Caminhos abertos na Polinésia baiana

Page 1

Caminhos abertos na

POLINÉSIA

BAIANA Com praias e ilhas de beleza quase surreal, a Península de Maraú, localizada no litoral sul da Bahia, é considerada um dos destinos ecoturísticos mais famosos e concorridos do País Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br Fotos FERNANDO VIVAS fvivas@grupoatarde.com.br

A

estrada de barro que corta a Península de Maraú, pedaço de terra quase deserto no litoral sul da Bahia, nunca esteve tão movimentada quanto neste verão.Desdemeadosdedezembro,carroscomplacasdenorteasuldoBrasil percorrem a rodovia rumo às praias da região, disputando espaço com caçambas carregadas com cascalho usado em obras de recuperação da pista sem pavimento, identificada pelos guias rodoviários como um trecho da BR-030.Aexplicaçãoparaonúmerodemotoristasdispostosaenfrentar60quilômetrosde terra, pedras e poeira começa nos roteiros turísticos e termina nas máquinas que reparam a estrada a fim de tornar a viagem menos penosa: apontada pela imprensa especializada como o destino ecoturístico mais belo do País, a Península de Maraú tem sido descoberta por cada vez mais visitantes por causa das melhorias no acesso rodoviário, que, partindo de Salvador, via ferryboat, totaliza cerca de 260 quilômetros. Há alguns anos, dizem os moradores das redondezas, não era possível completar o trecho esburacado e arenoso em menos de um dia de viagem, o que tornava a península quase uma ilha. O acesso só era aconselhável por meio dos barcos que diariamente cruzam a Baía de Camamu, que separa a porção de terra do continente.

Cristiano, nativo de Maraú: mototáxi e mergulho na Pedra Furada


22

SALVADOR DOMINGO 30/1/2011

Havia praticamente uma única porta de entrada: Barra Grande. A antiga vila de pescadores ainda é o principal ponto de desembarque de um lugar que mistura praias paradisíacas, uma baía de águas tranquilas, ilhas cercadas por bancos de areia, lagoas e cachoeiras. Mas deixou de ser um entrepostoobrigatórioparachegaraodestino preferido pelos turistas nos arrabaldes, fincado na costa oeste da península. Banhada por águas esverdeadas, a Praia de Taipu de Fora se estende por mais de um quilômetro de longos trechos de areia, grande parte sem sinal de presença humana. A maré baixa descortina a joia queinspirouoapelidodePolinésiabaiana: enormes piscinas naturais, formadas pelo bloco de corais que costeiam a praia. Entre a areia e o mar, um único território demarcado por barracas e cadeiras de sol concentra os turistas na alta estação. A paisagem é de balneário: pessoas em trajes debanho,experimentandoequipamentos de mergulho, jogando frescobol. Mas seguir a trilha de areia por alguns minutos leva invariavelmente à solidão. No horizonte, dividido pela linha dos coqueiros, a curva da praia só traz as primeiras silhuetas humanas após centenas de metros. De mãos dadas, dois adultos e duas crianças atravessam o deserto à beira-mar. A imagem leva alguns minutos para se transformar numa família: Danielle, 36, e Dênio Moura, 39, conduzem os filhos Gabriel e Marina para o passeio matinal que virou rotina nas férias. Servidores públicos de Brasília, os dois dizem ter escolhido uma confortável pousada em Taipu de Fora em busca de sossego. “Sempre preferimos lugares isolados e tranquilos nas férias, como Maraú e Barra de São Miguel (AL)”, compara Danielle. O casal se encaixa à perfeição no perfil mais comum de quem visita a Península de

SALVADOR DOMINGO 30/1/2011

Os brasilienses Danielle e Dênio, com os filhos, em Taipu de Fora. Rafael Araújo e Mariana Sobreira na Lagoa Azul. José Bonfim, com a mulher Maria e a filha Gabriele, na Ilha do Goió

23

O guia Williams de Souza, na Pedra Furada: por R$ 2, ele dá explicações geológicas e conta histórias de pescador

