O Manto Diáfano nº 10 - 10 de setembro de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 10 ∙ Brasília/DF ∙ 10 set 2016

Harvard Chega ao DF Impróprio para Alunos e Professores Conceito de Cultura Política para a América Latina

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Resenha do livro Urbanidade & Arquitetura por a.b.b.

Disciplinando o Capitalismo


4 Revista eletrônica Nº 10 ∙ 10 set 2016 ∙ Brasília/DF VERBENA EDITORA

Falta de liderança

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CONSELHO EDITORIAL: Arnaldo Barbosa Brandão Henrique Carlos de Oliveira de Castro Ivanisa Teitelroit Martins Ronaldo Conde Aguiar

Disciplinando o capitalismo?

COLABORADORES Arnaldo Barbosa Brandão (romancista) Henrique Carlos de Oliveira de Castro Jorge Guilherme Francisconi Steve Scheibe Wilian Fernandes Pereira

Cultura Política Comparada: democracia e mudanças econômicas

EDITORES Arno Vogel Benício Schmidt Carlos Alves Muller Fabiano Cardoso DIRETOR EXECUTIVO Cassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICO Simone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDA www.verbenaeditora.com.br

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12 Harvard aterrisa no urbanismo do DF

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16 Impróprio para alunos e professores

20 Encaixotando Brasília


EDITORIAL N

esta edição do Manto Diáfano Steve Scheibe analisa o fator liderança que um político deve ter e como a falta deste quesito, tanto no Brasil pós Dilma e do recém empossado Temer quanto nos Estados Unidos da América de Barack Obama e dos possíveis sucessores Hillary e Trump. A falta de carisma pode afetar toda uma legislatura? Quais os fatores que podem ser essenciais a um político? Já Benicio Schmidt, nosso editor-chefe, nos traz intrigante texto sobre os rumos econômicos, políticos e institucionais a que estamos todos sujeitos neste turbilhão político a que o Brasil chegou. Para completar a discussão, trazemos trecho do livro do Professor Henrique Carlos de Oliveira de Castro sobre a adequação de um conceito de cultura política à América Latina. Embasado em autores consagrados, o Professor Henrique discute os conceitos que foram feitos para uma realidade distinta da latino-americana e tenta recolocá-los em nossa realidade política e social. O Urbanista Jorge Francisconi nos mostra a ligação existente entre a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Harvard e a Secretaria de Gestão do Território e Habitação do Governo do Distrito Federal. Arnaldo Barbosa Brandão faz uma resenha nada convencional do livro Arquitetura & Urbanismo, de Frederico Holanda; os conceitos trazidos pelo autor e algumas explicações de Brandão nos levam quase para a sala de estar onde podemos conversar com Brandão sobre quase tudo. Willian Fernandes Pereira traz um conto autobiográfico sobre as auguras de se escrever em um país como o Brasil, mais, as auguras de se fazer livro e vender livro em um país como o nosso, ou mais especificamente, numa cidade como Brasília que, apesar dos altos salários, não consegue multiplicar isso em consumo cultural do mesmo nível. Finalizamos esta edição com mais um capítulo da novela Encaixotando Brasília. Aqui Gaúcho ainda tenta ensinar sobre revoluções a nosso personagem “no fim do mundo” da prisão no meio da floresta amazônica.


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Falta de liderança Steve Scheibe – Cientista Político

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om a aproximação das eleições municipais no Brasil e as eleições presidenciais nos EUA, vale olhar a questão de liderança. A percepção geral é que existe uma crise. Não há mais líderes. Nos EUA, tanto Donald Trump quanto Hillary Clinton demonstram índices inéditos de rejeição pela população. No Brasil há um grande cansaço com relação à classe política e não estão aparecendo faces novas que animam o eleitorado. Dilma Rousseff está fora e Michel Temer assume para logo sumir para China. (Muitos gostariam que não voltasse). As pessoas, principalmente a classe média, culpam a corrupção e a cultura política pela ausência da renovação. De modo acertado, no Brasil, a Senadora Gleisi Hoffmann expressou algo que políticos não gostam de admitir: ou seja, não têm moral para liderar e nem condenar nada. Tanto Dilma quanto Temer, como os candidatos americanos, primam pelo desgosto que provocam. Falta carisma à safra atual de líderes tanto no Brasil quanto nos EUA. Mas o que é isso? Embora um pouco difícil de definir, quando falta, o povo nota e ressente. A origem vem da palavra grega, kharisma, e significa tocado pela mão ou a graça de deus. Quer dizer que o líder que possui carisma apresenta características diferenciadas, fáceis de reconhecer. Nos Estados Unidos, o Presidente Barack Obama é considerado carismático por suas características de personalidade que ganham expressão por meio das instituições que as ampliam. Também é certo que

ele tem a capacidade de atrair pessoas e, quando presente, as pessoas sentem sua postura e seu dom de liderança legitimada pela posição que ocupa. A liderança política e os dons carismáticos nos países que praticam a democracia são legitimados pelos votos. No Brasil, entretanto, apesar da tradição contínua de eleições e de um sufrágio amplo nos últimos 25 anos, ainda não se construiu, ou talvez melhor, perdeu-se a ideia de como liderar. Mas, nos EUA, também a desconfiança cresce vertiginosamente. Hoje em dia o comum é escutar “Fora” quando se trata da classe política. Enfim, questiona-se bastante se os políticos e o sistema merecem crédito e confiança. Faltam confiança e credibilidade. Desde a redemocratização, em 1985, foram 5 presidentes eleitos pelo voto direto. Dois deles sofreram impeachment e Lula, que foi o mais carismático de todos, acaba de ser indiciado e corre risco de prisão. Será que Deus está decepcionado e não oferece mais sua graça ou será que é falta mesmo de carisma de quem se candidata? Da ótica individual, quando se busca uma liderança há também a expectativa de alguns requisitos ou atributos básicos como: vontade, idoneidade, autenticidade, visão e persuasão. Essas características sustentam e dão base para a projeção do carisma. Sintetizando: Vontade: quando se fala da esfera pública, o líder deve ter vocação no sentido de fazer política visando o bem público e não o benefício próprio. A

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ideia é que tem que querer por uma força interior, uma moral e não um ganho puramente material; Idoneidade: Algo que as pessoas devem reconhecer no indivíduo que inspira confiança no trato do bem público; Autenticidade: A possibilidade de transmitir sinceridade mesmo quando incorrem em equívocos, isto é admitir os erros; Visão: ter um objetivo compartilhado que leva à mobilização de recursos; Persuasão: Poder de comunicação e captação das pessoas para que se tornem aliadas. Essas características são individuais e podemos encontrá-las em muitos âmbitos e são, felizmente, características de muitas pessoas. Mas apenas com a presença de instituições é que se permitirá a projeção mais ampla dos atributos individuais para a sociedade. O problema aqui é a construção de instituições que cerquem e ajudem o indivíduo. Do lado negativo, as instituições impedem ou diminuem as ações maléficas já que o indivíduo sabe que há consequências. Ao mesmo tempo, quando as instituições funcionam as ações positivas geram resultados. Obras são construídas, a segurança funciona, escolas ensinam e a rede de saúde funciona sem grande favoritismo. Quando ocorrem desvios, é possível fazer a denúncia e esperar a condenação e correção. Enfim, há mais confiança do que desconfiança na justiça e no sistema e instituições como um todo. Um dos problemas do Brasil é que o Estado e os órgãos públicos são tomados e aparelhados. É fato que a diversidade da imprensa, a funcionalidade da justiça e da polícia e a história de solidez das instituições americanas, de forma geral, separam bem o Brasil e os EUA. A confiança, o respeito e a legitimidade dão mais solidez. Um exemplo óbvio é que a Constituição americana vem de 1789 enquanto o calhamaço de defesa de interesses (A Constituição) do Brasil vem de 1988, ou seja, são 200 anos de diferença. Há, sem dúvida, uma história institucional que até agora vem favorecendo e modelando lideranças. É óbvio que o poder econômico e outras influências também competem e comprometem, mas o sistema ainda funciona. Liderança pressupõe também liderados. E na política, as pessoas apoiariam o líder por meio de participação partidária e participação eleitoral. E o apoio vem com a expectativa de um retorno material e também moral. O líder deve entregar benefí-

