Edição 34 (completa)

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Palestina massacrada_Como desejaremos um “bom dia” em Gaza?

R$5 edição

nº 34

outubro

2014

Eleições 2014

PARA ALÉM S A N R U S A D cado pela Num segundo turno mar pecial analisa a despolitização, nosso es ra das urnas fo e ro nt de a ic lít po ra conjuntu

FAZENDO

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EDIÇÃO DIGITAL

nº34

Com conteúdo


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37 ANOS NA LUTA EM DEFESA DA EDUCAÇÃO PÚBLICA


>>> Secretário Risolia diminuiu matrículas e fechou mais de 150 escolas

A divulgação do crescimento da nota das escolas da rede estadual do Rio de Janeiro no IDEB – passando da 15ª colocação em 2011 para a 4ª colocação em 2013 – não chega a ser uma surpresa. Desde 2012, o Sepe vinha denunciando a política pedagógica da SEEDUC, que restringe o universo avaliado pelo IDEB, com uma clara estratégia para melhorar artificialmente as notas dos alunos das escolas da rede estadual. Esta política, implementada pelo secretário Wilson Risolia, consiste na retirada do ensino regular de alunos que tinham idade acima da média escolar, que foram transferidos para o Novo Ensino de Jovens e Adultos (NEJA) e para o Projeto Autonomia (que utiliza a metodologia de Telecursos da Fundação Roberto Marinho). Estes dois programas não são avaliados pelo IDEB.

A rede estadual matriculou no ensino médio, em 2013, 410 mil alunos (dados do INEP). Neste mesmo ano, foram matriculados 57 mil estudantes no NEJA. No autonomia , foram matriculados 34 mil alun os. Assim, quase 20% dos alunos da rede estadual deixaram de ser ava liados pelo IDEB no ano passad o. Nos últimos anos mais de 150 escolas estaduais foram fechadas. Um estudo do professor Nichol as Davies, da Faculdade de Educaç ão da UFF, já tinha mostrado que o número de matrículas no estado vem diminuindo em relação ao ensino privado: de 2006 a 2012, a redução das vagas nas escolas estaduais foi de quase 35%, passan do de 1,5 milhão para 973 mil. Hoje, a rede privada no Rio é a segund a maior do Brasil em termos percen tuais. Somos o único estado em que a rede privada na educação básica é maior do que a estadua l. Para o Sepe, a criação de sistemas de avaliação como o IDEB se configura em mais um mecanism o criado pelos governos para mascarar a real situação nas nossas escolas. Muito mais efetivo do que o IDEB seria discutir com a com unidade escolar o papel da escola como um bem público para afer ir as demandas dos nossos alunos e da comunidade em geral. Ao invés disto, a política educacional do Estado, transforma as escolas em fábricas e os alunos em mercadorias. Os índices são medidos por resultados e produtividade, a partir de metas estabelecidas, sem que sejam levadas em conta as condições de trabalho , as diferentes realidades nas quais as escolas estão inseridas e sem cria r condições igualitárias de valoriza ção profissional.

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O homem é o vírus do homem e do planeta. Daí, vem o nome da revista, que faz a provocação de que mesmo a humanidade destruindo a Terra e sua própria espécie, acreditamos que com mobilização social, uma sociedade em que haja felicidade para todos e todas é possível.

Recentemente, unificamos os esforços com o jornal alternativo Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e nos tornamos um único coletivo e uma única publicação impressa. Seguimos, assim, mais fortes na luta pela democratização da comunicação para a construção de um jornalismo pela diferença, contra a desigualdade.

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Conselho Editorial: Adriana Facina, Amanda Gurgel, Ana Enne, André Guimarães, Claudia Santiago, Dênis de Moraes, Eduardo Sá, Gizele Martins, Gustavo Barreto, Henrique Carneiro, João Roberto Pinto, João Tancredo, Larissa Dahmer, Leon Diniz, MC Leonardo, Marcelo Yuka, Marcos Alvito, Mauro Iasi, Michael Löwy, Miguel Baldez, Orlando Zaccone, Oswaldo Munteal, Paulo Passarinho, Repper Fiell, Sandra Quintela, Tarcisio Carvalho, Virginia Fontes, Vito Gianotti e Diretoria de Imprensa do Sindicato Estadual dos Profissionais de Edução do Rio de Janeiro (SEPE-RJ)

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THIAGO MELO Thiago é advogado e coordenador do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH)

Manifestantes encurralados na Praça Saens Peña (próximo ao Maracanã) no dia da final da Copa do Mundo (13/07) | Foto: Camila Nóbrega / canal Ibase

Liberdade de manifestação

no banco do reús Por que os governos reprimem tanto quem luta por direitos?

“Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem” (Bertolt Bretch) No momento em que as ruas reivindicam democracia real, descomemoram 50 anos do golpe civilmilitar e questionam as promessas não cumpridas depois de 25 anos da Constituição Cidadã, eis que se evidencia uma democracia de baixa intensidade no Brasil. O legado imediato da Copa das Copas é a criminalização da chamada jornada de junho, com manifestantes processados criminalmente, presos e foragidos sob a acusação estapafúrdia de formação de quadrilha armada, restando violado o princípio elementar da liberdade de reunião e expressão. 6

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Já nos preparativos da Copa eram nítidos os sinais de autoritarismo. Em 2012, a partir de uma linha de crédito do Banco do Brasil direcionada para a organização dos megaeventos esportivos, foram construídas quatro cadeias. Em 2013, o governo do estado do Rio de Janeiro adquiriu oito caveirões para reforçar o esquema de segurança da Copa da Fifa e dos Jogos Olímpicos. Na Copa das Confederações, em atuação conjunta das polícias com as Forças Armadas, empregaram-se 3,7 mil militares, 500 viaturas, oito helicópteros, dois esquadrões de Cavalaria de Choque e

uma seção de Cães de Guerra. No dia da final da Copa, 13/07 foram 26 mil soldados e policiais fazendo a segurança do evento. Manifestantes foram sitiados pelas forças de segurança na Praça Saens Peña e vários midiativistas agredidos. Os manifestantes são taxados de violentos, mas o que marcou os protestos desde junho de 2013 foram as arbitrariedades policiais: condução e detenção para averiguação, procedimento típico de ditaduras; detenção por desacato quando se questiona o abuso de poder de agentes de


segurança pública; flagrantes forjados; quebra de sigilo e espionagem através de grampos telefônicos e monitoramento de redes sociais, inclusive de advogados; sigilo da investigação policial em prejuízo do direito à ampla defesa; utilização inadequada de armamento menos letal e aparato repressivo; e até uso de armamento letal.

A trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade foi a única que recebeu atenção da grande mídia. A partir desse episódio, procurouse etiquetar as manifestações como atos de vandalismo, em uma tentativa de desmobilizá-las, apagar suas reivindicações, omitir a crescente repressão policial que as inibe e justificar a criminalização dos movimentos sociais. De forma oportunista, o julgamento dos acusados Fábio Raposo e Caio Silva é dominado pelo sensacionalismo midiático.

dente, fruto de uma ação irresponsável, porém sem qualquer relação com a preocupante denúncia da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), já defasada, de que 133 jornalistas foram agredidos em manifestações, sendo 70% vítimas de violência policial, em violação à liberdade de imprensa. A verdade é que não são as pedras ou rojões que ameaçam a democracia. As instituições bancárias não vem a público reclamar das vidraças quebradas de suas agências, preferem viver às sobras de governos, contabilizando recordes de lucro. Os palácios de poder continuam impermeáveis às demandas populares. Câmaras Municipais foram ocupadas por ativistas como normalmente não o são pelos parlamentares, o que chegou a servir de pretexto mais persuasivo que a falta de quórum para a não realização de sessões. A grande mídia deturpa até o quantitativo de pessoas presentes nas manifestações, transforma o conflito social em assunto criminal como forma despolitizar a luta por direitos. Enquanto a proposta da OAB de reforma política está esquecida no Ilustração: Adriano Kitani/www.pirikart.com.br

São 24 mortes no contexto das manifestações desde os primeiros protestos. As causas são muitas: execução, atropelamento, queda de viaduto, inalação de gás, parada cardíaca etc. Armamentos antidistúrbios têm sido manejados com o objetivo de ferir e amedrontar. Nas favelas, segue o padrão de letalidade policial que fez de Amarildo mais um desaparecido da democracia, mesmo em se tratando de repressão a atos políticos. Somente no Complexo da Maré foram 10 mortes, após repressão policial à mobilização ocorrida em Bonsucesso, no dia 24 de junho de 2013. A polícia alegou que traficantes se infiltraram na manifestação para fazer um “arrastão”.

Os manifestantes são taxados de violentos, mas o que marcou os protestos foram as arbitrariedades policiais”

Por vezes, manipulam-se os fatos para associar esta lamentável perda à violência sofrida por jornalistas na cobertura dos protestos, quando se sabe que o sinalizador que atingiu Santiago não era dirigido a nenhum profissional de imprensa, se é que se pode atribuir algum alvo a um artefato explosivo lançado ao chão. Foi um triste aci-

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Ilustração: Adriano Kitani/www.pirikart.com.br

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Congresso Nacional, as eleições são mercantilizadas e colonizadas pelo poder econômico. O inquérito da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI) que indiciou 23 manifestantes do Rio de Janeiro, acusados do crime de associação criminosa, é sintoma de que algo vai muito mal no Estado brasileiro. Sem provas e individualização de conduta, os acusados tiveram decretada prisão preventiva, que logo foi revogada pelo desembargador Siro Darlan. Na investigação, foram listados 73 movimentos sociais como integrantes de uma suposta quadrilha armada. Na falta da identificação das pessoas que possam ter cometido ilícitos nos protestos, optou-se por criminalizar genericamente diversos coletivos, organizações da sociedade civil e indivíduos. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em conjunto com os secretários de segurança pública e governadores dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, soltaram os gorilas da repressão, sempre prontos para fazer da exceção a regra, e agora teremos trabalho para recolhê-los de volta à jaula. Desde outubro de 2013, existe uma cooperação oficial entre a polícia federal e as polícias civis e militares dos dois estados no monitoramento e investigação de grupos que “promovam atos violentos em manifestações”. O Exército

Optou-se por criminalizar genericamente diversos coletivos, organizações da sociedade civil e indivíduos”

e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) também participam desse esforço concentrado de espionagem e contenção de protestos. Embora as leis antiterrorismo e de criminalização do vandalismo não tenham sido votadas, uma polícia política, no seu sentido mais estrito, foi colocada em serviço para recontar sob a perspectiva da “segurança nacional” a rebeldia que tomou avenidas e praças. A retórica da preservação das instituições não pode servir de justificativa para se restringir e criminalizar a liberdade de manifestação. Militante de movimento social que arremesse uma pedra contra uma vidraça, se identificado, poderá ser responsabilizado por dano ao patrimônio, é o que a legislação faculta, mas jamais como membro de uma organização criminosa ou terrorista, sob pena de se estilhaçar algo mais precioso, a própria democracia. O caminho adequado para o debate aberto pelas manifestações não é o direito criminal, e sim a arena política. Quem há

de duvidar que nos atos apinhados de gente e cartazes estão as maiores chances de uma verdadeira democracia? Uma democracia por vir, que se pretende além do ordenamento jurídico, das injustiças e privilégios atuais, com capacidade de dialogar e assimilar a utopia de uma “vida sem catracas”. O julgamento de 23 ativistas do Rio pelo crime de associação criminosa e de militantes acusados em São Paulo, Porto Alegre e pelo país afora é uma grave violação às regras democráticas, uma tentativa de se produzir um junho às avessas. As investigações da DRCI, que capturaram vozes de dezenas manifestantes em grampos telefônicos, querem impor obediência e silêncio às ruas. A sociedade precisa reagir ao arbítrio para que continuem vivas as ruas que não se conformam a uma “cidade mercadoria”, de grandes eventos e empreendimentos, no entanto, quase sem direitos para sua população.

