Críticas

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“Desenvolver um pensamento crítico pode ser difícil, mas os resultados vão mudar sua maneira de ver o mundo.”


Felipe Cavatoni é médico especialista em clínica médica e em medicina intensiva. Preceptor do programa de residência médica em medicina intensiva da UNIFESP e Coordenador na Unidade de Terapia Intensiva da Disciplina de anestesiologia. Médico diarista e coordenador pelo grupo PacientegraveUTI.


LAVA

Em sua exposição “LAVA”, a artista plástica Vânia Barbosa reúne idéias sobre o significado e a interseção entre fogo e terra. O fogo que arde sobre a vela é a mistura da fé. Não apenas como crença religiosa, mas, no sentido amplo do acreditar. O crer no homem, no futuro, na sua capacidade, na esperança. Desse modo, assim como a lava, que resfria e forma o chão sobre o qual pisamos, a fé nos dá segurança. Em outras palavras, ela é o chão sob o qual alicerçamos nossa existência / angustia existencial / nossas questões existenciais. Em um sentido mais objetivo a artista ainda promove uma reflexão sobre a terra que exploramos, retiramos seu ferro e a queimamos. Enquanto homens, abatemos e subjugamos a terra. Nos esquecemos que constituímos uma relação de simbiose com ela e que somos frutos de nossos atos. Tal relação destrutiva pode ser interpretada como a descrença existencial do homem em relação a si mesmo. Por fim, a artista convida os espectadores a comungar com suas idéias, oferecendo uma hóstia vinda da terra maculada pelo fogo da fé e consagrada pelo fogo da descrença. Permitindo-o salvar-se de si mesmo, de seu contexto e, portanto, de sua existência.

Felipe Cavatoni - maio de 2015


Jorge Calfo é arquiteto, urbanista, artista plástico, comendador da Associação Fluminense de Belas Artes.


LAVA

Quero comungar da paz, quero retribuir a construção do barro de que fomos feitos, quero da terra me revolver em multi grãos de vida, quero ser vida no linho, que do algodão pode ser trançado, que da terra brotou fios de vida, vida tingida de vermelho barro, retorno às origens como um legado de beleza, vivenciados nas obras de Vânia Barbosa. Tudo que do chão brota, corre por entre as veias dessa terra, do grão de areia que se multiplica e que numa dança harmônica e bela nos brinda com a mais pura energia.

Jorge Calfo – 16/05/2015


Vera Casa Nova é poeta, ensaísta, professora da Faculdade de Letras da UFMG e pesquisadora em Poéticas Visuais do CNPq, Doutora em Semiologia pela UFRJ e pós-doutorado em Antropologia da Imagem com G. Didi-Huberman na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris.


TERRITÓRIOS E TRAMAS

“O artista é inventor de lugares. Ele dá carne a espaços improváveis e impossíveis ou impensáveis: aporias, fábulas tópicas” G. Didi Huberman

Retorno da reciclagem. Reversibilidade do objeto. Borracha - matéria bruta que mostra sua potência, e dos mundos imaginários devém carne para ser tocada. Borracha preta - capital de vida latente. Impressão de opacidade, espessura, peso. Fardo que se torna leve e frágil pelas mãos de Vânia Barbosa. Potência dos objetos: cheiro e densidade. Território de interseções: o preto se deixa atravessar pelo branco da parede. Os objetos mudam de dimensão e os sentidos se confundem. O lugar nos olha. Tranças, cordas, fios ou Bichos, Cogumelos, Ninhos que se transformam nas paredes ou no chão. Inquietante estranheza. Do mais pesado fardo sobre o chão a mais singela leveza nas paredes. Peso dos enigmas da vida e da morte. Viagem fantasmática das tramas. Enredando narrativas dos objetos. Palavras, vozes do mundo que a artista tenta ler no corte arqueológico que realiza. Representação denegada, restam fios, cordas, redes, nesse teatro do mundo. A borracha se presta como matéria à intuição das dobras da alma. A exterioridade infinita de uma matéria formada de dobras na trama labiríntica. Inflexão da borracha, inflexão do corpo da artista que trabalha a matéria bruta. A matéria sem máscaras. Seu trabalho é o de dobrar e desdobrar com suas mãos as possibilidades da matéria reciclada e dar formas inusitadas a ela, assim como as sombras criadas ao serem expostas. Espaços de sombras que o objeto criado pode, em seu efeito, ainda fazer acontecer. Como o efeito tátil - experimentar o toque na borracha, na obra criada. Dureza que devém maciez: Prière de toucher duchampiano.

