Pesquisa em Ação

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Pesquisa em ação Programa de Apoio à Pesquisa e Extensão—PROAPE Shirley de Souza Gomes Carreira Marcelo Mariano Mazzi (Organizadores)

PROAPE-Pesquisa Volume 2 ISBN 978- 85-98716-08-4


Pesquisa em ação PROAPE-Pesquisa Volume 2


Shirley de Souza Gomes Carreira Marcelo Mariano Mazzi (Organizadores)

Pesquisa em ação PROAPE-Pesquisa Volume 2

1ª. edição Belford Roxo

2014


Copyright © 2014 Shirley de Souza Gomes Carreira, Marcelo Mariano Mazzi (Organizadores). Editor: UNIABEU- Centro Universitário Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Shirley de Souza Gomes Carreira Revisor: Célio dos Santos Saraiva

FICHA CATALOGRÁFICA C314p

C Carreira, Shirley de S. Gomes, Mazzi, Marcelo Mariano Belford Roxo: UNIABEU, 2014. Pesquisa em ação [livro eletrônico]: PROAPE-Pesquisa/ Shirley de Souza Gomes Carreira, Marcelo Mariano Mazzi (Org.) - 1ª. ed. – Belford Roxo : UNIABEU, 2014. v. 2 ISBN: 978- 85-98716-08-4

Está disponível online: www.uniabeu.edu.br 1. Educação superior 2. Projetos de pesquisa 3. Extensão universitária 4. UNIABEU I. CARREIRA, Shirley de S. Gomes, MAZZI, Marcelo Mariano II. Título


Sumário

Apresentação

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Estatuto histórico do texto literário: considerações transdisciplinares

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Anderson Figuerêdo Brandão Gazeta Nacional: os escravos, os abolicionistas a princesa. Rio de Janeiro, 1887- 1888

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Andréa Santos da Silva Pessanha A Engenharia da Liberdade: os africanos livres e as obras públicas no Rio de Janeiro Imperial

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Carlos Eduardo M. de Araújo História e historiografia no caso das pensões vitalícias dos exvoluntários da pátria na Guerra da Tríplice Aliança (19071912)

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Fernando da Silva Rodrigues Escravos em família: Angra dos Reis, 1822

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Márcia Cristina Roma de Vasconcellos Literatura e memória cultural: representação de imigrantes libaneses na literatura brasileira Shirley de Souza Gomes Carreira

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Apresentação

Pesquisa em ação é a segunda publicação derivada de projetos de pesquisa e de extensão vinculados ao Programa de Apoio à Pesquisa e à Extensão (PROAPE) do UNIABEU – Centro Universitário. A obra visa a divulgar os resultados dos projetos desenvolvidos no biênio 2010-2012. Os seis capítulos deste volume abordam temas da área de Ciências Humanas e Letras. O estudo de Anderson Figuerêdo Brandão discorre sobre o estatuto histórico do texto literário. Ele busca analisar o seu objeto em uma perspectiva histórica e sociológica. Na sequência, Andréa Santos Pessanha aborda o periódico Gazeta Nacional como objeto e fonte de estudo. Em “A Engenharia da Liberdade: os africanos livres e as obras públicas no Rio de Janeiro Imperial”, Carlos Eduardo de Araújo analisa a exploração dos escravos “livres” no período do império até 1860, quando enfim tiveram a sua liberdade reconhecida pelo Estado. Em seguida, Fernando da Silva Rodrigues analisa a História e historiografia no caso das pensões vitalícias dos ex-voluntários da pátria na Guerra da Tríplice Aliança. Márcia Cristina Roma aborda o papel do escravo na família na cidade de Angra dos Reis em 1822. Por fim, Shirley de Souza Gomes Carreira reflete sobre a representação do imigrante libanês na literatura brasileira, estabelecendo relações entre a literatura e a memória étnica. Esta publicação cumpre, assim, o seu papel, ao ofertar ao público o resultado das pesquisas realizadas no UNIABEU- Centro Universitário. Boa leitura!

Marcelo Mariano Mazzi Gerente de Pós-graduação, Pesquisa, Extensão e Responsabilidade Social


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Estatuto histórico do texto literário: considerações transdisciplinares Anderson F. Brandão * INTRODUÇÃO Entre os meses de novembro de 2010 e novembro de 2012, realizamos um projeto de pesquisa intitulado “O Estatuto Histórico do Texto Literário: considerações transdisciplinares”, que foi financiado pelo Uniabeu (sob o PROAPE, Programa de Apoio à Pesquisa) após seleção pela Funadesp (Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular). Durante os meses que realizamos nosso trabalho, orientamos as pesquisadoras Marineide Marins do Nascimento, aluna do Curso de Letras do Uniabeu. No segundo semestre de 2011, realizamos a seleção de Fabiana Arrúda Corrêa, também aluna do curso de Letras do Uniabeu, bem como Samanta Samira Nogueira Jurkiewicz, que esteve conosco como voluntária. Nosso objetivo caracterizou-se pela realização de uma pesquisa voltada para a produção de subsídios (algumas considerações teóricas) que pudessem auxiliar os futuros pesquisadores do Uniabeu provenientes das áreas de Estudos Literários com ênfase na análise sociológica e/ou histórica da literatura (Letras). Nosso trabalho esteve fundamentado em três instâncias de fontes teóricas. Foram elas: 1 – As construções sobre a verdade e sobre a criação de sentidos de verdade através da teoria arqueológica de Foucault – redimensão das propostas filosóficas de Nietzsche. 2 – O estudo que comporta de que forma essas mesmas verdades, esses construtos, são oriundos de fontes ideológicas nas quais os atores sociais, no âmbito da elaboração da obra estética, são eminentemente entidades formadas pelo discursos (personagens) e produtoras de narrativas mais ou menos conflitantes com as ideias, usos e costumes da época de formação do texto literário. 3 – A permanência ou a transformação dos conteúdos dos discursos através do tempo, seja por força dos padrões tradicionais de cerceamento e formação, ou mesmo pela sobrevivência estratégica de ideias, usos ou costumes que foram alvo do silenciamento agenciado pelas ideologias dominantes. *

Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ.


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Em relação aos textos literários, buscamos analisar aqueles que estariam mais próximos de uma representação ou da vontade de representar de forma mais precisa as realidades sociais. Por isso, escolhemos autores cujas obras aproximam-se à concepção realista da Literatura. Observamos também um escopo que julgamos ser representativo de momentos importantes da formação de nossa cultura e que foram identificados pelos escritores que listamos a seguir: 1)Final do Período Monárquico e início da República, representados em textos escolhidos da obra de Aluísio Azevedo (O cortiço). 2)A Primeira República, representados na obra de Lima Barreto (Triste fim de Policarpo Quaresma). 3) Modernidade e tradição na Segunda República dos anos 50 em Nelson Rodrigues –tradição em conflito na família carioca (Os sete gatinhos). Os subsídios para uma leitura interpretativa dos textos literários propostos cooptou, portanto, as possíveis relações de continuidade – espelhamento coincidente entre o universo do texto literário e o contexto histórico e social escolhido –, e de descontinuidade – espelhamento não coincidente entre o universo do texto literário e o contexto histórico escolhido. Com esse duplo processo, foi possível criar considerações sobre elementos que compuseram uma metodologia desenvolvida na Uniabeu que possa auxiliar os pesquisadores oriundos da área de Estudos Literários (Letras) com ênfase na análise sociológica e/ou histórica da literatura e de História (História Cultural; História da Vida Privada; História das Mentalidades) no estudo de aspectos dos encontros e dos desencontros entre textos artísticos e o contexto histórico e social de sua gênese. Os principais subsídios teórico-metodológicos que desenvolvemos em nossa pesquisa foram: 1 – A crítica ao método de leitura histórica e sociológica do texto literário não consciente da natureza da linguagem como elemento de construção da realidade. 2 - Subsídios metodológicos para o estudo de textos literários sob a ótica de estudos sociológicos e históricos.

1. A crítica ao método de leitura histórica e sociológica do texto literário não consciente da natureza da linguagem como elemento de construção da realidade A teoria crítica que procura uma aproximação com texto literário a fim de traçar considerações a partir de uma relação de espelhamento na qual fica estabelecido que o


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real é transposto na obra de forma mais ou menos reelaborada e estruturada como uma representação em primeira instância está submersa num emaranhado de discursos bem mais complexos do que o existente na dialética simples entre o real e o que é representado na obra literária. Partindo do pressuposto que nos levaria a pensar não serem ingênuas as considerações formais a respeito dessa ação, argumentamos que o encobrimento da relação entre duas instâncias discursivas estariam, dessa forma, buscando a legitimação de construtos ideológicos como verdades naturalizadas em seus pressupostos mais básicos. O objetivo seria convencer o leitor de que a lógica imanente a esse tipo de consideração não seria a retirada de um confronto entre textos, discursos ou instâncias ideológicas, mas a de uma representação proveniente do âmbito da própria realidade. Teorias críticas que não problematizam a apreensão da realidade como uma linguagem têm, por fundamento ideológico básico, a construção de um engenho que se nos aparece sob a forma do real e, por esse motivo, o verdadeiro. Avesso ao determinismo das teorias sociológicas do século XIX, Antônio Candido procurou em Literatura e sociedade (CANDIDO, 2008) uma forma de tornar palatável o fluxo de suas considerações embasadas na relação entre a sociedade e a literatura. Seu texto é uma contribuição importantíssima na esteira de obras de teoria sociológica aplicada à Literatura Brasileira, a buscar o entendimento através de cruzamentos com estudos sociológicos, históricos e até mesmo antropológicos, procurando levar um teor de “justa medida” às suas considerações. No entanto, a partir de uma observação mais atenta ao seu livro, poderemos chegar à percepção de quão hábil é o autor que não desvela uma de suas premissas e deixa-nos ao sabor do fato de que estamos, durante considerável parte da obra, a nos deixar levar pela “miragem construída pela suposta observação do real”, pois o que Candido entende como sociedade só pode ser um conjunto de textos que ele agrupa sob o nome de “sociedade”. O conjunto de discursos que aparecem sob o nome “sociedade” não são um recorte de fatos simplesmente observados na própria realidade e transferidos para o papel, mas um grupo ordenado de discursos mais ou menos conflitantes e que foram reagrupados para dar uma ideia harmônica a fim de serem usados como um parâmetro na comparação ou na fundamentação teórica que serviu de subsídio para a análise dos textos literários. Em última análise, o que serve de paradigma para as comparações e inferências não é a sociedade em si mesma, mas sim textos sobre a sociedade.


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Ora, se os textos históricos e sociológicos são abertos, ou seja, se eles respondem às perspectivas teóricas mais ou menos condizentes com o seu tempo, se eles podem ser atualizados pelas pesquisas posteriores, as análises histórico-sociológicas devem ser encaradas também como contingentes e não definitivas. Se uma leitura é realizada em uma determinada época e a partir de um determinado cabedal histórico e sociológico, a mudança de perspectiva histórica e social também acarretará em novas análises do texto literário, agora sob os aspectos mais atualizados. Essa é a primeira diretiva que percebemos quando problematizamos a análise histórico-sociológica da literatura sob o prisma de que a apreensão do real – sobretudo na análise de textos antigos – é, na verdade, a leitura de textos sobre o real daquela época. Deve-se, com isso, levar em conta que os próprios textos históricos e sociológicos possuem um encaminhamento ideológico que lhes é peculiar. A escolha de determinada “leitura” sobre os acontecimentos ou sobre determinados usos e costumes urbanos influenciará a análise final da obra literária. Portanto, se a ideologia imanente aos textos históricos e sociológicos é inevitável, recomenda-se ao pesquisador a leitura de obras que sejam condizentes com a sua proposta teórico-metodológica. Por outro lado, uma leitura crítica de outros textos históricos e sociológicos (principalmente os escritos na época de primeira edição dos textos literários) servirá para que o pesquisador possa realizar a desnaturalização de construtos ideológicos conflitantes entre a imagem feita na época e aquela que é realizada na atualidade. Em ambos os casos, a escolha dos textos que servirão como “espelho” da sociedade a ser estudada deve ser feita de forma consciente. Nietzsche (2008) habilmente construiu sua crítica da cultura a partir da problematização da relação supostamente simples entre o real e a linguagem. Segundo o filósofo, acreditamos saber algo acerca das próprias coisas, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas, com isso, nada possuímos senão metáforas das coisas, que não correspondem, em absoluto, às essencialidades originais (NIETZCHE, 2008, p.34). É preciso, por esse motivo, que sejam retirados os véus que escondem as metáforas entre as palavras e as coisas, a fim de que seja possível compreender os textos históricos e sociológicos partindo de observações imanentemente ideológicas em suas tendências a serem construtos elaborados sob a forma científica, já que essa formatação pressupõe-lhes um conteúdo de verdade. As observações científicas não estão destituídas da inserção de subjetividade, como também aponta Nietzsche(2008). A objetividade que procura esvaziar o sujeito de


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sua dimensão ideológica nada mais é do que uma norma linguística usada na construção do discurso científico, um pressuposto metodológico-discursivo, malgrado as teorias que teimam em denunciar a sua dimensão artificial. Haveria, portanto, um consciente encobrimento das particularidades menos interessantes do método, a passar a ilusão de que as construções textuais que estão à frente do leitor são oriundas mesmo da apreensão da essência das coisas e que contêm a coisa em si e não um discurso fundamentalmente metafórico sobre a própria realidade. O tipo de construto que embasa esse engendramento promete que o leitor encontrará um conteúdo de verdade, ou melhor, que se deseja propor como verdade (que é, no fim das contas, o construto ideológico que serve de instrumento ao convencimento do leitor sobre os conteúdos que estão no texto e que possuem a aparência de realidade) a partir de considerações feitas com base em uma relação empírica com o real. Encobrir as relações ideológicas que circulam livremente na confrontação entre textos mais ou menos conscientes de que a sua realização sempre será da ordem da própria linguagem e nunca da ordem das coisas é fechar os olhos para o fato de que o sistema da linguagem não é comum à própria existência e, com isso, ao mundo das coisas. Como diz Foucault: “Não há sistema comum à existência e à linguagem; pela simples razão de que é a linguagem, e apenas ela, que forma o sistema da existência”. (FOUCAULT apud MACHADO, 2005, p.79) Como seria então possível observar um elemento externo pertencente ao século XIX, já perdido há muito no tempo? É nesse ponto que a verdadeira questão se coloca. A própria construção do passado só é possível através de um discurso não isento de teor ideológico. Os próprios textos históricos e sociológicos estão eivados de construções que estão conscientemente pautadas em posicionamentos ou leituras voltadas para determinados aspectos considerados importantes, em detrimento de outros. Portanto, esse elemento não vem simplesmente puro da realidade. O que há são discursos sobre apreensões linguísticas que têm como base sistemas do passado. É por esse motivo que a reconstrução do passado através de textos históricos ou sociológicos é vazia e contínua, pois é sempre feita a partir de uma linguagem que se repete e não de uma realidade que é retratada. Se houvesse algo de sólido nas reconstruções históricas ou sociais, essa permaneceria inalterada. A própria repetição contínua que se faz através de reconstruções linguísticas aponta para o vazio, para a ausência de uma essência imanente a esse tipo de discurso.


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A própria noção de regularidade das ciências embasadas nos construtos racionais aponta para certa permanência de conceitos que dão conta dos próprios resultados a serem escolhidos pacientemente dentre as várias possibilidades de reconstrução linguística do real. Toda a regularidade que tanto nos impressiona na trajetória dos personagens e nos processos existentes nas tramas coincide, no fundo, com aquelas propriedades que nós mesmos introduzimos em nossas inferências sobre as coisas, de sorte que, com isso, impressionamos a nós mesmos com as ilusões que engendramos. Disso se segue, por certo, que aquela formação artística de metáforas, que, em nós, dá início a toda sensação, já pressupõe tais formas e, portanto, realiza-se nelas; somente a partir da firme persistência dessas formas primordiais torna-se possível esclarecer como pôde, assim como outrora, ser novamente erigido um edifício de conceitos feito com as próprias metáforas (NIETZSCHE, 2008, p.45). Estamos, na verdade, diante de um olhar disciplinador, ou reorganizador como maneira de ver ou disciplinar o texto literário, no sentido que um fenômeno teria uma maior ou menor possibilidade de se enquadrar ou ser encaixado em um discurso exógeno que o (re)moldaria a fim de que o produto final sirva de elemento legitimador da própria teoria. Ou seja, desde que se cria o próprio esquema teórico há uma procura inclemente por fundamentar esse sistema de narrativas em discursos mais ou menos relacionados à realidade doadora de legitimação do discurso científico, como se houvesse necessidade de, a todo tempo, revalidar a pertinência de determinados saberes ordenadores do mundo. Atualmente a crítica visa a estabelecer, em relação à literatura, à linguagem primeira, uma espécie de rede objetiva, discursiva, demonstrável, justificável em cada um de seus pontos; uma relação onde o que é primeiro, constitutivo, não é o gosto do crítico, um gosto mais ou menos manifesto, mas um método de análise. A crítica, portanto, está formulando o problema de seu fundamento na ordem da positividade da ciência (MACHADO, 2008, p.156). Essa forma de operar faz parecer que a obra “quis apresentar alguma coisa” – mas esse “quis apresentar alguma coisa” não é nada mais ou menos do que uma “leitura” do próprio texto literário e não um fator que lhe seja naturalmente constitutivo. O que se questiona aqui não é a semelhança, nem mesmo a capacidade de o crítico criar leituras coincidentes com o texto literário, mas a eternização de sua postura, que aparece como natural, quando, na verdade, sabemos que é construída, ideológica, artificial porque urdida para parecer natural, pois os próprios elementos do texto passam a


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ter um sentido sociológico ou histórico somente a partir de uma leitura sociológica ou mesmo histórica. Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, histórica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente. Na verdade, o que parece que o autor entende por uma interpretação coerente seria a construção de um texto crítico que não se impusesse e forçasse a ruptura da literatura e se autodenunciasse como uma construção sobre outra construção, mas que reorganizasse os elementos do texto literário de tal forma que o construto final fosse verossímil ou de alguma forma semelhante à obra que se deseja estudar. 2. Subsídios metodológicos para o estudo de textos literários sob a ótica de estudos sociológicos e históricos A nossa metodologia foi realizada através do estudo bibliográfico das fontes literárias e teóricas expostas em nosso relatório. Cada uma delas nos forneceu subsídios que nos ajudaram a compor os primeiros passos de nosso arcabouço fundamentado nas relações de continuidade e de descontinuidade entre os conteúdos presentes nos textos literários e as nossas obras históricas e/ou sociológicas. Percebemos que cada época dá um determinado significado para os conceitos e que não há imutabilidade no desenvolvimento de determinadas ideias se nos ativermos à postura comparatista. Essa última nos colocou diante de questões muito bem aproveitadas pelos nossos pesquisadores. Eles puderam confrontar o desenvolvimento de determinados conceitos tidos como “verdadeiros” em determinada época e que, posteriormente, não se mantiveram no mesmo patamar significativo. A chave para o esclarecimento desse fenômeno foi a obra de Friedrich Nietzsche, que nos ajudou a desconstruir as ideias de que determinadas verdades permanecem inalteradas no tempo, posto que autor desvendou a relação cristalizada entre o significante e o significado do signo linguístico para que esse pudesse ser (re)historicizado. Essa ação realizou-se através de uma mobilidade interessante, que apontou para as diversas possibilidades de recepção dos significados estratégicos presentes em determinada época.