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Eleições 2014

Valério Arcary e Marcelo Badaró Mattos, com suas diferentes leituras, ilustram os limites, o cenário político e o dilema da esquerda para este segundo turno da campanha presidencial

DIÁLOGOS Por Bruna Barlach Em sua reflexão, Valério Arcary abre apresentando-nos o cenário político, “A campanha pelo voto útil em Dilma Rousseff aumenta de intensidade sobre os militantes e eleitores da esquerda anticapitalista. Sob a pressão de uma eleição ainda muito apertada e incerta, a direção do PT abraçou um discurso catastrofista que quer apresentar a disputa entre Aécio e Dilma como um Armageddon político.”

Badaró nos lembra da necessidade de se ter atenção ao discurso do PT, “a proposta de conciliação de classes do discurso petista parece não dar conta de simular atender ao clamor de mudanças expresso nas ruas e, ao mesmo tempo, manter a confiança dos setores do capital que objetivamente representa no governo em torno de sua eficácia na contenção das lutas sociais. Aí pode estar uma chave para compreendermos o inegável avanço conservador no quadro eleitoral.”

Apresentando sua diferença de desfecho para análise eleitoral, Arcary nos lembra que “Dilma não corre o risco de ser derrotada pela posição de anulação do voto da oposição de esquerda. Dilma corre o risco de ser derrotada por si mesma, ou melhor, pelo que fez, e por aquilo que o PT não fez nos últimos quatro anos.” Buscando uma nova e diferente abordagem para este segundo turno, Badaró propõe: “É frente a essa realidade desafiadora que a esquerda socialista necessita se posicionar. Os posicionamentos mais simples passam

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por recomendar o voto (contra Aécio; em Dilma, com ou sem crítica; nulo; ou qualquer outra recomendação). Acredito, porém, que para que o debate em torno a esse ponto possa ser mais interessante e pedagógico para o setor mais organizado da classe e o eleitorado dos partidos de esquerda, a simples recomendação de voto é insuficiente como política de esquerda.” De acordo com Valério, “Não é verdade que a única forma de lutar contra Aécio é colocando o voto na urna para Dilma.” É preciso que reconheçamos que, apesar das pretensas dicotomias que têm sido colocadas, não há uma diferença tão significativa, tendo em vista que “se a maior parte do serviço já havia sido cumprido pela privataria tucana, o PT continuou privatizando (vide aeroportos, leilões de petróleo, PPPs variadas, etc.), assim como continuou governando para o grande capital, com a manutenção de metas elevadas de superávit primário, juros altos, privilégios e subsídios ao setor

industrial de bens duráveis (com presença predominante do capital estrangeiro) e ao agronegócio dirigido pelas multinacionais do agrotóxico e dos organismos geneticamente modificados.” – como nos lembra bem Badaró em sua análise. É um momento de latência, onde a disputa está colocada e nós parecemos joguetes na mão de interesses políticos não representam nenhum de nós. Como bem nos lembra Arcary, “Não nos enganemos. A verdade nua e crua é que há vários pontos de contato entre o programa que Aécio representa, e o programa de Dilma. Quais? Um exemplo? Voltamos a ter, em 2014, uma das maiores taxas de juros básica do mundo, a exigência nº 1 dos rentistas. Não satisfeitos, Mantega, ministro do governo Dilma, e o Banco Central dirigido por Tombini, aquele que não é independente, mas tem autonomia, vêm sinalizando que estão dispostos a fazer um ajuste fiscal anti-inflacionário com redução de gastos, e superávit fiscal ainda maior. Derrotar o progra-

ma de ajuste que o capital exige só será possível, portanto, com a resistência que precisará ser construída em 2015 nas ruas.” De fato, “Aécio é, evidentemente, um candidato que provoca mal-estar, ou até ira e fúria em qualquer um que tenha compromisso com a luta pela igualdade social, que é o que define uma identidade de esquerda. Pelo que é, e pelo que representa. Merece o justo ódio de classe de todos os trabalha-

ValéRio aRcaRy Foto: Romerito Pontes

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Eleições 2014

Por Alexandre Affonso | www.quadradinhos.net

Ao mesmo tempo, Badaró aponta para um importante fato que demonstra que este alarmismo tem pouca base na realidade, tendo em vista que “não há razões objetivas para que um eventual governo tucano recue nas políticas sociais compensatórias, afinal o PT demonstrou que o Banco Mundial tinha razão e é muito barato conter os efeitos sociais mais perversos das políticas neoliberais com programas como o bolsa família.”

r que O alarmismo quer nos fazer cre ” bem ia do Aécio seria do mal, Dilma ser

dores e jovens.” - diz Valério, expressando o sentimento da maioria dos militantes e pessoas que se colocam a esquerda no espectro político. Ainda em acordo, Badaró coloca uma questão que é central em relação ao posicionamento político das pessoas neste cenário desagradável: “Mas isso não pode bastar para taparmos o nariz e recomendarmos o voto no ‘menos pior’, representado pelo PT de Dilma. Fazer isso, assim sem mais, é simplesmente passar uma borracha sobre tudo aquilo que a esquerda criticou nos governos do PT nos últimos anos. Governar exatamente como os partidos da ordem sempre fizeram no país tem um custo enorme do ponto de vista da consciência social. Afinal, como confiar nos partidos de esquerda se quando aquele que representava as lutas da classe trabalhadora brasileira (ao menos na década de 1980), quando chegou ao poder fez ‘tudo igual’?” É claro que, dentro deste jogo político, os sentimentos mais primários estão vindo à tona, fazendo com que sintamos um grande alarmismo, um medo do que pode vir. “O alarmismo quer nos fazer crer que Aécio seria do mal, Dilma seria do bem. Ai de nós, se não votarmos no mal menor. Essa campanha de dramatização não é educativa. O apelo emocional ao voto é muito eficaz, mas diminui o significado da disputa política.” – coloca com clareza Valério, ao nos lembrar do poder que o maniqueísmo, ou seja, a ideia que existem apenas dois lados e um deles é bom e o outro é ruim. Esta é a base da manipulação capitalista, que faz com que não vejamos saídas para além de PT e PSDB. Na mesma linha, Valério chama a atenção para a necessidade de nos apegarmos à leitura marxista da realidade, pois “uma análise marxista abraça um método menos emocional que o alarmismo: é uma interpretação da realidade orientada por um critério de classe.” 12

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Diante deste quadro, Valério levanta uma questão polêmica, mas da qual não podemos fugir: “Alguém, minimamente, informado ainda pode acreditar que esta eleição é uma disputa entre o capital de um lado e o trabalho do outro? Não são dois projetos de gestão do capitalismo, ainda que com diferenças de ênfase?” Entrando na polêmica que separa os dois acadêmicos-militantes e boa parte da esquerda neste momento, Valério aponta que “o papel dos socialistas não pode ser o de reforçar essa prostração político-social, mas, ao contrário, o de incendiar os ânimos, inflamar a esperança, e combater a perigosa ilusão de que é possível regular o capitalismo.” “Quem decidir indicar o voto em Dilma, mesmo que na forma mais elegante de voto crítico, ou seja, com a mão no nariz, para derrotar Aécio, deve se perguntar como vai se sentir quando for anunciado o primeiro pacote de ajuste fiscal em 2015. Vai se arrepender e, infelizmente, se desmoralizar. A desmoralização tem um custo alto para a esquerda. Ela é o pântano que alimenta a decepção de que não há saída coletiva, porque afinal ‘todos seriam iguais’” Valério retoma, indicando que sua leitura e de Badaró em relação ao PT caminha no mesmo sentido. Mais do que isso, Valério aponta qual é o verdadeiro papel da esquerda em uma eleição que está sim polarizada, mas não entre pobres e ricos, trabalhadores e empresários, mas entre dois projetos diferentes de gestão do capital.


Na falta de resposta petista a pautas da esquerda, os defensores do voto nulo teriam ainda mais elementos para reforçar sua posição.”

Por Alexandre Affonso | www.quadradinhos.net

Para Badaró, no entanto, o caminho não está, necessariamente, no voto nulo e sim em pressionar um posicionamento à esquerda do PT. “Sim, há argumentos mais que objetivos para a indicação do voto nulo. Mas, se a recomendação for a única proposta nessas semanas finais da campanha eleitoral, como as organizações da esquerda socialista vão manter o diálogo com aqueles (e por onde ando são muitos) que até o fim do primeiro turno circulavam com adesivos e material de campanha do PSOL, PSTU e PCB e hoje vestem a camisa da candidatura Dilma, ainda que sob a sintomática simbologia das imagens de uma jovem guerrilheira (simulacro do desejo irrealizável de um voto à esquerda)? E como responderão aos setores bem mais amplos da classe trabalhadora que, na ausência da mudança de fato, acabarão votando em um Aécio disposto a vestir a fantasia de Marina e sua ‘nova política’? Como Arcary (...), também não acredito que o PT vá ‘apontar o rumo de transformações populares para o próximo mandato, o que não fez nos últimos doze anos’. No entanto, entendo que teria um efeito pedagógico exemplar, se os partidos de esquerda e as organizações mais combativas do movimento social, se reunissem nos próximos dias e apontassem uma pauta de compromissos mínimos que viabilizaria o voto em Dilma no segundo turno das eleições.” Badaró fecha sua defesa em pressionar o PT para um caminho à esquerda, apontando que “Ainda assim, diante da (falta de) resposta petista a tal pauta, os que apontam o voto em Dilma, poderiam ir além do voto ‘útil’, em direção de fato a um voto ‘crítico’, assim como os defensores do voto nulo teriam ainda mais elementos para reforçar sua posição.” Mas para Valério “A tarefa daqueles que defendem o programa socialista consiste em demonstrar para os trabalhadores que era e é possível ir além. Era e continua sendo possível desafiar a ordem do capital. Às vezes, infelizmente, muitas vezes, é preciso ter a firmeza de nadar contra a corrente.”