Vera Casa Nova - 2009


AlĂŠcio Cunha foi jornalista, poeta, escritor


OS DIÁLOGOS DA BORRACHA

Era uma vez uma menina do interior de Minas. Adorava contemplar a natureza e extrair dos objetos todo o seu poder de sedução, incluindo aqueles rejeitados pelo homem, esquecidos em depósitos, jogados ao relento. Vem dessa época uma paixão absurdamente bela pela borracha, com o poder transformador desta matéria tão especial, capaz de absorver e neutralizar todos os cheiros a sua volta, tornando-se sempre o pólo central de atenção, uma espécie de ponto nevrálgico do mundo De repente, a borracha suga e expande as energias de seu derredor. Desse convívio simultaneamente matérico e espiritual, Vânia herda a alma da borracha, a capacidade de transparência, a elasticidade diante do todo, cosmos e caos. Desde os tempos de estudante na Escola Guignard, em Belo Horizonte, a artista sempre gostou de misturar as técnicas, apostando na comunhão de vários tipos de pigmento e papel, como em desenhos ela apostava em ranhuras e texturas, queimas e rasgos, frutos da fisicalidade do construir e destruir. Tais desenhos, independentemente do seu volume e altura, podiam ser vislumbrados como deliciosas esfinges pictóricas, causando nos espectadores o desejo supremo do toque, do tato, de reconhecer através das mãos o que as pálpebras e pupilas apenas sugeriam. Havia sempre aquela vontade de rastrear com a palma da mão a superfície da tela. Mesma sensação ocorre agora quando entra em cena a borracha, seja no estado bruto, deitada de bruços no chão do atelier com sua ébana viscosidade. Instigante é poder perceber como Vânia explora a natureza dialógica da borracha. Ao unir o material à palavra, cria pequenas instalações, cinematógrafo de letras, o poema do látex. Neste instante, surge a dúvida: quem se inscreve em quem? A borracha ou a letra? Na paixão do vice-versa, tanto faz. O que vale a pena é o encontro visceral entre um e outro, memória da matéria.