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O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropoformismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas se sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas. (NIETZSCHE, 2008, p.37)

Além disso, as considerações sobre as relações de poder que agenciaram e cooptaram essas verdades não puderam ser perdidas de vista por nossa pesquisa. Por esse motivo, nosso objetivo foi buscar uma associação entre as considerações formuladas pela escola Nietscheana e a linha teórica que encontramos e realizamos em torno do marxismo, principalmente no que diz respeito às questões que foram pertinentes à ideologia. Tentamos seguir por esse caminho porque entendemos que essas duas linhas teóricas não são antagônicas, mas podem ser entendidas como complementares em análises que se proponham a estudar os sentidos de verdade e de imposição dessas mesmas verdades, que entendemos como “ideologia”. Em nossa concepção, os poderes de silenciamento ou de agenciamento e conformação de discursos não podem prescindir de uma análise ideológica pautada na imposição de interesses entre determinadas classes sociais. Além disso, a força da naturalização de construtos ideológicos foi um elemento considerado em nossa pesquisa, visto que serviu de pavimentação os nossos estudos sobre a continuidade e as descontinuidades no interior dos textos literários e que puderam ser revelados quando realizamos as nossas comparações entre discursos oriundos de diferentes origens, como os sociológicos, os históricos etc. Finalmente, os métodos de análise estruturalistas nos emprestaram conceitos fundamentais, como o de “longa duração” e das “mentalidades”. No entanto, a contribuição mais importante que eles tiveram em nossa pesquisa girou em torno da leitura de estudos que apresentavam usos, ideias e costumes históricos que comparávamos com o que encontrávamos na leitura de nossas obras literárias. É nesse ponto que a análise das continuidades e das descontinuidades entre os discursos nos apontaram para caminhos que nos ofereceram algumas fontes importantes de discussão sobre as regras e as estratégias de construção de ideários, de verdades, de construtos ideológicos naturalizados pelos agenciadores do poder e os conflitos propostos pelos textos literários, nem sempre coadunados ideologicamente com as temáticas dominantes.


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Os conflitos ideológicos, responsáveis pela energia potencial das forças que movimentam as tramas, são encontrados na estrutura profunda dos textos literários e são revelados pelas descontinuidades, importantes caminhos através dos quais o estudioso pode traçar um perfil das tensões de poderio da época na qual a obra foi urdida. Sob as contínuas tensões os personagens muitas vezes representam a pantomima de situações que não aparecem explicitamente nas relações sociais, mas que o estudo comparativo pode revelar. Ou seja, os conteúdos que a vida quotidiana procura encobrir constantemente através de discursos homogeneizantes podem ser retomados através da análise comparativa entre textos literários e aqueles oriundos das áreas de estudos históricos e sociológicos. Isso é possível desde que tenhamos em mente que a heterogeneidade entre as instâncias discursivas é capaz de apresentar um caminho seguro através do qual podemos entender as diversas fraturas e posicionamentos ideológicos conflitantes e presentes em determinada época e cristalizada no texto literário. As forças representadas nos discursos, malgrado suas intenções de completude e coerência, apresentam falhas, frestas através das quais o estudioso traça linhas, genealogias. Essas últimas são estruturas que se movimentam através do tempo, criando relações díspares entre significados. Tal fato ocorre porque cada época tem uma forma de construir as diversas relações entre os vocábulos e essas formas costumam espelhar as relações de poder e de pertencimento a determinadas classes conforme as relações de força presentes naquele momento histórico. Por esse motivo, é possível entender que construtos ideológicos naturalizados como verdades são oriundos de construções histórico-ideológicas e fazem parte das relações sociais estudadas tanto nos textos sociológicos quanto nos históricos e estão presentes nos textos literários. Se tais falhas são subliminares em textos não literários, quase filigranas a serem vistas com uma poderosa lupa, alguns exemplos artísticos, como nos casos apresentados neste projeto, revelam importantes documentos para o estudo do perfil da sociedade que lhes serviu como fonte para formação. Essa série de crises pode ser encontrada quando comparamos textos que são oriundos de diferentes áreas, como os literários e os históricos. No entanto, não podemos deixar de notar que a própria natureza do texto literário já nos apresenta uma série de descontinuidades que são inerentes à sua especificidade. Em alguns autores, essas rupturas são mais transparentes: a crise se revela através da ironia resultante do convívio, em uma mesma frase, de elementos díspares.


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Dessa forma, entendemos que o deslocamento contínuo das significações pertinentes ao signo literário é um excelente material para trabalharmos relações de poder que normalmente ficam encobertas nos discursos. Através dos momentos de ruptura, comuns ao texto literário, é possível estudar hábitos, crenças e costumes impostos por segmentos possuidores de algum poder físico ou intelectual. Instâncias de poder, responsáveis pela energia potencial dos conflitos que movimentam as tramas, são encontradas na estrutura profunda dos textos literários e são reveladas pelas descontinuidades, importantes caminhos através dos quais o estudioso pode traçar um perfil das tensões de poderio da época na qual a obra foi urdida. Sob as contínuas tensões os personagens muitas vezes representam a pantomima de situações que não aparecem explicitamente nas relações sociais, mas que o estudo comparativo entre textos provenientes da Literatura, da História e da Sociologia pode revelar. As instâncias de poder imanentes nos discursos, malgrado suas intenções de completude e coerência, apresentam falhas, frestas através das quais o estudioso traça linhas, genealogias. Por elas é possível entender como determinadas verdades são inseridas na sociedade e permanecem sob a forma de naturalizações nas sociedades. Por detrás das considerações e proposições estéticas existe sempre uma série de forças de imposição simbólica, quer agenciando ou transgredindo as relações de poder que estão presentes em determinada época. Isso nos fez crer que a ideia de que a estética está isenta de quaisquer conotações sociais e mesmo políticas não é procedente. O mesmo seria pensar que as várias esferas de construções simbólicas seriam estanques, viveriam em tomos distintos - eis aí uma relação importante entre a obra e a realidade, que é feita em primeiro lugar pelas representações construídas que realizamos da própria vida e, em segundo lugar, pela reconstrução realizada com esse mesmo material, em forma de objeto artístico. A realidade é somente o fato. O que construímos a partir do que vivemos - e isso se dá a todo tempo - é que se configura no material indispensável para a construção do objeto artístico. Pensar nessa primeira fonte, nesse primeiro elemento, nessa primeira camada é importante e aí é que os estudos sociológicos e históricos são importantes, pois eles estudam as representações que são realizadas pelo homem em sociedade. Cabe aos estudos literários pensarem como e de que forma os elementos são reorganizados sob a forma de construções estéticas. No mínimo, são o cruzamento entre dois tipos diferenciados de discurso. O primeiro sendo agenciado pela relação do homem com o


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real, com a sua mais imediata relação com o mundo que o cerca, e o outro é a força do que se reorganiza sob a forma de produto estético. Em ambas, a relação dialética (conflituosa) aparece, sendo o que muda é a tipologia dos discursos envolvidos nos embates entre teses, antítese que se transformam em sínteses inseridas nesse contínuo confronto. Essa relação conflituosa não exclui as construções que são realizadas sob a forma da arqueologia das estruturas de sentidos das palavras, as forças cognitivas voltadas para a percepção do que é verdade, dos construtos e que possuem a força de se imporem como verdades. O que se impõe como verdade não está destituído de uma vontade de poder sobre os outros discursos, posto que esses se realizam não sob a forma de uma simplificada luta de classes, mas de uma contínua internalização dos sentimentos de pertencimento ou despertencimento aos discursos no sujeito que - a todo tempo - os constrói e desconstrói, legitima e afasta. Conclusão Nosso trabalho de pesquisa procurou inserir discussões sobre a metodologia comparativa através da ação de cotejar textos que são de natureza diversa, conforme apresentamos no decorrer deste capítulo. É preciso compreender que, por detrás dos constantes conflitos que há quando confrontamos os mesmos construtos ideológicos sob perspectivas diversas, há interesses de superposição de valores entre classes sociais. Esses valores são naturalizados através de discursos coercitivos, nos quais geralmente são apresentados como valores éticos e morais vigentes em determinada época e que estão presentes tanto nos textos literários, como também naqueles que usamos fundamentalmente como comparação, os históricos e os sociológicos. A literatura permanece em nossas pesquisas como o campo privilegiado onde podemos encontrar tais representações conflituosas urdidas como se estivessem no plano da própria vida – não porque o texto literário seja uma cópia mais ou menos coerente de nosso mundo, mas porque a mesma matéria que compõe a nossa existência, a linguagem, constitui o texto literário. Por isso, a ideia presente em muitos autores de que o texto literário é, na verdade, um microuniverso em relação contínua com o nosso.


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Tal fato possibilita a comparação entre os elementos que formam a obra e aqueles que estão presentes em textos sobre a sociedade que serviu de plano para o construto literário. Em ambos, a linguagem é o elemento que potencialmente os iguala ou afasta. Nessas representações da vida, as construções ideológicas estão presentes e cabe ao pesquisador dar conta de que, em última análise, não há verdade discutida nas obras literárias que não possa ser desconstruída pela ação de cotejamento entre continuidades ou descontinuidades entre discursos provenientes dessas áreas diversas. É através da coincidência ou da fratura discursiva que percebemos o ordenamento, as confissões, o sentimento de pertencimento ou de exílio que formam, como agora sugerimos, um arcabouço discursivo que o leitor compara com a sua própria existência. Os elementos que foram sugeridos acima fizeram parte do escopo teórico que desenvolvemos graças ao auxílio que facilitou a realização do nosso trabalho. Por esse motivo, agradecemos ao Uniabeu que – com a concessão da bolsa PROAPE – foi de fundamental importância para a nossa pesquisa. O material bibliográfico a seguir em nossas referências foi recolhido no decorrer de nosso trabalho e acreditamos que possivelmente servirá aos futuros pesquisadores em nossa área.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Gazeta Nacional: os escravos, os abolicionistas a princesa Rio de Janeiro, 1887-1888

Andréa Santos da Silva Pessanha*

O discurso do jornal Gazeta Nacional sobre o processo de abolição da escravatura no Brasil foi foco de uma empreitada em que o presente texto é fruto1. Ao adotarmos o periódico em questão como objeto e fonte de estudo, ampliamos as possibilidades de utilização das folhas pelos historiadores. O suporte, ao mesmo tempo em que reconstrói uma dada realidade, oferecendo uma versão, abre uma janela para a reflexão de como uma geração específica viveu os acontecimentos, pretendia interferir nos processos em curso e que memória dos fatos e dos agentes sociais envolvidos desejava fortalecer. Por meio do perfil dos que publicaram na Gazeta Nacional, discutimos o pensamento e a prática de integrantes da chamada Geração de 1870, intelectuais que no período pensaram em transformações econômicas e sociais para o Brasil de então. O teor dos artigos veiculados propiciou uma aproximação com as propostas desta Geração através da análise de como os autores pretendiam alcançar o fim do cativeiro e como apresentavam a participação dos escravos, dos abolicionistas e da princesa Isabel, constituindo assim, paralelamente, a imagem destes agentes. No discurso dos homens que utilizaram a imprensa como forma de disseminação de projetos abolicionistas, o objetivo de alterar as relações sociais através da palavra, sem convulsionar a sociedade foi a tônica. Buscavam por meio dos jornais a mudança de comportamentos, valores e visões de mundo sobre a escravidão e suas consequências para o Brasil. Os periódicos assumiram como missão orientar a população para que o país seguisse o caminho da civilização e do progresso (PESSANHA, 2010). Os autores e redatores dos periódicos defensores da abolição agiam com metas direcionadas, tinham um fim prático e, muito embora, o 13 de Maio não tenha sido simples decorrência

destes

artigos,

contribuíram

para

desestabilizar

o

sistema

ao,

quotidianamente, atacarem o escravismo e as relações sociais que o sustentava. Para *

Coordenadora do Curso de Licenciatura em História e professora de História de Brasil II (Brasil-Império) do UNIABEU. Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. 1 O estudo foi financiado pelo Programa de Apoio à Pesquisa (PROAPE), ação da política de incentivo à pesquisa do UNIABEU.


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além do altruísmo, procuravam demonstrar que a existência do cativeiro comprometia a construção da nação civilizada e manutenção da ordem social. Nos jornais de cunho abolicionista, a argumentação e sensibilização a respeito dos malefícios da escravidão na formação da nação brasileira foram constantes. A Gazeta Nacional trazia por subtítulo Órgão Republicano. Circulou entre dezembro de 1887 e junho de 1888 na cidade do Rio de Janeiro. Apesar do rápido período de existência, foi lida e conhecida por lideranças do movimento republicano. A penetração neste círculo político pode ser constatada pela referência feita pelo contemporâneo Evaristo de Moraes (1985, p. 18) ao relembrar a trajetória do movimento republicano no Brasil, pelos jornalistas José do Patrocínio e Rangel Pestana que no Cidade do Rio e no Província de São Paulo, respectivamente, polemizariam ou apoiariam as ideias difundidas pela folha. Periódicos republicanos de outras províncias, como A Federação de Porto Alegre, citavam-na, reforçando sua circulação entre os críticos do regime monárquico. No número inaugural do jornal, Quintino Bocaiúva, liderança nacional do Partido Republicano, fez saudação à folha afirmando: Herdeira das tradições e da fé republicana de que esse órgão [ A República] foi na sua época a mais ousada expressão, a “Gazeta Nacional” que hoje enceta sua existência está destinada a exercer uma grande influência e a representar um nobilíssimo papel (03/12/1887, p.1).

Este vínculo com A República era desejado pela redação e pelos autores do jornal. Colocavam-se com canal de expressão dos contrários ao regime monárquico e buscavam ao longo das edições associações com os republicanos históricos que assinaram o Manifesto Republicano de 1870 e fundaram o periódico no ano seguinte. Aristides Lobo foi o primeiro redator-chefe da folha. Ele foi advogado, membro da Confederação Abolicionista e signatário do Manifesto de 1870, constituindo, portanto, os chamados republicanos históricos. A atuação de Lobo na imprensa esteve voltada para a defesa de duas causas: república e abolição. Entre os jornais em que veiculava suas ideias, merecem relevo O Amigo do Povo. Em 1889, esteve entre os civis que articularam o 15 de Novembro com os militares. Assinou pelo chefe do Governo Provisório o documento de Proclamação da República e foi Ministro do Interior ainda neste Governo.


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Aristides Lobo foi genuíno representante da chamada Geração de 1870. Esta foi constituída por um leque de escritores que refletiu sobre o Brasil do último quartel do século XIX, propondo mudanças para que o país entrasse no ritmo, por ela considerado, do progresso das nações da Europa Ocidental e dos Estados Unidos da América. Essa mocidade frequentou as faculdades de Direito em Recife e em São Paulo, as faculdades de Medicina no Rio de Janeiro e em Salvador, estudou na Escola Militar e na Politécnica, fundou sociedades, clubes e pequenos jornais. Organizou atividades como comícios, conferências, banquetes, quermesses, festas beneficentes, viagens de propaganda e passeatas. Divulgou suas ideias através de manifestos, artigos, circulares eleitorais e livros. A imprensa foi o principal meio de propagação das propostas, recebendo uma função especial para esta Geração: era um veículo considerado civilizador e educador, pois através dela se convenceria ao maior número de pessoas das mudanças necessárias para o Brasil entrar no rumo do progresso.

A campanha pelos jornais

coadunava os espaços de orientação das ações e dos hábitos que estes homens pretendiam desenvolver na sociedade, de formação de identidades e de construção de memória (BARBOSA, 2010, p. 110-116; PESSANHA, 2010, p. 218-223). A Geração de 1870 foi por excelência heterogênea em termos de origem social, filiação intelectual e formação de alternativas políticas para o Estado.

Contava com

membros da tradicional aristocracia, como Rui Barbosa, e com descendente de escravos, como José do Patrocínio. Em termos de regime político, oscilava entre os defensores da monarquia federativa, como Joaquim Nabuco, ou do modelo republicano, como Silva Jardim. Ainda entre os republicanos, podemos distinguir os que entendiam a república como concretização do ideal do self-made-man, enfatizando uma sociedade aberta aos talentos e contrária a privilégios hereditários para ocupação do poder, como Saldanha Marinho, ou que centravam suas atenções nos interesses das elites regionais, na descentralização política, como Rangel Pestana (ALONSO, 2002). A formação desta Geração ocorreu num contexto de prosperidade econômica brasileira, que engendrou a substituição do trabalho escravo pelo livre e o surgimento de novos atores sociais que passaram a pressionar por um maior espaço político. Os setores médios urbanos cresciam desde meados dos Oitocentos em decorrência do aumento da circulação de capital, da ampliação do número de instituições de crédito, da melhoria do sistema de transporte e de comunicação. A extinção do tráfico internacional de escravos


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possibilitou maior fluxo de capitais, sendo, em parte, responsável por essas transformações. Por pensar e projetar o Brasil apoiado no liberalismo e as teorias raciais científicas, pesquisadores analisaram o pensamento e a prática política da elite intelectual do século XIX como artificial, distante da realidade brasileira, que ainda contava com o trabalho escravo e não tinha passado pela Revolução Industrial (SCHWARZ, 1977; FRANCO, 1976). Compartilhamos com a concepção que entende o pensamento destes homens e instituições oitocentistas como uma releitura, uma atribuição de novos sentidos aos conceitos, a partir da realidade imediata. As ideias não eram copiadas e nem meramente distorcidas, eram reelaboradas por essas elites, que se apoiavam na literatura internacional para pensar o futuro do país (SCHWARCZ , 1993, p.242). O Rio de Janeiro, da segunda metade do Oitocentos, apresentou-se como uma cidade cosmopolita. Era sede do governo monárquico e principal centro comercial, onde entravam ao lado dos produtos de primeira necessidade e de luxo, ideias europeias. A intensa atividade de importação e exportação revitalizou sua proeminência política. Temas como progresso, civilização, modernização e ordem eram constantes e interdependentes nos discursos de engenheiros, professores, médicos, advogados e jornalistas Geração, inspirando seus textos. A campanha abolicionista diferenciou-se do emancipacionismo presente em especial nos anos setenta por ter por pauta o fim do cativeiro de maneira imediata e incondicional. Os emancipacionistas protelavam o processo de transição da mão de obra escrava para a livre, de forma que se viabilizasse um período de aprendizagem por parte do escravo, uma fase de transição, e consideravam necessário algum tipo de indenização aos antigos proprietários. Para os abolicionistas, fazia-se mister a elaboração de estratégias de condução da campanha, que estivessem atentas às necessidades de substituição de mão de obra na agricultura. As aspirações não mais se confundiam com os interesses vinculados à propriedade em condições escravistas. O cativeiro era identificado com o atraso, sendo responsável pela inibição do crescimento econômico na medida em que cerceava a modernização agrícola, comercial e industrial. Expressavam valores que oscilavam entre a ideia de progresso, de civilização e a preocupação em manter a ordem. O progresso de acordo com a lógica liberal precisava abolir a escravidão e tinha os seus limites demarcados pela ordem hierarquizada e excludente da sociedade.


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No primeiro manifesto da Confederação Abolicionista, fundada em 1883 no Rio de Janeiro, servindo de referência para as demais instituições antiescravistas do país, as razões para a abolição eram assim expostas: O escravagismo; a barbaria da exploração do homem pelo homem; os torpíssimos abusos das raças mais avançadas na evolução social, o cínico parasitismo exercido sobre os que vivem e morrem trabalhando, sem jamais ver o fruto de seus esforços, é tão fatal à moralidade dos povos, como prejudicial à sua agricultura, à sua indústria, ao seu comércio, e a todos os elementos da riqueza nacional (p. 40).