Referências: “Segundo turno: O que não fazer?” Por Valério Arcary- www.tinyurl.com/valerio123 “As eleições brasileiras de 2014 e os dilemas da esquerda socialista no segundo turno“ Por Marcelo Badaró Mattos - www.tinyurl.com/badaro123

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Eleições 2014

despo litiza ção

“Análises” políticas das eleições como se fossem um jogo de futebol contribuem para o empobrecimento do debate

das eleições Por Erick Dau O comentário político pós-eleitoral me deixou enfastiado. O carro-chefe de meu tédio é, sem dúvida, o conjunto dos jornais globais e congêneres, que trataram as eleições como se ela fosse um jogo, uma partida de futebol ou vôlei – guardado o fato de que, de esporte, eles geralmente entendem bastante. O problema está na análise superficial e cretina do pleito eleitoral. Enquanto ainda se apuravam as controversas urnas eletrônicas em todo o país, acompanhei a algum jornalista do G1 cujo nome faço questão de ignorar, que tecia comentários como: – Fulano teve um ótimo desempenho, surpreendendo as pesquisas. Seu partido já vinha ganhando espaço desde a eleição passada e agora consegue mostrar sua superioridade. Francamente, a interpretação abstrata de números não pode ser confundida com jornalismo de verdade. O que, afinal de contas, significa que o partido ganha espaço, que teve ótimo desempenho, que mostra sua superioridade? É um resultado eleitoral? Bom, poderia significar que tal candidato realizou obras, reformou o campo, concedeu bolsas de estudo ou uma infinidade de outras coisas. Tratando-se de capitalismo e de eleições, é mais provável que o candidato tenha comprado mais votos, concedido mais contratos públicos a empreiteiras, dado emprego a mais cabos eleitorais e outra infinidade de possibilidades menos nobres. 14

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O debate político no país parece moldado por essa escola grande-midiática de pequeno-jornalismo”

O motivo do meu voto é o mesmo deste meu reconhecimento: me parece realmente incrível que o PT tenha conseguido difundir, de poucos meses pra cá, o sentimento que se expressa nestes meus amigos e em muitas pessoas mais por todo o país. Eu compreendo, é claro, o enorme papel que cumpre a candidatura rival de uma figura tão controversa quanto Aécio Neves, mas não é só disso que se trata. Vejo amigos defendendo o projeto educacional de Dilma como o futuro do Brasil, a política para o Petróleo supostamente anti-privatista, os programas assistenciais como salvaguarda dos esfarrapados do país, a política econômica acuradíssima do governo, as alianças políticas de um e outro. Nenhum dos argumentos é capaz de me convencer de que o governo Dilma é, qualitativamente, superior ao de Aécio Neves. Mas é opinião minha, não a discuto aqui.

Mas não! Obteve um desempenho: 70%. Ponto final. E poderia mesmo ter acabado por aí, mas, como se sabe, a imprensa pode causas mais danos que a bomba atômica. E o debate político no país parece realmente moldado por essa escola grande-midiática de pequeno-jornalismo – ou marrom, ou de merda, ou burguês. Repetem-se números como fatos, estatísticas como provas, imagens como baluartes, mas profundidade eu tenho visto realmente muito pouca. De qualquer maneira, ainda que não tenha nenhuma intenção em participar do extenso e profícuo – ao menos na forma – debate entre Dilma e Aécio, devo reconhecer a incrível capacidade de mobilização do PT – já velha conhecida mas que, aparentemente, vinha dando sinais de adaptação. A quantidade de gente militando via Facebook pela reeleição da Dilma é, de fato, impressionante. E, embora, eu não tenha a pretensão de mudar os votos desses amigos que acreditam honestamente no projeto da frente popular, devo dizer que votarei nulo sem nenhum remorso, seja qual for o resultado da eleição.

Fique registrada apenas minha recusa radical ao rumo que o debate político vem tomando nas últimas semanas. Tudo tende a piorar, é claro, com as estratégias políticas (quero atentar para o caráter realmente político destas estratégias) dos marqueteiros das campanhas – que são verdadeiros criminosos, vejam bem. Tenho a esperança, contudo, de que todo este interesse bienal, dessa vez se prolongue para além do próximo ‘domingo ao avesso’. E que as atenções se redobrem nos próximos quatro anos: vejamos bem o que andam fazendo, com quem se estão aliando e por onde estão o PT, o PSDB, o PMDB, PSB, DEM, PSC etc. E, terminados os quatro anos, terminado o período em que se concedeu a confiança do voto a qualquer um que seja, que paire no ar, clara como nunca, a percepção de que as vitórias, as conquistas, a riqueza, o desenvolvimento, a educação, a saúde, a igualdade e a justiça, tudo isso só será conquistado na base de muita luta, muita bomba, muita porrada de cassetete. Em tempo: aecistas, tratem de acalmar-se, que aqui não está nenhuma defesa e nenhuma concessão ao tucanato. Embora eu considere Dilma e Aécio farinha do mesmo saco, fosse essa crítica dirigida ao PSDB ela seria, muito provavelmente, bastante mais virulenta e agressiva – e certamente muito mais fácil de escrever.

Ilustração: Mario Sánchez Nevado

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Eleições 2014

HAMILTON

OCTÁVIO DE SOUZA Hamilton é jornalista e professor na Pontifícia Univerdade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da equipe da Revista Vírus Planetário

reprodução facebook

MALAFAIA

Pr. EVERALDO

BOLSONARO

LEVY FIDELIX

COLLOR

FELICIANO

MALUF

SARNEY

GAROTINHO

KÁTIA ABREU

Além Do Duelo

Dilma-Aécio Processo eleitoral reforça a urgência de nova articulação política capaz de avançar as lutas por melhoria das condições de vida, contra as desigualdades e por conquistas reais de direitos políticos e sociais. Após o descarte da súbita candidatura de Marina, o processo eleitoral de 2014 caminha agora em terreno mais seguro para o capital, em especial para os grupos dominantes que convivem muito bem tanto com os governos do PSDB quanto com os governos do PT. Com Dilma e Aécio não existe mais o risco de qualquer surpresa, já que a limitada e controlada democracia brasileira 16

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retorna ao padrão de estabilidade dos últimos pleitos, pelo menos desde 1994. Tanto é que ambos são fortemente financiados por empreiteiras, bancos e grandes empresas subsidiadas pelo BNDES. As avaliações do primeiro turno continuam alimentando a imprensa, os meios políticos e acadêmicos. Predomina, no geral, a percepção

de que ocorreu um avanço conservador nas eleições proporcionais para deputados estaduais e federais, e na majoritária do Senado, não apenas devido ao aumento de parlamentares dos partidos de centro e de direita, mas porque em geral defendem posições contrárias às demandas dos movimentos sociais populares. As bancadas evangélica, ruralista, da bala (policiais e


militares) e dos inúmeros lobbies de grupos empresariais privados praticamente imobilizam o Congresso Nacional e as assembleias estaduais.

Agora no segundo turno devemos assistir ao videotape das campanhas de 2006 e 2010, com a mais brutal troca de acusações, as comparações exageradas e mentirosas das obras de cada um, os apelos emocionais típicos de religiões fundamentalistas nas sessões de exorcismo e de torcidas organizadas nos estádios de futebol. Essa disputa acirrada levada ao extremo de decisão entre vida e morte acaba por encobrir o que realmente está em jogo, qual é a verdadeira conjuntura política e econômica e o que existe de alternativa ao contínuo embate entre as classes trabalhadoras e as forças do capital. É preciso deixar de lado as picuinhas trocadas pelas candidaturas, as artimanhas dos marqueteiros e os discursos rasteiros dos militantes e fanáticos de plantão, e fazer uma leitura mais cuidadosa e aprofundada sobre o que teremos no dia 26 de outubro e o que precisaremos ter para as batalhas

que se apresentam no horizonte imediato. Não se trata de tangenciar a busca de uma saída inspirada no socialismo, mas de identificar de pronto o que mais ameaça o povo brasileiro na atual etapa do modelo dominante, o que enfim precisa ser superado na direção de uma sociedade mais democrática, justa e igualitária.

Esgotamento Não há a menor dúvida de que os governos do PT, de 2003 em diante, conseguiram promover avanços sociais significativos para as parcelas mais pobres e exploradas da população, seja com programas compensatórios como bolsa-família, prouni, minha casa minha vida, seja com aumentos reais do salário mínimo – com a consequente redução da desigualdade durante anos seguidos. Isso, a despeito de ter continuado as políticas neoliberais adotadas nos governos anteriores do PSDB, com as privatizações de rodovias, aeroportos, portos e das reservas do pré-sal – além de carrear recursos públicos para os grupos privados da educação, da saúde e de inúmeros serviços públicos.

Ilustração: Gustavo Morais

Não é para menos: na campanha eleitoral do primeiro turno a propaganda dos candidatos majoritários e proporcionais girou em torno da segurança pública (leia-se mais repressão em cima dos negros, pobres e manifestantes em geral) e da crítica às pautas dos movimentos LGBT, pela legalização do aborto e pela descriminalização da maconha. Com raríssimas exceções – de partidos como o PSOL, PCB, PSTU e PCO –, todos os demais partidos se empenharam no discurso conservador, da mudança dentro da ordem vigente, o que combina com a postura editorial da mídia hegemônica e com a formação da opinião pública nos mais diferentes ambientes institucionais.