cios reais e ideais para seus seguidores. Dilma perdeu quando não conseguiu mais fazer a distribuição de benesses e falhou outra vez na total falta de coerência ideológica e programática. Por mais que a Presidente Dilma Rousseff proclame sua inocência (ainda há a percepção que ela pode não ter cometido o crime), mas os roubos e desvios acontecerem quando ela tinha responsabilidade e comando. Não é aceitável repetir à exaustão que não sabia ou não via. Pode-se querer acreditar que as pessoas são honestas, mas quando entram na esfera pública e na política, aí já gera no Brasil a desconfiança. E Dilma, que nasceu em Minas, tinha que desconfiar. Isso porque a história de manipulação, roubo e atos ilícitos vem de longe. Poucos políticos conseguiram manter a boa reputação. Os episódios finais do processo de impeachment no Senado são tristes. Dilma tentou se defender, mas ainda se tem a impressão de que ela não contou nem a metade do que sabe, e não teve coragem de desafiar, a não ser pela repetição patética de que foi vitimada por um golpe. Ela não contou porque não sabia das coisas, e se ela realmente não sabia, é porque não quis saber, o que a deixa no papel de coitada. Ela teve a oportunidade de ser uma grande figura, a primeira mulher eleita para a presidência com seus 54 milhões de votos. É triste observar que Dilma não liderou e não comunicou uma visão coerente. Ela tentou projetar a imagem de pessoa idônea e autêntica, mas nunca assumiu nenhuma responsabilidade pelos atos nefastos ocorridos em sua administração, e assim se autodestruiu como líder. Em vez de ajudar na construção de instituições e processos, ela as manipulou para ganhar uma eleição, e no segundo mandato foi omissa na sua participação como chefe institucional, justamente quando a situação econômica ruiu, pelo menos em parte, por suas próprias medidas administrativas. E hoje ela não é mais presidente e perdeu o cargo da liderança para um vice, cujas ações não correspondem a suas palavras. Assim, o impeachment de Dilma Rousseff constitui mais um capítulo triste de um pesadelo ainda sem fim. ■ Texto retirado, com correções, de: <https://allabroadconsulting.wordpress. com/2016/09/02/falta-de-lideranca/>.

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Disciplinando o capitalismo? Benicio Schmidt – Editor-Chefe e Cientista Político

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essas últimas semanas, têm havido dois debates, no Brasil e no exterior, que têm empolgado as opiniões. Um diz respeito ao processo de impedimento da Presidente Dilma Roussef. Sendo uma das maiores democracias do mundo, junto com os Estados Unidos e a Índia, o Brasil catalisa a imprensa internacional, de modo oportuno e correto. Os elementos trazidos à baila para justificar a interrupção do governo de Roussef são, formalmente, ligados a crimes de natureza financeira praticados pela presidência, sem a devida anuência do Congresso Nacional. Porém, os fatos abrigados, pela operação político-institucional de interrupção de um governo eleito, são mais abrangentes, apesar da tentativa em circunscrevê-los às chamadas “pedaladas fiscais”, atingindo o conjunto de políticas e programas desde 2010. Nesse âmbito foram sublinhados, nos debates do Congresso Nacional e na imprensa, os aspectos de péssima governabilidade experimentados pelo país no período. O descontrole das contas públicas é um dos sintomas mais ressaltados; bem como as operações carregadas de propinas a agentes públicos e privados na execução de obras públicas que deram origem à Lava-Jato. Inquestionável é a existência de processos gravíssimos que corroem o sistema de decisões governamentais já há alguns anos no Brasil. Uma das consequências é a quebra da estabilidade política, o enfraquecimento do tecido jurídico que deve assegurar a realização de contratos diretamente conectados às atividades econômicas e que tem causado uma taxa de desemprego altíssima, depois do boom econômico, no auge da valorização de commodities que ainda suportam o crescimento brasileiro. Enfim, um quadro complexo, com o dramático crescimento da dívida pública e, por decorrência, a existência de uma das mais altas taxas de juros do planeta. O preço dessa imperícia faz com que a União tenha de reembol-

sar os tomadores de títulos do Tesouro Nacional em mais de R$ 500 bilhões nesses últimos anos! Mas, apesar da complexidade do quadro brasileiro, há também o ressurgimento de um debate internacional sobre a natureza do modelo econômico neoliberal. As políticas adotadas pelos países hegemônicos, a partir da crise financeira de 2008-2009, não conseguiram domar os fluxos de capital internacional conforme as oportunidades abertas pelos mercados nacionais, em uma perspectiva baseada na financeirização mais do que no desenvolvimento de forças produtivas que caracterizam um capitalismo real. Por decorrência, o mundo capitalista hegemônico experimenta fenômenos surpreendentes, com o aumento brutal da riqueza, mas coadjuvada por enormes índices de desigualdade e desemprego; além de um fenômeno inusitado, como a prática dos juros negativos, em quase todos os países mencionados. Isso sublinha a necessidade de reformas, tanto dos sistemas econômico-financeiros nacionais como o pertinente ao circuito internacional do capital. Do ponto de vista teórico o sistema capitalista, em sua integralidade, não sobreviverá ao domínio das finanças, como previsto desde o século XVIII! É justo, então, o questionamento da natureza do modelo neoliberal vigente. As alternativas exigem um debate que vai do processo de acumulação do capital e da riqueza (aí envolvendo o milenar direito sucessório da “riqueza herdada”), às novas formas de gestão estatal e a absorção maciça de capacidade de inovação permanente na busca de alternativas produtivas em bases sustentáveis. Algo difícil de ocorrer, a não ser a partir de grandes hecatombes, como a Crise de 1929-1930 e a de 2008-2009. Em vez do enfrentamento das questões envolvidas na natureza do sistema vigente em quase todo o mundo, especialmente depois do efeito-contraste exercido pela existência do Bloco Soviético (1917-

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tanks a tratar desta desconhecida e complexa realidade que se avoluma. No caso brasileiro, diante dos atuais impasses econômicos, financeiros e políticos é necessário que as organizações representativas dos setores trabalhistas, intelectuais e movimentos políticos com perspectivas progressistas estejam atentos às possibilidades que certamente surgirão das novas alianças políticas que sustentarão o Estado brasileiro até 2018. Uma das possibilidades viáveis será um comportamento altamente “privatista” por parte do Governo, e com isso tentar reorganizar as contas públicas, especialmente os déficits correntes. Este imediatismo, um populismo de ocasião e com aspectos regressivos, deve ser evitado, sob pena de comprometer as bases de uma nova etapa de desenvolvimento e uma volta ao caráter puro de “Brasil, país exportador de matérias-primas”. ■