Alécio Cunha, 2007


Elisa Lucinda ĂŠ poetisa, jornalista, escritora, cantora e atriz


A COR DA PALAVRA DELICADEZA Vânia Barbosa chegou na minha gira através dos meus parceiros Sérgio Gonçalves e Edson Thebaldi. Era uma noite tumultuada, o teatro tinha estado lotado, eu tinha gravado o dia inteiro, estava exausta. Era mais que fadiga, eu era um ser-veículo cujo combustível estava no fim da reserva. Como anjos da guarda, Sérgio e Edson resolveram me trazer em casa. Eu vim no banco de trás com Vânia, a quem eu acabara de ser apresentada: “Essa é uma amiga nossa Elisa, uma grande artista plástica mineira e a gente queria que você autografasse esse livro seu, A Fúria da Beleza, para ela”. Quase psicografante escrevi: “Com as mãos vamos construindo nossos barros, nossos bairros, nossas vidas.” A próxima cena, numa sequencia imediata, era eu entregando o livro autografado para ela e pedindo, com a inocência de uma criança, uma coisa absurda para quem ainda não se conhecia: “Posso deitar a cabeça no seu colo?” E ela disse: “Claro! Para mim é uma honra.” Ali dormi como um anjo sem forças. Voltei a ver a Vânia dois meses depois. A essa altura ela já tinha desenvolvido a minha dedicatória sobre as mãos. Meu livro já era um intimo conhecido dela. Todo marcado, lido, usado, anotado, experienciado, vasculhado, vivido em sua alma e transformado em arte. Na arte dela, porque a arte da Vânia é arte só da Vânia. Não parece com a de ninguém. Pelo menos eu não conheço nada parecido. O que a gente vê na obra dessa mulher é um feminino flagrante que se comunica muito bem com todos os gêneros. O jeito como ela usa o termo poético na tela faz a gente estar diante de uma página-paisagem. A experiência de ver um quadro desses amplia o nosso entendimento e nos causa um espanto muito bom. Na textura que ela alcança com sua decidida mão, as palavras alcançam sua dimensão de nuvem, seu extrato etéreo e mágico. E com o auxilio plástico das cores e relevos “vanianos” a pintura atinge sua dimensão de fala, sua exatidão de palavra. O casamento é experimental e elegante ao mesmo tempo. Esse negócio de ficar impondo sentidos nas artes plásticas é muito chato e perigoso. É possível que vocês não concordem comigo e que essa minha visão seja só minha e não sirva para mais ninguém. Então, devo deixar bem claro que escrevo aqui o que a arte de Vânia me convoca escrever. É matéria de meu pensamento, fruto do impacto delicioso de sua obra diante do meu olhar. Quando vi o quadro “Ele”, por exemplo, cujo poema é de meu ventre, antes de saber o nome do quadro, antes de entender que palavras estavam escritas ali, eu vi o outono transcrito, pintado, engrandecido e traduzido na obra de Vânia Barbosa. Parecia que ela melhorava meu poema. O que eu acho que a Vânia faz é uma intervenção poética e delicada na natureza das tintas, das telas, da superfície, da borracha, e os transforma em outra natureza. É uma dinâmica entre naturezas. Por isso tudo combina tanto, por isso tudo é tão harmônico, por isso dá vontade de ter uma obra dela em casa. Na embocadura de sua pegada, encontramos um cheiro de barro, vemos o trabalho silencioso e eloquente daquelas mãos. Vânia Barbosa é uma artista moderna que dá um jeito de nos recontar a nossa história para nós, e de nos devolver a delicadeza do rústico. A mesma delicadeza primitiva, melódica e generosa com que me ofereceu o colo como amparo ao meu sono naquela noite primeira sem me conhecer. Elisa Lucinda | Primavera, 2006


Elvira Vigna foi escritora, ilustradora, tradutora e jornalista brasileira


Quando a superfície de uma pintura não é contínua, aí tem coisa. Em geral a fissura, incisão ou camada superposta é uma maneira de registrar o tempo – o tempo gasto na feitura da pintura e que pode ser entendido como o registro do tempo que passa, simplesmente. É um recurso para suprir uma falta, pois pinturas não são próprias para o registro do tempo, e sim do espaço. Literatura, sim, aponta o tempo – com seu conteúdo cheio de “antes” e “depois” e suas letrinhas, lidas uma depois da outra. Isso em geral, pois há literaturas mais espaciais do que temporais e pinturas com registros rítmicos e de tempo. Vânia Barbosa abre a exposição A Cor da palavra na Galeria Almacén, agora em novembro/2006. Ela usa literatura na sua pintura. E a primeira idéia é de que ela faz isso para dar tempo que falta a pintura. Outros já o fizeram. Não é o caso. Sua construção é bem original. Ela pega o parado na literatura e o temporal na pintura. Ela inverte. Ao fazer isso, brinca com a noção rígida de compartimentação artística. Seria o caso de doppelbegabung, a palavra alemã para obras feitas por autores que usam uma dupla linguagem. Mas a literatura é de Elisa Lucinda e não dela. Então, a duplicidade seria autoral, mas não é, porque a literatura tem aqui, justamente, um papel de reforço do visual ao vir do jeito que vem. Parada. Assim: A poesia é a menos atemporal das literaturas, pois aponta para sua própria estrutura – que é constante. Além disso, nesse caso de Vânia Barbosa, as frases poéticas surgem em graus variados de elevação/incisão na superfície das pinturas. Então, a temporalidade está na maneira como a literatura aparece nas pinturas e não no fato de ser literatura. Além disso, a superfície das pinturas tem rasgos, fendas, sobreposições. Ou seja, as pinturas têm, na sua feitura, o tempo. A literatura, não. O resultado, é a aceitação - bem atual – do indeterminável no lugar da busca redutora por algo fechado e acabado. E isso se dá tanto na obra quanto no posicionamento de autoria, ele também aberto. A autoria não é de Elisa Lucinda e Vânia Barbosa. É de Vânia Barbosa. Mas é uma autoria aberta, múltipla, complexa, com seus processos de interação à mostra, pois ela “diz” o seu processo de criação, onde entrou o impacto dos versos da amiga – uma poeta que escreve cenas, momentos, como quem pinta.