A atuação dos periódicos foi cautelosa e tímida em relação à causa abolicionista enquanto foi possível aos seus diretores. Afinal, dependiam dos anunciantes, os quais eram comumente senhores de escravos. Mesmo nos anos mais fervorosos, alguns periódicos tinham posturas contraditórias, divulgando concomitantemente textos de cunho antiescravistas e anúncios de fuga, compra e venda de escravos (MACHADO, 1991). A valorização deste meio de comunicação deve ser vista com cautela, pois atingia um grupo bastante seleto da população, em razão do alto índice de analfabetismo da população livre. Entretanto, o processo de urbanização propiciou o aumento do número de leitores e a leitura dos textos em voz alta facilitava a circulação oral das ideias. No final do Oitocentos, os periódicos possuíam um público maior de ouvintes que de leitores, sendo assim, eram mais ouvidos e vistos do que lidos (BARBOSA, 2000, p. 200). A utilização da imprensa como forma de condução da campanha casava-se com as práticas do paternalismo. Este e a pedagogia da violência foram mecanismos utilizados pelos proprietários para controle dos escravos desde o Brasil-Colônia. O paternalismo foi uma forma de manutenção da ordem social. Juntamente com o uso da força, da violência exercida diretamente sobre o cativo – muitas vezes com o próprio aparelho repressivo do Estado – os donos de escravos utilizavam também mecanismos de controle social que buscavam vínculos entre os dois polos. Tais relações não implicam simplesmente em benevolência senhorial e sim em buscar outras formas de manutenção do sistema escravista. O paternalismo ligou-se a um conjunto de manipulações, negociações entre senhores e escravos. Se para os primeiros era um instrumento de controle, para os cativos tinha o sentido de abrandar a vida na escravidão. Estabeleciam-se práticas costumeiras, como: possibilidade de fazer pecúlio, um comércio local, manutenção de famílias, escolha de parceiros conjugais, acesso à roça, frequência aos batuques e às


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irmandades religiosas negras, que deveriam ser respeitadas, caso contrário poderiam ocorrer fugas, revoltas, assassinatos na comunidade escrava (MATTOS, 1998, p. 292). As vantagens obtidas dentro do cativeiro não deveriam ser vistas pelo escravo como conquista e sim concessão, de maneira a gerar um sentimento de gratidão (REIS, 1989). O escravo grato, que consegue espaços para negociação, mantinha a esperança de conquista da alforria. A possibilidade desta era, a rigor, um importante mecanismo de controle social e de diferenciação entre os escravos. Na década de oitenta, com o aumento da pressão dos escravos pela liberdade, a lógica paternalista de domínio senhorial foi defendida nos artigos veiculados na imprensa que defendiam a abolição da escravatura no Brasil. O sentido de concessão e não de conquista era a estratégia a ser utilizada. O fim do cativeiro deveria ser resultado de uma elite e não ter os escravos como agentes. A postura paternalista revelou-se, assim, numa proposta de transição do trabalho compulsório para o livre que entendia a abolição enquanto uma concessão, uma dádiva das elites brasileiras e, em especial, do grupo de abolicionistas, aos escravos. Estes eram considerados incapazes de agirem por conta própria, precisando, assim, da tutela dos grupos com organização política para representá-los e conquistar os seus direitos. Por essa ótica, podem ser lidas, por exemplo, as festas beneficentes, os fundos de emancipação, os livros de ouro e as notícias sobre alforrias. Para estes abolicionistas, os escravos deveriam receber a benevolência dos libertadores, quer fossem os senhores, os abolicionistas ou a política de abolição gradual adotada pelo Estado, amenizando, assim, a pressão dos escravos pela liberdade, com fugas, assassinatos e todas as estratégias quotidianas existentes nos anos oitenta do século XIX para a obtenção da alforria (CHALHOUB, 1990). A campanha na imprensa fez questão de dissociar-se de qualquer tendência mais radical do movimento. Tais militantes preocupavam-se com a estabilidade social e o não uso da violência, favorecendo a atração de setores proprietários para as fileiras do abolicionismo2. A crença no progresso e na civilização respaldou a efervescência do ideário abolicionista no Rio de Janeiro. Tais homens acreditavam no constante aprimoramento da natureza humana e das nações, que estariam situadas dentro de uma escala progressiva 2

A historiografia tem realizado estudo sobre uma aproximação de lideranças antiescravistas do Rio de Janeiro com a ação direta dos escravos, apoiando fugas e chegando a constituir os quilombos abolicionistas (SILVA, 2003).


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indo das mais arcaicas até as mais evoluídas, que em sua fase cabal atingiria a civilização. A abolição era mais um elemento para satisfazer às condições necessárias para o advento de reformas econômicas e sociais que trouxessem melhorias materiais e culturais. Na imprensa abolicionista da cidade do Rio de Janeiro, o paternalismo apresentava-se numa linguagem que buscava a mediação dos conflitos entre senhores e escravos. Por meio de um estilo sentimental, almejava-se a sensibilização da opinião pública, uma mudança de comportamento em relação à escravidão. Era propagado que a conciliação ligava-se à construção de vínculos de gratidão dos escravos em relação aos senhores. Neste sentido, a estratégia deveria ser a concessão de manumissões, que colocariam em relevo a benevolência senhorial. Nos momentos finais da escravidão, Aristides Lobo, publicava, na Gazeta Nacional, artigos defendendo a abolição como meio de manter o equilíbrio social. Nesta fase de fragilidade da autoridade senhorial, em especial pelo aumento das deserções em massa do trabalho, a rotina das fazendas estava se quebrando. Os habituais meios de controle não eram mais eficazes para a manutenção da ordem, principalmente com a recusa do Exército em reprimir as fugas: “A escravidão já não existe, pois não havia lei que garantisse a permanência dos escravos nas fazendas, desde que eles não quisessem mais aí ficar. No dia em que o escravo não quiser mais trabalhar, não trabalha” (Gazeta Nacional, 06/01/1888). A partir desta constatação, a Gazeta Nacional enfatizava o espírito ordeiro dos escravos3, que pretendiam sim a liberdade, porém não faziam oposição ao trabalho: Os negros não abandonam o trabalho, e só o fazem em condições muito especiais. Queremos crer, e é o que nos asseguram pessoas fidedignas, somente a respeito de senhores tidos e havidos como bárbaros e inteiramente intratáveis (08/02/1888).

Senhores tidos e havidos como bárbaros e intratáveis eram justamente aqueles que não utilizavam a política de benevolência para com seus escravos. Lendo de outra forma, se os senhores fossem benevolentes os escravos não fugiriam. Nestes anos finais da escravidão, o paternalismo tinha como ponto final a concessão da alforria.

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Uma análise específica sobre a memória que a Gazeta Nacional buscava construir sobre os cativos e os libertos no contexto do 13 de Maio, encontramos em PESSANHA, 2011.


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Em 1887, artigos da Gazeta Nacional dedicavam-se a fuga em massa de escravos na província de São Paulo em particular em Itu e Capivari. Enfatizavam o espírito ordeiro das fugas, sem agredir, sem depredar: A previsão de todos em face do inevitável epílogo da escravidão, sempre foi, que tivéssemos os episódios trágicos praticados pelos escravos em presença de qualquer ato dos senhores. Um dos fantasmas temerosos com que o escravismo assombrava os ânimos, era da insurreição com todos os seus horrores. Entretanto, vimos o surpreendente e admirável exemplo de placidez e cordura dado pelos fugitivos de Capivari e Itu ao transporem por grupos compactos as cidades e povoados do interior de São Paulo. Com justa razão, recordou o Clube Militar, em mensagem à regente, que semelhante correção de conduta seria difícil de obter em tropas arregimentadas e sujeitas às regras de disciplina. (04/02/1887).

Em outro artigo, a Gazeta Nacional volta a abordar a tranquilidade das fugas: Contestando a preposição injusta e de todo o ponto inexata de que os escravos fogem do trabalho em busca da vida errante, cruzando as estradas em ociosa vagabundagem, tem causado surpresa e pasmo o espírito de ordem por eles manifestados (23/12/1887).

Parece que a folha pretendia reforçar um quadro de absoluta paz num contexto em que escravos estavam abandonando fazendas em São Paulo. Dificilmente, os segmentos proprietários tinham essa sensação de paz que realçou. O escravo fugitivo, em essência, quebrava a ordem social escravista, representava perigo. Contudo, talvez por considerar a liberdade como legítima, quis reforçar o aspecto de tranquilidade social ligada à abolição e atrair simpatizantes para a causa na Corte. De acordo com a Gazeta Nacional, caso fosse oferecido ao escravo a liberdade, as fugas poderiam ser evitadas, pois os cativos brasileiros não tinham tendência para a resistência violenta. O tema da fuga foi constante no mês de lançamento do jornal. Paralelamente ao cenário de desmontagem do sistema escravista, o redator oferecia destaque a uma prática que reforçaria os vínculos de gratidão do escravo para com o senhor: a estratégia de concessão de alforria: Alguns senhores, desejosos de encontrar uma solução que conciliasse os interesses de duas classes (a do senhor e a do escravo) encetaram as libertações gerais em curto prazo.


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O primeiro que se revelou compenetrado dessa verdade foi o Sr. Bento Dias Ferraz, que libertou todos os escravos de sua fazenda, aos quais, entretanto, prontificaram-se a permanecer nela trabalhando. (...) Os libertos contratam-se com ex-senhores, não perturbando assim a organização do trabalho. Talvez se fosse dado antes esse passo não se tivesse que lamentar os desfalque de tantos braços úteis. (23/12/1887).

Neste momento de crise da sociedade escravista, a pedagogia da violência deveria ceder cada vez mais lugar ao paternalismo sob pena dos proprietários não controlarem mais a transição para a liberdade:

Entregues a seus próprios recursos, vendo dia-a-dia despovoarem-se as fazendas, arriscando a assistir a quebra total da disciplina, sem poderem contar sequer com a força pública, os fazendeiros entenderam mais conveniente abrir meio de tal precária propriedade. (23/12/1887).

A concessão da liberdade passa a ser vista como condição para a ordem, pois gerava a gratidão, evitava o abandono das fazendas e garante a permanência dos trabalhadores. A Gazeta Nacional enfatizava o espírito humanitário dos senhores que concederam a alforria, ao mesmo tempo em que esta generosidade garantia o controle e assegura a produção. Nos anos finais do escravismo, o paternalismo era um ponto de interseção entre escravistas e lideranças abolicionistas. A alforria, quando concedida pelo senhor, fortalecia sua autoridade e gerava vínculos. A gratidão seria estendida à liderança abolicionista, ao Estado, aquele que o liberto identificasse como agente da abolição. A Gazeta Nacional preocupava-se com o movimento dentro da ordem, mas oferecia relevo à resistência dos escravos, principalmente nas fazendas de São Paulo. Alertava aos segmentos proprietários do perigo da perda de controle do trânsito do trabalho escravo para o livre. Assim, mesmo agindo dentro da ordem, sem perturbar, sem depredar ou ter qualquer atividade de vingança, o escravo aparecia como figura central na folha. A insistência no paternalismo era uma tentativa de inibir a já dada luta pacífica dos cativos. Após o 13 de Maio, esta atitude foi tomada pela Gazeta Nacional como argumento substancial para esmaecer a figura de redentora da princesa Isabel4. O jornal

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PEREIRA (2011) analisou questões políticas e religiosas envolvendo o abolicionismo da princesa Isabel em suas tensões com os contrários à proposta de um Terceiro Reinado. Sobre o tema ver também DAIBERT JÚNIOR, 2004.


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procurou construir a memória da abolição valorizando a participação dos cativos no processo de extinção da escravidão. A associação entre abolição da escravatura e princesa regente incomodava os republicanos do Rio de Janeiro. Em função disto, travaram polêmica com José do Patrocínio por conta de suas ligações com a regente após a assinatura da Lei Áurea5. Com o sugestivo título de artigo “Continuamos a ser abolicionistas”, a Gazeta Nacional publicava: Aderindo finalmente à abolição imediata e incondicional da escravidão, a regente fê-lo pela força ineludível das circunstâncias imperiosas que se impunham no momento (...). Se por isso pode ser aplaudida, aplauso que ninguém lhe recusa, não é, todavia, razão para reconhecimentos ou gratidão de ninguém, e muito menos para os republicanos quebrem as armas e voltem as costas ao seu ideal – o estabelecimento da República Federal (05/06/1888).

A Gazeta Nacional procurava enfraquecer algumas associações feitas pelos monarquistas: abolição como resultado da ação da princesa Isabel; abolição e indignação dos fazendeiros, tendo por resultado o crescimento dos simpatizantes da república. O jornal veiculava um discurso que reduzia a importância da monarquia no fim oficial do cativeiro. A utilização da imprensa como canal de divulgação das ideias abolicionistas foi fundamental para a operacionalização de ações paternalistas no movimento. A procura de uma ação dentro da ordem encontrou nos periódicos agentes viabilizadores para Geração de 1870. Se o objetivo era a adoção de medidas não violentas, o ideal era a adoção da palavra como arma, alterando assim, comportamentos, valores no que tange à abolição. Próximo à Lei Áurea, a Gazeta Nacional objetivava construir a imagem que a princesa Isabel não sacrificou o trono. A regente só teria reagido a um fato: a abolição feita pelos escravos e pelos abolicionistas. Para a folha, a vitória da república, neste contexto, era uma questão de tempo, pois difundia que o espírito da liberdade, naquele contexto, atravessava toda a vida do país.

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O jornalista abolicionista José do Patrocínio rompeu com lideranças republicanas do Rio de Janeiro em função de seu apoio ao processo de mitificação da princesa Isabel como a redentora (MACHADO, 2010; FERACIN, 2006), representando um projeto de construção da memória da abolição distinto do desejado pela Gazeta Nacional. A folha e Patrocínio chegaram a estabelecer polêmicas.


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A engenharia da liberdade: os africanos livres e as obras públicas no Rio de Janeiro Imperial Carlos Eduardo M. de Araújo1

Introdução Em 1831, o poder legislativo brasileiro promulgou a lei proibindo o tráfico atlântico de escravos africanos. A repressão ao crime fora prejudicada pela pouca – ou nenhuma – assimilação por parte da sociedade em geral, e das autoridades públicas em particular, da importância de se reprimir este “infame comércio” (RODRIGUES, 2000). As limitadas iniciativas de repressão do poder público provocaram o nascimento de uma nova categoria jurídica no país, os africanos livres. Legalmente, nenhum africano livre era cativo, nem criminoso sentenciado. Na prática, tudo era conduzido de outro modo. A dubiedade do status jurídico desses africanos facilitava a exploração de sua mão de obra. Durante o período de construção da Casa de Correção da Corte, por exemplo, a presença dos africanos livres foi fundamental (ARAÚJO, 2009). Sem eles, dificilmente o Estado conseguiria erguer o primeiro complexo prisional do Brasil. Entretanto, não foi fácil o controle desses trabalhadores. Ao mesmo tempo em que o status jurídico desses africanos facilitava sua exploração, também permitia que esses agentes utilizassem a lei a seu favor. Protestos, fugas e até um manifesto foram produzidos por esses homens e mulheres no canteiro de obras da prisão erguida na Corte. A proximidade deles com as outras categorias de trabalhadores (escravos, libertos, militares e homens pobres) ajudou a ladinizar aqueles africanos. Aprenderam a língua, a cultura local e o funcionamento do complexo e intrincado mundo da escravidão. Usaram as brechas do sistema e da lei que os controlava para agir. Ainda assim, durante mais de 30 anos, o Estado utilizou a força dos africanos livres para construir o Império, literalmente (MAMIGONIAN, 2005). Todos os empreendimentos públicos contavam, em maior ou menor escala, com o trabalho dos africanos livres. Podemos citar, além da Casa de Correção da Corte, a Fábrica de Pólvora Estrela do Rio de Janeiro; a Fábrica de Ferro São João de Ipanema 1

Doutor em História Social pela Unicamp. Professor Adjunto do Centro Universitário UNIABEU.


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em São Paulo; o Arsenal de Marinha da Corte, entre outras (SOUSA, 1999); (MOREIRA, 2005). A presença desses homens e mulheres alterou as relações de trabalho e controle nos espaços onde conviviam escravos, sentenciados, homens livres pobres e militares. Para conseguirmos traçar minimamente um quadro do período, devemos antes entender melhor como surgiu essa nova categoria de mão de obra negra no Império.

Uma nova categoria de trabalhadores no Império A lei de 07 de Novembro de 1831 assim determinava: Artigo 1 º - Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres. (...) Artigo 2 º - Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do artigo 179 do Código Criminal, imposta aos que reduzem à escravidão pessoas livres, e na multa de 200 mil réis por cabeça de cada um dos escravos importados, além de pagarem as despesas da reexportação para qualquer parte da África; reexportação que o Governo fará efetiva com a maior possível brevidade, contatando com as autoridades africanas para lhes darem um asilo. Os infratores responderão cada um por si, e por todos (CLB, 1875. pp.182 – 183).2

Esta lei, que declarava livres todos os escravos “vindos de fora”, ficou conhecida como “lei para inglês ver”. A categoria de africano livre fora criada na tentativa de encontrar uma terceira via entre a extinção total da escravidão no Brasil e o confronto direto com a política inglesa de acabar com a comercialização de africanos através do tráfico atlântico. Essa política teve início na década de 1810, quando o Brasil ainda fazia parte do império português. As dificuldades encontradas pelas autoridades brasileiras no cumprimento da lei que determinava o fim do tráfico africano estão expressas nos diversos debates parlamentares e nos relatórios ministeriais produzidos ao longo da década de 1830. Como exemplo, citamos um trecho do relatório do ministro da Justiça Gustavo Adolfo de Aguilar Pantoja. 2

Grifo nosso. O Artigo 179 do Código Criminal de 1830 determinava que: “reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse da sua liberdade, pena de prisão de 3 a 9 anos e de multa correspondente à terça parte do tempo; nunca, porém o tempo de prisão será menor que o cativeiro injusto e mais uma terça parte”. CLB. Atos do Poder Legislativo – Código Criminal do Império do Brasil. Lei de 16/12/ 1830. pp. 142 – 206.