1989), as reivindicações populares e dos setores médios mais afetados pelos descalabros contemporâneos (desemprego, desaparecimento das pequenas e médias empresas), corrosão do caráter social forjado pelo culto e dedicação ao trabalho, têm sido acusadas de “populismo”. Para as elites, populismo é o rótulo que esses grupos dominantes dão às políticas apoiadas pelos cidadãos comuns e suas organizações representativas, que obviamente não são pacificamente aceitas pelos poderosos. Na verdade, tal como ressurge na Europa e nos Estados Unidos, populismo é um movimento contra o status quo, representando o início de algo novo, embora ele não seja muito claro sobre o que ele é contra. Ele pode ser progressista ou reacionário. O BREXIT (saída da Grã Bretanha da União Europeia) é um caso clássico de tal populismo, na medida em que vai mudar alguns pilares das políticas britânicas desde o início dos anos 1970. Mais do que ser contra a Europa, ele traduz um sentimento daqueles que sentem ter perdido alguma coisa e foram deixados para trás, cujo padrão de vida tenha recuado aos níveis dos anos 1980, por exemplo. Os sintomas estão ligados, no caso, à pressão trazida pela grande imigração e pela instabilidade do mercado de trabalho. Esta revolta e insatisfação paralisaram a elite governamental, deixando os dirigentes no limbo, à espera de inspiração divina para sair dos impasses. Esta situação afeta o sistema político, trazendo a luta de classes ao centro da arena. Como será o desenlace? A volta à “política de classes” não pode ser confundida com o movimento trabalhista, que teve e tem seu próprio trajeto histórico. Ainda que tenha de se adaptar rapidamente às circunstâncias novas, a reinstalação da classe social no centro da política ultrapassa os limites de ação das organizações trabalhistas tradicionais. Ele é um eco da insatisfação generalizada, ainda insubmissa a qualquer forma de organização. As previsões de especialistas apontam para um horizonte de estagnação secular, uma espécie de volta aos tempos da Crise de 1929-1930. Desta vez, no entanto, as decorrências serão ainda mais amplificadas, pelo tamanho da população mundial e pelo relativo esgotamento de muitas fontes de recursos naturais. Não é gratuita a proliferação de estudos estratégicos de longo prazo em países hegemônicos e também na China, com cerca de 150 novos think

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Um conceito de cultura política adequado à América Latina

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necessidade de construção de um conceito de cultura política adequado à América Latina não deve ser entendida como uma resposta ao conceito de cultura cívica de Almond & Verba, mas uma tentativa de avançar o debate teórico1. Neste sentido, Ruth Lane está completamente correta quando afirma que (...) if certain weakness were inherent in the early works in political culture, it is not those works – all revolutionary in their day – that are at fault. Rather, the problem lies among the successors, who have failed to improve on what they inherited (LANE, 1992, p. 364). Trata-se, desta forma, do resgate da tradição de estudos de cultura política para a compreensão da nossa realidade, com a utilização dos instrumentos disponíveis de forma criativa e, em alguns casos, diversa da usual2. Esta necessidade, porém, não é consensual na literatura pertinente, embora autores advoguem a necessidade de ser feita uma adequação dos conceitos originais de cultura política, tornando-os mais próximos da realidade latino-americana (Turner, 1995). À conclusão semelhante chegaram Brown & Gray (1979), em outro contexto, ao estudar com seus colegas, na década de 1970, a política dos países do leste europeu. Concluíram que há a necessidade de serem incorporados aspectos que contemplem as crenças e valores subjetivos sobre o conhecimento e

Cultura Política Comparada: democracia e mudanças econômicas Henrique Carlos de Oliveira de Castro Verbena Editora 2014

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Em certa medida, a construção do conceito reforçaria as intenções dos autores fundadores da cultura política, pois, como afirma Gabriel Almond, political culture is not a theory; it refers to a set of variables which may be used in the construction of theories (ALMOND, 1989, p. 26).

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Turner (1995, p. 214) constata que doutorandos latino-americanos que estudam nos Estados Unidos têm aberto novos campos de análise através do estudo de issues that the designers of those instruments did not have in mind.


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as expectativas políticas, que são produto da experiência histórica das nações e dos grupos políticos. Em outras palavras, como argumenta Street (1993), não basta serem verificadas as atitudes e as opiniões políticas de determinada sociedade para que se compreenda adequadamente o papel que a cultura política exerce sobre a ação política3. Esta preocupação também pode ser verificada entre autores latino-americanos. Marcello Baquero, José Joaquín Brummer, Fabián Echegaray ou mesmo Amaury de Sousa e Bolívar Lamounier, entre outros, são exemplos de tentativas de se estudar a cultura política da América Latina além da visão encontrada em The Civic Culture. Com outros objetivos, mas abrindo caminhos para estudos de cultura política mais voltados para a nossa realidade, podem ser citados Schwartzman (1988) ou ainda Faoro (1987), que, com diferentes enfoques, objetivos e conclusões, dão elementos para que se possa entender como os fatores da formação política, econômica e social do Brasil afetam as atitudes políticas nos dias de hoje (BAQUERO, 1994a, 1994b, 2000; BAQUERO & PRÁ, 1992; ECHEGARAY, 1989; SOUZA & LAMOUNIER, 1989; BRUMMER, 1987; SCHWARTZMAN, 1988; FAORO, 1987). Pode-se, inclusive, argumentar, como Street (1993), que o modelo comportamentalista de Almond & Verba é inadequado tanto para explicar como a política funciona, como para explicar a ação política propriamente dita. Assim, o conceito de cultura política, que foi originado a partir de uma concepção normativa de sociedade baseada em um determinado tipo de experiência histórica vivenciada por determinados países, deve ser ampliado. O conceito original, além de ser etnocentrista, não consegue dar conta das realidades não consideradas no The Civic Culture. Mas, se as proposições de Almond & Verba não contemplam as inúmeras realidades, inauguraram uma nova forma de analisar e explicar a política. A partir daí a evolução do debate teórico sobre o tema, bem como a possibilidade e a disseminação de novos estudos empíricos, permitiu que hoje se possa falar em uma teoria de cultura política que vai além da classificação proposta em

1963. Dessa forma, em vez de enquadrar as diferentes sociedades em uma tipologia construída a priori, os estudos de cultura política devem servir para que se construa uma compreensão da realidade que considere as diferentes experiências históricas. Uma pista de um conceito a ser gerado pode ser encontrada no trabalho consagrado de Brown & Gray (1979). Os autores se referem à percepção subjetiva da história e da política, as crenças e valores fundamentais, os focos de identificação e de lealdade e o conhecimento e expectativas políticas que são produtos da experiência histórica específica de nações e de grupos4 (BROWN & GRAY, 1979, p. 1). Não se trata, por óbvio, de uma novidade, uma vez que mesmo The Civic Culture possui, em certa medida, uma contextualização histórica. A novidade não se dá no conceito, mas no trabalho propriamente dito, que incorpora estudos de natureza histórica aos de comportamento político. De modo paradoxal, será no The Civic Culture que se encontrará o caminho a ser seguido para avançar na formulação de uma concepção latino-americana de cultura política. Almond & Verba se valem do desenvolvimento histórico da Inglaterra e dos Estados Unidos e do comportamento e das atitudes políticas de suas populações para fundamentar o seu conceito de cultura cívica. A mesma estratégia pode ser utilizada no contexto da América Latina, contanto que não se incorra no erro dos autores fundadores: o de construir um conceito normativo e etnocêntrico. Por outro lado, deve-se ir além da proposta de relação de causalidade (independente da direção) entre cultura política e estrutura política, procurando incorporar também variáveis de natureza econômica e social como constituintes e resultado da cultura política. Além disso, não se deve impor uma forma de estrutura sociopolítica como o objetivo da sociedade. Este processo levaria necessariamente à eleição de um modelo de cultura política, o que implicaria em cair na armadilha da cultura cívica às avessas. Por fim, o conceito deve ser mais explicativo que normativo, permitindo, a partir dos casos estudados, a sua aplicação em outras realidades latino-americanas e a comparação com outras regiões. ▶

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The behavioural view of political culture used by Almond and Verba is inadequate both as an account of how works and how it may explain political action. (STREET, 1993, p. 113).