Maraú. Com promessas de privacidade, contato com a natureza e simplicidade – sem dispensar conforto –, as pousadas da região seduzem pessoas de todo o Brasil e muitos países, cujo objetivo é descansar. Tais atributos foram decisivos quando o mineiro Nestor Maciel, 46, decidiu fechar a pousadaquepossuíaemPirinópolis(GO)e abrir um negócio no litoral. A Península de Maraú foi escolhida depois de examinar quase mil quilômetros de costa, entre o Espírito Santo e o sul da Bahia. “Foi uma decisão baseada no potencial que acreditamos haver aqui. Nem propaganda eu faço, até para não comprometer a privacidade

dos hóspedes. Recebemos muitos artistas, quequeremsórelaxar”,delataMaciel,que comprou uma velha pousada desativada, reformouasinstalaçõeseconstruiuumrestaurante na beira da praia para servir forasteiros dispostos a pagar até R$ 240 por dia de hospedagem – preço camarada comparado às diárias do único resort da península, que chegam a R$ 2.350. A taxa de ocupação, Maciel reconhece, só se aproxima dos 100% no verão e feriados prolongados, mas a baixa procura na maior parte do ano está longe de ser uma preocupação. “Nosso ideal de vida é este mesmo: trabalhar muito na alta tempora-

«Nosso ideal de vida é trabalhar muito na alta temporada para poder aproveitar este lugar maravilhoso no resto do ano» Nestor Maciel, dono de pousada

da para também poder aproveitar este lugarmaravilhosonorestodoano”,dizoempresário, que se mudou com a mulher Kelly e dois filhos para a península.

MOTOTÁXI E SNORKEL Vizinha da badalada Itacaré, destino turístico mais desejado da região, Maraú ainda atrai poucos baianos da capital se levada em conta a pequena distância para Salvador. Por outro lado, cidades próximas como Camamu, Jequié e Itabuna despejam cortejos de moradores por terra e mar. “As pessoas vêm de fora usufruir do nossopatrimônio,e,muitasvezes,agenteque é daqui não sabe dar valor”, argumenta o camamuense Cristiano da Hora, 35. Mototaxistadesegundaasexta,elepõesnorkel, máscara de mergulho e pés-de-pato nos fins de semana. Arpão nas mãos, cai nas águas da Baía de Camamu à caça de peixes e lagostas nos arredores de ilhas como a da Pedra Furada, um punhado de terra de be-


24

SALVADOR DOMINGO 30/1/2011

leza cenográfica do tamanho de um salão de festas. “Eu via gente mergulhando aqui, coisa que eu, que sou nativo, nunca tinha feito. Aí me deu vontade”, diz Cristiano. Principal atrativo do passeio de barco ou lancha que parte de Barra Grande e perambula pela baía, a Pedra Furada só é acessível a embarcações de grande porte por meio de um banco de areia próximo, que a maré baixa transforma em trilha submersa. Após atravessar o caminho de areia e pedras, o visitante pode ter a sorte de encontrar na ilha, uma propriedade privada lacrada a maior parte do tempo por um portão de madeira encravado numa gruta, o caseiro Maciel de Souza ou seu irmão de 16 anos, Williams, primeiro imediato na linha de defesa do paraíso particular. Com a singela contribuição de R$ 2, é possível entrar na ilha e ouvir dos guias explicações geológicas para a formação da pedra que batiza o lugar, além de histórias literalmente de pescador. Uma expõe o motivo de um pedregulho de quatro me-

SALVADOR DOMINGO 30/1/2011

tros de altura ser chamado de “catedral”: “Os pescadores antigos diziam ver o rosto de Cristo na pedra. Quando o mar não estava para pesca, aproximavam-se, oravam e depois conseguiam pegar todo tipo de peixe”, Williams reproduz a lenda. Além da Ilha da Pedra Furada, a Baía de Camamu tem outro ponto de parada obrigatório: a Ilha do Goió. Num final de semana, a muvuca provocada por gente tomando banho de sol, comendo churrasco e bebendo cerveja leva a crer que o nome mais apropriado seria Ilha do Goró. Para centenasdehabitanteslocais,comooconstrutor naval José Bonfim, 39, a ilha é o oásis dos sábados, domingos e feriados. “No fim de semana que eu posso, estou aqui”, admite o morador do povoado de Cajaíba, cuja maioria da população trabalha em estaleiros, na construção de escunas, saveiros e canoas a vela. Bonfim leva a famíliaparanavegarnumsaveironovinho, feito por ele. “Antigamente, os saveiros eram muito comuns por aqui. Agora estão

voltando, junto com as canoas”, diz. O incentivo é a organização de regatas, que pontilham o mar com velas e deixam ainda mais bonita a Baía de Camamu.