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A Lei de 07 de Novembro de 1831 como todas aquelas que não assentam nos costumes, nos usos e interesses e que não respeitam os prejuízos dos Povos, caiu em completa nulidade. A sua publicação teve por fim pôr barreiras ao trafico de escravos africanos, mas tal objeto não se conseguiu, nem mesmo o Governo tem esperanças de que ela o consiga. (PANTOJA, 1837. p.27)

A questão da proibição do tráfico negreiro era antiga, anterior, inclusive, à independência brasileira. As autoridades coloniais procuraram ganhar tempo assinando acordos para descumpri-los em seguida. O primeiro tratado sobre o destino dos africanos traficados ilegalmente surgiu em 1815, decorrente da Convenção Adicional às Resoluções do Congresso de Viena. Um acordo imposto pela Inglaterra a Portugal limitava o tráfico de escravos para o Brasil ao sul do Equador. Somente em 1818, as autoridades portuguesas estabeleceram as punições aos traficantes condenados. Dentre elas, destacamos o confisco de bens e o degredo. Os traficados ilegalmente deveriam ser apreendidos e entregues aos juízes da Ouvidoria da Comarca. O tratado ainda estabelecia que os africanos deveriam trabalhar 14 anos para a Coroa ou para particulares (FLORENCE, 2002). Após a Independência brasileira, um importante debate sobre como e por que abolir o tráfico de africanos e a própria escravidão foi travado pelos deputados durante as sessões que definiriam a primeira Constituição do Império. Os debates foram encerrados logo que D. Pedro I fechou a Câmara Legislativa e outorgou a Constituição de 1824. Durante o Primeiro Reinado, o tema da proibição do tráfico africano ou mesmo da extinção da escravidão no Brasil aparecera ocasionalmente, sem se avançar muito na questão. No início da Regência, a discussão tomou novo fôlego, e sob a pressão inglesa, o Parlamento brasileiro, então dividido entre moderados, exaltados e restauradores, decidiu promulgar a Lei de 1831, mais para dar satisfações aos britânicos e menos por convicção de causa. Podemos atestar na fala do ministro da Justiça Aureliano Coutinho quando este foi ao Parlamento defender seu projeto de entregar nas mãos dos ingleses o julgamento dos traficantes de escravos apreendidos na costa brasileira. (...) desgraçadamente seus esforços se iludiram, porque a impunidade dos contrabandistas aparecia escandalosamente não sabendo se atribuiria a


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bonhomia dos juízes ao prejuízo de que a mor parte da nossa população estava imbuída de que a extinção da escravatura no Brasil era um mal (...)3 Entre 1831 e 1850, diversos carregamentos de peças foram apreendidos na costa brasileira. Às elites políticas de então interessava a manutenção da ordem estabelecida. A libertação efetiva e a permanência no império de um número cada vez maior de africanos poderiam fomentar revoltas entre os ainda cativos. Essa preocupação está expressa em diversos documentos produzidos pelas autoridades envolvidas na questão. No relatório do ministério da Justiça de 1834, Manuel Alves Branco faz uma análise interessante a respeito: (...) a urgência de reexportação cresce, não só porque de dia em dia torna-se mais difícil a fiscalização de contratos particulares, como porque o meio de distribuição não satisfaz o grande fim de livrar o país de uma população sempre perigosa e agora tanto mais quanto é certo que estes africanos distribuídos se tornam insuportáveis depois de ladinos, com a opinião de livres entre os mais escravos. (BRANCO, 1835 p. 8). Era “insuportável” para as autoridades a circulação dos africanos livres pelas ruas. Ao se tornarem “ladinos”, aprendendo a falar português e assimilando os costumes brasileiros, logo entendiam que eram diferentes dos escravos e, como tais, não poderiam sofrer o jugo do cativeiro. A partir de outubro de 1834, todos os africanos apreendidos na costa do sudeste foram destinados às obras da Casa de Correção da Corte, enquanto aguardavam o julgamento realizado pelas Comissões Mistas anglo-brasileiras. Essas comissões julgavam se o navio negreiro apreendido era boa pressa.4 Em caso afirmativo, o comandante, o proprietário da embarcação e os marinheiros eram condenados de acordo com o artigo 2 º da Lei de 1831. Um problema atrapalhava a intenção de Alves Branco de se livrar logo dos africanos livres. Enquanto as autoridades inglesas aceleravam os processos de apresamento, os oficiais brasileiros “se negam a isso a pretexto de falta de meios”. Enquanto não se construía uma solução a contento, Alves Branco decidiu que, para evitar o “desamparo” desses “infelizes”, utilizaria os recursos destinados aos prêmios dados aos apresadores como recompensa para o sustento dos africanos livres sob tutela do Governo (BRANCO, 1835 p. 9). A distribuição dos africanos livres pelas obras públicas e a particulares evitava um gasto excessivo com o sustento dessas pessoas em depósitos e ainda possibilitaria ao Estado arrecadar com a exploração de sua mão-de-obra. O administrador das obras da Casa de Correção pôde 3

Annaes do Parlamento Brazileiro. Câmara dos Senhores Deputados, ano de 1834, Tomo 2. pág. 287, Sessão de 24 de Setembro de 1834. Pág. 288 4 Eram consideradas “boas pressas” as embarcações que fossem identificadas pelas autoridades como navios negreiros. Algumas características eram observadas tais como tipo de embarcação, instrumentos de tortura, ferros, correntes, ausência de lastro e a tripulação. Muitos navios brasileiros usavam bandeiras de outras nacionalidades, como a portuguesa, para escaparem da fiscalização britânica na costa brasileira.


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suprir a carência inicial de operários livres de correntes para tocar a construção. Ao chegarem no canteiro de obras, esses africanos foram distribuídos entre os diversos ofícios. Os que aprendiam rápido o serviço eram transformados em aprendizes de pedreiro, carpinteiro, ferreiro, entre outros. Os que não mostravam aptidão suficiente eram empregados como serventes de obra, na lavanderia e na cozinha da prisão – muito embora a preferência para os serviços culinários, a princípio, fosse a mão de obra feminina. As sucessivas tentativas de reexportação malogradas e a ausência de regras mais específicas para a utilização de sua mão de obra acabaram por empurrar esses trabalhadores para a escravidão pura e simples. Assim como no sistema escravista, no sistema prisional as fugas também eram constantes. Embora não fossem sentenciados, os africanos livres viviam sob o regime disciplinar da prisão e também utilizavam a evasão para escaparem dos pesados serviços. A Casa de Correção na década de 1840 não estava totalmente cercada. As obras ainda não haviam terminado e o deslocamento dos africanos livres no interior da instituição era grande. As seduções de cativos para as fugas faziam parte da rotina da escravidão urbana. Muitas vezes os ciganos eram responsabilizados por essa sedução. A intensa circulação desses últimos entre os núcleos urbanos e interioranos possibilitava o estabelecimento de redes de contato que levava os escravos das cidades direto às propriedades do interior ou mesmo aos quilombos. (SOARES, 1998; KARASCH, 2000). Entretanto, com os africanos livres o processo era um pouco distinto.

O manifesto dos presos sentenciados e africanos livres da Casa de Correção, 1841 As tentativas de controlar os africanos livres detidos nas obras da Casa de Correção foram intensas. Ao longo do tempo, a contradição jurídica ficou clara para estes homens e mulheres. Nem escravos e nem detentos. As trocas existentes no canteiro de obras entre escravos que tiveram seus serviços alugados por seus senhores ao Estado, escravos sentenciados, livres e libertos sentenciados e os guardas responsáveis pela segurança, enfim, todos que compunham aquela microssociedade ajudaram os africanos livres a traçar um plano de luta, senão eficiente, pelo menos que implicasse numa mudança – mesmo que temporária – no tratamento conferido pelas autoridades carcerárias. Temos um dos únicos registros produzidos por presos sentenciados e africanos livres no interior de uma instituição prisional. Trata-se da Representação dos presos existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos que trabalham nas


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obras públicas da mesma Casa, pedindo a intervenção do Imperador para melhorar-lhes a insuportável situação em que viviam.5 Nela, os africanos livres denunciavam ao recém-coroado monarca as mazelas sofridas no cárcere (SOARES, 2001. pp. 391 – 404). Reclamavam da comida, das roupas fornecidas, dos desmandos do administrador das obras e dos castigos sofridos: (...) antigamente os africanos tinham a circunferência da Chácara para passear em domingos e dias santos, hoje em dias santos vivem juntamente com os pretos da prisão do Castelo metidos em um curral, domingos e dias santos e dias de trabalho mal que largam o trabalho. Já os feitores estão atrás deles para os meter no Curral (...).

Os pretos da prisão do Castelo a que se referiram os africanos livres em seu manifesto são os escravos detidos na prisão do Calabouço que até 1838 se localizava no morro do Castelo. Com o início das obras da Casa de Correção, essa prisão foi transferida para a chácara do Catumbi. Criado em 1767 e estabelecido inicialmente no Forte de Santiago, o Calabouço teve como função iniciar o processo de controle do Estado sobre os escravos urbanos. Se nas fazendas os castigos eram aplicados pelos senhores, nas cidades essa função passou a ser das autoridades públicas. Com a independência política, o novo império do Brasil manteve a mesma estrutura de exploração do trabalho compulsório. Os escravos urbanos continuaram sendo castigados no Calabouço a mando de seus senhores. Seria um castigo particular executado pelo poder público. O Estado continuava a usar a mão de obra desses escravos nos empreendimentos públicos. Além do pesado trabalho ao lado de presos sentenciados, os africanos livres ainda enfrentavam as chibatadas no pelourinho instalado no interior do Calabouço. Em média eram 50 chibatadas. Esta punição era aplicada aos escravos, nunca aos livres e libertos. Por que os africanos livres também estavam submetidos aos mesmos castigos? O manifesto traz nas entrelinhas a pergunta: afinal, somos livres ou somos cativos? Além de reclamarem dos currais em que eram postos junto com os pretos da prisão do Castelo, os africanos livres não escapavam do relho, mesmo sendo “livres”. A ênfase no protesto dos africanos já indica claramente que eles se consideravam 5

Biblioteca Nacional (doravante BN). Manuscritos, II – 34, 25, 11. “Representação dos presos existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos que trabalham nas obras públicas da mesma Casa, pedindo a intervenção de S. M. I. para melhorar-lhes a insuportável situação em que viviam”. Em 02/03/1841. Todos os grifos ao longo da fonte são nossos.


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diferentes dos escravos e, como tais, exigiam tratamento diferenciado. O responsável direto por todos os trabalhadores das obras era o administrador. Em 1841, Thomé Joaquim Torres ocupava esse posto. Eram contra ele as maiores queixas:

apega-se o administrador em dizer que saem a rua e embebedam-se e fazer outras patifarias iguais, vão às chácaras vizinhas e roubam frutas, porém tal não há Imperial Senhor, é um modo de poder melhor [praticar] a sua barbárie(...).

É sabido que a aguardente era a bebida preferida de nove entre dez escravos na cidade do Rio de Janeiro. E que, muitas vezes, o vício decorria da desnutrição imposta não só aos escravos, como também à população pobre em geral (KARASCH, 2000). Aspectos culturais e/ou religiosos poderiam ser levantados para justificar a preferência dos africanos pela cachaça, porém, não pretendemos, pelo menos por ora, seguir este caminho. Vamos nos ater a questão da dieta alimentar a que estavam submetidos os africanos livres na Casa de Correção. Seguindo a estrutura do documento reivindicatório escrito pelos africanos, o problema da bebida estava diretamente ligado ao roubo de frutas nas chácaras vizinhas. A chácara do Catumbi localizava-se na saída da cidade e, até a década de 1850, aquela região era cercada por pântanos e possuía um braço para o mar que servia de cais para o desembarque de materiais e alimentos vindos da região do Recôncavo da Guanabara. Na atual região central do Rio de Janeiro estavam localizadas

diversas

propriedades

rurais

com produção

voltada

para

subsistência. Pomares, hortas, granjas e criação de suínos eram as atividades desenvolvidas naquela região. Sem muros para cercar o terreno e sem correntes nos pés, os africanos livres e demais funcionários do complexo prisional em construção certamente disputavam as frutas com os pássaros. Embora não tenhamos encontrado nenhum registro de tal ocorrência, é provável que alguém tenha reclamado informalmente com o administrador das obras sobre as constantes visitas aos pomares empreendidas pelos diversos trabalhadores da Casa de Correção.


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Além de reclamarem das patifarias ditas pelo administrador para justificar a proibição de saírem à rua, os africanos livres ainda se detiveram um pouco mais na alimentação a eles dispensada:

(...) [em] respeito à comida também é uma desgraça, pois nem ao menos [passam o] cheiro do toucinho no caldeirão destes desgraçados quando cometem alguma leve falta sofrem os mais abomináveis castigos do mundo, no cortador do chicote, vão para o libambo, aí dão 2, 3 meses, e depois que acabam de sofrer estes castigos, ainda com uma corrente até decidir o administrador, e durante o tempo que se acham sofrendo estes abomináveis castigos, ficam suspensos do vintém que a Nação lhes manda doar, para comprarem seu fumo (...).

Quando o administrador queria castigar os africanos livres e os demais sentenciados, decerto racionava a comida. O toucinho, além de dar um sabor ao alimento, era uma importante fonte de proteína e gordura aos homens que desempenhavam pesadas atividades. Cansados de serem tratados como presos, os africanos livres ainda reivindicam uma economia moral nos castigos aplicados. Segundo E. P. Thompson:

É possível detectar em quase toda a ação popular do século XVIII uma noção legitimadora. Por noção de legitimação, entendo que os homens e as mulheres da multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de que, em geral, tinham o apoio do consenso mais amplo da comunidade. (THOMPSON, 1998. p. 152).

Embora os africanos livres fossem um grupo social em formação, alguns direitos garantidos por lei foram defendidos pelos manifestantes no documento dirigido ao Imperador. Esses direitos marcavam os limites tanto dos africanos considerados livres, quanto das autoridades. Acreditamos que o conceito formulado por E. P. Thompson se aplica perfeitamente a esse caso. Ao mencionarem o termo “leve falta” em seu manifesto, os africanos livres demonstraram que dividiam as suas possíveis faltas em “leves” e “pesadas”. Neste caso, o administrador das obras Thomé Joaquim Torres estava excedendo os limites do castigo tolerável, “incontestável”. A dúbia condição desses africanos, entre a liberdade e a escravidão, os fazia operar dentro de limites mais próximos do cativeiro do que da


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liberdade. Sendo assim, a prática do castigo era reconhecida por eles desde que fosse justa e corretiva. A assimilação desses valores comprova que, ao tornarem-se ladinos, os africanos livres depositados na Casa de Correção passaram a operar dentro dos parâmetros do cativeiro e, a partir dele, buscar brechas para exercer sua liberdade representada no documento pela possibilidade de passearem pela “circunferência da chácara nos domingos e dias santos” (LARA, 1988). Ao considerarem suas possíveis “faltas” durante o trabalho nas obras como “leves”, o chicote e o libambo6 representavam “castigos abomináveis” (ARAÚJO, 2004). Entretanto, se os manifestantes se considerassem praticantes de faltas graves ou “pesadas”, o tronco e as correntes seriam aceitos como castigos justos e corretivos. Outro fator interessante, que perpassa este trecho é quanto ao pecúlio. Enquanto estavam tutelados ao serviço do Estado nas obras da Casa de Correção, os africanos livres recebiam uma quantia diária pelo trabalho. A féria era estipulada pelo tipo de serviço desempenhado. Os que tinham ofício definido recebiam 20 rs. (vinte réis). Os serventes, que executavam serviços não qualificados, recebiam 10 rs. (dez réis). Quando sofriam qualquer castigo, o pagamento era suspenso. Como podiam ficar até três meses nos libambos, os africanos reclamavam que sem pagamento ficavam impossibilitados de comprar o seu fumo. Nota-se que o dinheiro nas mãos desses africanos poderia comprar qualquer coisa, inclusive aguardente. Mas como refutavam o argumento da embriaguez, citaram apenas o fumo. Além de “abominável”, o libambo tirava do castigado a chance de ter acesso ao seu “vintém”. Algo que diferenciava os africanos livres dos escravos do Calabouço e ao ganho. Detidos ou a serviço do Estado, estes escravos não viam a cor do “vintém”. Os valores eram negociados diretamente com seus senhores, que, em última instância, eram responsáveis pelo seu sustento. Já os africanos livres tinham a Nação como senhor. A dubiedade do status jurídico dos africanos livres residia também na possibilidade de receberem pecúlio (MAMIGONIAN, 2005). Nem sempre os africanos livres a serviço de instituições públicas recebiam pagamento pelos serviços prestados. Durante as obras da Casa de Correção, os africanos livres figuraram nos documentos contábeis.

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Os libambos eram ajuntamento de sentenciados (escravos ou não) que circulavam pelas ruas da Corte transportando água em barris das fontes para as repartições públicas. Trabalho pesado e que durava todo o dia, fizesse chuva ou sol. Além disso, era uma tarefa vexatória, pois nela só trabalhavam os escravos reconhecidos socialmente como insubordinados, praticantes de capoeira ou fugitivos contumazes.


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Havia a possibilidade de, apesar de estarem presentes no movimento financeiro das obras, os africanos livres não receberem o seu “vintém”. O manifesto ajuda a comprovar que o administrador das obras seguia à risca o pagamento dos africanos livres. Todavia, este pagamento era utilizado como uma das formas de coerção ao trabalho e à obediência, e não uma recompensa pelos serviços prestados. Com a ascensão de D. Pedro II ao trono no ano anterior, esses africanos logo o identificaram como seu Senhor, e a ele reportaram as suas reivindicações. O trecho do manifesto destacado acima ilustra as contradições em que estavam imersos os africanos livres, entre o cativeiro e a liberdade. O rosário de lamentações contra o administrador Thomé Joaquim Torres era extenso. As africanas livres também tinham a sua reclamação:

(...) as pretas africanas (...) imploram a V. M. I., como Senhor que é, as mande mudar para o Arsenal de Marinha, pois ali reina outra humanidade do que não na Casa de Correção estas desgraçadas vivem de noite e de dia, domingos e dias santos e dias de serviços trancadas a chave. Hora Imperial Senhor, dar-se barbarismo semelhante, de certo que o administrador não trata seus escravos com tanta barbaridade como trata aos africanos, no dia 16 de [ILEGÍVEL] do ano passado, foi uma preta africana castigada rigorosamente e basta dizer que o castigo foi de tal maneira, que a roupa da [vítima] ficou com um [crivo], dos [vergalhões], assim mesmo naquele mísero estado [foi] metida no libambo, perdeu o seu vintém [e do] libambo não saiu senão no dia 27 de [ILEGÍVEL] dia este que o administrador pegou-lhe (...) e lhe passou pela lembrança (...) pois mandou tirar os ferros (...).7

A presença de mulheres na Casa de Correção se mostrou problemática desde o início das obras. As africanas reclamaram que eram mantidas “trancadas à chave”. É provável que esta atitude dos administradores fosse uma tentativa de conter os possíveis intercursos sexuais entre africanas e demais trabalhadores. Aquele espaço, até mesmo pelas pesadas atividades ali desenvolvidas, era masculino. As poucas mulheres que ali circulavam poderiam servir como um elemento de disputa entre as centenas de homens que trabalhavam nas obras. Outra possibilidade é quanto à articulação de fugas. As africanas cuidavam da cozinha e das roupas, o que necessariamente as obrigava a ter contato com todas as

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BN. Manuscritos, II – 34, 25, 11. “Representação dos presos existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos...”. Grifos nossos.


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categorias de trabalhadores ali estabelecidas: sentenciados, livres, militares, escravos, africanos livres e feitores. Com isso, estavam presentes em todos os lugares, conhecendo a rotina dos guardas e as fragilidades da segurança. Atento a isso, o administrador as mantinha trancadas no período em que não estavam desempenhando suas funções. Como estavam sujeitas ao mesmo tipo de controle exercido sobre os homens, as africanas recebiam o mesmo castigo. E, se os libambos eram pesados para os homens, para as mulheres eles se transformavam em algo muito pior. Vale destacar também que, na década de 1820, o Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras era tido como o pior local para o cumprimento da sentença de trabalhos forçados. A dura rotina marítima incluía ainda o arrasamento da pedreira para a construção de um dique, além da visão funesta da presiganga, navio-prisão para onde eram enviados os sentenciados por crimes políticos (FONSECA, 2003). Algumas atitudes tomadas pelos denunciantes ao longo da sua permanência nas obras transformavam a Casa de Correção num espaço de conflito latente. Essas atitudes foram citadas inclusive pelos próprios africanos livres em seu manifesto. A principal delas é a recusa em aceitar os castigos impostos pelo administrador, seja no pelourinho ou nos libambos. Podemos citar também a embriaguez e o furto nas chácaras vizinhas, embora os manifestantes negassem veementemente. Os africanos que ajudaram a redigir este documento sabiam que eles não eram escravos e nem condenados da Justiça para serem mantidos em celas e ver tolhida a sua liberdade de circulação. Mesmo não tendo nenhuma determinação legal que os protegesse dos desmandos do administrador das obras da Casa de Correção ou de arrematantes particulares, todos sabiam que os castigos impingidos aos negros tinham um limite tolerável. E este limite havia sido ultrapassado pelo administrador Thomé Joaquim Torres. O manifesto dos sentenciados e africanos livres foi escrito em dois de março de 1841. No dia cinco do mesmo mês, já saíra uma nota no jornal Diário do Rio de Janeiro de que “corr[ia]” o boato de que o administrador das obras da Casa de Correção, Thomé Joaquim Torres, seria substituído pelo Major Júlio Frederico Koeler (SOARES, 2001. p. 404).