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(...) the subjective perception of history and politics, the fundamental beliefs and values, the foci of identification and loyalty, and the political knowledge and expectations which are the product of the specific historical experience of nations and groups.

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A proposta de cultura cívica de Almond & Verba peca pelo etnocentrismo, ou seja, pela afirmação de que a cultura política encontrada na Inglaterra e nos EUA é o tipo de cultura democrática. O erro maior está na definição a priori de que aquelas sociedades são democracias, bastando apenas conhecer quais as atitudes das suas populações para determinar a “cultura cívica”. Como se viu, a maior parte dos autores defende a existência de uma relação entre democracia e cultura política, ou, de maneira mais genérica, existe relação entre atitudes e instituições políticas. Se pensarmos a sociedade como uma construção humana, em que instituições e cultura são formadas durante séculos, faz sentido pensar nessa relação. No entanto, os estudos divergem quanto à direção dessa relação, sendo que na maioria deles cultura política indica que a relação se dá no sentido cultura política→instituições. Em outras palavras, uma cultura política democrática conduziria à democracia. Assim, se considerarmos que essa relação está correta, como relacionar democracia com cultura política? Ou seja, parece que a questão não está em discutir se a cultura política implica a existência de democracia, mas, especificamente, qual cultura política implica qual democracia. Assim, o problema central não está em aceitar que uma determinada cultura política facilita ou cria as condições para a existência de democracia, mas discutir qual democracia se deve (ou, no limite, se pode) construir. Russel Dalton foi preciso ao colocar que

são de democracia que defendem. Usaram um caminho dedutivo a partir de um conceito de democracia que sequer se preocuparam em explicitar, tratado como “natural”. Se usarmos um caminho indutivo, tomando como premissa as características da “cultura cívica”, chegaremos à conclusão de que não há premissas culturais para a democracia na América Latina (bem como na maioria esmagadora dos países do planeta, por terem vivido uma experiência histórica diferente da dos países que viram surgir a democracia…). Se usarmos novamente um caminho dedutivo, tomando como premissa a “democracia” existente, por exemplo, no Brasil, encontraremos as suas características, mas isso não será em nada explicativo: apenas elucidativo. Mais uma vez, o problema central parece ser teórico, no sentido de conceituar devidamente democracia. Caso contrário, me parece que teremos que aceitar que não existe relação entre cultura política e instituições, o que tornaria inócuo o próprio campo da cultura política. Uma série de pressupostos têm que ser considerados para se formular um conceito de cultura política que seja compatível com a América Latina. Em relação às premissas, antes de haver a preocupação com a aplicação de um determinado modelo de cultura (a cultura cívica, por exemplo), deve-se partir para o conhecimento da realidade dos países latino-americanos. Neste sentido, o uso do instrumental da cultura política deve ser mais indutivo (ou seja, procurar conhecer a realidade das sociedades), que dedutivo (aplicar um conceito determinado). Isso não implica um menosprezo à teoria, mas à constatação de que falta acúmulo de pesquisas empíricas entre nós (especialmente pesquisas comparativas). Um conceito de cultura política para a América Latina tem que considerar as particularidades da nossa formação histórica. Atitudes de moderação, por exemplo, não podem ser esperadas em uma sociedade profundamente dividida. Da mesma forma, participar de protestos pode ser uma forma legítima de oposição a governos que sequer procuram resolver os problemas da população. Cabe mais uma vez conhecer a formação histórica dos diversos países e confrontar com as atitudes políticas, para ser verificar se há congruência entre elas, nos termos de Eckstein (1966). Diferentemente dos países de tradição protestante, a participação na comunidade não é uma característica das sociedades latino-americanas. Neste

To move the field [of Political Culture] ahead, now is the time to ask additional questions. For instance, is there is but one ‘civic culture’ that is congruent with the working of a democratic system. Experience would suggest that there are a variety of ‘democratic’ cultures, as well as ways to define culture, which requires mapping and further studies. (DALTON, 1998, p. 341). Fundamentalmente, o modelo heurístico de Almond & Verba estava correto: ao aceitarem ou partirem do pressuposto de que o tipo de democracia norte-americana deveria ser utilizado como modelo e passarem unicamente a verificar empiricamente quais seriam as atitudes correspondentes da população, estariam consolidando o conceito e compreen-

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sentido, o modelo de Wildavsky (1987), pode ser útil por abrir espaços para estudos de caráter qualitativo, em que se procure conhecer como os grupos sociais interagem na América Latina. Em suma, não se trata de unicamente conhecer as atitudes ou orientações políticas em relação ao sistema político (ALMOND & VERBA, 1989), mas de reconhecer que os sistemas políticos dos países da América Latina possuem histórias, dinâmicas e tradições que devem ser resgatadas para que se construam alternativas sociais, políticas e econômicas. ■ Bibliografia ALMOND, Gabriel. The intellectual history of the civic culture concept. In: ALMOND, Gabriel. A. & VERBA, Sidney (Eds.). The civic culture revisited. Newburry Park: Sage, 1989. p. 1-36. ALMOND, Gabriel. A. & VERBA, Sidney. The civic culture: political attitudes and democracy in five countries. Newburry Park: Sage, 1989. BAQUERO, Marcello. A dimensão atitudinal como requisito para a consolidação democrática: notas de pesquisa sobre instituições e cultura política no Rio Grande do Sul. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo, v. 30. n. 138, jul./ ago., 1994a. p. 93-109. ____. Uma avaliação da evolução da cidadania na América Latina: os custos sociais e políticos do Estado neo-liberal. Abeh, 4, 1994b. p. 271-82. ____. A vulnerabilidade dos partidos políticos e a crise da democracia na América Latina. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000. BAQUERO, Marcello & PRÁ, Jussara Reis. Cultura política e cidadania no Brasil: uma análise longitudinal. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo, v. 28, 1992.

A PEQUI é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições nãogovernamentais e governamentais.

BROWN, A. & GRAY, J. (Eds.) Political culture and political change in communist states. New York: Holmes & Meier, 1979. BRUMMER, José Joaquín. América Latina entre la cultura autoritária y la cultura democrática: legados y desafíos. Revista Paraguaya de Sociología, ano 24, n. 70, Dez. 1987. p. 7-15. DALTON, Russell J. Comparative politics: micro-behavioral perspectives. In: GOODIN, Robert E.; KLINGEMANN, Hans-Dieter. A new handbook of political science. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 336-52. ECHEGARAY, Fabián. Impávidos ante la democracia: la subjetividad política argentina. Nueva Sociedad, n. 101, mayo/jun., 1989. p. 41-8.

A Pequi é membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram à criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram à normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de técnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

ECKSTEIN, Harry. Division and cohesion in democracy: a study of Norway. Princeton: Princeton University Press, 1966. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1987. 2v. LANE, Ruth. Political culture: residual category or general theory? Comparative political studies, v. 25, n. 3, p. 362-87, Oct., 1992. SCHWARTZMAN, Simon. As bases do autoritarismo brasileiro. São Paulo: Campus, 1988. SOUZA, Amaury de & LAMOUNIER, Bolívar. A feitura da nova Constituição: um reexame da Cultura Política brasileira. Planejamento e políticas públicas, n. 2, Dez., 1989. p. 17-38. STREET, John. Review Article: Political Culture – from civic culture to mass culture. British Journal of Political Science, n. 24, p. 95-114. 1993. TURNER, Frederick C. Reassessing political culture. In: SMITH, Peter H. Latin America in comparative perspective: new approaches to methods and analysis. Boulder: Westview, 1995. p. 195-224. WILDAVSKY, Aaron. Choosing preferences by constructing institutions: a cultural theory of preference formation. The American political science review, v. 30, n. 1, Mar., 1987, p. 3-22.