No primeiro turno, a propaganda dos candidatos girou em torno da segurança pública (leia-se mais repressão em cima dos negros, pobres e manifestantes em geral) e da crítica às pautas progressistas e libertárias”

O reconhecimento do que foi feito não pode servir jamais para encobrir ou desviar a nossa atenção sobre a situação atual, sobre o que aconteceu nos últimos anos do governo Dilma, sobre a realidade econômica do país e a condição política do arco de alianças constituído depois de 2002. O que importa agora é ter claro porque o quadro econômico alterou a situação que permitiu – e não permite mais – que se tenham avanços sociais; porque o quadro político alterou a correlação de forças na sociedade de tal maneira que o antigo arco de alianças não é mais capaz de promover novos avanços. A aliança que o PT construiu com setores da burguesia (partidos de centro e de direita), que possibilitou avanços sociais durante vários anos (ampliação do bolsa-família, aumento real do salário mínimo, prouni), chegou ao seu limite de conquistas, está patinando nos últimos dois a três anos, demonstra sinais claros de esgotamento, de tal maneira que não dispõe de energia suficiente nem para avançar mais e nem para segurar as conquistas e impedir o retrocesso. Não consegue avançar. A prova real dessa impotência é que não consegue levar adiante a reforma agrária, congelada durante todo

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Eleições 2014

Não dá para ser passageiro no ônibus das alianças conservadoras, é preciso ser protagonista no bloco das oposições populares revolucionárias e de esquerda.”

o governo Dilma; não consegue mobilizar para a reforma política, nem com proposta de constituinte exclusiva; não consegue concretizar novos aumentos reais do salário mínimo, com PIB perto de zero; não consegue acabar com o fator previdenciário, antiga reivindicação de trabalhadores e aposentados; não consegue levar adiante as apurações da Comissão da Verdade, nem nos quartéis nem no Judiciário; não consegue promover a democratização da comunicação social, apesar da danosa manipulação dos oligopólios privados; não consegue concluir a regulamentação do FGTS para os empregados domésticos; não consegue baixar os juros dos bancos e do comércio, com a Selic em 11% ao ano. Enfim, está com toda a agenda do desenvolvimento progressista empacada, patinando – e sem qualquer possibilidade de ser concretizada no próximo quatriênio. Não segura o retrocesso. A prova disso é o descontrole geral dos preços, com câmbio artificial para favorecer importações de bens de consumo e juros altos para agradar os rentistas, o que provoca aumento da inflação acima da meta pré-fixada; a estagnação industrial sinaliza para o aumento do desemprego formal em especial nos setores vitaminados com desonerações de impostos e linhas especiais de crédito; a curva da desigualdade, que vinha decrescendo, estancou de novo e pode provocar novo distanciamento entre ricos e pobres; o governo não consegue atrair investimentos nos setores produtivos por absoluta instabilidade interna; a dívida pública cresce e o governo usa artifícios de manipulação contábil para esconder o aumento do déficit

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público; tudo indica que após as eleições ou no próximo governo haverá um forte ajuste fiscal para conter o rombo no orçamento, e serão necessários reajustes nos preços dos combustíveis, energia elétrica e do câmbio, com desdobramentos em cadeia no custo de vida. Os trabalhadores e os segmentos populares é que vão pagar – mais uma vez – com arrocho salarial e desemprego.

Perspectiva É evidente que o avanço na direção de novas conquistas sociais e da melhoria geral de condições de vida do povo depende agora de outra e nova articulação de forças políticas. De forças que combinem a ação institucional com as mobilizações populares e dos trabalhadores para exigir avanços sociais. É preciso recuperar a energia das mobilizações e dos protestos de 2013, por mudanças, num movimento de transformações sociais. Será preciso arrancar tais conquistas do bloco de poder. Só mesmo com uma ampla articulação à esquerda, decidida a fazer o enfrentamento aos grupos dominantes do capital será possível romper com o status atual do grande pacto conservador, fortalecido ainda mais no primeiro turno das eleições de 2014.


Ilustração: Tiago Silva | facebook.com/quadrinhosimpossiveis

Vote na retomada das lutas sociais após 26 de outubro”

A nova articulação precisa contar com a unificação de forças no campo da esquerda – inclusive com as correntes petistas que não se renderam ao neoliberalismo – numa frente que dialogue, atraia e reúna os movimentos sociais populares (sem terra, sem teto, negros, índios, mulheres, LGBT), sindicatos de trabalhadores, movimento estudantil, intelectualidade e academia, profissionais liberais progressistas, defensores dos direitos humanos e os setores democráticos mais avançados.

A vitória da Dilma deixará os setores progressistas e de esquerda do PT mais uma vez a reboque das alianças conservadoras e da direita, numa situação econômica que não permite mais avanços sociais sem o devido enfrentamento com o capital. Os setores de esquerda do PT tendem a ser cada vez mais espectadores de um processo de degradação acelerada das conquistas sociais dos anos anteriores. Não dá para ser passageiro no ônibus das alianças conservadoras, é preciso ser protagonista no bloco das oposições populares revolucionárias e de esquerda. A vitória de Aécio vai provocar uma corrida fisiológica dos aliados do PT para o campo governista, serão abrigados dentro do pacto conservador para manter o modelo funcionado: no campo político e comportamental, com Congresso Nacional conservador e Judiciário das classes dominantes; no campo econômico, juros altos para os ren-

tistas, dinheiro público subsidiado para grandes grupos empresariais e câmbio favorável às importações para o consumo de baixa renda. E para os descontentes em geral, mais criminalização e mais repressão policial. O voto em Dilma ou em Aécio não muda essa conjuntura. Ambos disputam o voto popular com promessas de toda ordem porque o voto popular decide a eleição; mas ambos se empenham realmente em fazer concessões – cada vez maiores – aos grupos do poder, aos capitais nacional e estrangeiro. É com esses grupos que vão governar. Ao povo, aos trabalhadores, aos democratas progressistas, aos movimentos sociais e aos militantes das esquerdas compete dar o primeiro passo na construção de uma ampla frente popular de oposição e de esquerda, que seja anticapitalista e aponte na direção do socialismo. Vote na retomada das lutas sociais após 26 de outubro.

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economia Roberto Setúbal, presidente do banco Itaú, e Pedro Moreira Salles, à direita, ex-presidente do Unibanco, durante celebração de fusão dos bancos. O Itaú é um dos credores da dívida pública federal | Reprodução

Auditoria da Dívida Uma pauta mais que urgente

Só esse ano, o governo federal já havia gastado, até setembro, mais de 825 bilhões (mais da metade de seus gastos) com juros e amortizações de dívida pública. Por Núcleo São Paulo da Auditoria Cidadã da Dívida (texto construído coletivamente) No primeiro debate entre os presidenciáveis, foi levantado o assunto da dívida pública brasileira e a necessidade de uma auditoria cidadã que reduziria enormamente a mesma. Além delxs, dois outros candidatos, não convidados para o debate, Mauro Iasi (PCB) e Zé Maria (PSTU), também costumam citá-la frequentemente. Não é à toa que o tema tem ganhado tanta atenção da classe política, em especial à esquerda: o “Sistema da Dívida” toma hoje 42% do Orçamento Geral da União (a forma como o Governo Federal distribui o investimento no país), e é informalmente apelidado de “BolsaBanqueiro”, justamente por ser um 20

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sistema que retroalimenta os pagamentos a grandes bancos e grupos de investimento, prejudicando as áreas sociais do país. Dos outros 58%, 4% vão para a Saúde, 3% para a Educação e míseros 0,02% para a Habitação, por exemplo. Este mesmo Sistema da Dívida é contestado há décadas, tanto que a necessidade de uma auditoria foi incluída na Constituição Federal de 1988. Nos anos de 2009 e 2010 foi montada uma CPI da Dívida, para investigar a dívida federal. Apesar de não ter sido possível fazer uma auditoria de todos os títulos e contratos envolvidos, não ter sido aprovada a quebra de sigilo bancário de tantos movimentos suspei-

tos, foi possível concluir a CPI com um relatório de mais de 900 páginas apontando as manipulações financeiras ilegais e fraudulentas cometidas pelo Sistema da Dívida. Ou seja, não é apenas um sistema imoral, mas também ilegal, compatível de ser anulado em tribunais internacionais. O Governo Federal em algumas ocasiões afirmou que a dívida estava sendo reduzida com o tempo, o que não é verdade. Se, em 2014, o Orçamento da União foi fechado destinando pouco mais de R$ 1 trilhão para o serviço da dívida (somando-se juros, encargos e amortizações), o Governo Federal enviou ao Congresso, na última semana de


agosto de 2014, um Projeto de Lei Orçamentária para o ano de 2015 onde propõe a destinação de R$ 1,36 trilhão do Orçamento para o serviço da dívida, dentro de um valor orçamentário total de R$ 2,86 trilhões, ou seja: 47% do Orçamento destinados ao serviço da dívida. Sendo assim, nem sob uma perspectiva de valor absoluto, nem percentual, esta dívida diminuiu. Muito pelo contrário, apenas vem aumentando com o passar do tempo, sendo que o valor deste ano para o próximo está previsto para aumentar em mais de 30%. Em 2007, Rafael Correa, Presidente do Equador, decretou que fosse formada uma comissão para auditoria da dívida daquele país. Após realizada a auditoria no país, foi possível reduzir em 70% o seu saldo, o que possibilitou uma liberação massiva de verba pública para o setor público, acarretando em investimento pesado em saúde pública, educação pública e outras áreas. Não por acaso, o Presidente foi reeleito com facilidade e segue sendo pressionado por grande parte da população a não abandonar o cargo.

O “sistema da dívida” não é ap enas um sistema imoral, mas também ilegal”

que ela possa ser juridicamente questionada e em seguida cancelada, retornando, assim, boa parte desta verba para o povo brasileiro em forma de serviços públicos, aumentos salariais, investimentos em infraestrutura e outras áreas tão fundamentais para o desenvolvimento e redução da desigualdade social. Para isso acontecer, porém, é extramamente necessário que esta pauta obtenha amplo conhecimento e apoio popular. Se desde 1988 esta é uma determinação constitucional que nunca foi cumprida, isto significa que apenas pelo meio institucional ela deverá ser mantida às traças. Sendo assim, nós, o povo brasileiro, só conseguiremos que esta auditoria seja feita quando tomarmos ampla consciência do problema, quando formos às ruas reivindicá-la, quando ela deixar de ser um problema secundário no imaginário coletivo e nos movimentos sociais. Karl Marx, ao redigir o manifesto inaugural lido no congresso realizado em Londres, onde foi fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores (I Internacional, 1864), afirma que a emancipação dxs trabalhadorxs será obra dxs próprixs trabalhadorxs. De fato, esta afirmação também é válida neste contexto, pois a superação do Sistema da Dívida só será possível através do empenho da classe trabalhadora unida e consciente de seus desafios e objetivos.

Não é possível, portanto, dar continuidade a uma política econômica no Brasil em que grandes bancos e grupos de investimento “vampirizam” a sociedade. É preciso realizar, com urgência, uma auditoria da dívida pública com respaldo na Sociedade Civil Organizada e em auditores fiscais idôneos, para que haja a quebra de sigilo dos contratos e títulos emitidos desta dívida. Desta forma, poderíamos saber o quanto devemos de fato desta dívida, e o quanto é fruto de atividades fraudulentas, para

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FAZENDO

MEDIA

Outubro de 2014 | Ano 11 | Número 117 | www.fazendomedia.com | contato@fazendomedia.com

a média que a mídia faz

Ei, Henfil,

e o cemitério?