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Pela intensa troca de ofícios entre as diversas autoridades envolvidas na construção da Casa de Correção, o mês de março de 1841 foi um dos mais agitados desta primeira fase de construção da prisão. No dia 15 de março, o ministro da Justiça, Antonio Paulino Limpo de Abreu, dissolveu a Comissão Inspetora das Obras e demitiu o administrador Thomé Joaquim Torres. Sentenciados e africanos livres saíram vitoriosos da disputa. O boato publicado no Diário do Rio de Janeiro foi confirmado. Assumiu o posto o Major Koeler, comandante do Corpo de Permanentes, responsáveis pela guarda da Correção. Ainda neste conturbado mês de março de 1841, ocorreu a troca do Gabinete Ministerial. No dia 23, caiu o gabinete liberal e os conservadores ascendem ao poder. Assume a pasta da Justiça Paulino José Soares de Sousa. As mudanças políticas trazem de volta à administração da Casa de Correção Thomé Joaquim Torres. Ele ficou pouco mais de um mês fora das obras da prisão. Sentenciados e africanos livres, que se manifestaram contrários a sua gestão, devem ter comemorado a sua demissão. Mas, como na política tudo muda em questão de dias, ou mesmo horas, não contavam que a mudança de Gabinete, e ministros, alteraria os postos administrativos da Casa de Correção. Não só a Comissão Inspetora era a mesma do gabinete liberal, como também o administrador das obras. No documento encaminhado ao Imperador não consta o nome de nenhum dos manifestantes e por isso não temos como checar se algum deles foi transferido das obras para outro empreendimento público, ou mesmo entregue a arrematantes particulares como forma de retaliação. A disciplina e a subordinação continuaram presentes na chácara do Catumbi. Mesmo que Thomé Joaquim Torres tenha saído vitorioso no final da guerra contra sentenciados e africanos livres, alguma mudança para melhor deve ter ocorrido no tratamento dos trabalhadores. Uma vez que a suspeição fora despertada contra a sua gestão, o administrador não poderia deixar brecha para ser demitido novamente. Acreditamos que, no final das contas, se presos sentenciados e africanos livres não venceram a guerra, pelo menos ganharam uma importante batalha. O que consideramos ser muito frente a um inimigo poderoso: o Estado, personificado ali por Thomé Joaquim Torres e pela Comissão Inspetora. Em maio de 1841, estavam empregados na Casa de Correção 46 pedreiros, 58 canteiros, 24 carpinteiros, 11 cavoqueiros, 2 ferreiros, 8 feitores, 5 carreiros, 2 guardas, 1 enfermeiro, 1 chaveiro, 1 porteiro, 135 africanos livres, 62 presos sentenciados, 29 presos


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correcionais e 143 presos do Calabouço. No total eram 528 homens e mulheres sob as ordens diretas do administrador das obras. Para comandar tantas pessoas, a disciplina e a subordinação eram, sem dúvida, fundamentais. Teria chegado ao fim em 1841 a saga dos sentenciados e africanos livres na Casa de Correção? Com certeza não. Ainda faltava muito a ser construído. Nenhum outro manifesto contra os maus tratos foi produzido pelos presos da Casa de Correção da Corte na década de 1840. Porém, outras denúncias vieram de fora das cercanias da chácara do Catumbi. Em outubro de 1845, o ministro da Justiça, Antonio Paulino Limpo de Abreu, enviou um ofício ao administrador das obras da Correção relatando que a Comissão Mista Brasil e Inglaterra8 havia publicado um artigo num periódico londrino denunciando os maus tratos sofridos pelos africanos livres na Casa de Correção. E as denúncias eram coincidentemente muito parecidas com as relatadas pelos africanos em 1841 (BETHELL, 2002). Resta ainda referir-nos aqueles Africanos livres, cuja condição apresenta a mais terrível prova da crueldade e má fé do Governo Brasileiro. Nós colhemos esta informação de uma fonte que não será sem dúvida suspeita. Na Casa de Correção nesta Cidade, uma parte desses africanos é forçada aos trabalhos os mais vis e laboriosos da prisão. A porção que se lhes dá de alimento e roupa está consideravelmente abaixo do que tem um escravo, e é até inferior em qualidade. Para sua habitação destina-selhes um pequeno quarto baixo, no pátio deste estabelecimento à noite esses pobres desgraçados são colocados, ou antes, entulhados. Seus sofrimentos e privações podem ser facilmente [conjecturados]. Ninguém se informa do estado desses seres infelizes, que vivem assim ocupados até que mostre ou a sua incapacidade para o trabalho, lhes altere a sorte.9

Talvez a “fonte” tenha sido um africano livre que tenha passado pelo complexo prisional e, após o manifesto, tenha sido arrematado por algum particular. Ou mesmo, os Comissários Britânicos tenham tido acesso ao documento produzido na prisão. O que 8

Esta comissão era composta por um juiz e um comissário de arbitragem de cada nação, um secretário ou oficial de registro nomeado pelo governo brasileiro. Cabia a Comissão Mista decidir se um navio trazido perante ela era ou não um navio negreiro comerciando ilicitamente africanos além de fiscalizar o cumprimento de tratados assinados entre os dois países em relação à proibição do tráfico de escravos pelo Atlântico e julgar os navios apressados. 9 Os Comissários Britânicos dirigiram o ofício contendo estas informações “ao Conde de Aberdeen, Principal Secretário de Estado de S. M. Britânica” em 22/12/ 1843. Arquivo Nacional (doravante A N.) Série Justiça. IIIJ7 – 139. Casa de Correção. Aviso do Ministro ao Inspetor das obras da Casa. (1834 – 1840). Fls. 166. Em 23/10/1845.


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importa é que as condições em que estavam submetidos os africanos na Casa de Correção haviam chegado a Londres e ao conhecimento do poderoso Conde Aberdeen. Os trabalhos impostos aos africanos na prisão foram considerados “vis” e “laboriosos”. A alimentação era ruim e a roupa usada era considerada de qualidade inferior às usadas pelos escravos. Os africanos livres estavam abandonados à própria sorte. No ofício dirigido ao administrador Thomé Joaquim Torres, o ministro Limpo de Abreu disse que estava “persuadido de que não foram exatas as informações em que por ventura se fundou o ofício dos Comissários Juízes Britânicos ao Conde de Aberdeen”. Contudo, pediu que alguns pontos fossem respondidos pelo administrador, tais como: os serviços desempenhados pelos africanos, a porção e a qualidade dos alimentos e roupas distribuídos, os “ofícios mecânicos” ensinados e a “situação e espaço dos alojamentos que habitavam”.

Assim, o ministro acreditava que teria respostas suficientes para

encaminhar à Comissão Mista.10 Preocupado em não repetir o mesmo calvário que foi a sua demissão em março daquele ano, Torres escreveu um longo ofício respondendo a mais essa denúncia contra a sua atuação à frente das obras, no qual fez questão de repetir todas as denúncias feitas pelos Comissários Britânicos, respondendo uma a uma. Começou a sua defesa partindo para o confronto: Custa acreditar que homens escolhidos para o desempenho de funções que requerem imparcialidade e estudo deixem com tanta facilidade iludirse pelas primeiras impressões dos objetos, de que tem de ocupar-se, e assim induzam o Governo, a quem escrevem a erros que não desejariam. Principiam os Comissários Britânicos por dizerem que colheram informações de uma fonte, que não será sem dúvida suspeita. No seguimento desta exposição mostrarei que as informações não parecem 11 bebidas em fonte muito pura.

Torres atacou a fonte das informações utilizadas pelos Comissários Britânicos, fazendo com que esses fossem iludidos e produzissem um relatório com muita parcialidade. Não tivemos acesso à defesa feita pelo administrador por ocasião do manifesto dos africanos de 1841, mas certamente ele seguiria o mesmo caminho:

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A N. Série Justiça. IIIJ7 – 139. Casa de Correção. Aviso do Ministro ao Inspetor das obras da Casa. (1834 – 1840). Fls. 166. Em 23/10/1845. 11

A N. Série Justiça. IJ7 – 10. Casa de Correção Ofícios com Anexos. (1834 – 1848). Em 28/10/1845.


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desqualificar o(s) informante(s). Mas a essa altura, só desqualificar a versão de maus tratos aos africanos livres não seria suficiente. O clima belicoso entre os impérios Brasileiro e o Britânico sobre a questão do tráfico repercutiu no interior da Casa de Correção. Qualquer atitude contra a integridade dos africanos livres poderia ser usada contra os esforços empreendidos pelas autoridades imperiais em resolver o imbróglio diplomático. Todos os Africanos que existem, e tem existido neste Estabelecimento, tem ofícios mecânicos (com exceção dos que se empregam no serviço da horta, carreiros e cozinha) principiam o trabalho às 6 horas da manhã, deixam-no às 8 até 8 e meia para almoçarem; do meio dia às 2 horas para jantarem e às 6 da tarde para cearem, rezarem a doutrina Cristã e deitarem-se, não sendo ocupados em mais serviço algum; estas horas variam segundo a Estação do Ano.12

Segundo o administrador, os africanos livres dedicavam nove horas e meia de seu tempo ao serviço das obras, sempre em ofícios mecânicos, o que corresponderia a dizer que não desempenhavam nenhum serviço insalubre ou perigoso. Os que se dedicavam aos serviços gerais, como os carreiros (carregadores, servente de pedreiros), e todos os demais que estavam executando tarefas ligadas à agricultura e à cozinha também não desempenhariam nenhum trabalho vil. Quanto à alimentação, tão duramente criticada pelos manifestantes em 1841, Torres afirmou ser “uma abundante ração” de qualidade que em “nada deixa a desejar” e que poderia ser comprovada por qualquer um que quisesse conferir, pois a “ração” era “distribuída com toda a publicidade”, assim como os armazéns “da arrecadação dos gêneros [estavam] e sempre estiveram patentes nesta Casa para qualquer [um] examinar e julgar da sua qualidade”. E, ainda, os africanos livres e demais presos da Correção tinham a sua disposição “verduras da horta e frutas da chácara para o jantar”. É interessante notar que pouco mais de quatro anos depois do manifesto, Torres respondia à contestação dos comissários britânicos aos maus tratos sofridos no interior da prisão nas mesmas bases da resposta ao documento produzido pelos africanos. Seria esse um indicativo de que o administrador tivesse considerado a fonte dos estrangeiros o próprio manifesto de 1841? No ano de 1845 havia 83 africanos livres trabalhando nas obras da Casa de Correção, dos quais 21 eram pedreiros, 12 carpinteiros, 17 canteiros, 16 cavoqueiros, 10 12

A N. Série Justiça. IJ7 – 10. Casa de Correção. Ofícios com Anexos (1834 – 1848). Em 28/10/1845.


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ferreiros, 5 carreiros e 2 cozinheiros. Além de todos aqueles que estavam sendo utilizados no serviço da obra, existiam ainda oito que estavam ocupados com o serviço da chácara e horta e juntamente com aqueles outros detentos perfaziam o total de 91 africanos livres que estavam sob a responsabilidade do administrador das obras da Correção (TORRES, 1846. p. 32 e 33). Sem dúvida, após os incidentes registrados em 1841 e em 1845, algumas medidas foram tomadas pelo administrador na tentativa de melhorar as condições de vida dos africanos livres dentro da Correção. A principal delas foi reduzir o número de africanos na prisão e entregar as africanas a arrematantes particulares, evitando assim as possíveis “perturbações da moralidade” que tais mulheres circulando pela chácara poderiam provocar. Conclusão Entre 1831 e 1850, entraram no Brasil muitos africanos ilegalmente. Uma parte considerável dos navios não fora detida pelas autoridades, muitas vezes por incompetência e outras tantas por conivência. Segundo Jaime Rodrigues, “Os incidentes entre brasileiros e ingleses [ocorridos a partir de 1845] teriam contribuído para um ‘pronunciado sentimento antibritânico nos centros urbanos do país”, e, de modo geral, as atitudes das “populações regionais” teriam contribuído para o sucesso de "desembarques clandestinos” (RODRIGUES, 2000. p. 174). Durante um longo período a população participou, mesmo que indiretamente, do “infame comércio”. Em 28 de dezembro de 1853, um decreto determinou que os africanos apreendidos no tráfico ilegal, após trabalharem 14 anos para particulares, deveriam ser emancipados. No entanto, para terem direito à liberdade, os africanos deveriam requerê-la à justiça. Este decreto determinava apenas a emancipação dos africanos que haviam servido a particulares. Por outro lado, aqueles africanos livres que serviam em instituições públicas estavam de fora das condições legais exigidas pelo decreto porque, após ficarem velhos, os africanos poderiam ser devolvidos pelos arrematantes, acarretando mais despesas ao erário público. Assim, os africanos que permaneceram servindo às instituições públicas teriam a sua força de trabalho utilizada pelo poder público até a exaustão. O que, em certa medida, também acarretava uma economia, pois o Estado teria sempre mão de obra disponível para realizar todas as obras de que precisava.


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Os procedimentos de “arrematação” e aluguel estabelecidos pelo Estado para o acesso à mão de obra dos africanos livres por particulares enquadravam esses africanos em limites conhecidos pelos senhores de escravos, facilitando assim o pretendido controle social desses agentes. Cabe ressaltar que nos diversos decretos e avisos não consta nenhuma penalidade em casos de maus tratos impingidos aos africanos pelos arrematantes particulares. A partir dos anos 1850, diversas petições chegaram à justiça com os africanos pleiteando a sua liberdade, uma vez que o decreto de 1853 limitava o tempo em que estes deveriam ser mantidos tutelados pelo Estado. A categoria “africanos livres” existiu em todos os países e colônias onde ocorreu a repressão ao tráfico de escravos e a captura de navios negreiros. Porém, a sua maior incidência se deu nas regiões onde foram estabelecidos os tribunais e comissões mistas que se encarregaram de julgar os traficantes e, dentre eles, destacamos Brasil, Serra Leoa, Cuba, Bahamas e Jamaica (MAMIGONIAN, 2005). A saga desses trabalhadores no Império brasileiro se estendeu até a década de 1860, quando enfim tiveram a sua liberdade reconhecida pelo Estado. Durante mais de três décadas, milhares de homens e mulheres negros estiveram à mercê da exploração e do cativeiro estatal mesmo sendo legalmente livres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. Cárceres Imperiais: a Casa de Correção do Rio de Janeiro. Seus detentos e o sistema prisional no Império, 1830-1861. Tese de Doutorado em História Social. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2009. _____. O Duplo Cativeiro. Escravidão Urbana e Sistema Prisional no Rio de Janeiro. 1790 – 1808. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social /UFRJ, 2004. BETHELL, Leslie. A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a Questão do Comércio de Escravos. 1807 – 1869. Coleção Biblioteca Básica Brasileira. Brasília: Senado Federal, 2002. FLORENCE, Afonso B. Entre o cativeiro e a Emancipação: A liberdade dos africanos livres no Brasil (1818 – 1864). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBa, 2002.


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FONSECA, Paloma Siqueira. A presiganga real (1808 – 1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social. Dissertação em História. Brasília: UNB, 2003. KARASCH, A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808 – 1850. São Paulo: Cia das Letras, 2000. LARA, Silvia H. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750 – 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. MAMIGONIAN, Beatriz G. “Revisitando a “transição para o trabalho livre”: a experiência dos africanos livres”. In: FLORENTINO, Manolo (org).Tráfico, cativeiro e liberdade, Rio de Janeiro, século XVII – XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pp. 389 – 417. MOREIRA, Allinie Silvestre. Liberdade Tutelada: os africanos livres e as relações de trabalho na Fábrica de Pólvora da Estrela, Serra da Estrela / RJ (c. 1831 – c. 1870). Dissertação de Mestrado. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Unicamp, 2005. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil, 1800 – 1850. Campinas, SP: Editora Unicamp, CECULT, 2000. SOARES, Carlos Eugenio L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas, SP: Unicamp, 2001. ____. Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: APERJ, 1998. SOUSA, Jorge Luis Prata de. Africano Livre ficando livre: trabalho, cotidiano e luta. Tese de Doutorado em História Social. São Paulo, 1999. THOMPSON, E.P. “A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII”. In: Costumes em Comum: Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo, Cia das Letras, 1998.

FONTES DOCUMENTAIS

BIBLIOTECA NACIONAL. Manuscritos, II – 34, 25, 11. “Representação dos presos existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos que trabalham nas obras públicas da mesma Casa, pedindo a intervenção de S. M. I. para melhorar-lhes a insuportável situação em que viviam”. Em 02/03/1841.


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BRANCO, Manuel Alves. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça de 1834, apresentado a Assembleia Geral Legislativa em maio de 1835. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1835. CLB. Atos do Poder Legislativo. Lei de 07 de Novembro de 1831. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1875. pp. 182 – 183. PANTOJA, Gustavo Adolfo de Aguilar. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça de 1836, apresentado a Assembleia Geral Legislativa em maio de 1837. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1837. TORRES, José Joaquim Fernandes. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça de 1845, apresentado a Assembleia Geral Legislativa em maio de 1846. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1846.


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História e historiografia no caso das pensões vitalícias dos ex-voluntários da pátria na Guerra da Tríplice Aliança (1907-1912) Fernando da Silva Rodrigues 1

Introdução O presente artigo tem por finalidade revelar os resultados da pesquisa de iniciação científica financiada pelo PROAPE, que foi desenvolvida durante o ano de 2011 e o ano de 2012, no UNIABEU Centro Universitário, pelo qual procuramos analisar historicamente uma parcela da totalidade dos documentos de uma coleção de processos jurídicos sobre pedido de pensão vitalícia dos ex-voluntários da Pátria que lutaram na Guerra do Paraguai, também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança, que se encontram depositados no Arquivo Histórico do Exército (AHEx). Foram analisados desde o dia 12 de abril de 2011 os processos que estão guardados no AHEX. Os bolsistas de Iniciação Científica Daiana da Silva Gomes Felix e David Coutinho colheram dados que foram cadastrados e posteriormente foram analisados quantitativa e qualitativamente. Concomitantemente tivemos a publicação de um artigo completo com dados iniciais da pesquisa, no Simpósio Nacional de História, em 2011, e a publicação de um capítulo no livro História Social das Fronteiras, lançado em 2013. Ocorrida a mais de cento e quarenta anos, a Guerra do Paraguai envolveu quatro países do Cone Sul, opondo, de um lado o Paraguai, e, de outro, a Argentina, o Brasil e o Uruguai. Embora tenha sido o maior conflito dessa parte do continente, e tendo se estendido por mais de cinco anos, muitas de suas facetas ainda permanecem praticamente inexploradas, por exemplo, a abordagem da participação dos diversos grupos étnicos e sociais na campanha, em especial, como esses indivíduos aparecem nas memórias de escritores daquela guerra, da mesma forma que nos diversos documentos, como fotografias, revistas, jornais e pinturas. Outro exemplo do que ainda pode ser estudado é a abordagem do impacto da guerra na sociedade e na economia 1

Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Severino Sombra, Pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra, e bolsista da FAPERJ.