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Harvard aterrisa no urbanismo do DF Jorge Guilherme Francisconi – Arquiteto e Urbanista

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Secretaria de Gestão do Território e Habitação do GDF (SEGETH) e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB estão se reunindo com professores da Graduate School of Design, da Universidade de Harvard. Talvez tratando do planejamento urbano e metropolitano do Distrito Federal, o que não é tarefa simples. Por isso, a iniciativa merece o apoio de todos. Charles Waldeim, que dirige o Escritório de Urbanização da Graduate School de Harvard, conduz a equipe de Harvard. Ele é um expoente do Landscape Urbanism – nova corrente do planejamento urbano, cujos fundamentos desconhecia e que encontrei na Wikipedia. O Landscape Urbanism, ou Urbanismo da Paisagem (tradução livre), surgiu nos anos 1990 para substituir o new urbanism [novo urbanismo]. Seu pressuposto é que o planejamento da paisagem é melhor que a morfologia de edificações para organizar cidades. Por esse motivo não segue fundamentos do planejamento científico e da arquitetura moderna, nem do planejamento urbano integrado interdisciplinar. Projetos do Landscape Urbanism exigem conhecimentos da história da ciência, geografia política e econômica, sociologia e arquitetura e podem ser vistos em Nova York, Toronto e outras grandes cidades. Já a SEGETH, antes SEDUMA e SEDHAB, pratica o urbanismo pontual e morfológico, sem propostas de gestão estratégica ou de parâmetros mínimos para integração das atividades e serviços na metrópole ou cidades do DF. Não há projetos para o Plano Piloto, que abriga atividades exclusivas de uma capital nacional de “caráter monumental, não no sentido de ostentação, mas no sentido de expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa) [Lucio Costa]. Onde o monumental satisfaz “a eterna demanda do povo pela transformação de suas forças coletivas em símbolos” [Louis Kahn].

Também falta um planejamento para a metrópole que ocupa o território do DF. Suas cidades têm população e peso eleitoral maior que o Plano Piloto, e seus planos urbanos consolidam condições existentes e algumas vocações. As expectativas por um planejamento urbano qualificado cresceram quando o Governador Rollemberg entregou a SEGETH ao IAB/DF, em especial para área do Plano Piloto expandido. Aqui caberia usar os ingredientes de Lucio Costa ao inventar a civitas, mas nada aconteceu. O grupo de Harvard poderá gerar sinergias, estratégias e proposições, na esperança de que não se repita a frustração que houve após o I Seminário Internacional sobre A Proteção ao Plano Piloto de Brasília no Contexto Metropolitano, que TERRACAP/GDF e IPHAN promoveram em 2012. A FAU/UnB, que também participa do grupo, adota outros conceitos. Dos anos 1960 a 1980 abrigava duas correntes de pensamento. Por um lado, o programa interdisciplinar de mestrado adotava preceitos do planejamento integrado. No melhor estilo dos anos 1960, a prática do planejamento era basicamente utilizada para previsão de impactos e avaliação de programas, a partir da fé no método científico, que as ciências sociais adotaram após a II Grande Guerra. Em contrapartida, a linha de pensamento liderada por Edgar Graeff entendia que havia uma campanha maliciosa e persistente contra o arquiteto de talento, o criador singular, sob o pretexto de que acabou o tempo do profissional liberal, de que a sociedade não se interessa pelo arquiteto “prima dona”, de que a hora é das equipes interdisciplinares, a vez é do coletivo... Este dualismo perdeu importância a partir de 1984, quando mudou o cenário político e surgiu qualificado grupo de professores da FAU, cujos estudos sobre as dimensões morfológicas do processo de 12


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urbanização do Distrito Federal seguiam a Teoria da Sintaxe Espacial, criada pelo literato Bill Hillier. No decorrer do tempo, a aposentadoria de professores de várias correntes abriu espaço para o urbanismo habermasiano adotado na FAU/UnB. Esta linha de pensamento entende que decisões e ações de planejamento devem ser definidas pelo diálogo e comunicação racional, mediante entendimento mútuo, em lugar do uso de princípios de lógica e saber empírico formulados de forma científica. Para Habermas, pragmatismo e racionalidade na comunicação racional convergem quando utilizadas para guiar a ação do planejadores. A principal responsabilidade do planejador é de escutar as descrições da população e apoiar na obtenção de consenso entre diferentes pontos de vista. Em vez de oferecer liderança tecnocrática, o planejador passa a ser um experiente aprendiz, cuja principal função é ter sensibilidade para construir convergências e impedir que grupos de interesse dominem o planejamento [Fainstein]. Nas últimas décadas, a gestão e planejamento urbano nacional teve influência do pensamento de Habermas, com pitadas do discurso competente de Marilena Chauí e de processo participativo gerado no PT. No cenário político, desejos e expectativas da população passaram a ser mais influentes, mas ainda sem vencer o dominante sistema patrimonialista. Os fundamentos habermasianos têm sido questionados porque impedem a realização de grandes planos, como aqueles exigidos pelo planejamento metropolitano. Além disso, o foco do planejamento comunicacional passa a ser o planejador, sua atividade e suas qualidades, e não aquilo que deve ser feito em cidades e regiões. Há também o paradoxo de que, quando o planejador comunicacional – não o participativo –, se autointitula moralmente desinteressado, sua atitude se assemelha àquela dos tecnocratas que critica. A convergência de esforços da UnB com a SEGETH pode aperfeiçoar a atividade urbanística e a arquitetura que temos no DF. O fato de Harvard aterrissar no terrapleno do Plano Piloto é uma ótima notícia. A expectativa é sobre o que será produzido para aprimorar a paisagem urbano-ambiental do DF, tanto no Plano Piloto como nas demais cidades da metrópole. Por ora só nos resta aguardar para conhecer o que será produzido. ■ 13


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Resenha Arnaldo Barbosa Brandão

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RBANIDADE & ARQUITETURA, livro organizado pelo Frederico Holanda. Comecei a ler já era tarde da noite. Pulei o prefácio, conheci o Joaquim Guedes nos bons tempos. Pulei a apresentação, fui pulando, pulando, de repente caí na jaula da “Esfinge de Tebas”. Lá dentro tinha uma placa: A DETERMINAÇÃO NEGATIVA DO MOVIMENTO MODERNO. As duas citações (Corbu e Garbier), ditas epígrafes, dizem mais do que o resumo, escrito para iniciados. Outro problema é que o estilo do Holanda melhorou muito, está arisco, ligeiro, exige leitura atenta, e ele (assim como eu), não facilita nada pra ninguém. De cara, empaquei como um jumento na subida da ladeira (Introdução), mas a definição de arquitetura, direta e simples, me animou. A listinha singela de sete itens me deixou exultante, lembrei do CEMUAM. Pensei: amanhã, com a cabeça fresca, tento de novo. Aí fui tentar entender o texto sobre “determinismo arquitetônico”, parecia um pântano em meio à floresta na madrugada, e eu vigiando um raio-de-sol. Quando calculei que estava perdido, o Holanda me aparece com um comentário do Hobsbwan (que está competindo com o ON para ver quem chega ao século XXII) e depois, comenta de passagem os itens da listinha, que ele chama de “dimensões constituintes da arquitetura”. O primeiro item diz respeito ao padrão funcional (não sei o que é, mas por enquanto não importa), o segundo, ele chama de “Copresença”, pelo que entendi, refere-se à capacidade do espaço em admitir diversos tipos de relações sociais. A “Copresença” se concretizaria pelas barreiras e permeabilidades. Ele sugere que é bem mais complicado que isso, deve ser, mas, por enquanto, fiquemos assim. Pensei: agora vai. Aí ele me diz que, para qualificar o espaço arquitetônico é preciso analisar todas as dimensões em conjunto (os sete itens da listinha) e não apenas cada uma separadamente. Óbvio. Mas, antes disso, antes do Hobsbwan, e até antes de começar a analisar a “Copresença”, ele dá uma parada e aproveita pra dar uma