Elvira Vigna, Rio de Janeiro, novembro de 2006


AlĂŠcio Cunha foi jornalista, poeta, escritor


A ALMA DA BORRACHA NO CASULO DO SONHO

Um lugar que aguça os sentidos, agrupando formas, gestos e, sobretudo, cheiros. Uma inebriante e acolhedora atmosfera, onde reina a borracha, nas paredes, no chão, engrandecendo, tomando conta do ambiente. São muitas as portas de entrada ao atelier da artista plástica mineira Vânia Barbosa. A primeira entrada é literal, ao chegar ao portão principal, adentrar ao recinto, ser recebida pela absoluta multiplicidade sígnica que envolve as inúmeras faces de sua obra, pensada, articulada, coesa, nunca apenas fruto do acaso, mas regida pela agilidade técnica de Vânia, postura sempre sensível, articulando o acaso em minudências plásticas, pensando o futuro ao moldar o presente. Sem pressa, no ritmo zen, absolutamente necessário à reflexão sobre os dias e as coisas e, é claro, o humano a habitar esta dualidade. Viver, experimentar, fazer são verbos conjugados com precisão no vocabulário da artista. E o atelier, nas entranhas do Jardim Canadá, o cheiro de montanhas circundantes, o silêncio ordeiro e lacunar, exigindo a atenção, a presteza e as garras de Vânia Barbosa, domando o acirrado exercício de criar. Regido pela alma da borracha naquele casulo de sonho, colmeia e centelha.

Alécio Cunha – setembro 2005


Walter SebastiĂŁo ĂŠ jornalista


Matéria, o questionamento da forma, os limites entre ordenação e desordenação, objetos únicos e outros, que são conjuntos de peças. Borracha industrial, atuação nos campos bi e tridimensional, a hipótese de uma geometria orgânica (ou de um trabalho que, sendo construtivo, não é geométrico), a constatação da permanência dos ícones, mas também de sua fratura (até a pulverização). Eis o que faz a contemporaneidade dos trabalhos de Vânia Barbosa. Estamos sob o primado da experiência visual e de sua singularidade, mas, mais do que nunca, num campo onde o olho é obrigado a trocar do simplesmente ver e pôr-se em situação em situação de investigação. Experiência lúdica, certamente, mas também enfrentamento do desafio de articular opacidades, diferenças, pulsões, dramas, brancos, etc. À primeira vista, é a matéria, e, no caso, a borracha quem se impõe afirmativa no trabalho de Vânia Barbosa. Mas a observação mais vagarosa do conjunto de objetos, esculturas e instalações que ela desenvolve há mais de uma década, aponta para outra direção: o da investigação das formas. Como se colocasse uma pergunta: o que é ou pode ser a forma? A resposta, a partir do muito já realizado, é: uma tensão no espaço cuja origem remete alguma coisa do desenho (talvez a linha) carrega algo de pintura (pode ser simplesmente a cor, mas também a fatura), com poder de fundar, mas também de questionar relações com o mundo.

Walter Sebastião, julho de 2003


Cristiane Motta ĂŠ mĂŠdica, acumputurista


RESPIRAÇÃO, VIVA DO FUNDO DE SEU PAPEL E DA AUSÊNCIA ENTREMEADA SE ENTRELAÇA SEM LAÇOS UMA ALTERNÂNCIA DE BRAÇOS NUM ACONCHEGO DE EIXOS SUSTENTANDO SEU NADA NAVEGAÇÃO DE BARCOS NAS ONDAS DE SÍ MESMO CURVANDO-SE COM A PROFUNDIDADE DO BRILHO – UM FILHO? COMO SE EXPANDISSE O PRÓPRIO VOLUME, VIBRANDO E QUASE SE TOCA O BORBULHAR DO ABDOME NOS ALTOS E BAIXOS, PERSEVERA. REPRODUZ-SE COM ARDÊNCIA DE ESPERA LONGA... E FIRME PULSA NA ABERTURA E FECHAMENTO ...ESCUSA O INSTANTE PRESENTE CRU DESNUDO NO ESTADO DE VENTO.