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brasileira, e a própria análise do contexto político da implantação das pensões para veteranos de guerra, especificamente no caso desta pesquisa, as pensões vitalícias dos ex-Voluntários da Pátria, implantadas no ano de 1907, momento marcado pela gestão modernizadora do General Hermes da Fonseca, Ministro de Estado da Guerra (15 de novembro de 1906 a 06 de agosto de 1908; 06 de novembro de 1908 a 27 de maio de 1909), responsável pela aplicação das significativas mudanças renovadoras da Instituição2, tais como: a Lei de Reorganização do Exército, de 19083; a reorganização do Estado-Maior do Exército (EME)4, mais compatível com a preparação para a guerra; a criação de Grandes Unidades permanentes5− no início chamadas de Brigadas Estratégicas, posteriormente, substituídas pelas Divisões de Infantaria e Cavalaria −; a Lei do Serviço Militar Obrigatório, de 19086; a elaboração dos regulamentos de emprego das Armas destinados à instrução da tropa e dos quadros; a aquisição de armamento e o reaparelhamento das fábricas. 2

RODRIGUES, Fernando. Indesejáveis: Instituição, pensamento político e formação profissional dos Oficiais do Exército brasileiro (1905-1946). Jundiaí: Paco Editorial, 2010, p. 80. 3 Arquivo Histórico do Exército (AHEx). Coleção de Leis do Brasil. Lei Nº. 1860, de 04 de janeiro de 1908. O título IX desta Lei trata da reorganização do Exército – do Art. 105 ao Art. 139. O Art. 105 regulava que o Exército seria organizado sobre as seguintes bases: 1) das forças de 1ª linha ou Exército ativo e sua reserva; 2) das forças de 2ª linha e sua reserva. Art. 108 regulava que além do Comando-Chefe, que é exercido pelo presidente ou seu delegado, no caso de guerra, o Exército teria também o comando hierárquico, que seria exercido pelos oficiais à testa das grandes e pequenas unidades. Art. 109 regulava que o Ministério da Guerra seria o órgão imediato do comando superior, servindo órgãos mediatos, isto é, dependentes daquele: a) o Estado-Maior; b) as Inspeções. O ministro, como auxiliar do Chefe de Estado, participava das funções de comando, ficando a sua função, em época normal, adstrita a subscrever os atos do Presidente da República e a presidir o Exército, de acordo com o Art. 49 da Constituição Federal (Art. 110). 4 O EME foi criado pela Lei Nº. 403, de 24 de outubro de 1896, publicada na Ordem do Dia da Repartição do Ajudante-General do Exército Nº. 778, de 31 de outubro de 1896, cuja função era preparar a Instituição para a defesa da Pátria, para isso, era especialmente encarregado do estudo e aplicação de todas as questões relativas à organização, direção e execução das operações militares, ficando os comandos das forças e as direções dos diversos serviços militares sob sua ação, no que concerne à instrução e disciplina da tropa. No entanto, somente em janeiro de 1899, mais de dois anos depois de sua criação, o EME tornouse realidade, com a extinção da Repartição do Ajudante-General do Exército, pelo Decreto Nº. 3.189, de 06 de janeiro de 1899, que aprovou seu primeiro Regulamento publicado no Diário Oficial, de 09 de janeiro de 1899. As causas dessa demora podem ser encontradas nos esforços concentrados que tiveram que ser feitos para debelar a Revolta de Canudos. Pelas normas desse Regulamento esteve o EME subordinado até 1909, quando passou a vigorar outro regulamento. A Lei Nº. 1.860, de 04 de janeiro de 1908, que regulou o alistamento e sorteio militar, e reorganizou o Exército em seus artigos 111 a 115 estabeleceu novas bases para a reorganização do EME e extinguiu de vez o Corpo de Estado-Maior, abrindo o quadro aos oficiais de todas as Armas. Essas modificações se corporificaram no Regulamento aprovado pelo Decreto Nº. 7.389, de 29 de abril de 1909. ESTEVES, Diniz. Documentos Históricos do Estado-Maior do Exército. Brasília: EME, 1996, p. 23. 5 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto Nº. 7.054, de 06 de agosto de 1908, cria cinco Brigadas Estratégicas e três Brigadas de Cavalaria. 6 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Lei Nº. 1860, de 04 de janeiro de 1908, que regula o alistamento e o sorteio militar, e reorganiza o Exército. O Art. 1º dispunha que todo cidadão brasileiro, desde a idade de 21 á de 44 anos completos, é obrigado ao serviço militar, na forma do Art. 86 da Constituição da República e de acordo com as prescrições desta lei. No entanto, só a 10 de dezembro de 1916 se realizou pela primeira vez no País o sorteio militar em todas as regiões militares.


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Todas essas providências foram tomadas no governo do Presidente Affonso Augusto Moreira Pena (15 de novembro de 1906 a 14 de junho de 1909) que, pela situação de prosperidade econômica do país depois do período de saneamento do Presidente Manuel Ferraz de Campos Sales (1898 – 1902), pôde criar as condições para reformas estruturais de profundidade. Em relação à pesquisa publicada neste artigo, pretendemos mostrar alguns resultados iniciais da análise dos processos de pedido de pensão vitalícia dos exVoluntários da Pátria da Guerra do Paraguai, pleiteada pelos veteranos, pelas viúvas dos ex-combatentes e por outros parentes, no período de 1907 a 1912. Os limites temporais deste trabalho foram determinados pelo início dos processos jurídicos de direito aos pensionistas que foi legitimado pela implantação do Decreto nº 1.687, de 13 de agosto de 1907. E o limite final escolhido, ano de 1912, foi determinado pela dinâmica dos trabalhos em função do tempo, deu-se de maneira que pudéssemos analisar um conjunto de cinco anos de atividades processuais, tratando-se, nesse caso, de uma análise parcial da totalidade de documentos existentes no Arquivo Histórico do Exército, que se estendem até o ano de 1984. A documentação da Guerra do Paraguai do Arquivo Histórico do Exército é proveniente da Secretaria do Gabinete do extinto Ministério da Guerra, depositada nesse Arquivo entre as décadas de 1930 e 1960. É uma documentação autêntica, composta por Ordens do Dia (impressas) relativas aos diversos Comandos durante a Campanha − correspondência entre as autoridades aliadas (brasileiras, argentinas e uruguaias) em códices manuscritos e pedidos de pensão vitalícia de ex-Voluntários da Pátria. Esse acervo faz referência importante aos aspectos econômicos e sociais que podem ser revelados numa leitura atenta e na análise sistemática das informações sobre pedido de pensão, recrutamento, armamento, treinamento, transporte e cuidados médicos, não só dos comandantes e Oficiais, como também de milhares de combatentes anônimos que refletem um pouco da diversidade étnica, cultural, social e econômica da população brasileira no século XIX. Já os assuntos tratados pela correspondência (manuscritos) entre os diversos comandantes brasileiros e estrangeiros tratam desde a administração militar − movimentações de tropas, requisições de material −, até o transporte de prisioneiros paraguaios para o Brasil. Estamos tratando a abordagem das fontes tanto em nível quantitativo (História Serial), como em nível qualitativo, por meio de uma análise intratextual e intertextual. Suas origens históricas são diversas e, para alcançar o objetivo pretendido, estão sendo


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usados documentos privados e oficiais, nesse caso, sendo a base principal da documentação utilizada nesta pesquisa. A abordagem qualitativa, realizada por meio de análise intra e intertextual, tem sido utilizada para investigar as fontes bibliográficas, os argumentos jurídicos nos pedidos de pensão, os acervos pessoais, as correspondências oficiais, e os relatórios emitidos pelos diversos órgãos do Ministério da Guerra e pelo próprio Ministério, cujos textos estão sendo observados enquanto discurso de época, compreendido e questionado quanto à formulação dos atores políticos, ao papel da elite militar e à construção do Estado e da Nação. Ainda no tocante à nossa análise qualitativa, estabelecemos um estudo sobre a coleção de leis do Brasil, dos anos de 1864 e, principalmente, de 1865, visando ao entendimento da dinâmica do recrutamento, vantagens e compreensão do que seria esse corpo, criado para engrossar as fileiras do Exército que atuava na Guerra do Paraguai, denominado: “Voluntários da Pátria.” Para uma abordagem quantitativa, estamos realizando uma análise serial dos processos individuais de pedido de soldo vitalício dos ex-Voluntários da Pátria − retornados da Guerra do Paraguai, principal instrumento para obter o benefício do Estado −, construindo uma tabela tipificando os recrutados na sociedade brasileira. Existe no acervo do Arquivo Histórico do Exército uma quantidade ainda não avaliada de processos, que não foram utilizados em pesquisas acadêmicas, datados de 1907 a 1984. Nos processos verificados por amostragem, constatamos a possibilidade de identificar dados pessoais do ex-Voluntário da Pátria, como nome, naturalidade, posto ou graduação, organização militar onde serviu durante a guerra, cor da pele, origem social e regional, entendimento jurídico, resultados marcados pelo contexto das reformas modernizadoras do Ministro e, posteriormente, Presidente, Hermes da Fonseca. O debate historiográfico da Guerra do Paraguai passou por mudanças profundas desde o desencadeamento do conflito, sofrendo influência específica de cada tempo histórico sobre os pensamentos dos autores, o que facilitará nossa compreensão de como foram possíveis as diversas variações de narrativas. Desde o início da guerra (1864) até os anos 1970, foi produzida a chamada “historiografia tradicional”, nessa corrente encontram-se duas linhas fundamentais de análise da guerra. A primeira dá ênfase àqueles que lutaram na campanha do Paraguai, nesse viés da corrente tradicional são exaltados os líderes do Exército brasileiro, com a intenção de construir “heróis” nacionais que honrosamente lutaram em nome da Pátria. Já uma segunda vertente, dentro da própria corrente tradicional, destaca e explica as causas


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da guerra a partir das ambições expansionistas de Francisco Solano López. Traçam uma figura “bárbara” que os Aliados precisavam combater em prol da civilização. De 1960 até o final da década de 1980, a Guerra do Paraguai é interpretada especialmente, mas não somente, pelos “revisionistas”. Essa corrente historiográfica está mais preocupada com a luta ideológica que permeia o mundo contemporâneo. Produzida essencialmente no período de Guerra Fria, essa historiografia refletiu as lutas entre capitalismo e socialismo, entre direita e esquerda, colocando sobre a Inglaterra a única e intransferível culpa pelo conflito. Além dessa característica, a corrente revisionista destaca-se por apresentar pontos positivos sobre o Paraguai, indo claramente de encontro à historiografia tradicional. O revisionismo trata Solano López, o líder paraguaio, como uma “vítima” da ambição britânica. Esse tipo de visão exclui, de certa forma, os latino-americanos enquanto sujeitos históricos; trabalha com a ideia de pura manipulação inglesa e capitalista, visando a impedir a larga ascensão, econômica e militar, de um país com tendências socialistas e igualitárias. Temendo também que este viesse a se tornar um exemplo para os países vizinhos. Do período de 1980 em diante, os estudos sobre o conflito foram e vêm sendo revitalizados com maior preocupação em termos de parcialidade. A Nova História Política procura compreender a guerra como um fator de interesse de todos os envolvidos, sem apontar culpados ou inocentes. Os trabalhos realizados por esses novos profissionais buscam destacar que as razões para o conflito não teriam sido apenas parte de uma intervenção externa ou da ação incontrolável e expansionista de um homem. Esses autores consideram como causas da guerra as ações, os interesses e as contradições de todos os países envolvidos, desde a divergência de sua colonização (espanhóis e portugueses), até a busca pela formação de uma identidade e afirmação do poder político na região do Prata.

1. O Corpo de Voluntários da Pátria: da organização para a Guerra do Paraguai ao recrutamento. Quanto ao recrutamento, podemos distinguir diversos tipos utilizados por ocasião da guerra. Os dois modelos que se definiam pela disputa de poder que se iniciara ainda na Regência eram o Exército de Linha, ou tropa regular, Instituição pública a cargo do Ministério da Guerra; e a Guarda 7

Nacional , ou tropa não regular, Instituição privada, vinculada diretamente ao Ministério da

7

Instituição criada pela Lei S/Nº de 18 de agosto de 1831, a Guarda Nacional foi uma construção política engenhosa que ligava os “homens da sociedade”, parcela cidadã da população que teria muito a perder,


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Justiça. O terceiro modelo surgiu da necessidade de aumentar o efetivo para o conflito contra o Paraguai, o Corpo de Voluntários da Pátria.

Em 7 de janeiro de 1865, o Imperador decretou a Lei nº. 3.3718, que criava extraordinariamente o Corpo de Voluntários da Pátria, composto de todos os cidadãos maiores de dezoito e menores de cinquenta anos, que, voluntariamente, quisessem se alistar, sob as condições e vantagens9 que a lei permitia. Quinze outros artigos regularam a Lei de Voluntários da Pátria, em que eram oferecidas vantagens e benefícios, tais como: a baixa do serviço depois de declarada a paz; concessão de passagem para onde solicitassem; concessão de regalias, direitos e privilégios das praças do Exército para serem reconhecidos Cadetes ou Particulares, e pudessem ser promovidos a Oficiais, quando se distinguissem em combate; direito de desistirem da baixa, depois de feita a paz; de continuarem servindo por mais três anos, recebendo além das outras vantagens, trezentos mil réis, sendo cem mil réis no ato, e o restante ao fim de três anos; e a concessão de uma pensão ou meio-soldo às famílias, cujos chefes viessem a falecer em consequência de ferimentos sofridos em combate. Nossas análises circulam também em torno do decreto nº. 1687, de 13 de agosto de 190710, que concede aos sobreviventes veteranos da Guerra do Paraguai a garantia do soldo vitalício, correspondente ao posto em que se encontravam à época de sua dispensa. Por conta da necessidade do Estado, o Império decretou, ainda, em 4 de agosto de 1865, a equiparação dos Corpos de Voluntários da Guarda Nacional aos Corpos de Voluntários da Pátria, que, pelo Decreto nº. 3505, determinava: Artigo Único. Os Corpos da Guarda Nacional, que com a sua organização

atual,

com

os

seus

oficiais

e

praças

voluntariamente se prestarem para o serviço de guerra, serão caso aquele emaranhado de interesses conflitantes chamado Império do Brasil, viesse a soçobrar. Entretanto, observando-a estritamente como força militar, era uma tropa que não tinha instalações fixas e regulares, que não recebia vencimento, que custeava seus próprios uniformes, mal armada e precariamente instruídas. Assim, jamais poderia ser levada muito a sério, a não ser nas declarações ufanistas dos Ministros da Justiça. OLIVEIRA NETO, Amaro Soares de. O Exército brasileiro e a Guarda Nacional: as tensões e contradições do modelo de defesa terrestre (1850-1873). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: ECEME, 2005, p. 24. 8 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto n. 3371, de 7 de janeiro de 1865. 9 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto n. 3371, de 7 de janeiro de 1865, Artigo 2º. Os voluntários, que não forem Guardas Nacionais, terão, além do soldo que percebem os voluntários do Exército, mais 300 réis diários e a gratificação de 300$000 quando derem baixa, e um prazo de terras de 22.500 braças quadradas nas colônias militares ou agrícolas. 10 AHEx. Ordens do dia. Decreto N. 1687, de 13 de agosto de 1907.


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equiparados aos Corpos de Voluntários da Pátria e gozarão de todas as vantagens que a estes são concedidas11. A legislação implantada incentivou a participação de muitos indivíduos que atenderam ao chamado do Estado. Vários soldados incorporaram no Exército para defender a pátria, mas, principalmente, para obter melhor condição econômica. O passar dos anos revelou não ser mais possível continuar à espera dos voluntários, que se tornavam cada vez mais escassos, levando o Império a reagir com o recrutamento forçado, modelo mais adequado à época. Com relação à organização das unidades militares para a guerra, destacamos, nesta pesquisa, os Corpos de Voluntários da Pátria, organizados em tropas de Cavalaria e Infantaria. A 12

obra do General Paulo de Queiroz Duarte , apesar do ufanismo, talvez seja, ainda, a melhor fonte bibliográfica para compreender e resgatar a estrutura organizacional desse grupo na Campanha do Paraguai. Geograficamente, o Rio Grande do Sul foi o responsável pela mobilização de quase toda a Cavalaria, que teve na Guarda Nacional o seu espaço de recrutamento. Da Corte e das províncias do norte e nordeste foram convocadas, principalmente, as tropas de Infantaria. Para Duarte, 75% dos Batalhões do Exército de Linha eram formados por Corpos de Voluntários da Pátria13. Na mobilização inicial, nas vinte províncias que constituíam o Império do Brasil, destacamos a seguinte organização do efetivo que combateu na Guerra: 1)

Província da Bahia: organizou quatorze Corpos de Voluntários da Pátria, com a seguinte

numeração – 3º, 10º, 14º, 15º, 23º, 24º, 29º, 40º, 41º, 43º, 46º, 53º, 54º, 57º, além das quatro Companhias isoladas de Zuavos14 e uma Companhia de Couraças. Alguns desses Corpos foram dissolvidos na 1ª fase da Campanha pelos Generais Osório e Visconde de Porto Alegre. No início do Comando do Marquês de Caxias só existiam oito Corpos, que a partir de 20 de dezembro de 1866 foram renumerados. O 3º, 10º, 15º, 57º passaram a ser, respectivamente, 25º, 41º, 45º, 54º. Durante a 2ª fase da Campanha, três desses oito Corpos foram dissolvidos: o 25º (ex-15º), o 46º, e o 57º (ex-54º), que atuaram em toda a Guerra. 2)

Província de Pernambuco: organizou nove Corpos de Voluntários da Pátria, com a

seguinte numeração − 11º, 14º, 21º, 22º, 30º, 44º, 51º, 52º, 56º, e uma companhia de Zuavos. 11

AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto n. 3505, de 4 de agosto de 1865, p. 329. DUARTE, Paulo de Queiroz (1981). Os voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Volume 1. Rio de Janeiro: Bibliex. 13 Ibid, p. 206. 14 Nome de uma tribo Kabila da que se tiravam os infantes dos antigos boys da Argélia, soldados dos regimentos especiais de infantaria de um corpo do Exército francês, na África, criado em 1831, primeiramente recrutados entre os nativos. No Brasil foram chamadas de Zuavos baianos, as companhias organizadas entre negros do Nordeste que tomaram parte na Guerra do Paraguai, nos Corpos de Voluntários da Pátria. ALBUQUERQUE, Caetano M. de F. e. Diccionaário Téchnico Militar de Terra. Lisboa: Typographia do Annuario Commercial, 1911. 12


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Na 1ª fase da Campanha foram dissolvidas cinco das unidades de Pernambuco. Quando assumiu o Comando da tropa, o Marquês de Caxias encontrou quatro delas: a 11ª, a 21ª, a 30ª e a 51ª (ex-Corpo Policial da Província). Na reformulação da numeração, em dezembro de 1866, duas mudaram o número: a 11ª passou a ser 42ª, e a 21ª passou a ser 52ª. As duas restantes, a 30ª e a 51ª, conservaram a numeração original. Em dezembro de 1868, o 42º (antigo 11º) foi dissolvido, ficando apenas três Corpos que participaram de toda a Campanha do Paraguai: o 30º, o 51º e o 53º (ex-21º). Ao final da guerra, o Conde d’Eu determinou a reorganização do 42º (ex-11º), o primeiro Corpo de Voluntários da Pátria mobilizado na Província nordestina. 3)

Província do Rio Grande do Sul: a região forneceu quase todas as unidades de

Cavalaria e organizou cinco Corpos de Voluntários da Pátria, com a seguinte numeração − 9º, 33º, 35º, 48º, 49º. A mobilização da Cavalaria contou com quarenta unidades que conservaram a designação dos Corpos Provisórios de Cavalaria da Guarda Nacional. Dos cinco Corpos de Voluntários, dois eram Batalhões de Infantaria Montados da Guarda Nacional, com a originária designação de 3º, o de São Borja, e o 4º, de Uruguaiana, que passaram a ser, respectivamente, o 48º e o 49º Corpo de Voluntários da Pátria. Ao assumir o comando da tropa, Caxias só encontrou dois deles: o 9º e o 49º. Na renumeração de dezembro de 1868, as duas unidades foram dissolvidas. 4)