cacetada na Otília Arantes com base num texto dela sobre arquitetura moderna. Assim entendi e gostei (o pé de página exigia que tivesse lido a crítica do Berman ao Foucault, lembro de ter lido Foucault – o que já é pedir muito). Pelo que percebi, ele (Holanda) acha que ela (Otília) não teria jogo de cintura pra mexer com isso. Não posso opinar, nunca a vi sambando. O Holanda mete o Caetano no meio da crítica e finalmente sai do outro lado do túnel e diz: “é possível crer que existam problemas (não únicos) inerentes à arquitetura moderna relacionados com o aspecto da “Copresença”. Pronto, criou o suspense que pretendia. “Copresença” é o segundo item da listinha singela que gostei de cara. No mar da “Copresença” o Holanda nada de braçadas, começa com o cara certo, Hobsbawn, sobre o determinismo arquitetônico, em que ele situa o espaço como variável independente, mas ele não valida tudo que o Hobsbawn disse, porque o Hobsbawn teria falado num contexto revolucionário, assim entendi. Dali ele (Holanda) pula para uma aldeia Carajás (pensei: melhor deixar os índios quietos), depois para os Hopi (que é a menina dos olhos dele) e desenvolve uma análise antropológica, procurando caracterizar o que significa “análise semântica e sintática”. A diferença entre as duas. Assim como na gramática, a segunda é que importa, pra ele, pra mim, não. Desconfio que os gramáticos concordam com ele, já os filósofos, acho que não. Na realidade, ele queria desembocar em alto estilo na “arquitetura moderna”, que é, pra ele, “meu bem, meu mal” (já que citou o Caetano). Infelizmente, não sou mais capaz de acompanhar as duas páginas seguintes, confesso que perdi o gosto pela antropologia. Lembro que fui eu quem indicou o clássico “Cultura e Razão Prática” para o Holanda, que me tinha sido sugerido pelo finado Carlos Nelson, de quem não consigo esquecer, quando já nos “finalmentes”, enfrentava a “velha da foice” todos os dias, pilotando uma cadeira de rodas nos corredores do IBAM. E pensar que cinco anos antes ele me

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dizia (a Lícia do Prado Valladares estava presente) que em cinco anos seria o maior arquiteto brasileiro (vocês sabem o tamanho do ego e da inteligência dele). Nesta época, Brasília era malhada diariamente, e Niemeyer, bem, Niemeyer estava onde sempre esteve, na Avenida Atlântica, observando a bunda das mulheres e tecendo seus bordados. Bem, deixemos ambos em paz. Voltando ao texto, finalmente começo a ver os primeiros raios de sol da manhã, quando o autor volta à listinha singela e analisa a “Copresença” (que parece ser o item mais importante da coisa toda) em lugares contemporâneos, embora haja uma ressalva muito importante do John Peponis (é da confraria da sintaxe, li um texto dele quando ambos éramos jovens) sobre a importância desta categoria (Copresença) no mundo atual, em que não se precisa estar presente para se relacionar, como já havia escrito antes (Namorando na Internet). Voltando ao texto, o Holanda aproveita a deixa da “Copresença”, empunha um porrete, mas dá apenas uma cotovelada no James Holston, que trata disso no livro dele sobre Brasília. Merecida, acho. Até aqui tudo me pareceu óbvio, mas lembrei da história do “ovo em pé” e fui em frente. Aí aparecem os gráficos, não me interessaram, sou das palavras. Lá pela página 33, perto das conclusões, o texto começa a se tornar mais claro e os exemplos mais evidentes, e então vicejam algumas críticas a Brasília e a seu autor, mas são críticas que convidam à leitura do que escreveram Corbu, L.C. e outros. Holanda, então, dá a estocada final no fígado do “discurso arquitetônico”, defendendo a análise da obra pronta: “optamos pelo conveniente refúgio das palavras, a enxergar a realidade à ponta dos nossos narizes” (pág. 35). Senti uma dorzinha no lado direito da barriga. Não sei não, talvez ele devesse ler o artigo da Marina Silva sobre a palavra (ELA TEM A FORÇA) na Folha do dia 30 de dezembro (quando já havia escrito essas coisas, fui ler a homenagem que ele faz ao Evaldo Coutinho no final do livro, então não precisa ler o texto da Marina Silva, claro). Gostei muito da homenagem, coisa de quem não se aferra a posições ideológicas e/ou teóricas e reconhece os mestres, estejam onde estiverem. Voltando ao texto. Quando eu já pensava em recomeçar a ler no outro dia, aparece o sol limpo e quente do meio da tarde, a partir de uma paráfrase de Hobsbawn: “democracia e tirania não surgem

porque uma ou outra ordem espacial é a elas adequada…" mas devemos acrescentar (disse o Holanda), “que certas ordens espaciais, satisfazem melhor uma que outra”, ou seja, ordens espaciais não são determinantes, mas interferem na sociedade, então vale a pena estudá-las. Parece óbvio, mas não é não, sobretudo porque arquitetura e urbanismo (até bem pouco tempo) eram vinculadas à estética (ver Croce, Eco e mesmo o Evaldo Coutinho), daí aqueles desenhos desnecessários do Relatório do Lúcio Costa. Pena que num dia, em que perdi a cabeça, botei na fogueira o livro do Suassuna (Iniciação à Estética). É claro que houve os marxistas, funcionalistas e estruturalistas que clarearam bastante o horizonte do urbanismo, mas sempre com luz indireta, e não direta como faz o Holanda no outro livro: Oscar Niemeyer: de vidro e concreto. Chegando ao final, tudo se esclarece mais. Ele (Holanda) pegou um pouco do que eu chamaria “teoria do conhecimento” só que em vez do Popper (livro texto que utilizei quando eu era professor na pós do urbanismo), pegou outro britânico, Giddens (que vem de uma linhagem de teóricos ingleses brilhantes: Hume, Popper (nasceu em Viena), Russel etc.), e aí conclui sabiamente: aprendemos com “erros”, usa um gráfico para mostrar como funciona a coisa, como se todos não soubéssemos que “todo o conhecimento não passa de uma teia urdida de pressupostos”(ganha um filme quem souber o autor desta joia). Antes disso, ele explica aquela história do Hobsbawn sobre variável independente: “o saber disponível nos permite projetar em resposta a expectativa, a arquitetura então é variável dependente, determinada pelas expectativas”. O edifício construído afeta-nos em função de suas características, a arquitetura é então variável independente. Por isso ele só se interessa pelo edifício construído, e não pela conversa fiada do ON, Corbu etc. Do L.C. ele ainda tolera. O Holanda quer o sumo da coisa, dispensa o bagaço. Sacaram? Mas como ele gosta de uma querela, no finalzinho dá umas bordoadas no pessoal que se encanta com as conquistas tecnológicas da arquitetura moderna, chama-os de “mentes conservadoras”. Não botei o boné, mas lembrei de um filme alemão: “Homo Faber” do Volker Schlondorff, baseado no best-seller do mesmo nome. Um aviso de quem gosta de palavras: “tecnologia” é termo muito abrangente e complexo. ■

