Período – Recolhas: realização de entrevistas junto dos idosos Total 12º ano: 10 Total 7º ano: 9 Acondicionamento de espólios familiares Total 12º e 7º anos: 79 documentos 3º Período – manipulação de dados 7º ano – animações e elaboração de um «livro do passado» 12º ano – realização de uma exposição no Centro Cultural em V.N.de Foz Coa


Arquivo e Memória

Ações complementares

Envolvimento comunidade

- - - - - - - -

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Visita intergeracional ao Museu do Coa Participação na exposição da Feira do Livro de Vila Nova de Foz Coa Participação no desfile alegórico da amendoeira em flor Plantação de árvores no Museu do Côa Tarde de jogos tradicionais no Orgal Workshop de desenho com a artista Maria Lino Visita à capela de Nª Sr.ª da Veiga e lanche Atividades intergeracionais semanais no lar: jogos e navegação na internet

da Sessão de apresentação pública do projeto Prémio “Associação do Ano 2011” atribuído à ACOA pela Associação Juvenil Gustavo Filipe Recolha e acondicionamento de arquivos familiares 37 entrevistados realizadas

Total de recolhas

19 entrevistas realizadas pelos jovens 32 entrevistas realizadas pela equipa técnica Total: 51 entrevistas 79 documentos acondicionados pelos jovens 142 documentos acondicionados pela equipa técnica Total: 221 entrevistas

Divulgação

Imprensa: 2 artigos no site «Café Portugal», 4 artigos «Jornal Fozcoense», 2 artigos «Jornal da Guarda», 1 artigo na «Sic Notícias» on-line, 2 artigos na Revista «Visão» e «Visão Júnior», 1 artigo na Revista «Coavisão» Facebook - 1410 amigos Blog - 42 entradas

Disseminação

Figueira de Castelo Rodrigo § Parceria com ICNB/DGACN/Parque Natural do Douro Internacional: Agosto a Outubro 2011 § Estágio curricular de Maria Ondina Monteiro. Orientação de Alexandra Cerveira Lima em articulação com a restante equipa do projeto § Realização de 53 inquéritos em 4 lares Castela e Leão § No âmbito da classificação de Siega Verde como Património Mundial enquanto extensão do Vale do Côa é desenvolvida uma parceria entre a ACÔA/CLUBE UNESCO e a Fundación Duques de Soria, em articulação com a Asociación Cultural Cívitas de Ciudad Rodrigo, entre Outubro a Dezembro 2011 (com continuidade em 2012). § Contemplou: ação junto dos lares, recolha (inquéritos) e atividades intergeracionais articulando idosos e jovens.

Clube UNESCO

Assinatura de protocolo entre a Comissão Nacional da UNESCO e a ACOA para a criação do Clube UNESCO Entre Gerações - 28 de Maio 2011


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Alexandra Cerveira Lima

1 - Aluno do 7º ano de escolaridade da Escola Tenente Coronel Adão Carrapatoso entrevista Adelaide G. no Lar Nª Sra da Veiga, em Vila Nova de Foz Coa, durante o projeto piloto (2010/11).

1.4. Objectivos alcançados § Combate ao isolamento e solidão — melhoria da qualidade de vida dos idosos integrados em lares e centros de dia. § Dinamização de relações intergeracionais entre jovens e idosos com base no património cultural. § Formação dos jovens no âmbito das novas tecnologias para a realização de recolhas do património imaterial e História oral e sensibilizando-os para as questões relacionadas com a intergeracionalidade, o envelhecimento e o abandono social. § Criação das bases de uma recolha documental, um Arquivo de Memória (realização de entrevistas, inventariação e acondicionamento de documentos).

§ Envolvimento da comunidade no desenvolvimento do projeto. § Criação do Clube UNESCO Entre Gerações.

Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian foi testado um projeto intergeracional centrado num problema — o isolamento dos idosos nos lares e centros de dia e o distanciamento relativamente aos mais jovens — e numa oportunidade — o potencial de memória que os idosos guardam. O projeto foi muito bem acolhido pelos intervenientes e instituições parceiras e a sua avaliação, por parte da Fundação Calouste Gulbenkian309, foi positiva. Neste contexto o Clube 309  A Fundação Calouste Gulbenkian, para avaliar o desempenho dos projetos que apoiou no âmbito deste programa, realizou uma parceria com


Arquivo e Memória

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2 - Formação vídeo dos alunos do 7º ano (com Tiago Pereira em Vila Nova de Foz Coa)

UNESCO tomou o nome do programa da Fundação Calouste Gulbenkian que apoiou o Arquivo de Memória: passou a designar-se Clube UNESCO Entre Gerações, tendo resultado da celebração de um protocolo entre a ACOA e a Comissão Nacional da UNESCO. Procurava-se assim ampliar o leque de parcerias e, no futuro, dispor de um modo de atingir as comunidades imigrantes presentes nestes concelhos do interior, através da ligação a outros Clubes UNESCO dos países de origem. O projeto piloto Arquivo de Memória contemplou diversas ações intergeracionais, como uma visita conjunta de alunos e seniores ao Museu do Coa.

o Oxford Institute for Aging.

3 - Os alunos, com a equipa técnica do projeto, digitalizam e acondicionam, para que perdurem, os pequenos arquivos familiares.


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Alexandra Cerveira Lima

4 - O projeto piloto Arquivo de Memória contemplou diversas ações intergeracionais, como uma visita conjunta de alunos e seniores ao Museu do Coa.

2. DESENVOLVIMENTO ATUAL DO PROJETO

través de uma candidatura aprovada ao PROVERE do Coa, o projeto Arquivo de Memória está numa fase de consolidação e crescimento, vital para o futuro. Foram estabelecidos os seguintes objetivos para esta fase: 1. Criação de uma rede virtual, através da base de dados e sistema de gestão da informação In Patrimonium310, é possível colocar em rede e on-line, incluindo o interface proporcionado por um website, toda a informação recolhida e produzida, inventariada e indexada. Sejam testemunhos vídeo ou áudio, sejam documentos digitalizados, sejam inventários de coleções públicas ou privadas311. 2. Edição virtual contribuindo para o que designámos «A História Regional Recente do Vale do Coa». Trata-se de registar, sob a forma de inquérito, conver-

sa, testemunho áudio ou vídeo, as memórias dos utentes dos lares e centros de dia, mas também de quem vive nas aldeias e nas sedes concelhias. As recolhas são feitas, através de uma empresa da área do património312, por alunos, por estagiários, por jovens oriundos da região — que agora vivem noutras geografias, e que passaram dias ou semanas recolhendo testemunhos nas aldeias de onde as família são originárias —, por interessados de várias formas no projeto, mas também por alguns profissionais de som e vídeo a quem se encomendou trabalho no âmbito deste projeto. 3. Um evento intergeracional — Memória em Festa — que passa por um dia ou um fim de semana numa aldeia, a forma encontrada de se comunicar o projeto junto das comunidades locais. Com a colaboração de uma empresa a quem se entregou a comunicação do projeto313, uma equipa faz recolha de testemunhos, divulgação, digitalização de documentos, inventariação, acondicionamento, ao longo de um ou dois dias dia-