Corte do Rio de Janeiro: organizou sete Corpos de Voluntários, com a seguinte

numeração: 1º, 2º, 4º, 9º, 31º, 32º, e 38º. Desses Corpos, três foram recrutados nas várias províncias (9º, 32º e o 38º), e os quatro restantes, com o pessoal do Rio de Janeiro (1º, 2º, 4º, e o 31º). O 31º representou o Corpo Policial da Corte. Na 1ª fase da Campanha, o 9º Corpo de Voluntários foi dissolvido pelo General Osório. Na renumeração de dezembro de 1866, o 1º, o 2º e o 4º passaram a ser 23º, 24º e 27º. Os outros três continuaram com a numeração original. No comando de Caxias foram dissolvidos o 24º (ex-2º), o 32º e o 38º, permanecendo o 23º, o 27º e o 31º, que participaram de toda a guerra. 5)

Província do Rio de Janeiro: organizou quatro Corpos de Voluntários da Pátria, que

receberam a seguinte numeração: 5º, 6º. 8º e 12º. Em dezembro de 1866, receberam nova numeração: 28º, 33º, 37º e 44º, respectivamente. Em março de 1868, por falta de efetivo, o 37º (ex-8º) foi dissolvido. O 44º (ex-12º) era formado pelo Corpo de Polícia da província. Nos conflitos de dezembro de 1868, os três restantes foram dissolvidos. Ao final da Guerra, o 44º foi reorganizado e retornou ao Brasil. 6)

Província de Minas Gerais: organizou três Corpos de Voluntários, com a seguinte

numeração: 17º, 18º e 27º. O 17º, organizado em Ouro Preto, integrou a Brigada Mineira e participou até o final da Guerra. O 18º também foi organizado em Ouro Preto, e teve sua


60

numeração mudada com a reforma de dezembro de 1866, quando passou a ser o 49º Corpo de Voluntário, sendo dissolvido em 1868, por falta de efetivo. 7)

Província do Maranhão: organizou três Corpos de Voluntários, com a seguinte numeração:

22º, 36º e 37º. O 22º fez seu recrutamento entre elementos da Polícia Militar da província. No comando de Caxias, só estava em atividade o 36º, que conservou sua numeração original até ser dissolvido, em 23 de dezembro de 1868, sendo reorganizado pelo Conde d’Eu, quando era o comandante do Exército Imperial em operações no Paraguai. 8)

Província de São Paulo: organizou três Corpos de Voluntários, com a seguinte numeração:

7º, 42º e 45º. Os dois últimos Corpos foram dissolvidos na 1ª fase da Campanha. Ao assumir o comando do Exército, Caxias encontrou na ativa apenas o 7º, que recebeu nova numeração em dezembro de 1866, passou a ser designado de 35º Corpo de Voluntários e participou até o final da guerra. 9)

Província do Pará: organizou dois Corpos de Voluntários, com a seguinte numeração: 13º

e o 34º. O primeiro foi dissolvido no início da Campanha, o 34º participou durante quatro anos dos combates e foi dissolvido por Caxias, em dezembro de 1868. 10)

Província do Piauí: organizou um Corpo de Voluntários, o 39º, e contribui para o

recrutamento de mais dois Corpos: o 19º Corpo de Voluntários, formado pela Companhia de Polícia Militar do Piauí, do Ceará e de Sergipe; e o 55º, formado por elementos do Piauí e do Rio Grande do Norte. Quando assumiu o comando do Exército, o Marquês de Caxias encontrou, ainda, o 19º na ativa, que, na renumeração de dezembro de 1866, passou a ser o 50º Corpo de Voluntários, lutando em toda a guerra. 11)

Província do Ceará: organizou um Corpo de Voluntários, o 26º, e contribui para o

recrutamento do 19º Corpo de Voluntários, junto com elementos de Sergipe e do Piauí. Em dezembro de 1868, o Marquês de Caxias dissolveu o 26º, que foi reorganizado pelo Conde d’Eu, em 8 de março de 1870. 12)

Província da Paraíba do Norte: organizou dois Corpos de Voluntários, com a seguinte

numeração: 21º e o 47º. Em dezembro de 1866, Caxias só encontrou na ativa o 47º, que, na renumeração de dezembro, manteve o número original. A unidade foi dissolvida em 23 de dezembro de 1868. 13)

Província de Alagoas: organizou o 20º Corpo de Voluntários, formado em parte com

elementos do Corpo Policial da província. Em 20 de dezembro de 1866, com a reforma da numeração, a unidade passou a ser designada 52º. Permaneceu na ativa até março de 1868, quando foi dissolvida. 14)

Província do Rio Grande do Norte: organizou o 28º Corpo de Voluntários e forneceu

elementos para constituir o 55º, junto com o Piauí. Com a renumeração de dezembro de 1866, o 28º já não existia, pois, foi dissolvido em janeiro de 1866 pelo General Osório. 15)

Província do Mato Grosso: organizou o 50º Corpo de Voluntários, empregado com


61

unidades da Guarda Nacional na defesa da província. 16)

Província de Goiás: organizou o 16º Corpo de Voluntários que seguiu para o Mato Grosso

e foi incorporado à Coluna Expedicionária, que operou militarmente no sul da província. Em junho de 1866, a unidade foi incorporada ao 20º Batalhão de Linha. 17)

Província do Paraná e Santa Catarina: juntas organizaram o 25º Corpo de Voluntários, que

foi dissolvido pelo General Osório. 18)

Corpo de Voluntários Estrangeiros: o 16º Corpo de Voluntários, unidade conhecida como

Batalhão Garibaldino, foi constituído por mercenários estrangeiros, italianos na sua maioria. Na reformulação de 1866, a unidade recebeu a seguinte numeração, 48º Corpo de Voluntários, dissolvido em outubro de 1867. ORGANIZAÇÃO DOS CORPOS DE VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA Renumeração Unidades Província Numeração Dissolvidas Antiga Nova Bahia 3º, 10º, 14º, 15º, 3º 25º 25º (ex-15º) 23º, 24º, 29º, 40º, 10º 41º 46º 41º, 43º, 46º, 53º, 15º 45º 54º (ex-57º) 54º, 57º. 57º 54º Pernambuco 11º, 14º, 21º, 22º, 11º 42º 14º, 22º, 44º, 52º, 30º, 44º, 51º, 52º, 21º 52º 56º. 56º. Rio Grande do Sul 9º, 33º, 35º, 48º, Todas 49º. Corte do Rio de 1º, 2º, 4º, 9º, 31º. 1º 23º 9º, 24º (ex-2º), 32º, Janeiro 32º, e 38º. 2º 24º e 38º. 4º 27º Rio de Janeiro 5º, 6º, 8º e 12º. 5º 28º 28º, 33º, 37º, 44º. 6º 33º 8º 37º 12º 44º Minas Gerais 17º, 18º e 27º. 18º 49º 49º Maranhão 22º, 36º e 37º. Todas ORGANIZAÇÃO DOS CORPOS DE VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA Unidades Província Numeração Renumeração Dissolvidas São Paulo 7º, 42º e 45º. 7º 35º 42º e 45º. Pará 13º e 34º. Todas Piauí 39º, 19º (PI, CE e 19º 50º 39º e 55º. SE), e 55º (PI, e RN) Ceará 26º 26º Paraíba do Norte 21º e 47º Todas Alagoas 20º 20º 52º 52º (ex-20º)


62

Rio Grande do Norte Mato Grosso Goiás Paraná e Santa Catarina Estrangeiros

28º 50º 16º 25º

28º

25º

16º

16º

48º

48º (ex-16º)

2. Pensão Vitalícia dos Voluntários da Pátria: coleta e análise de dados dos processos jurídicos.

Nesta parte do artigo, apresentamos os resultados da pesquisa quantitativa e da análise dos dados coletados dos processos de pedido de pensão de soldo vitalício dos ex-voluntários da Pátria, que combateram na Guerra do Paraguai, concedida por meio do Decreto nº. 1687, de 13 de agosto de 190715. Estão sendo analisados, desde o dia 12 de abril de 2011, os processos que estão no Arquivo Histórico do Exército. Atualmente, estamos recolhendo dados e os cadastrando numa planilha para que, posteriormente, seja procedida a análise quantitativa e qualitativa. Condições das caixas analisadas: Ano

Quantidade de

Procedimento

caixas 1907

02

02 analisadas

1908

39

02 analisadas

1909

19

02 analisadas

1910

09

02 analisadas

1911

06

02 analisadas

1912

10

02 em análise

2.1. A dinâmica com o Corpus Documental. Com relação à dinâmica da pesquisa, procuramos extrair e tabelar os dados considerados importantes para construir os fatos históricos e definir a melhor forma de analisar os documentos. Para que os interessados pudessem receber o soldo vitalício, assegurado pela lei, era indispensável que se mostrassem habilitados com as respectivas patentes, baixas ou documentos 15

AHEx. Ordem do Dia N. 46. Decreto N. 1687, de 13 de agosto de 1907. Art. 1º. É Concedido vitaliciamente aos officiaes e praças de pret sobreviventes dos corpos de voluntários da pátria e da guarda nacional, que serviram no exercito e na armada, por occasião da guerra do Paraguay, o soldo regulado pela tabella actualmente vigente, correspondente aos postos e á situação em que se achavam ao tempo em que foram dispensados do serviço militar. § 2º. Os officiaes e praças que já estiverem no goso de pensão terão de optar entre Ella e o soldo que a presente lei lhes concede.


63

equivalentes, assim como ter os atos expedidos pelas repartições dependentes do Ministério da Guerra, da Marinha e da Justiça, por certidão autêntica, ou de quaisquer outras repartições públicas da União ou dos Estados16. A petição17, documento gerado para habilitar o interessado ao soldo vitalício, era constituída de: nome, idade, naturalidade, lugar de residência, época em que serviram na campanha, quando foram dispensados e o que mais interessasse para a investigação do direito. 18

Às petições eram anexados os seguintes documentos : I – Documento que provasse haver o habilitado servido como voluntário no Exército ou na Armada, por ocasião da guerra do Paraguai. . Nesse caso, eram documentos hábeis para a comprovação exigida: a patente do posto do habilitado, no Exército ou na Armada, por ocasião do conflito; sua baixa do serviço; sua fé de ofício; seu título de Voluntário da Pátria; diploma de medalha de campanha; ou quaisquer atos expedidos pelo Ministério da Guerra, da Marinha ou da Justiça, dos quais resultasse a prova de que o habilitando efetivamente tomou parte como voluntário na campanha. Deviam ser apresentados os documentos originais, ou por meio de certidões autênticas. II – Prova de que é o próprio e idêntico voluntário a quem se referem os documentos apresentados. III – Certidão passada pelo Tesouro Federal ou pelas delegacias fiscais nos Estados, provando que o habilitando não percebia nenhuma pensão dos cofres públicos. IV – No caso de perceber alguma pensão, a declaração expressa de que optava pelo soldo vitalício. A prova de identidade do voluntário seria dada por meio de atestado escrito de três pessoas, cujas idoneidades fossem garantidas, na capital, pelo diretor geral de Contabilidade da Guerra e, nos estados, pelas seguintes autoridades: comandante do distrito militar, comandante de guarnição, delegado fiscal do Tesouro Federal ou coletor federal do lugar mais próximo à residência do proponente. Na prática, observamos que, em caso de falecimento do combatente, a entrada no processo é feita pelo parente mais próximo, geralmente esposa ou filha. Em caso de não haver parentes vivos ou próximos, cabe ao procurador, se o voluntário requisitou um ainda em vida, receber o título de pensão. Na parte inicial, pretendemos mapear as regiões que mais cederam voluntários, para tanto, exploramos em nossa análise sua naturalidade e seu local de residência. Em outro momento, buscamos, também, a possibilidade de se definir, em termos quantitativos, a origem étnica dos voluntários, para estabelecer um diálogo com parte da historiografia da Guerra que desconhece 16

AHEx. Ordem do Dia N. 46. Decreto N. 1687, de 13 de agosto de 1907. Art. 2º. Pedido escrito dirigido a uma autoridade ou a um Tribunal. 18 AHEx. Ordem do Dia N. 68. Decreto N. 768, de 11 de dezembro de 1907, Art. 4º, § 1º. 17


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ou conhece muito pouco a História dos Voluntários da Pátria, principalmente, qual era a procedência social, ou se eram livres ou escravos. Definimos, também, o estado civil do exvoluntário, no momento da entrada do processo, quando estes constam no documento.

Dentre as dificuldades práticas encontradas estão: o estado dos processos que, embora passem por limpezas e manutenções, estão bastante deteriorados pelo tempo. A maior parte dos processos são manuscritos, tendo em certas situações as letras muito claras, ou mesmo apagadas, dificultando ainda mais a leitura que, por si só, já não é simples, devido à forma de escrita com letras quase ilegíveis e uma ortografia muito diferente da atual. Outro ponto que deve ser destacado é a perda de folhas dos processos, impossibilitando, assim, uma análise completa do documento. O aspecto quantitativo influenciou na redução temporal da pesquisa. Para o ano de 1907, temos duas caixas de processos. Já em 1908, existem cerca de trinta e nove caixas. Todos os processos de 1907, vistos até agora, possuem marcações numéricas, feitas no período de entrada, como referência para a contagem, muito embora em nossa pesquisa estabeleçamos nossa própria forma de computar, conforme os processos vão sendo analisados. O ano de 1908 possui trinta e nove caixas, considerando esse número elevado, ficou acordado que trabalharíamos inicialmente apenas com duas delas para todos os anos de nossa pesquisa, ampliando, posteriormente, o número de caixas analisadas para os referidos anos. Em termos comparativos, os processos de 1907 foram os mais difíceis em relação ao conjunto que segue até 1912. Além disso, os processos mais recentes apresentam melhor qualidade e, também, são menores, ou seja, contêm menor número de folhas e são mais objetivos. Neste primeiro momento da pesquisa é possível e, bastante provável, que consigamos cumprir o objetivo traçado em termos quantitativos: verificar pelo menos duas caixas de cada ano, a partir de 1907 até 1912, quando poderemos observar as mudanças e permanências nos processos com o passar do tempo. Num segundo momento, além de prosseguir com as caixas, visando à maior fundamentação em nossa análise final, buscaremos melhor embasamento teórico-metodológico para entender o contexto histórico do período que recortamos para a análise dos processos. Tentaremos compreender a situação do Estado republicano de 1907 a 1912, as discussões travadas à época, a fim de pautarmos nossa análise dos processos com um plano de fundo histórico.


65

2.2. Análise do Corpus Documental Com relação à habilitação das pensões observadas nos Relatórios do Ministério da Guerra, dos anos de 1908 a 1912, podemos tabelar os seguintes dados: VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA HABILITADOS AO GOZO DO SOLDO VITALÍCIO PELO RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA GUERRA POSTO

OU

GRADUAÇÃO

ANO

DE

1908

ANO

DE

1909

ANO

DE

1910

ANO

DE

1911

ANO

DE

1912

02

XXX

XXX

XXX

XXX

08

02

XXX

XXX

XXX

Major

13

06

02

02

XXX

Capitão

75

63

09

17

07

Tenente

105

85

27

27

11

Alferes

139

137

54

37

29

TOTAL DE

342

293

92

83

47

09

07

02

06

02

07

08

01

07

04

1º Sargento

41

61

31

57

23

2º Sargento

34

85

69

48

51

Furriel

15

62

19

24

18

Cabo

48

113

69

101

104

Anspeçada

16

41

34

35

34

106

265

192

253

334

02

01

XXX

XXX

XXX

02

05

04

XXX

XXX

03

04

03

XXX

XXX

03

05

02

XXX

XXX

Coronel TenenteCoronel

OFICIAIS SargentoAjudante Sargento Quartel-Mestre

Soldado Mestre de Música Músico de 1ª Classe Músico de 2ª Classe Músico de 3ª Classe


66

VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA HABILITADOS AO GOZO DO SOLDO VITALÍCIO PELO RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA GUERRA POSTO OU

ANO DE

ANO DE

ANO DE

ANO DE

ANO DE

GRADUAÇÃO

1908

1909

1910

1911

1912

Clarim TOTAL DE

01

01

XXX

XXX

XXX

287

658

426

531

570

629

951

518

614

617

PRAÇAS TOTAL

Com relação aos dados observados na tabela, constatamos que a totalidade de pedidos habilitados em cada ano não sofreu alterações quantitativas muito diferenciadas, mantendo certo padrão, com exceção de 1909, que se destacou dos demais. Analisando os Relatórios do Ministério da Guerra, percebemos que o número de habilitações era proporcional à abertura de crédito da União para pagar o benefício. Constatamos que, com o passar dos anos, os pedidos habilitados dos ex-Voluntários da Pátria que ocuparam cargos de Oficiais foi decaindo, o que parece demonstrar que o nível de conhecimento jurídico dos fatos foi proporcional à condição socioeconômica dos veteranos que obtiveram a pensão no período inicial de implantação da lei. Os pedidos habilitados de Praças iniciaram com uma quantificação abaixo dos resultados observados dos Oficiais no primeiro momento, dobrando no ano seguinte, para manter certa estabilidade posteriormente. Serão estabelecidos aqui alguns apontamentos sobre o levantamento de dados referentes ao ano de 1907. Especificamente, as duas caixas juntas contêm cerca de 50 processos, 37 numa delas e 13 na outra. Os níveis de informação sobre o voluntário são bastante irregulares, em alguns processos existem informações que não existem em outros. Visando a um futuro mapeamento das regiões, da cor, ou mesmo sobre os aspectos jurídicos, seguem alguns dados levantados após a conclusão da análise dessa caixa: dos cinquenta processos que foram analisados, pelo menos quarenta tiveram parecer favorável. Não foram incluídos os sem recibo, mesmo os incompletos pela perda/falta de algumas folhas, ou por desgaste temporal. Os processos com documento comprobatório assinado foram deferidos, pois, embora falte parte(s) de seu andamento, o início e o fim permitem estabelecer uma conclusão sobre aqueles que foram dignos de receber o título em nível de pensão. Alguns deles possuem o parecer positivo da Comissão de Habilitação do Soldo Vitalício, porém, não sendo encontrado seu recibo em anexo, ainda assim são enquadrados junto aos deferidos.


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Entendemos por processos completos os que tinham a seguinte constituição: ano de entrada; data do recebimento do título; e parecer da Comissão, nesse caso, é apenas a penúltima etapa, sendo a última a própria aquisição do soldo, comprovada mediante recibo. Optamos por verificar os processos nos quais não constavam recibos no Arquivo Histórico, os relatórios do Ministro da Guerra, que contêm o nome de todos os voluntários agraciados com as vantagens da lei. No ano de 1908, somando-se as duas caixas, foram analisados 91 processos. Naquele momento, percebeu-se uma melhora quanto à sua qualidade e uma diminuição significativa em seu tamanho. Nesse ano, e tendo por base as caixas analisadas, os processos se tornaram mais concisos, sendo resolvidos em menor tempo e com maior quantidade de deferimentos. Por volta de 80 dos 91 processos tiveram pareceres positivos da Comissão de Habilitação do Soldo Vitalício. Os indeferidos, em sua maioria, foram por falta documentos exigidos pela lei nº 1687, de 13 de agosto de 1907. Em 1909, encontramos o maior índice de voluntários considerados aptos à percepção do soldo vitalício, coincidindo, assim, de forma parcial, pois não analisamos, ainda, todas as caixas daquele ano com nossas observações no tocante aos Relatórios do Ministério da Guerra. Em termos quantitativos, por volta de 100 processos foram analisados, mas, apenas 7 foram indeferidos. As razões do despacho desfavorável se apresentam de forma coesa e repetida, ou seja, os veteranos, por sua vez, não apresentaram os documentos exigidos pelas instruções do decreto. Em 1910, percebemos, também, um alto índice de deferimento, muito embora, em 1909, o índice tenha sido maior. Somando o que foi analisado nas duas caixas temos 96 processos, dos quais 12 tiveram parecer negativo da Comissão, ou seja, foram indeferidos. De 1907 até o ano de 1910, os níveis de informação nos processos oscilaram, ainda que algumas delas fossem quase sempre recorrentes, bem como: naturalidade, residência, idade, tempo de serviço e posto. Entretanto, ao nos concentrarmos nas análises sobre os anos de 1911 e 1912, começamos a nos deparar com certas dificuldades, tanto quanto à incompletude dos processos − algo que passou a ser demasiado recorrente −, como também à organização do acervo. Para tanto, chegamos a 1911, e nesse momento da pesquisa esbarramos nos problemas citados anteriormente, sendo o principal deles a questão organizativa do acervo histórico. Ao serem analisadas 2 caixas daquele ano, uma delas continha, em sua maior parte, processos referentes a 1907, algo que, embora percebido quase de imediato, demandou tempo e observação que poderiam ser aplicados em outra parte da pesquisa.