O cartunista Henfil mantinha um cemitério, no qual enterrava simbolicamente artistas que defendiam causas contra o povo. Parece que, tantos anos depois, ainda precisamos dele.

Por Tavarez Depois que coloquei dois artistas, Diogo Nogueira e Jorge Ben Jor, no campo dos “Nenhum respeito pelos artistas vendidos”, vi que tiveram comentários a partir dos compartilhamentos no facebook. Estes comentários, assim como os artistas, não defendiam seus candidatos, defendiam a liberdade de apoiar quem eles quisessem. Ou seja, não tem argumento contundente para defender a posição. Como exemplo, Jorge Ben Jor fez uma música onde não comenta sobre o que o candidato (atual governador) fez no Rio de Janeiro. O jingle se limita a falar o nome do candidato: “Pezão Pezão, Pezão Pezão /Pezãããããããooooooo Ele sabe andar calçado, /Ele sabe andar de pé no chão/Ele sabe aonde pisa/ Pezão pezão pezão pezão Ele é boa praça! /Ele é guerreiro! /Ele é social! /Ele é o Rio de Janeiro” O que a música de Jorge Ben Jor esconde? A política deste governo: a falência do projeto de segurança pública onde - a galinha dos ovos de ouro que era a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) teve ações comprovadas de tortura de mora22

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dores, corrupção dos policiais e assassinatos como Amarildo e D.G; o episódio dos guardanapos em Paris, onde o governo mostra relações promíscuas com os empresários da área da construção civil que não por coincidência ganharam as maiores licitações do estado; escândalos de superfaturamento como na obra do Maracanã e a sua privatização; perseguição aos professores grevistas do estado. Isso é o que lembro. Contudo, criticar artista que se vende não é novidade e o mais eficiente em fazer isso nos últimos anos foi Henfil. No Pasquim, através do seu Cemitério dos Mortos-Vivos, onde enterrava artistas e personalidades públicas como: “os cantores Wilson Simonal e Don e Ravel; o dramaturgo Nelson Rodrigues; o sociólogo Gilberto Freyre; os economistas Roberto Campos e Eugênio Gudin; o ensaísta Gustavo Corção; os escritores Rachel de Queiroz e Josué Montello; os apresentadores de TV Flávio Cavalcanti, Hebe Camargo e J. Silvestre; o técnico de futebol Zagalo; os jornalistas David Nasser e Samuel Wainer; os compositores Sérgio Mendes e Carlos Imperial; o maestro Erlon Chaves;

o humorista José de Vasconcelos; os bispos direitistas Dom Vicente Scherer e Dom Geraldo Sigaud; o presidente da Confederação Brasileira de Desportos e depois da Fifa, João Havelange; parlamentares da Arena, o partido da ditadura; os atores Jece Valadão e Bibi Ferreira; o conjunto Os Incríveis; o fotógrafo Jean Manzon; o líder integralista Plínio Salgado; Plíno Corrêa de Oliveira, fundador da Tradição, Família e Propriedade (TFP); o astro de futebol Pelé; o empresário da comunicação Adolpho Bloch; “The Globe” (alusão a O Globo), entre outros.” * O enterro mais comovente foi de Elis Regina, os motivos: ter participado da campanha nacional junto com Roberto Carlos para convocar o povo a cantar o hino no dia 7 de setembro de 1972 em plena ditadura militar comandada por Médici e, por fim, no mesmo ano ter se apresentado na Semana da Olimpíada do Exército. Isso foi suficiente para Henfil produzir a seguinte charge: A história é longa e mais tarde, Henfil faz uma declaração dizendo que Elis havia lhe informado que a sua participação ligada aos mi-


Reprodução quadrinhos Henfil

Os artistas que se vendem para regimes ou grupos políticos claramente estão no campo do retrocesso da política e da arte no Brasil”

litares era fruto de ameaça: “Elis nunca me perguntou se eu estava atacando porque ela estava defendendo um regime militar que queria matar meu irmão. (…) Resolvi engolir. Ela terminou de falar, entendeu meu subtexto: ‘Tá, Elis, eu aceito’. (…) Evidente que os militares estavam pressionando o país inteiro. Eu sabia disso, os militares faziam censura prévia no meu jornal (Pasquim), presença física, todo dia. (…) Então, tinha todo o direito de criticar uma pessoa que ia para a televisão se entregar. Eu não mudei em nada e ela percebeu isso”**. Henfil dizia que se arrependia de ter colocado Elis Regina e Clarice Lispector no Cemitério. Nos anos finais de 1970, Elis e outros artistas fizeram alguns shows para arrecadar fundos para o sindicato dos metalúrgicos grevistas de São Paulo e na campanha pela Anistia marcou com a música O Bêbado e o Equilibrista. Os artistas que se vendem*** para regimes ou grupos políticos claramente estão no campo do retrocesso da política e da arte no Brasil. Os dois, Jorge Ben Jor e Diogo Nogueira, na minha avalia-

ção, estão ao lado do candidato do governo que está há oito anos no Rio de Janeiro promovendo a política do atraso. O que é estranho é o silêncio cínico de outros artistas que tem acesso nos grandes veículos de comunicação e fingem não ver. Este cinismo pode ser por vários motivos: o primeiro é a espera que um dia também sejam chamados para compor o quadro artístico deste grupo político; a ligação que a emissora/patrão tem com o governo; o estágio de alienação que a classe artística se encontra; e, o medo de bater nos que estão se vendendo hoje, pois sabem que o pau que dá em Chico, dá em Francisco também. Eu, no mar das Redes Sociais e veículos de comunicação de esquerda, observo e comento com a certeza do que o saudoso Henfil dizia “Caráter não dá cupim”.

Referências: * O humor de Henfil contra quem oprime. Por Dênis de Moraes - www.tinyurl.com/denisfil ** Elis Regina, ditadura e Lula - www.tinyurl.com/elisreginadit *** Artistas que apoiam Eduardo Paes fizeram shows pagos pela Prefeitura do Rio - www.tinyurl.com/artistapaes

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Bula cultural

algumas recomendações médico-artísticas

ANTES SUJO DE TINTA DO QUE DE

SANGUE

Entrevista com um pixador de Santa Maria, RS Por Marcelo de Franceschi e Tiago Miotto, d’O Viés O crescimento das marcas deixadas por pixadores na cidade de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, é evidente até para os menos atentos de seus cerca de 260 mil habitantes. A cidade está no mapa da pixação (com x, como preferem seus praticantes, pois se trata de um movimento com valores estéticos e éticos próprios) e o pixo é parte de seu ambiente urbano, para o orgulho de muitos, o desgosto de muitos outros e a perplexidade de tantos mais. Reflexo e reação à urbanização excludente das grandes cidades e o contraste entre o centro e as periferias, entre quem tem e quem não tem, os traços característicos da pixação tomam pouco a pouco os muros, prédios e fachadas, delineando em preto fosco as marcas de crews, grifes e indivíduos. Nos últimos dois anos, os pixadores e as pixadoras de Santa Maria foram alvo de duas grandes operações policiais, chamadas “Operação Cidade Limpa” e “Operação Rabisco”, que envolveram enorme contingente policial para executar dezenas de mandados contra jovens adultos e menores de idade e resultaram em abordagens abusivas, recolhimento de indícios grotescos como bebidas alcoólicas e portas de roupeiro além, claro, de contarem com o apoio irrestrito da mídia tradicional local. Na entrevista a seguir, um pixador, não identificado por questões de segurança, fala sobre suas motivações, seu cotidiano, a transgressão, a repressão e tudo que envolve este universo. 24

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Como tu começou a pixar? Eu pixo desde 2006. Eu comecei assim fazendo com pincel e tinta 3 e 600, saía na rua, como diversão. Aí 2007 pra 2008 eu comecei a pegar mais interesse, mais gosto, eu fui morar em São Paulo, aí lá eu conheci mesmo o que que é a pichação de verdade, o que que é dominar o espaço, sabe? Aí eu comecei mesmo a pixar, daí depois de 2008. Hoje Tenho uns 20 B. O. de pixação, por aí.

O que tu diz com dominar o espaço? Tipo, ocupar as paredes, o que tu vê né. O cara abre a visão do cara.

E por que tu resolveu começar? Comecei, sei lá, por influência de amigos e porque eu gostei mesmo daquilo, e gostava de ver sabe, meu nome nos lugares. Mas nunca tive a intenção de agredir, tipo ‘ah, vou lá pixar a casa do fulano’. Não, eu não sei quem mora ali, eu só pixo porque eu gosto. Eu gosto de ver minhas letras ali no lugar, entendeu?


Foto: Geof Wilson

E tu não acha que seria melhor pixar alguma frase, alguma mensagem, como fizeram lá na fachada da Kiss? Tipo, frases eu acho que tem os seus momentos, entendeu? Eu faço de vez em quando algumas, mas quando eu tô indignado com alguma coisa, ou quando eu tô feliz, quero deixar uma mensagem legal. Eu pratico a pixação pela pixação mesmo, pelo esporte de tu fazer aquilo, de tu largar o teu nome. E sei lá meu, dar o máximo de ti. Aquele da [rua] Acampamento nós deixamos uma mensagem ‘Antes sujo de tinta do que de sangue’, a gente mandou pra Kiss também.

E tu não acha que é um desrespeito a uma coisa que demorou muito pra ser feita? Eu não vejo como desrespeito. Sei lá, é um bagulho muito loco. Cada pixador tem sua visão. Sei lá, eu tenho a visão do ‘bah os caras vieram das cavernas e já riscavam nas cavernas deles’. Por que agride tanto olhar e ver uma parede pixada, por que se indignam tanto? Não sendo só na sua casa, tipo, veem na rua e ficam indignados. ‘Meu Deus pra que isso, por que isso, né?’. Mas é indignação social também. Tem pessoas que não vivem bem, que não são de bem com a vida, sabe, são sozinhas. Tem gente que quer buscar aparecer, quer buscar o seu espaço. É um meio, entendeu, só que é entre nós só, só entre os pixadores.

roupa que eles não levaram, eles pegaram e sujaram assim com as canetas. ‘Ah, isso aqui é tuas canetas que tu pixa’ e faziam assim nas calças, sujando tudo. Isso sete da manhã, foram invadindo já, não deram tempo nem de eu sair da cama. Nem da minha mãe me avisar. Minha mãe foi lá na frente e eles já foram entrando já, foram no meu quarto, eu de cueca. Bem, bem russa a situação. Mas tô tranquilo. Eu não roubo. Nunca roubei. Eu subo no prédio só pra pixar. Procuro não quebrar também. E me diz que artista arrisca a sua vida aí, cara, pra fazer isso. Não tem, mas não tem, a gente não é artista. Nós somos vândalos, né?