Cristiane Motta | Belo Horizonte, 11 de setembro de 2001


Walter SebastiĂŁo ĂŠ jornalista


A LAICA CIÊNCIA DA ARTE

O primeiro aspecto que chama a atenção nos trabalhos de Vânia Barbosa é o modo afirmativo como eles se colocam no espaço. A forma é nítida, as cores rebaixadas para não prejudicar a legibilidade estrutural da obra. A matéria/textura cria e enriquece a dimensão de projeto. Pode-se ver nas suas obras uma identificação entre os temas da plasticidade (o moldar ou o arrancar de uma matéria, a sua dimensão de forma) e da expressividade (a impregnação de um objeto pela subjetividade e, mesmo, por uma autoria). O ponto de partida são unidades serializadas, utilizadas para compor imagens que se dão como ritmos que, obsessivamente, retomam sempre um mesmo motivo: uma certa “melodia”, que surge de procedimentos que estão nos limites de um método, jogando com o que é igual e o que é diferente em cada unidade. Um segundo aspecto digno de nota é o modo como estas obras acordam a noção de forma, no sentido literal deste termo, isto é, volume perfeitamente delimitado e construído. Assim, vale registrar, que o movimento de observação das obras, solicita não um adentramento em nós mesmos. Pelo contrário, cobra uma extroversão em direção ao objeto apresentado. Há um “silêncio”, espesso, material, concreto, que tem uma gravidade, que é preciso respeitar. São peças que mobilizam uma atenção interessada mais pelo fato delas existirem como tais, do que elas “representam”. E, importante, não deixa de ser surpreendente como a autora registra o embate com a materialidade sem que isso signifique reduzir as coisas e as coisas da arte a uma existência unidimensional. Uma terceira surpresa vem, exatamente, desta situação meio desconcertante que o embate direto com as peças cria. De um lado existe a sedução pela melodia, algo difuso que elas criam na nossa memória, convite mesmo a fruição de sua existência. Acrescente-se o andamento fluente, o dado sensual das matérias, as formas mínimas, que chamam irresistivelmente ao tato. Por outro lado, existe os silêncios deste corpo estranho, ensimesmados, decididos a obstruir com sua opacidade o nosso desejo de transparência que, tantas vezes, povoamos ou procuramos na laica ciência da arte. Aqui, a aparente unidade dissolve-se, os cortes bruscos interrompem a leitura, a irregularidade e as arestas irrompem trazendo consigo o caos não pressentido. E – apavorante esfinge – cá estamos nós diante do enigma que somos, de pé ou deitados. Penso, às vezes, que o motor das obras de Vânia está na sua capacidade de se constituir como alguma coisa que sendo tensão é também incitamento ao diálogo. Se cumpre aquela de restituir uma dimensão de forma (que seja criação ou mesmo conceito), este deve nutrir-se de uma ambição de poesia que toque fisicamente no espírito humano. Há na obra ora apresentada outros temas em jogo; a relação humano/natureza/tecnologia; a dramaticidade da história e seus ritos; este corpo pensante, a sonhadora matéria, entrevista pelo poeta Francis Ponge, que relutamos tanto aceitar. Um aspecto, entretanto, se sobrepõe (e induz, mesmo, o caminho meditativo que a obra de Vânia Barbosa propõe: um estar aqui no mundo, exposto ao tempo, ao espaço, as coisas. Walter Sebastião | Belo Horizonte, julho de 1997


Malluh Praxedes ĂŠ escritora, poetisa, jornalista


O algodão vira cordão nasce tapete ganha nós que amarrado solta e salta leve, flutua.

A borracha escorre em fios negros. Endurece. Com mãos ardidas protegidas com talco esfria e solidária se enrola e adormece.

O algodão e a borracha matérias vivas viva a matéria! Pelas mãos de Vânia compreendem sua com- posição e deitados esparramados esperam a sobre- posição que emerge ressurge. E como criaturas agradecidas flutuam.