310  Empresa Sistema de Futuro

312

Histórias & Tempus

311  Brevemente no domínio www.acoa.pt

313

Setepés

A


Arquivo e Memória

loga com pessoas da comunidade, instala uma câmara de vídeo, entrevista, procura memórias da aldeia, músicas, documentos, danças... A uma outra empresa314 foi entregue a comunicação do projeto junto de parceiros institucionais e de entidades que importa envolver agora e no futuro. Conhecer realmente o vale do Coa, para lá de esteriótipos nascidos das histórias recentes do território, é uma descoberta que importa promover. Entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional, um território de áreas classificadas, um território que se quer de referência. 4. Finalmente um seminário — a que se chamou Imaterialidades — procurando levar, uma vez preparada a base de dados, a rede virtual, o sistema de gestão da informação recolhida, o projeto e o que foi entretanto produzido até junto da Academia. Importa que haja diversos olhares académicos, perspetivas enquadradoras, desenvolvimentos em duas frentes: a investigação e a criação artística. Importa levar o projeto e as recolhas junto de distintos públicos para que o apropriem como seu, como matéria-prima que podem tratar, cuidar, investigar, analisar. Ou simplesmente fruir. 3. O FUTURO DO ARQUIVO DE MEMÓRIA

E

stamos neste momento no ponto que precede o seminário. E há uma tensão interessante que atravessa todo o projeto: por um lado o caráter intergeracional, que é a componente que à Fundação Calouste Gulbenkian importa, e por isso o apoia, em que os espaços lúdicos, as conversas sem fio definido ou atividades diversas são o traço forte. Alunos, com pouca mestria ainda de câmaras e gravadores, captam o som de quem, com olhar paternalista, saudoso ou divertido, entrevistam. Por outro lado a qualidade necessária à comunicação do projeto, que exige filmagens profissionais, captação de som em condições exigentes, profissionalismo que aos entrevistados por vezes incomoda, perturba... Teremos que balancear habilmente estes dois distintos rumos de recolha de testemunhos315. Um outro desafio procuramos, de momento, resol314  Milles Away 315  Foi atribuído ao Arquivo de Memória o Prémio Distinção Cinecoa 2013, durante o festival de Cinema que decorreu em outubro. Ficou patente a força dos testemunhos recolhidos e a fraqueza que decorre da captação amadora de som, mesmo com formação ministrada às equipas.

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ver: o projeto-piloto assentou no par escola/lar, par virtuoso que vivia em grande medida da designada Área de Projeto. Sem ela o Arquivo de Memória procura um espaço, um canal, onde emergir na escola, sem que seja um entrave ao regular curso do ensino curricular, sem que se transforme numa impossibilidade. Outras linhas procuramos desenvolver entretanto: alargar a geografia, alargar o impacto. A ida regular aos lares de um só concelho mobiliza várias pessoas por muitos dias... e, para quem está num lar, embora pareça dispor de tempo, realmente sabemos que o tempo se esvai, corre muito mais rápido do que deveria... inexoravelmente. O projeto nasceu por não nos conformarmos com uma visão de uma tarde numa aldeia do baixo Coa: um conjunto de pessoas silenciosas, na sala de um lar, a olhar para uma parede branca e vazia. Num território em que a História recente está tão pouco trabalhada, em que a documentação é escassa, façamos deste propósito comum — contruir a História em conjunto, produzir conhecimento e promover a criatividade — um estímulo poderoso para as diferentes gerações envolvidas... E se a partir dos testemunhos e documentos procuramos divulgar conteúdos que interessam às comunidades emigrantes, emigração de ontem e de hoje, é nosso propósito produzir conteúdos que importem também aos residentes, turistas e visitantes dos vales do Coa, Águeda e Douro. BIBLIOGRAFIA CARVALHO, Bárbara; SOTTOMAYOR, Maria (2011): Arquivo de memória do Vale do Coa. «Côavisão», vol. 13. Vila Nova de Foz Coa: Câmara Municipal, p. 57-68. LIMA, Alexandra Cerveira — Coa, um território de referência. «Côavisão», vol. 12. Vila Nova de Foz Coa: Câmara Municipal, p. 51-54. LIMA, Alexandra Cerveira; CARVALHO, Bárbara; MURALHA, João; ALMEIDA, Mafalda Nicolau (2013) — O projeto Arquivo de Memória do Vale do Coa candidatado ao PROVERE do Coa. «Côavisão», vol. 15. Vila Nova de Foz Coa: Câmara Municipal, p. 9-18.


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