E tu não acha que uma hora tu pode ser confundido com esses ladrões que tão entrando pelas varandas? Posso. É, os caras viram que, não é, não é difícil, sabe? Aí os caras se aproveitam. E é tudo gurizada loca da droga isso daí, meu. Só pra fumar pedra, cocaína. Tu acha que eles vão roubar pra sobreviver? Eles vão ali e vendem por 100 pila. Vão ali e deu, tá bom pra eles pra noite, tá legal. Isso aí queima nós, tá ligado? Bah, tá loco. Na delegacia lá me falaram

‘tu é loco de fazer isso, teve morador aqui que já comprou uma arma por causa tua, que tu pixou tal lugar e ele comprou uma arma pra se proteger’. Mas o que eu vou fazer? O cara tem que tá ligeiro.

E como tu acha que as pessoas podem diferenciar vocês de ladrão? É pelo barulho. Eu já grito ‘nah, só vim fazer um pixo! To pixando aqui!’. Já teve vezes que morador saiu, eu tava na sacada. Ele saiu assim, ‘que tá fazendo??’ ‘Nah, to pixando!!’ ‘Desce daí senão vou chamar a polícia!!’ ‘Tá, já vou, só vou terminar aqui!!’. Aí o bicho ficou de cara e entrou pra dentro. E o cara terminou e desceu.

Por que tu gosta de pixar? É difícil essa pergunta. Eu peguei o gosto pelo pixo. Eu acho legal

E o que teus pais falam, falavam? Eles falavam pra não eu pixar, mas nunca pixei antes do 18 anos. Só dos meus 18 em diante. Eles sempre falavam ‘nah, por que tu faz isso?’ e eu: ‘eu faço isso porque eu gosto’. Daí pra polícia, eles descobriram, ficaram brabos, a polícia invadiu minha casa, foi bem difícil. Apreenderam muito material. Eu também faço grafite, não só pixação. Aí, tinha o material do grafite, levaram mais de 20 latas, tintas, levaram quadros, canetas, meus cadernos, roupa minha também dizendo que era prova. Teve

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Bula cultural

algumas recomendações médico-artísticas

o momento de tu subir, de tu tá lá em cima, tu sentir o lugar, tu olhar a vista. Bah.

É uma escalada com parkour pra ti?

Não sei se vou morrer pixando, se vão me matar. Vou dar muito incômodo ainda”

Sim, bah, sem palavras, é adrenalina mil grau. E tu tem que tá controlando tudo aquilo. Tu tem que tá sereno. Tu tem que saber o teu limite. Só na mão. Só seca bem as mão, seca os pé, e vai que vai. Já teve prédio que eu subi 10 andares.

Tua revolta vem daonde? Sei lá, da exclusão. Somos bem pobres, moro com meus pais até hoje. Casinha simples, meu quarto é de madeira. É pobreza mesmo, mas tamo aí na luta. Mas eu acho que mais por exclusão mesmo. Sempre me senti sozinho mesmo. Desde o colégio. Tinha uns mais ricos, o cara sempre queria ter o que o outro tinha e não podia, essas coisas. Mas nunca fui de roubar o que o outro tem. Mais por isso, muitos é por

isso. Tem muitos que eu conheço ‘ah, hoje eu tô de cara, tenho que pixar’, sabe? Briga com a família e vai pixar. Melhor do que tá usando droga, tá cheirando. Nós os pixadores assim só fumamos uma macoinha, toma uma cerveja. Tanto pobre quanto rico. Tem amigo bem de vida que pixa.

Tu acha que a pixação te ensinou algo? Muita coisa. Eu me sinto bem mais inteligente. Questão de estratégia. Tu tem que sempre ter uma estratégia pra tu subir nos lugar,es pra ti fugir da polícia. Tem que ter sempre em mente um plano de fuga. Onde é que tu pode subir, o que tu pode te machucar, o que tu pode usar ou não. Onde tu pode apoiar o pé, os dedos. E amizade, trouxe muita. Tu conhece muita gente humilde, bah, sem palavras, te tratam como irmãos. Tu nunca viu as pessoas e os caras ‘bah que daora, tu é tal’, sabe? Fui numa festa em São Paulo ano passado e fui tratado como se fosse um deles, que eu conhecesse há anos. Fui sozinho, o único do Rio Grande do Sul. Fiquei um fim de semana lá. Tinha uma consideração. Tu conhece muita gente também.

E tu pretende seguir pixando até quando? Até eu morrer, me desculpa, mas até morrer. Não sei se vou morrer pixando, se vão me matar. Vou dar muito incômodo ainda.

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Indicações As Nega Real O trabalho que o portal de blogs Blogueiras Negras tem na internet é fundamental, trazendo à tona questões fundamentais sobre o racismo e o machismo em nossa sociedade e a intersecção dessas opressões e de outras que podem estar sujeitas as mulheres negras. Com o lançamento da já contraindicada série m um da rede Globo, O Sexo e as Nega, as Blogueiras Negras lançara disponível programa de resposta, #AsNegaReal. Neste web-programa, falam no canal do youtube do Blogueiras Negras, 4 mulheres negras atisobre os temas abordados pelo malfadado seriado, só que problem o para uindo contrib nte novame está Globo a zando e mostrando como tipanracismo, objetificando a mulher negra, as fetichizando e estereo rar e resdo. As Nega Real vale pra quem é mulher e negra se empode lutamos ponder ao racismo e machismo cotidiano e para todos nós que negra. ser é que o nega as com r contra as opressões para aprende

O Estopim Depois de um ano que a frase “Cadê o Amarildo” se espalhou após este ser torturado morto e seu corpo ocultado, as notícias não poderiam ser piores: casos como este continuam a acontecer. No documentário de s do Rodrigo Mac Niven, “O Estopim”, são registrados acontecimento outros tempo presente. Ao tratar do caso Amarildo também aborda dele. Tudo fatos e casos de pessoas que tiverem destinos semelhantes ao aquilo isso através das forças policiais. O documentário nos mostra sentem os oprimid grupos demais e co periféri que todo pobre, negro, ivo do na pele, que nenhuma política que se apoie no aparato repress falas as ndo Conecta social. a problem nenhum para Estado será solução seriedade dos entrevistados e os fatos, com grande sensibilidade e a em nossa correta ao olhar sobre um tema tão denso e preocupante ação sociedade. Longe de só se ater aos fatos, o filme é uma conclam zado, militari Estado sem de, socieda outra para que lutemos por uma sem desumanização de pobres e com justiça social de fato.

Contraindicações Politicamente Incorreto (Danilo Gentili) Quando se trata de “humor” direitoso e preconceituoso, nada é tão ruim que não possa piorar. Apoiado na rejeição que as pessoas têm pela política institucional e na sua falta de capacidade humorística, Danilo Gentili é mais uma vez uma contraindicação na certa. O programa exibido no canal mais emblematicamente machista da TV paga, o FX (o canal para o homem, socorro!!!), busca pescar a audiência daqueles que não querem ver o horário eleitoral. Numa paródia medíocre de político corrupto o pseudo-humorista abusa de clichês que são um serviço para a alienação política.

COLLAB das minas O grupo “Collab das Minas” nasceu em um grupo de B, ilustração de mulheres e sobre mulheres no facebook. COLLA ou , artistas entre ação colabor como é conhecido no meio, é uma galeria colaborativa. O tema “Outubro Rosa” foi escolhido para ser o primeiro projeto. O foco foi escolher uma figura feminina forte, uma heroína pessoal e ilustrar. Em cada ilustração divulgada há um texto explicativo sobre quem é a personagem e o porquê da escolha para o projeto. Durante o mês de outubro a página do “Collab das Minas” irá compartilhar ilustrações com histórias descritas pelas artistas, basta acompanhar e ajudar a compartilhar a causa! www.facebook.com/collabdasminas

POSOLOGIA ingerir em caso de marasmo ingerir em caso de repetição cultural ingerir em caso de alienação manter fora do alcance das crianças nocivo, ingerir apenas com acompanhamento médico extremamente nocivo, não ingerir nem com prescrição médica

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sociedade

Um apelo à comunidade médica:

KEEP CALM

& GUARDA A GUIA DO NUTRICIONISTA Pessoas gordas não vão ao consultório médico apenas procurando emagrecer Por Jéssica Ipólito

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Queridas médicas e médicos, Venho por meio desta, expressar mais uma frustração após me consultar com um de seus colegas da área. Há anos eu não faço o tal do check-up completo. Sim, anos. Só agora, aos 22 anos, pude ter um plano de saúde. E que privilégio esse, viu? Conseguir marcar uma consulta com menos de 3 meses de espera é fantástico! Eu não sabia que era assim, tão massa. Eu só conhecia o contrário. Desde o nascimento fui usuária do Sistema Único de Saúde. Já passei altos perrengues pra ser atendida. Minha mãe que o diga. Várias tretas que ela teve que enfrentar quando a situação era grave e a negligência e ineficiência [do SUS] beirava o desespero. Mas o mote da minha frustração foi voltar da consulta com uma frase na cabeça: “Eu sabia que seria assim”. Doutoras e Doutores, eu sou uma mulher gorda, sabem? Ou “obesa mórbida”, na língua de vocês. Toda vez que eu agendo uma consulta, seja para qualquer especialidade, eu já prevejo o resultado e eu sempre acerto o que vocês vão me falar. Vocês me botam sentada na sua frente, e enquanto escrevem qualquer coisa com uma letra ilegível, eu falo porque estou ali. Quando deixam de lado a caneta, vocês me olham. Poucos de vocês encostam em mim. Poucos de vocês me examinam. Nenhum de vocês me escuta. Eu falo, falo, falo… Mas nenhum de vocês teve a capacidade de ouvir o que eu tinha pra falar. Vocês não imaginam o quão ruim é ficar lá parada, na frente de um estranho, falando sobre o meu corpo, e esse estranho não dá a mínima. É horrível. Sério. É bem ruim. É desconfortável. Me faz sentir inútil. Vocês, que são os profissionais que estão ao dispor para ajudar as pes-

Quando entrei no consultório, meu corpo gordo e grande fez soar o alarm e na cabeça desse profissional”

soas, baseado naquilo que elas trazem, baseado nos sintomas delas. Por que com pessoas gordas, isso é diferente? Por que o diagnóstico é sempre o mesmo, mesmo que os sintomas sejam diferentes? Por que vocês não ouvem seus pacientes gordos?