Malluh Praxedes - junho de 1995


Fernando Flávio Rodriguez é artista plástico


Caso a escolha do teu olho recaia sobre uma das pinturas de Vânia, prepare-se. Daí por diante serás exigido como parte da aventura, e quiçá, por ventura, um de seus participantes. Nenhum acaso fez com que teu olho parasse na superfície de um deles e procurasse vazar frestas deixadas como pistas ou trama: o caminho seduz. De tão familiar, é bom que se atente ou não se chega onde fica a luz. Como seguir pela floresta sem guias? Eu me sinto estimulado, pensante, vivo, pulsante, numa ida sem retorno. Minhas considerações, portanto, são mais sensações que outra coisa qualquer, não pertinentes de forças, pesos, tantos e tantas mensurações de que se alimenta a sobrevivência intelectual do 2 mais 2. Da obra fl(u)oresce a obsessão e vice-versa. Dentro e fora os passos são medidos, parcimoniosos como prescinde a revelação, o toque. E não interessa a inteligência que explica ou tenta orientar confissões íntimas: a mão quase violenta, antes (re)talha o empecilho cotidiano, (re)arranja numa outra purificação. Num outro sentido de tato. O negro vibra. O negro barra a translúcida luminosidade, o claro enigma da experiência de tocar com o olho. O negro mostra a roupagem. Quem se permite o encantado jogo das (trans)aparências, reconhece nestas pinturas uma ardente comunicação com sua natureza como se intuísse uma outra pele. A necessidade de ver emerge com faróis acessos. A bruma contém segredos de todos os tipos. A bruma contém seus jeitos e sua mística.

Fernando Flávio Rodriguez - janeiro de 1992


Alberto Beuttnmüller é crítico de arte


SENSAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DA MEMÓRIA

Vânia Barbosa experimenta o material de forma diversa, usando pigmento, cera e colagem sobre papel, mas ordenando o espaço de forma mais construtiva. Em certos casos pode-se dizer: tais construções são até simétricas e ortogonais, criando uma ordem matemática mondrianesca, apesar do uso parcimonioso da cor. Há uma preocupação cromática nessa fase, inexistente na anterior, quando só havia intenções de claro-escuro. Percebe-se que Vânia Barbosa tornou-se mais cromática em seus últimos trabalhos, fazendo contraponto entre a cor e a ordem em seus espaços horizontais, tênues e leves, harmoniosos e rigorosos. Sua arqueologia é mais urbana, não emerge de cavernas, mas sim de urbes perdidas nos desvãos da memória. Além do papel, Vânia vem pesquisando outros materiais, no intuito de ampliar seu campo de ação, seu espaço de consciência.

Alberto Beuttnmüller, São Paulo, 23 de janeiro de 1992


Marco Túlio Resende é artista visual, professor na graduação e pós-graduação da Escola Guignard (UEMG) desde 1979. Mestrado pela School of the Art Institute of Chicago como bolsista da Fulbright Comission


Grande parcela da produção de arte neste final de século e milênio nos conduz a um ponto zero, ao momento silencioso e despojado em que o artista, negando velhas fórmulas, se confronta com a inocência perdida com o primeiro contato com o mundo, com o nascimento espontâneo de formas, signos, símbolos. Exaurido o modelo de civilização herdado, resta-nos, como opção, o retorno à simplicidade e à autenticidade, numa busca cega dos valores perdidos ao longo da existência. É neste momento, nesta “síndrome” de fim de era que se enquadra o trabalho de Vânia Barbosa. Sua obra se constrói como uma dança, um fogo: rito onde nada é excluído ou mesmo retocado. Os acertos, assim como os erros, somam-se sobre a superfície, como rastros e vestígios, criando a força e o vigor da expressão. A artista participa, com intensidade, como criadora e espectadora do próprio fazer, na medida em que se surpreende com o despertar das formas não intencionais, com os possíveis acidentes que conduzem o trabalho. Estar diante destes desenhos é antes de mais nada confrontar-se com a idéia da transitoriedade e da efêmera passagem do homem sobre o planeta. Mais do que uma afirmação seus desenhos nos propõem a dúvida: Mais do que um resultado eles nos revelam uma postura, um retorno ao ponto-zero da criação.

Marco Túlio Rezende, abril de 1989



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