QUADRICICLO A terceira maior baía brasileira em volume de água foi o primeiro cartão-postal da península visto pelos namorados Mariana Sobreira, 21, e Rafael Araújo, 25. Estudantes de Salvador, os dois chegaram a Barra Grande depois de cerca de 30 minutos de barco desde a cidade de Camamu. Pela primeira vez na região, Rafael explica por que a escolheram: “A gente pretende conhecer mais o sul da Bahia. Como játínhamosidoaBoipebaeItacaré,viemos agora para a Península de Maraú”. Após o conhecimento da área, Mariana faz seu diagnóstico: “Aqui é mais para quem quer descansar, é um local ideal para isso. Acho que ainda não descobriram Barra Grande, por isso existe essa tranquilidade”. Montados num quadriciclo alugado,

meio de transporte que facilita andar pelos caminhos de terra das cercanias, os dois exploram trilhas que levam a praias isoladas e lagoas cruciais para o equilíbrio ecológico. As mesmas lagoas, porém, são usadas como armadilha para turistas: indicada por placas de sinalização e tratada como grande atração nos roteiros de passeio, a visita vira decepção diante de cercas de arame farpado que impedem o acesso às margens. A aventura só vale a pena se prevalece o desejo de se embrenhar no mato, o que pode ser um desafio para quem passa os dias enfurnado em escritórios e não conhece patavina da “vida selvagem”. Uma forma de encarar a experiência em grupo é recorrer às jardineiras de Barra Grande, veículos com carroceria adaptada para o transporte coletivo que, diariamente, fazem o roteiro das praias, lagoas, morros e trilhas ecológicas da península. O passeio custa R$ 30 por pessoa, mas o valor pode ser negociado a depender do número de aventureiros. Parte integrante

Jardineiras que fazem passeios em Barra Grande. O agito etílico na praça do distrito de Maraú. E as barracas da praia de Taipu de Fora, repletas de turistas

25

da paisagem do vilarejo, as jardineiras são também o meio de transporte mais tradicional de Barra Grande. Nos dias que antecedemesucedemoRéveillon,picoanualdevisitaçãodapenínsula, elas circulam pelas ruas e estradas da manhã à noite. Mas, à medida que o verão se aproxima do fim, cresce a fila de caminhonetes paradas no ponto de embarque no centro do povoado, à espera de passageiros,querareiamdesdequeoacessoàpenínsulasetornou mais fácil pela BR-030. Mesmo nas primeiras semanas do ano, a paisagem semirrural de Barra Grande surpreende pela ausência de pedestres nas ruas e lojas, bares e restaurantes fechados durante o dia. O marasmo só é quebrado periodicamente, com a chegada de barcos trazendo passageiros com mochilas nas costas e sacolas nas mãos, numa romaria que começa no píer e vai minguando à medida que os visitantes se distribuem pelas pousadas. Esvaziadas até o final da tarde, as duas pracinhas no centro da vilasódespertamcomocairdanoite,transformandoumambiente quase desabitado em ponto de concentração turístico. Espalhadas por comerciantes, mesas e cadeiras de plástico recebem a gente bronzeada que passou o dia nas praias da costa oceânica ou a bordo de embarcações, circulando pela Baía de Camamu. Comer e beber torna-se então o esporte preferido de homens e mulheres, enquanto a madrugada não sugere atividades mais sedutoras, como o forró à beira-mar organizado por uma barraca de


26

SALVADOR DOMINGO 30/1/2011

praia da vila. Em Barra Grande ou no restante da Península de Maraú, é o máximo de gandaia que se pode encontrar depois da temporada de festas de Réveillon.