Dia 15/07, às 14h – Horário marcado com um clínico geral Cheguei na sala de espera, preenchi a ficha e fiquei aguardando minha vez. Eu havia me planejado, sabe… Escrevi 1500 caracteres no bloco de notas do celular com o meu histórico. Eu fiz isso porque comprei a ideia da minha psicóloga. Foi ela que me atormentou por vezes com essa ideia. Ela que me convenceu. Achei plausível. Segui o conselho, já que eu não tinha nada a perder. No entanto, eu não cheguei a falar metade daquilo que eu havia planejado. Não deu. Fui interrompida várias vezes. Fui acertada por um olhar de descaso enquanto falava. Eu não mencionei nada sobre emagrecimento. Eu não disse absolutamente nada sobre dieta ou alimentação. Eu não lembrei de cirurgia bariátrica. Nem nutricionista. Nada. Falei de coisas que me afligiam há tempos… Falei das minhas pneumonias mal curadas, falei da qualidade do meu sono, falei de mim e eu só ouvi no final um:

“Jéssica, você sabe que é obesa mórbida e que precisa perder peso, né? Vou pedir alguns exames de sangue… os básicos, pra gente ver como tudo está indo. Se algo der alterado nos exames, a gente avalia melhor. Mas você precisa perder peso. Não to falando pra você ficar magrinha não… mas precisa chegar aos 100kg, pelo menos”. Vocês entendem quando eu digo que não fui ouvida? Do início ao fim, eu não fui ouvida! Quando entrei no consultório, meu corpo gordo e grande fez soar o alarme na cabeça desse profissional, que automaticamente teve certeza que eu estava lá só por: Emagrecimento. Mas EU não estava lá pra isso. Eu queria exames diversos para avaliar o funcionamento dos órgãos do meu corpo, do meu pulmão (sou fumante, mas ninguém liga pra isso, eu tenho que emagrecer), meu rim, meus seios, enfim, meu corpo! Eu queria saber como estava toda essa engrenagem. Só. Mas eu não fui ouvida. O médico que me atendeu, não me ouviu. Só falou e falou sobre aquilo que vocês sempre falam para uma pessoa gorda… Regurgitou o mesmo discurso de sempre, sem se importar comigo. Vocês não se importam com seus pacientes gordos quando, obrigatoriamente, entendem que eles estão na consulta procurando um emagrecimento. Vocês não se importam com seus pacientes

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reprodução / tradução: Vírus Planetário

Doutor, eu tô com uma viga atravessada !

gordos quando passam uma guia de nutricionista sem que a pessoa manifeste tal vontade. Vocês não se importam com seus pacientes gordos quando ignoraram as queixas dessas pessoas com um “Você precisa emagrecer urgente”. Vocês não se importam com seus pacientes gordos quando dão dicas de dietas, numa consulta que não era sobre isso. Vocês não se importam com seus pacientes gordos quando tratam os nossos sintomas como consequência do peso. A verdade é que: Vocês não se importam. Como vocês acham realmente plausível, encontrar uma pessoa desconhecida, fazer com que ela fale tudo aquilo que sente e/ou aquilo que ela precisa de vocês [médica/ médico], e achar que tudo -eu digo, absolutamente TUDO-, seja por conta de emagrecimento?! COMO?! A pessoa te conta que já sentiu dores ao respirar, já disse que é fumante há anos, passou por pneumonias e você, com anos de ciências médicas no currículo e na mente, recomenda que ela PERCA PESO?! Como você pode recomendar SÓ, exclusivamente, a perda de peso? Eu acho surreal da parte de vocês. Sinto vontade de dar um tapa 30

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Uhm...Acho que você precisa emagrecer um pouco...

na cara de cada um quando isso acontece. Sério, um tapa na cara de “ACORDA, CARALHO!”. Porque não faz sentido. Anotem isso: Nem todos querem, necessariamente, perder peso. Nós somos gordas e gordos, mas nem todos queremos e pleiteamos o emagrecimento a cada consulta médica. Temos vários outros órgãos em funcionamento no nosso corpo. Temos carga genética. Temos hereditariedade. Temos história, cicatrizes. A cura para os nossos problemas não está no emagrecimento compulsório. Então, eu peço encarecidamente, que vocês ouçam essas pessoas. Mas ouçam de verdade porque o que elas têm a dizer é extremamente importante. E se essa pessoa gorda não mencionar nada sobre emagrecer, keep calm and guarda a guia do nutricionista! Tá tudo bem… Sério. Nenhum órgão vai retirar seu CRM por você ter ouvido e dialogado com seu paciente. Fica com a consciência tranquila. Vocês acham mesmo que cada gorda que entra no consultório, NÃO SABE que é gorda? SÉRIO? Poxa vida, hein, que ingenuidade. Não subestimem as pessoas. Deixem essa mania de lado. Quando somos pes-

soas gordas, não podemos nos dar ao luxo de não saber o que a gordura pode causar, porque a medicina e padronização dos corpos estão juntas em todos os cantos. Não há escapatória. Qualquer lado que olhamos, qualquer pessoa que conversamos. Sei que a função de vocês é salvar vidas e que vocês tem gordura como inimiga número 1, mas deixem a reza da cartinha de lado e se preocupem realmente com seus pacientes. Em vez de indicar um nutricionista, pede um exame mais completo para avaliar a tal dor ao respirar. Em vez de uma guia para o endocrinologista, pergunta ao seu paciente se ele/ela já esteve nesse especialista antes e, se a resposta for sim, tenha interesse em saber como foi… Pergunte antes de indicar. Em vez de passar algum remédio paliativo, pergunte se a pessoa já fez determinado exame… Se ela não fez, peça. Em vez de acharem que toda pessoa gorda quer emagrecer, pergunte o que ela quer. É muito mais humano da parte de vocês, nos tratarem como pessoas conscientes da nossa estrutura corpórea. É muito mais humano perguntar ao paciente se é da vontade dele/dela fazer tal coisa, do que ir logo pressupondo tudo e já ir rabiscando os pedidos. Fica aqui registrado meu apelo à comunidade médica, para que desenvolvam atendimentos realmente atenciosos para com as demandas das pessoas gordas. Não se preocupem com as estatísticas mundiais: nós gordas, sabemos que somos parte desses números. Não se preocupem em voltar pra suas casas, deitar a cabecinha no travesseiro e pensar que não indicou nada de emagrecimento praquela paciente obesa que te visitou hoje: se ELA não te pediu por isso, então tá tudo bem… Fica tranquilo. Cada pessoa sabe bem o que faz.


internacional Pai de uma das crianças mortas no ataque à praia em Gaza, onde elas brincavam, chora ao receber a notícia Z Foto: Hosam Saleh

Como deseJaremos um

“bom dia” em GAZA? Após 50 dias de operação militar, Israel matou mais de 2 mil pessoas, destruiu 17.200 habitações arrasando mais uma vez o povo palestino Por Priscila Bellini Durante a operação Protective Edge (ou Margem Protetora, em tradução livre) em Gaza, a palestina que vive na região, Manal Miqdad, escreveu o poema “Depois de uma noite cheia de mísseis, choro e medo, o céu abre o seu coração para a luz” (publicado originalmente na 972mag), sobre a sensação de estar em meio ao conflito - cujo trecho encabeça este texto. Nas redes sociais, proliferaram exemplos do que acontecia do lado de lá: qual era o som daquela operação militar, qual era o sentimento de estar em meio aos ataques, quem eram as pessoas que perdiam suas vidas dia após dia. Esses registros serviram para reforçar alguns aspectos do que ocorreu: um ataque a civis em uma região densamente populada e precária, em uma população que vive sob ocupação há décadas e em um cerco imposto há anos.

A ação tomada pelo governo israelense fora supostamente motivada pelo sequestro e assassinato de três jovens israelenses em junho (Eyal Yifrach, 19 anos, Gilad Shaar, 16, e Naftali Fraenkel, 16). Mesmo com a versão oficial de que a medida fora uma resposta ao caso, a dimensão dos ataques e o número de palestinos mortos, feridos, presos e afetados de alguma forma aponta para outra questão: a de uma operação premeditada, que buscava desestabilizar os acordos de união nacional entre o Hamas e a Autoridade Palestina, esboçados desde o começo de junho. Tal união modificaria o cenário de qualquer esboço de um acordo de paz e, já em abril, o secretário de Estado americano John Kerry alertava para o risco de que Israel “se tornasse um Estado de apartheid” caso as negociações falhassem. Nesse contexto, com o início da operação em

8 de julho, o mundo assistiu a um massacre que matou 2.137 palestinos - entre eles 577 crianças. Em Gaza, 17,200 habitações foram destruídas e, até o cessar-fogo estabelecido entre Hamas e Israel, 1 em cada 4 pessoas em Gaza havia sido tiradas de suas casas, de acordo com dados da Unicef. A operação deixou parcial ou totalmente destruídos 216 escolas, 58 hospitais e clínicas, 108 mesquitas, 2 igrejas, 52 barcos de pesca, 8 estações de saneamento e uma central elétrica. A ONU aponta que, em 2020, a vida em Gaza será inviável.

Repressão e ataques Com a “justificativa” de que essa seria a resposta à morte dos jovens, o governo israelense deu início a ataques em diversas frentes. Por um lado, na Cisjordânia, foram cerca de 400 palestinos presos em reação

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a A ONU aponta que, em 2020, vida em Gaza será inviável”

quase que imediata. Os ataques aéreos à região despejaram por volta de 20 mil toneladas de explosivos no território, sem contar a destruição causada pela investida por terra, realizada pelo quarto exército mais poderoso do mundo. Mesmo com as armas de precisão cirúrgica, foram muitos “efeitos colaterais” - incluindo 1.462 civis mortos, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários nos Territórios Palestinos ocupados. Um dos casos que despertou mais comoção entre a comunidade internacional foi o da morte de quatro crianças de uma família de pescadores que brincavam em uma praia em Gaza City, próxima a um hotel em que dezenas de jornalistas estavam hospedados. Ahed Baker, de 11 anos, Muhammed Baker, 11, Zakaria Baker, 10 e Ismail Baker, 9, foram vítimas do ataque aéreo. Sarah Leah Whitson, diretora do Humans Rights Watch no Oriente Médio e Norte da África, condenou os ataques e os classificou como “ilegais”. “Os recentes casos documentados em Gaza se encaixam no longo histórico de ataques aéreos ilegais de Israel, com grande número de vítimas civis, infelizmente”, afirmou, após a morte das quatro crianças. As Forças de Defesa de Israel alegaram que, durante a operação, emitiam diversos tipos de aviso. Segundo comunicados da IDF (Israel Defense Force), os palestinos recebiam ligações e mensagens de texto avisando sobre o ataque. Outra técnica adotada foi a do “roof knocking”, bombas não-letais, mas extremamente barulhentas, lançadas no telhado das casas para alertar os palestinos. Nesta última técnica, usada em larga escala, os moradores da casa tinham 58 segundos para recolher seus pertences e se afastar do alvo junto de suas famílias. Entre as crianças palestinas, especialmente, situações como essa não apenas ocasionaram perdas físicas, mas também psicológicas. Estima-se que o número de crianças que sofrem de estresse pós-traumático tenha dobrado desde a operação em 2012. A palestina Farah Baker, de 16 anos, afirmou pelo Twitter que depois de sobreviver a “três guerras e uma Intifada”, se sentia com sorte - mas gostaria de “nunca ter de passar por uma quarta guerra”.