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Impróprio para alunos e professores Wilian Fernandes Pereira

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ra 1993, quando o computador chegou em casa. Ainda não existia Internet, nem discada. Depois de explorar o DOS, o Paint e outras ferramentas, fatalmente me apaixonei pelo Bloco de Notas. A adolescência antes da web era cheia de dúvidas, dogmas, silêncios e mistérios. Os minutos passavam analogicamente, e éramos forçados a olhar as coisas que existem no mundo, conversar com pessoas, observar os próprios pensamentos. Anjos e demônios se fabricavam e se dissolviam dentro e ao redor de nós, sem referência de pesquisa, sem fórum, sem rede social digital. Tudo era dúvida. Não tive muitos livros antes dos 18 anos, por isso passava longas horas ao telefone com meu melhor amigo (a gente lia mais as pessoas, eu acho). Via revistas que cruzavam meu caminho, sem entender nada direito, parecia muito importante alguém assinar a “Veja” ou a “Folha de São Paulo”, ai que chique!, diziam sobre isso. Eu, classe média baixa, me alegrava quando ia na casa do tio rico que assinava periódicos, e me sentia muito burro quando lia aquilo e mal entendia as coisas. Vestibular, hormônios, dúvidas de todo tipo, família gigantesca na mesma casa, privacidade próxima de zero. Não era fácil ser adolescente nos anos 90. Eu queria contar segredos, mas não tinha pra quem. Um dia o balde virou: sentei ao micro e deixei o texto vazar, galopando, afoito, pelas letras... sem técnica, sem tema, sem leitor, sem pressa, sem objetivo. O único propósito era fazer aquilo, falar, acessar a dor e a dúvida, gritar em silêncio, teclando noites e noites para ninguém mais ler, e depois, claro, apagando tudo (porque lembrar da sombra dói). Esse tipo de catarse me ajudou muitas vezes, e o ruído dessas tempestades e êxtases é o feito, o produto, o desenho, o traço, o texto. O resto. O vômito. A flor. O Espinho. O bálsamo.

Não é coisa de conto, mas sabemos que um alto grau de sinceridade não convém à literatura. E um educador 100% sincero mais deseduca do que educa, o que também é importantíssimo: nos ajuda a despertar do nosso “sono dogmático”. A literatura é cheia de coisas, coisinhas, universos, cenários, dimensões dignas de serem exploradas por especialistas, escritores. Eu não. Não sei nada de literatura, nem sinto vergonha disso. Eu mal aprendi a escrever, e não foi para construir universos lindos, habitados por seres complexos e universais. Pra mim o mundo já é muito, podemos nos dedicar aos documentários em vez das trilogias mágicas. Eis então que decidi estudar Filosofia, essa fruta que amarga na boca mas é doce no sangue. A Filosofia arrancou a carne dos meus olhos, fritou meu cérebro, dilacerou meu coração. Mas curou minha surdez, me empurrou para a apreciação da alteridade, curou o solilóquio autista do pacato jovem cidadão médio que eu era aos 18 anos. Rasgou ilusões e propôs outras, explicou o mundo de todas as formas, concluindo que a resposta está em aberto. Não adianta ficar triste, virar ateu, cético ou materialista. O desafio é maior. Juntei as duas coisas e comecei a fazer livros. De dia, estudava, trabalhava, panfletava, produzia, sobrevivia. De noite, me entregava à minha própria companhia, descia até os abismos da Loucura e voltava, colecionando papéis, impressos e manuscritos. Com muito amor eu fiz isso e faço; a escrita é uma das minhas melhores amigas. Os motivos estão todos escritos, esperando kairós (a hora oportuna) para serem lidos. Publiquei cinco livros entre 2008 e 2012 e já me diverti bastante com isso: feiras livres, piqueniques, churrascos, atividades com alunos em escolas públicas e particulares, lançamentos, tudo muito legal. É uma brincadeira de alto custo, porém: físico,

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emocional, financeiro, social. Ralei para distribuir em livrarias, bancas, na Internet, corpo-a-corpo. Sem arrependimentos! O pai deve proteger os filhos e falar bem deles, é o que eu acho. Porém, 1. Filosofia não é um assunto popular; 2. As editoras não promovem autores nacionais; 3. Somos um dos países com o PIOR índice de leitura do mundo; 4. Não fico fazendo social em coquetel de clube de escritores; 5. Se fosse pra agradar, eu não tinha feito nada.

senhora baixinha, de olhos vívidos e um coração muito bondoso. O ofício seguiu para apreciação da Secretaria de Estado de Educação, não sei se do DF ou de Sobradinho, ninguém me informou direito. A censura corre em segredo. O fato é que esperei um ano inteiro pela resposta, e lá estavam eles, separados, nomeados conforme cada escola (CEF, CAIC, Escola Rural etc.) e escondidos, antes em cima da mesa, depois debaixo de uma estante. Inacreditável que uma cidade não se importe em catalogar nem seus próprios nativos produtores de cultura. A alegação (informal, claro) é que o livro “As Chaves do Armário” NÂO poderia ser entregue aos alunos nem aos professores, porque discute “a ideologia de gênero” nas escolas e isso não pode (sic). O “Self-Portraitor” também foi considerado subversivo, não sei se por causa das ilustrações ou de algum texto (eu duvido que tenham lido, aliás). Os outros dois títulos entraram no pacote da rejeição. Lotei meu carro com o presente devolvido e deixei, em luto, no depósito de quinquilharias da casa. Muito triste isso, gastar uma fortuna fazendo algo com amor e dar, de graça, e nem assim conseguir chegar nos alunos e professores da vizinhança. Por outro lado, Brasília é cada vez mais linda em sua Asa Norte, e a Feira Livre é um lugar de troca, diversão, expansão da consciência e networking. Eu sempre vou lá, vender meus livros. Da última vez foi no 7 de setembro, sem comentários exceto #ForaTemer. Meus amigos e amigas estavam lá, cada um levou uns 3 livros debaixo do braço e começou de novo o processo de abordagem e venda, mas agora foi diferente. De frente ao palco, exibimos, mostramos, oferecemos. Recitei um poema, cantei uma música, aquele peso, aqueles livros, as pessoas, o som, o não, o sim, os livros no chão. Pensei numa estratégia: “vou

E o resultado é o torra-torra, detona o patrimônio e arrebenta o coração: — Olá, freguesa! Vamos levar um livro? Você gosta de poesia? Olha, aqui tem um monte! Ou você é meio doido? Tem um desse também! Você tem filhos? Olha esse livro-jogo para crianças! Está em crise de identidade de gênero? Olha aí as chaves do armário! — Ai, que fofo. Tchau. — Ei, da cerveja! Troca um livro de 980 páginas por uma Itaipava? — Vou pensar… — Ô, seu guardador de carros, guarda esse livro aí por 1 real? — Vou usar de travesseiro! — Senhor ponto de ônibus, leva esses meninos pra onde Deus quiser!? — … ??? !!!. Não sei se é a velhice, ou se é o tipo de sonho que cansa. Como na caverna de Platão, as projeções se revelam falsas. Precisa-se de muito budismo, desapego, dinheiro e senso de humor para quem decide publicar um livro no Brasil. Então abri mão de tudo (“Chega!”) e doei os livros para a Biblioteca Pública da minha cidade. Foram lindamente separados pela bibliotecária, uma