MERCADO Para os empresários locais, porém, a agitação começa no final de novembro, quando o mercado imobiliário da penínsuladespertaparaosnegócios.Amaioriados investidores, gente que decide abrir uma pousada ou bar na expectativa de lucrar com o crescente movimento turístico, é de fora da Bahia ou mesmo do Brasil. Cientes dos riscos embutidos em contratos a longo prazo, eles adotam uma estratégia comum: arrendar casas a serem transformadas em pousadas ou pontos comerciais já estruturados apenas durante o verão. Há três anos, o paulista Carlos Henrique Mota, 29, muda-se para Barra Grande de novembro a março. Trazidos por uma irmã que arrendou uma pousada, ele e o pai, Antônio Carlos, 58, tocam uma barraca na Ponta do Mutá, a paradisíaca extre-

SALVADOR DOMINGO 30/1/2011

Nestor e Kelly, em frente à pousada Kaluana. O empresário Carlos Henrique, em sua barraca

COMO CHEGAR Barcos e lanchas saem das 6h às 17h do porto de Camamu, a R$ 6 e R$ 25. Por via aérea, o aeroporto mais perto é o de Ilhéus. Na península, há uma pista de pouso privada, que atente a táxis aéreos, no Kiaroa Resort (71 3272-1320) Saiba mais no barragrande.net e peninsulademarau.com

midade norte na península. De Dracena, a pequena cidade no interior paulista de onde vieram, trouxeram a esperança de ganhar dinheiro vendendo pratos sofisticados, preparados sobretudo com frutos do mar. Aliado às delícias sobre a mesa, o pôr-do-sol no horizonte da baía, exatamente em frente à barraca, completa o arsenal de atrativos capaz de convencer qualquer turista a sentar sob um sombreiro e gastar alguns tostões. Aexperiênciadetrêstemporadas,noentanto,nãoestimulaCarlos Henrique a planejar uma quarta. “Ainda não sei se valeu a pena investir três verões aqui. Trabalho até 16 horas por dia e o movimento varia muito, mesmo na alta temporada”, diz o empresário, que também pilota o fogão do restaurante enquanto o pai cuida do caixa. “A verdade é que muita gente que abre pousadas ou bares aqui desiste depois de algum tempo e passa o ponto. E quem é proprietário prefere arrendar para garantir uma renda”. O ceticismo do empresário e o troca-troca de pontos comerciais não têm evitado que novos negócios surjam não só em Barra Grande, mas em toda a península. A expansão econômica é bem menor do que a observada em Itacaré, mas é facilmente percebida inclusive por quem está ali a passeio. Mesmo com acesso complicado, longos trechos sem rede de telefonia celular e um caixa eletrônico sequer, a Península de Maraú exibe cada vez mais anúncios imobiliários. A descoberta da região pelos corretores, sem dúvida, está associada à melhoria do acesso rodoviário, que abre para a península caminhos rejeitados pela maioria dos empresários já ins-

talados e parte da população nativa. Eles temem que, ao ser asfaltada, a estrada que une a localidade ao continente desove turistas demais, que gastem pouco dinheiro e ameacem os bens que mais atraem visitantes: a natureza em estado quase bruto e a tranquilidade. Paraasjardineiras,osprejuízosjácomeçaram. Presidente da associação de motoristas, Genilson dos Santos, o Careca, diz que a procura pelo serviço diminuiu em torno de 50% desde que a rodovia passou pelas primeiras obras de recuperação, há dois anos. “Nossa renda caiu”. O medo de ver a península invadida de forma desordenada uniu recentemente motoristas e empresários numa iniciativa, no mínimo, incomum: um abaixo-assinado contrário à recuperação da estrada. A medida é considerada um equívoco pelo presidente do Conselho Municipal de Turismo de Maraú, Juarez Nogueira: “O que destrói um lugar não é o progresso, mas a falta de estrutura”, alega Nogueira, dono de uma pousada próxima à Praia de Saquaíra, um dos povoados da península. Na prefeitura local, o discurso alia a promessa de preservação à expectativa de investimentos federais e estaduais. Um projeto prevê a construção de um portal antes de Barra Grande, para limitar a entrada de carros. Há mais de um ano, fontes do MinistériodosTransportesconfirmamplanos de asfaltar a BR-030. De olho na Copa do Mundo de 2014, o município de Maraú foi eleito pelo governo federal um dos “destinos indutores do turismo” no Brasil. São 65 cidades com potencial para atrair turistas, mas precisam melhorar seus serviços. Com praias e ilhas que disputam qualquer título mundial, a Polinésia baiana terá antes que encontrar uma forma de tranquilizar seus próprios moradores. «

27


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.