A vida em Gaza, a prisão ao ar livre Desde 2007, existe um cerco sobre a Faixa de Gaza, um isolamento econômico, comercial e territorial estabelecido após das eleições parlamentares na região em que o grupo Hamas venceu. Egito e Israel fazem um controle das fronteiras e permitem, no máximo, que carregamentos humanitários “passem” após uma verificação minuciosa do conteúdo. As implicações no dia a dia dos palestinos de tal cerco incluem a impossibilidade de realizar comércio para além das fronteiras estabelecidas, além 32

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da taxa de desemprego extremamente alta. Em dados da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos, em 2010, 45,2% população estava desempregada e, desde o início do cerco, o salário real despencou 34,5% - sendo que tais informações não retratam a destruição posterior aos ataques de 2012 e deste ano. O bloqueio impede a reconstrução das casas e o abandono da região por parte dos habitantes, além de restringir a pesca e a agropecuária. Gaza também desenvolve uma “economia de túneis”, usados pelos palestinos para obter mais alimentos e materiais de construção, além de possíveis lutas de libertação por parte dos habitantes. Tais túneis, localizados a 15 metros do chão, seriam um dos motivos dos ataques aéreos, e foram também bloqueados pelas autoridades egípcias. Há certa similaridade entre esse sistema utilizado pela região sitiada, e os túneis utilizados nos guetos da Alemanha nazista. É nesse contexto que surge o grupo Hamas, vencedor das últimas eleições realizadas em Gaza e menção constante no noticiário, com destaque ao seu “radicalismo”, especialmente durante a Operação Margem Protetora. Com o vazamento de documentos da Embaixada americana em Tel Aviv pelo Wikileaks, ganhou força a ideia de que o governo israelense intencionaria manter o Hamas em uma postura mais radical, a fim de impedir os esforços para qualquer negociação. “Também parte de canais oficiais israelenses a informação de que Gaza é colocada ‘numa dieta’, com número de calorias por habitante limitado”, complementa Yuri Haasz, ativista e estudioso do tema e um dos fundadores da FFIPP-Brasil (Rede Educacional pelos Direitos Humanos em Palestina/ Israel). Essa limitação não chegaria ao ponto de causar um “colapso total” ou grave crise humanitária, a priori, mas permite maior controle da população. “O olhar das autori-


Em Gaza, 25% dos habitantes perderam suas casas. Eles encontram abrigo em escolas, onde recebem água, comida, kits de higiene, lençóis, sacos de dormir e roupas. | Foto: Eyad El Baba (Unicef)

dades israelenses para os palestinos é extremamente generalista, o que é muito grave”, resume Yuri.

Palestinos na Cisjordânia, em Gaza e Israel aspectos da opressão Os chamados “palestinos de 48” (ou palestinos que vivem em Israel), que residem em Israel mesmo depois da expulsão e massacre do povo palestino na Nakba (“catástrofe”, em árabe), também enfrentaram uma intensa repressão durante a operação militar Margem Protetora. No dia 7 de julho, a deputada israelense Ayelet Shaked declarou que seria necessário matar as mulheres palestinas e destruir suas casas, a fim de impedir o nascimento de “pequenas víboras” - os seus filhos, que seriam “terroristas em potencial”. Para o acadêmico israelense Mordechai Kedar, os estupros de mulheres e mães dos combatentes do Hamas era um meio de barrá-los. Entre os casos de violência, está o de Mohammed Abu Khdeir, garoto de 16 anos queimado vivo em Jerusalém Oriental, em “vingança” às mortes dos três israelenses. O assassinato do jovem desencadeou protestos em Israel e na Cisjordânia, marcados por dura repressão policial e violência. Dias após o funeral de Abu Khdeir, seu primo Tariq, cidadão estadunidense que passava as férias na cidade, foi preso e espancado. Luba Samri, porta-voz da polícia israelense, destacou que o jovem

O projeto político empreendid o por Israel é de anexação de territórios pa lestinos e de permanência da ocupação mi litar”

carregava consigo um estilingue, que seria usado para “atirar pedras nos policiais”, em protesto à morte do primo, e que resistiu à prisão. Tais ações vão ao encontro de um projeto político sionista empreendido por Israel, que leva a curso uma tentativa de anexação de territórios palestinos e de permanência da ocupação militar. Entre a população israelense, entretanto, há grupos que se opõem às medidas tomadas em favor de tal projeto político e que se articulam dentro da sociedade civil para dar voz à oposição. Um deles é a Zochrot, organização de judeus israelenses baseada em Tel Aviv, que busca conscientizar a população sobre a “Nakba em curso” na região e defende o direito de retorno dos palestinos. Segundo Shira Hertzanu, diretora de relações públicas da organização, “a Zochrot busca um fim imediato do ataque a Gaza, defende a remoção do bloqueio e da realização do direito de retorno dos refugiados palestinos”. Iniciativas semelhantes crescem na sociedade civil israelense e têm aumentado também nas comunidades judaicas ao redor do mundo. No

Brasil, o movimento “Não em nosso nome” organizou um protesto em frente ao Consulado de Israel em São Paulo, contrário às ações do governo israelense e ao massacre do povo palestino.

Cessar-fogo e acordos Ao fim de 50 dias de operação militar, acordou-se um cessar-fogo entre o grupo Hamas e o governo israelense. Ficaram estabelecidos pontos como a suspensão dos ataques da Operação Margem Protetora à Faixa de Gaza, e o levantamento das fronteiras egípcia e israelense (ainda não estabelecido em que medida), bem como o espaço permitido para uso da costa de Gaza de seis milhas náuticas. A continuação das negociações acontecerá daqui a um mês para demais pontos, como a construção de um aeroporto e de um porto em Gaza. Resta saber se a pressão internacional e os acordos estabelecidos, juntamente com os esforços da sociedade civil, serão suficientes para garantir o fim da ocupação e a justiça na região, em pleno Ano de Solidariedade ao Povo Palestino definido pela ONU.

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Varal artístico

“Sem filtros” | Por Elisa Riemer Vírus Planetário - outubro 2014

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Varal artístico Vamos Vandalizar: Eu quero dizer que amo Por Lilian Luiz Barbosa (Flor de Ébano) Minha cor, minha luta, minha conquista, não quero perdê-las nem vendê-las. Eu quero dizer que amo o que vejo no espelho. Meu cabelo, minha cor, meus lábios, minha luta, meu nariz, minha conquista, meus olhos, minha memória, minha forma, Logo, eu quero vandalizar essa forma com vocês. Ei, vamos com calma, capataz, você vai morrer Não ouse me deixar roxa, espancada, marcada com essa ideologia racista e classista. Pois quero mostrar meu amor derrubando símbolos capitalistas. Derrubei vinte bancos Cortei McDonald’s Alisei meu cabelo Amputei minha subjetividade Me vesti como Branco, mas me libertei, vandalizei Andei pelo Rio E quebrei manequim logo ali, no Leblon. Mas não vandalizamos quando mataram dez pessoas naquele momento, na Maré de Junho. Não vandalizamos quando assassinaram vários trabalhadores na chacina de Vigário Geral Não vandalizamos quando calaram vários meninos, sim, meninos, sim, crianças, na Candelária... Já se passaram vinte anos! O que fizemos? Diga-me, o que fizemos? Não vandalizamos, porra Não vandalizamos quando atiraram aleatoriamente com suas armas e fardas, de Nova Iguaçu a Queimados e deixaram mortos, deixaram órfãos: Viúvas, crianças, avós...e mães... Os gritos de dores e cheiro de sangue chegaram a Japeri. Não vandalizamos quando nem mesmo temos tempo de perguntar: Porque o Senhor atirou em mim? Porque o Senhor atirou em mim? Porque o Senhor atirou em mim? Não vandalizarmos

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quando nos deparamos com o sistema penitenciário Com diversos presos políticos Com diversos presos políticos Negros, pardos, pobres, favelados e periferiados. Não vandalizarmos quando eu, você, nós, majoritariamente, mulheres negras choram as dores de nossos filhos. Assassinados, torturados, roubados, desalmados, desonrados. E dizem que a ditadura chegou novamente! E dizem que a ditadura chegou novamente! E dizem que a ditadura chegou novamente! Para quem? Para quem? Para quem? Para quem? Diga-me, para quem? Não vandalizarmos quando diversos Amarildos desaparecem no anonimato porque não sabemos onde estão os corpos! A memória, as histórias... Mas os mortos possuem vozes? Matheus, Dg, Mães, vítimas de violência... Amarildos, onde estão? Não vandalizarmos quando os fardados abriram as fraldas das nossas criancinhas para espionar. Não vandalizarmos por séculos a escravidão Eu voltei, eu quero vandalizar com vocês: O abaixo o Racismo Abaixo o capitão do mato, o quadrilheiro! O Abaixo o genocídio do povo preto De diversas formas quero vandalizar: Que nas ruas eles estão limpando nossas sujeiras, dormindo perto de lixeiras, como ratos... Mas não desisto de formar trincheiras para acabar com a UPP Pelo fim Polícia Militar Vamos vandalizar as trincheiras para derrubar esse sistema racista, classista, capitalista de merda! Derrubar o sistema racista, capitalista de merda! Vamos vandalizar.


“Emancipação” | Por Elisa Riemer Vírus Planetário - outubro 2014

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traço livre Por Mirim | facebook.com/zinegrimoire

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DILMA, LEILÃO

D

CONTRA L O G É L A -S É O PR

O BRASIL!

Em defesa do projeto dos movimentos sociais para o petróleo, com monopólio estatal, Petrobrás 100% pública e investimento em energias limpas. Notícias da campanha:

organização:

www.apn.org.br www.tvpetroleira.tv

www.sindipetro.org.br


Contra a precarização da Educação do Rio de Janeiro!

o ã ç a m r o A transf

m o c só vem

o ã ç a educ

! e d a d i de qual 37 anos

Uma educação de qualidade só vem com a valorização do educador e com infra-estrutura. Confira notícias sobre nossa luta:

Sindicato Estadual dos Profissionais

de Educação do Rio de Janeiro

www.seperj.org.br


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