História do Mês n.º 54 (junho 2019)

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O geomonumento da Ponta do Telheiro, Sagres


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O geomonumento da Ponta do Telheiro, Sagres A designada “Ponta do Telheiro” apresenta-se como um pequeno promontório situado no litoral atlântico do sudoeste europeu, na Costa Vicentina, a cerca de 6 km a NO da Vila de Sagres, à vista do Cabo de São Vicente. Revelando um elevado valor cénico e paisagístico, impondo-se altaneira sobre a crespidão marinha e exibindo uma exuberante policromaria que cruza xistosos tons escuros com quentes arenitos vermelhos, a Ponta do Telheiro reserva uma significativa importância para a compreensão da história e evolução da Terra, assumindose como peça de referência no âmbito do património geológico, elevada ao estatuto de geomonumento. O património geológico compreende as ocorrências naturais de elementos da geodiversidade que possuem excecional valor científico – os geossítios. Locais onde os minerais, as rochas, os fósseis, os solos ou as geoformas possuem características próprias que nos permitem conhecer a história geológica do nosso planeta. Os geossítios, além de se revestirem de valor científico, podem, igualmente, ter um valor educativo e turístico, cujo uso sustentado deve ser promovido para usufruto da sociedade e das futuras gerações. A geoconservação consiste na proteção do património geológico promovendo, simultaneamente, o uso racional desta componente não viva do património natural. Os excecionais exemplos de elementos da geodiversidade podem enfrentar diversos tipos de ameaças resultantes, quer de processos naturais, quer de intervenções humanas, como por exemplo a pilhagem e o comércio ilegal de minerais e de fósseis, o vandalismo, a mineração, a ausência de legislação adequada, entre outras. A geoconservação constitui, hoje, uma das especialidades emergentes que se desenvolve no âmbito das Ciências da Terra, compreendendo diversas etapas que passam pela inventariação, caracterização, classificação, conservação e divulgação dos geossítios. Na Ponta do Telheiro é possível observar os afloramentos mais meridionais dos turbiditos do Grupo do Flysch do Baixo Alentejo, assim como dos Grés de Silves. As características geológicas mais marcantes deste magnífico afloramento, verdadeiro geomonumento da Cadeia Varisca Europeia, são as seguintes: 1. Existência de uma superfície aplanada, no topo da arriba, onde se encontram preservadas cascalheiras correspondentes a uma praia levantada do Quaternário (nível dos 30 m). 2. Formação do Grés de Silves, do Triássico (250 a 205 Ma), datada por uma associação fossilífera pobre, com ossos de peixes estegocéfalos, bivalves (euesterídeos) e pólenes. A unidade é constituída por bancadas de arenitos e siltitos avermelhados, por vezes com intercalações pouco espessas de conglomerados. As bancadas areníticas apresentam-se maciças ou com estratificação cruzada de larga escala e os siltitos podem apresentar laminação cruzada associada a riples de corrente. As bancadas expostas na falésia correspondem à parte inferior da unidade e têm espessura total da ordem dos 8 m. A tonalidade avermelhada dos sedimentos, indicando a presença de óxidos de ferro, e as estruturas sedimentares sugerem deposição na parte intermédia de leques aluviais desenvolvidos em região continental com clima árido. 3. Discordância angular dos Grés de Silves sobre os turbiditos da Formação da Brejeira, a unidade mais recente do Grupo do Flysch do Baixo Alentejo. Esta discordância abarca o período de tempo correspondente a 55 Ma, durante o qual se deu a elevação e erosão de parte significativa da Cadeia Orogénica Varisca, originada durante o Carbónico Superior, admitindo-se terem sido arrasados entre 3 a 5 km da crosta continental.


4. Formação da Brejeira, com idade compreendida entre o Baskiriano Médio (320 Ma) e o Moscoviano Superior (305 Ma), idade esta estabelecida com base em associações fossilíferas de amonóides e miosporos. É constituída por espessa (> 1000m) sequência turbidítica formada por alternâncias de xistos e grauvaques. As bancadas de grauvaques têm espessuras de ordem centimétrica a decimétrica e aparecem em relevo devido à sua maior resistência à erosão. Observação cuidada destas bancadas mostra que no seu interior apresentam granoseleção, laminação paralela e cruzada (ritmos de Bouma), na base figuras de carga, de arraste e turbilhonares (flutes), e, no topo, marcas de corrente. A unida apresenta-se afetada pela Orogenia Varisca, caracterizada principalmente por dobras subverticais com clivagem xistenta associada, bem visíveis ao longo da falésia. São ainda visíveis pequenas falhas inversas, com topo (aparente) para Norte, afetando as bancadas turbidíticas. Estas falhas desaparecem na discordância angular. 5. No local está ainda bem exposta a atual plataforma de abrasão marinha, predominantemente rochosa devido à forte ação erosiva do mar. A famosa discordância angular da Ponta do Telheiro marca o desacordo geológico entre rochas paleozóicas metamorfizadas e deformadas e arenitos triásicos. Esta discordância materializa milhões de anos de processos geodinâmicos internos (afundamento, metamorfismo e dobramento, seguidos de gradual soerguimento) e externos (denudação e erosão dos relevos soerguidos). De relevância internacional, trata-se do melhor local, em Portugal, para observação desta discordância com elevado valor científico e didático. Para a sua observação recomenda-se um acesso pedestre a partir do casario do Vale Santo, onde é possível estacionar veículos automóveis. Chegando ao promontório do Telheiro, às arribas a norte da praia com o mesmo nome, impõe-se cautelas pelo risco de queda abrupta! Fontes bibliográficas e mais informações: Património Geológico de Portugal – Inventário de geossítios de relevância nacional

Texto e fotografia de Ricardo Soares arqueólogo, Município de Vila do Bispo


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