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jogar por aí, quem sabe alguém tropeça e lê…”. Não deu certo, era só bicuda no tijolo e a galera tombando do outro lado. Achei que não era ético. Coloquei 4 na minha frente e fui sambar em cima, como quem faz aula de step. Coitados… Coitados. Lembrei de tudo: da angústia esvaziada no processador de texto na adolescência, das noites de solidão acompanhado por deuses e encostos, pensei nas livrarias cheias de lixo na vitrine. Olhei bem pra cara do brasiliense, essa minha raça. E comecei a gargalhar! Hahahaha, que situação! Daí pra frente eu estava luético, já não queria aqueles livros, como quem deixa um recém-nascido no orfanato ou dentro de uma sacola de lixo. A depressão pós-parto tardia foi paradoxalmente eufórica. Impossível descrever o que senti quando lancei os volumes, um a um, na estrada, no asfalto, na sarjeta. Procurei um culpado e pensei na Secretaria de Educação. Afinal, se os livros estivessem nas ESTANTES das bibliotecas, não estariam nas ruas. Mas não, não era só isso. Não existem culpados. Daí lembrei que o inimigo espera isso de mim, mas eu não vou desistir. Mesmo assim, acordei a 1h30, arrasado. Pobres meninos! Como eu fiz isso? Era tanto desgosto que eu sentia pela vida, pelas pessoas e por todo meu esforço aparentemente desperdiçado que quase não consegui dormir. Depois deixei pra lá, inventei pra mim que foi um ato de desapego e que liberou espaço na minha prateleira. Pois é. Como você, eu me conto mentiras para ficar confortável com algumas das minhas ações. Meu editor outro dia me falou: “— Você é o único quebrado que eu conheço que publica livros. Por-

que o resto é funcionário público, político, ou filho de gente rica, o pai paga pro sobrinho publicar os poemas da avó antes dela morrer.” Nossa, que gentil! Aposto que ele só tava montando uma frase pra me chamar de “quebrado”, coitado. Mal sabe da minha agricultura celeste, nem consta que tenha feito um só poema na vida. Impróprio para alunos e professores, como chegamos a esse ponto? Quando foi que pensar virou crime? Desde quando existe censura para incorporar livro em acervo de biblioteca pública? Como alguém gasta milhões assinando Veja, Folha e Microsoft Windows e é incapaz de aceitar um livro escrito por uma pessoa da própria cidade? Seria o medo de inspirar os jovens para que esvaziem suas angústias? Seria medo de que poetas possam desestabilizar o Estado? Ou é um puro e simples MEDO DE FILOSOFIA? Por fim, vamos declamar Gregório de Matos EM VOZ ALTA, em homenagem à Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal: “Ao Governador Antonio Luiz Sal, cal e alho caiam no teu maldito caralho. Amém. O fogo de Sodoma e de Gomorra em cinza te reduzam essa porra. Amém. Tudo em fogo arda, Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda.” (Brasília, 09.09.16 – 12h39) ■

www.verbenaeditora.com.br 18


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ENCAIXOTANDO BRASÍLIA Arnaldo Barbosa brandão Verbena Editora: Brasília. 2012.

Capítulo 10 Jango ainda mandava. Em abril de 64 trancafiaram-no de novo, mas desta vez foi pra valer. Estava agora no Oiapoque, “neste fim de mundo”, como gostava de dizer. Tinha amigos na política do Sul que estavam presos ou foragidos. Era um sujeito culto e de posição ideológica inflexível. Acreditava que a solução para o Brasil era uma revolução que implantasse aqui o Marxismo-Leninismo. Hoje isto pode parecer a muita gente uma heresia, mas naqueles tempos, eram tempos de mudanças, tudo parecia possível aos olhos de pessoas como o Gaúcho. — Conheces alguma coisa da história do Brasil, tchê? — Bem, mais ou menos, Pedro Álvares Cabral, Tiradentes, Pedro I, Princesa Isabel, Floriano Peixoto… — Não! Estou falando da história recente, não dessas pessoas que a gente nem sabe direito se existiram mesmo, da história como um conjunto de fatos articulados com causas e efeitos. — Nunca pensei muito nisso, só sei que somos um país explorado, primeiro por Portugal, depois pelos ingleses e, agora, os americanos. — É, mas não se esqueça que começamos nossa caminhada como um país que produzia

— Marx não tem, os militares confiscaram. — Fazia questão de me informar. — Ainda bem, só serve para iludir os meninos. O Gaúcho discordava irritado e bramia todas aquelas frases prontas do Manifesto Comunista, do tipo “vós não tens nada a perder além de teus grilhões”, referindo-se aos pobres. Eu sabia, por experiência própria, que era o contrário: os pobres têm tão pouco, que quando perdem, perdem tudo, acho que por isso, as revoluções sempre vêm de cima, dos que têm a perder. Argumentar contra Marx era bobagem. Para o Gaúcho, ele se assemelhava a Deus, estava muito acima de qualquer mortal, e não sei como, depois de passar por tantas revistas, conseguiu chegar ao Oiapoque com uma pequena foto de seu ídolo, rosto escondido pela barba enorme. — Desconfio que tua foto de Marx veio na cueca, colada nos ovos. — Tu achas que ia cometer um pecado desses, tchê? E soltava sua risadinha. Sua história não era muito original. Participava do movimento sindical no Rio Grande e quando, em 63, houve a rebelião dos Sargentos em Brasília, viajou para lá, imaginando-se um revolucionário. Acabou preso e logo solto.

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aquilo que se toma depois da sobremesa, uma semente que era posta ao sol para secar, depois torrada, depois esmigalhada, depois virava pó e, levada à água fervente, resultava num líquido feio e amargo que só descia garganta abaixo se botássemos açúcar. Então trocávamos essa semente seca e queimada por outros produtos, e assim íamos avançando, mas como queríamos tomar café, começamos a produzir o açúcar, como era muito amargo mesmo assim, começamos a produzir leite. A partir desse produtozinho vagabundo conseguimos criar uma nação. Para que isso fosse possível, tivemos uma política construída por algumas pessoas de visão. Anote aí na tua cabeça oca, o nome dessa política é o nacional-desenvolvimentismo. — Tá, mas e os ciclos do açúcar, do ouro? — Não interessa agora, já passou, já era, agora o que interessa é como sair do líquido preto e feio e produzir outras coisas, além de dar empregos, saúde e educação para o povo. O nacional-desenvolvimentismo vinha tentando manter alguma independência e promover o desenvolvimento com a grana do próprio governo, ou seja, dos impostos que arrancam

de todos nós. Só que essa política está esgotada, entende tchê?, esgotada. Temos que partir para uma atitude mais ousada, nos libertarmos por completo dos gringos, adotar outro regime político, fazer uma ruptura com o passado anacrônico, modernizar o Brasil. — Sei, o regime que Fidel adotou em Cuba? — Esquece Cuba, Cuba é uma ilhazinha de merda e depois teve o azar de nascer ali, bem ao lado dos americanos, nós somos um país enorme, temos força para promover uma revolução na América do Sul. Os americanos não iriam tentar nos invadir, teriam que atravessar a América Central, a Amazônia, e depois podíamos contar com a ajuda soviética. Entendeu? — Falava como um professor, de modo muito semelhante às palestras dos milicos de Brasília e Realengo. — Tem que ter muita fé. Entre os americanos e os russos, talvez eu prefira os americanos. Se o nacional-desenvolvimentismo está dando certo, por que não continuamos com ele por mais um tempo? — Báh, tchê, deixa pra lá! Com o tempo vais compreender onde quero chegar. Afinal você não diz que tem um QI com 198 pontos?

Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

http://www.allabroad.org/ 21


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