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É comum, ao se permear as fontes, nos desviarmos, em maior ou menor grau, do curso da análise, de acordo com a necessidade da pesquisa, de acordo com o que o material está limitado a oferecer e com as condições organizativas dos mesmos. A documentação referente ao ano de 1912 continua em análise e junto à pesquisa em processo contínuo de desenvolvimento da produção.

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Escravos em família: Angra dos Reis, 1822-1871 Marcia Cristina Roma de Vasconcellos19

Este texto apresenta os resultados da pesquisa intitulada “Parentesco em Angra dos Reis: um estudo sobre as famílias escravas nas freguesias da Ilha Grande e de Mambucaba, 1822 -1871”, selecionada pela Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular (FUNADESP) e amparada pelo Programa de Apoio à Pesquisa e Extensão (PROAPE), da UNIABEU-Centro Universitário. Durante os dois anos de realização dos estudos, contamos com o auxílio dos bolsistas David Nascimento e Flávio Damasceno, estudantes do curso de História. Antes de analisarmos as famílias escravas estabelecidas nas freguesias de Mambucaba e de Ilha Grande, é necessário um “passeio” pela história do município de Angra dos Reis, localizado no litoral sul-fluminense. Angra dos Reis20 foi um dos primeiros núcleos conhecidos da Costa Sul de São Sebastião do Rio de Janeiro. Constituído por uma estreita porção de terra, cercado pela Serra do Mar e a Baía da Ilha Grande, foi primeiramente visitado pelos colonizadores portugueses, em seis de janeiro, ou data próxima, de 1502. (MENDES, 1995, p. 7). Poucos anos depois, os lusitanos encontraram aldeias indígenas tupinambás que povoavam a Baía da Ilha Grande, dificultando a ocupação do território. (CAPAZ, 1996, p. 28) Em torno de 1556, os filhos do capitão-mor de São Vicente chegaram à região e, posteriormente, a Ilha Grande recebeu seus primeiros moradores europeus21. Este processo foi semelhante ao ocorrido em Parati e Ubatuba, pois “teve como primeiros habitantes brancos, pessoas vindas das vilas vicentinas, provavelmente trazidas pelos agraciados por sesmarias” (SOUZA, 1994, p. 30). Em 1560, a localidade, no continente, foi elevada à condição de povoado, ocupando hoje o território conhecido como Vila Velha, em frente à Ilha da Gipóia. Em 1593, foi elevada à paróquia sob a invocação dos Santos Reis Magos, estendendo-se da 19

Doutora em História Econômica pela USP. Professora do curso de História da UNIABEU e das FIC´S (FEUC). 20 Até meados do século XVII, o nome que constava nos documentos oficiais era Nossa Senhora da Conceição, posteriormente Vila da Ilha Grande. A partir de 1835, com a elevação à cidade, recebeu o nome de Angra dos Reis (cf. CAPAZ, 1996, p. 21). 21 O ano de 1559 é apontado como o da chegada dos primeiros moradores à Ilha Grande (cf. LIMA, 1972, p. 89).


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margem esquerda do Rio Itaguaí à Ponta do Cairu, compreendendo, além do atual município de Angra, o maior em extensão, também os de Mangaratiba e de Parati (LIMA, 1972, p. 89). Em fins do século XVI, as atividades desenvolvidas eram a lavoura da cana-deaçúcar, de alimentos e a pesca da baleia, praticada na foz do rio Mambucaba (MACHADO, s.d., p. 20). Em 1607, a povoação tornou-se vila. Por volta de 1624, seus moradores deslocaram-se da Vila Velha para o atual sítio, em frente à Ilha Grande22. Na ocasião foi iniciada a construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, pronta em 1750. Em 1667, com a fundação da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios de Parati, Angra passou a ter como limites o rio Itaguaí e o rio Mambucaba (LIMA, 1972, p. 153). Durante o século XVII, o porto angrense apresentou um modesto crescimento e um pequeno comércio era realizado com o interior, “serra acima”. Instalou-se, na segunda metade da centúria, um estaleiro para a construção de fragatas para a navegação e policiamento marítimo. O intenso contato com a Baía da Ilha Grande estimulou a pesca, atividade da qual os moradores retiravam parte de seus alimentos. (VASCONCELLOS, 2002) Na virada para o século XVIII, a descoberta de ouro na região das Minas Gerais modificou o ritmo de toda a colônia, principalmente nas áreas que diretamente serviramlhe de acesso (SOUZA, 1994, p. 32), como Parati e o resto do litoral sul. Isto foi possível em função do “Caminho Velho” do Rio de Janeiro ou dos Guaianazes23. Pelo “Caminho Velho”, ia-se do Rio de Janeiro, por mar, até Parati. De Parati seguia-se por terra até Taubaté, “onde era vencida a Serra do Facão” (SOUZA, 1994, p. 33),

considerada

de

grande

aspereza

e

hostil.

De

Taubaté,

chegava-se

a

Pindamonhangaba, Guaratinguetá, até as roças de Garcia Rodrigues e, finalmente, ao Rio das Velhas. Segundo Antonil (1982, p. 184), o trajeto era concluído em 30 dias.

22

O fato recebeu duas versões. A primeira considerou que o deslocamento ocorreu após o assassinato do vigário por um morador. O Prelado do Rio de Janeiro suspendeu a nomeação de outro pároco, enquanto existissem, na vila, descendentes do assassino. Por isso os moradores decidiram ocupar outro local. Já a segunda versão defende que, antes do episódio, o novo sítio já vinha sendo ocupado, em função das vantagens que apresentava, como água em abundância, em contraposição aos mangues e lagoas, que incomodavam os moradores da Vila Velha (Cf. CAPAZ, 1996, p. 78). 23 Embora o caminho tenha recebido grande contingente humano, ele já era frequentado por paulistas e paratienses que realizavam um pequeno comércio de produtos agrícolas (Cf. GURGEL & AMARAL, 1973, p. 41).


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O movimento dinamizou Parati. “A vila tinha crescido, cultivou-se mais a terra, aumentou o movimento do porto, do comércio, do transporte de mercadorias e escravos” (SOUZA, 1994, p. 37). A agitação que se abateu sobre a comunidade paratiense também beneficiou a vila de Angra, para onde foram os “descaminhos” do ouro. (CAPAZ, 1996) Em virtude do constante risco de contrabando, principalmente realizado no percurso marítimo do “Caminho Velho”, da aspereza e da longa duração da viagem, o governo metropolitano incentivou a abertura de outro percurso que fosse somente terrestre entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais (SOUZA, 1994, p. 33). Foi então construído o “Caminho Novo” ou de Garcia Rodrigues Paes (SOUZA, 1994, p. 33-34). Nos seis anos seguintes, Garcia Rodrigues Paes se dedicou à melhoria da estrada, enquanto Bernardo Soares de Proença realizou reparos, garantindo a diminuição do tempo de viagem (SOUZA, 1994, p. 34). O trajeto reduziu o trânsito existente no porto de Parati e, indiretamente, no de Angra. Na segunda metade do século XVIII, os paratienses começaram a sentir a queda dos negócios, como a venda de alimentos e a hospedagem aos que iam e aos que vinham de Minas. A abertura do “Caminho Novo” desviou grande parte do movimento comercial de Parati, porém, segundo Souza (1994, p. 38), a vila continuou articulada à efervescência mineira, através do vale do Paraíba. Ainda segundo a autora, “embora de importância secundária, o porto de Parati estava inserido na florescente economia da região” (SOUZA, 1994, p. 38). Diante da redução do fluxo pelo “Caminho Velho”, foram abertas passagens paralelas, ligando as Gerais aos portos do litoral, que serviram para o contrabando do ouro. Este tornou-se prática tão habitual na região que foi criado um “sistema” de “apoio” aos contrabandistas, voltado para a comercialização de alimentos. (CAPAZ, 1996, p. 99) Na segunda metade do século XVIII, a lavoura canavieira se espalhou do Recôncavo da Guanabara para as planícies de Campos e Cabo Frio. Houve a transferência da sede do vice-reinado para o Rio de Janeiro, o desenvolvimento do porto carioca e o estímulo dado pela metrópole visando o aumento da produção agrícola colonial, incluindo, além do açúcar, fumo, anil, café etc. (SOUZA, 1994, p. 38).


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No final do século, o movimento portuário dinamizou-se, antigas atividades se ampliaram e novas surgiram24. O cultivo de anil disseminou-se, principalmente entre as grandes propriedades25. Expandiram-se a lavoura de alimentos e a atividade pesqueira. No entanto, a produção com maior revitalização foi a aguardente, absorvendo a produção da cana-de-açúcar de Angra e de Parati. Em fins do século XVIII, com a expansão cafeeira26, o polo dinâmico deslocou-se de Parati para Angra. Isso se deu em virtude não só das vantagens do porto localizado na vila de Angra, mais profundo e livre de assoreamento; mas também pela existência de pequenos embarcadouros naturais, como Jurumirim, Bracuí, Ariró, Frade e Mambucaba, fixados na Baía da Ilha Grande, próximos às produtoras de café “serra acima” (CAPAZ, 1996, p. 100-101). Foram recuperados caminhos antigos e novos foram abertos:

Pelo vale do Ariró, além da “estrada de barro”, à margem da qual surgiu, na primeira metade do século XIX, Santo Antônio do Capivari (hoje Lídice), no caminho em direção a São João Marcos, passavam as estradas do Caramujo (em direção a Bananal), e a “estrada João de Oliveira”, que desembocava na foz do Jurumirim. Pelo vale do Bracuí, outro caminho subia a serra em direção a Bananal. E pelo vale do Mambucaba atravessava a Serra da Bocaina em direção a Areias (MACHADO, s.d., p. 26).

Em Angra chegavam tropas de São João Marcos, de Resende, de Piraí, de São Paulo e de Minas Gerais (cf. LAMEGO, 1964, p. 241). O porto, neste contexto, tornou-se de grande importância. (LAMEGO, 1964, p. 241) Além desse, surgiram outros, como os de Jurumirim, Ariró, Ribeira, Mambucaba, Bracuí e Frade (LAMEGO, 1964, p. 242). Entretanto, antes do oitocentos, o fluxo portuário já era intenso. Segundo notícias de 1791, no Rio de Janeiro chegaram 69 (13,9%) embarcações provenientes de Angra

24

Em 1764, com a fundação da paróquia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, a paróquia de Angra diminuiu de extensão (cf. LIMA, 1972, p. 153). 25 Sua importância foi tanta que uma das praias do atual centro de Angra recebeu seu nome, a Praia do Anil. O cultivo perdeu importância em princípios do século XIX (cf. MACHADO, s.d., p. 25). 26 A expansão do café iniciou-se na cidade do Rio de Janeiro. Posteriormente, o cultivo foi para Resende e São João Marcos, sendo que, entre 1830 e 1860, a região ocidental do vale do Paraíba foi detentora da produção cafeeira, incluindo, além de Resende, também Barra Mansa, Piraí, Vassouras, São João Marcos, Passa Três e Santa Ana (cf. MARCONDES, 1995, p. 252).


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dos Reis, com carregamentos de cachaça, mel, açúcar e feijão; enquanto que de Parati foram 86 (17,4%) barcos, contendo toucinho, cachaça e tabaco. De ambas as localidades chegaram 155 (31,3%) embarcações, de um total de 495 que alcançaram o porto carioca (FRAGOSO, 1992, p. 87). Entre os anos de 1827 e 1888, das 6.538 saídas de sumacas, lanchas e vapores do litoral sul-fluminense, grande parte chegou ao Rio de Janeiro com carregamento de café, correspondendo a 5.320 (69,6%) embarcações. A aguardente foi transportada por 772 (10,1%) e 634 (8,3%) naus trouxeram fumo. (VASCONCELLOS, 2006, p. 43-44) O café provinha de plantações locais, vistas por viajantes que passaram pela região. Segundo Pohl (1976, p. 69), que esteve no Brasil entre 1817 e 1821, os cafezais faziam parte da paisagem, além da cana-de-açúcar, bananeiras e laranjeiras. Já o viajante Kidder (1980) observou, em 1839, após a elevação da vila à categoria de cidade (CAPAZ, 1996, p. 175), plantações de café e de cana-de-açúcar nas terras da freguesia da Ilha Grande. (KIDDER, 1980, p. 183). Dados extraídos do Almanak Laemmert indicaram a existência de fazendeiros e lavradores de café, somando, por exemplo, 114, em 1862. Em 1854, 10 eram definidos como fazendeiros de café e aguardente e 79 se dedicavam ao cultivo de café e mantimentos. Segundo o Almanak de 1854, o café provinha de Angra, mas também da “serra acima”: “navegam por este município cinco vapores e vários barcos que carregam café da província de São Paulo e deste município, sendo o do município acima de 250.000 arrobas”27. Enfim, em parte do século XIX, a população do litoral e, em particular, da região em estudo, estava voltada para o cultivo de café e de alimentos. O movimento de seus portos, por sua vez, estimulou a economia, por meio da venda de excedentes aos homens que subiam e desciam a serra. Não obstante, o movimento portuário variou ao longo dos oitocentos. Houve uma tendência ascendente até 1859, quando, em média, 39,3 embarcações saíam, por mês, do litoral em direção ao porto carioca e, em seguida, um decréscimo, pois, entre 1880 e 1888, 9,7 barcos deixaram os portos do dito litoral. (VASCONCELLOS, 2006, p. 43-44)

27

A informação foi retirada do Almanak Laemmert do ano de 1854, p. 23.


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A redução numérica de embarcações promoveu a diminuição do fluxo de homens pelos caminhos abertos em direção ao interior, desestruturando o sistema que vinha junto à cabotagem. Sobre a cabotagem realizada entre os portos brasileiros, sabemos que:

o comércio através da navegação de cabotagem propiciou, ainda, o aumento da oferta de empregos assalariados. Mestres de embarcações, marinheiros, caixeiros de negociantes circulavam constantemente na rota do comércio. Parte da população livre encontrou maiores oportunidades de ganhar o seu sustento no manejo dos pontos de pernoite que se formaram no percurso das tropas. Forneciam alimentação, lugar para dormir, foragem para os animais (MARTINHO & GORENSTEIN, 1993, p. 167).

A diminuição do movimento portuário esteve associada à construção da Estrada de Ferro D. Pedro II que, em 1864, chegou a Barra do Piraí, em 1871, a Barra Mansa e, em 1877, a Queluz (EL-KAREH, 1982). A produção cafeeira que até então era escoada pelos portos do litoral sulfluminense passou a ser transportada por via férrea, oferecendo aos seus usuários, mais rapidez e segurança. Vinculado à queda do escoamento do café, a partir de 1870, “em Angra dos Reis, os casarões assobradados que tinham depósitos de café na parte térrea foram sendo abandonados e começaram a ruir” (CAPAZ, 1996, p. 202). Destino semelhante tiveram as estradas que conduziam as produções até o litoral, como as de Ariró, de Mambucaba e de Parati (CAPAZ, 1996, p. 203). Na mesma ocasião houve o término do tráfico internacional de escravos, em 1850. Com isso, grosso modo, ocorreu o encarecimento da mão-de-obra escrava, dificultando os pequenos escravistas em obter trabalhadores, levando muitos, inclusive, a vender seus trabalhadores28. Na década de 1880 havia em Angra um pequeno cultivo de cana-de-açúcar e o café, ainda plantado em Mambucaba e Ilha Grande, rendia ao município apenas 40.000 quilos, com preços de quatro mil réis (4$000) para cada 10 quilos (LIMA, 1872, p. 127). A aguardente continuava a ser fabricada. Por exemplo, em Mambucaba, no ano de 1889, 28

Segundo Castro, a segunda metade do século XIX caracterizou-se no Brasil “pelo recrudescimento do número de brancos empobrecidos, nas diversas situações rurais, locais e regionais” (CASTRO, 1995, p. 104).


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existiam quatro engenhos, produzindo em torno de 600 pipas anuais (LIMA, 1972, p. 175); na Ilha Grande havia seis engenhos, com fabricação de 700 pipas anuais (LIMA, 1972, p. 183) Portanto, os laços familiares estudados foram formados em meio a um contexto de expansão das atividades econômicas em Angra, durante a primeira metade do século XIX e, posteriormente, num momento de diminuição do movimento portuário. A seguir veremos como a economia atingiu a demografia livre e escrava. Antes, algumas considerações sobre as freguesias de Mambucaba e de Ilha Grande, duas das cinco existentes no município. As demais eram Nossa Senhora da Conceição de Angra dos Reis, atual centro da cidade; Nossa Senhora da Conceição da Ribeira; e Nossa Senhora da Santíssima Trindade de Jacuecanga. (LIMA, 1972, p. 203). Com mais de 193,53 quilômetros quadrados, a freguesia de Nossa Senhora de Santana da Ilha Grande, teve no cultivo do café uma de suas principais atividades. No ano de 1889, sua população estava em torno de 7.800 moradores (LIMA, 1972, p. 182). A freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, criada em 180829, fazia fronteira com Parati e incluía Itaorna e Ilha de Sandre. Nela havia importante porto por onde era escoada a produção cafeeira local e do vale do Paraíba. Sua superfície de 220 quilômetros quadrados abrigava 3.800 habitantes, em 1889 (LIMA, 1972, p. 174). Por meio do uso dos relatórios de presidentes de província do Rio de Janeiro de 1841, de 1851 e de 1858, com dados para os anos de 1840, de 1850 e de 1856, respectivamente, e do Censo Nacional de 1872, encontramos algumas informações sobre a população angrense. No ano de 1840 foram contabilizados 12.050 (53,3%) livres e 10.552 (46,7%) escravos. Em 1850, encontramos, respectivamente, 14.736 (58,4%) e 10.480 (41,6%). No ano de 1856, 16.606 (63,2%) e 9.659 (36,8%) e, em 1872, 17.289 (79,2%) e 4.544 (20,8%). Houve um predomínio de livres sobre os escravos em todos os anos analisados, ocorrendo, inclusive, um aumento. Esta tendência foi observada antes mesmo de 1840.

29

Na verdade, a freguesia foi criada em 1803. Entretanto, por dificuldades encontradas para sobreviver na localidade, o vigário a abandonou em 1804. Em 1808, a freguesia foi reinstalada (cf. LIMA, 1972, p. 172173). Todos os dados relativos às freguesias foram levantados por Lima (1972) que, no século XIX, era político e agricultor.


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Segundo Marcondes (1995), o litoral sul-fluminense conheceu uma elevação do número de habitantes livres desde 1780 (MARCONDES, 1995, p. 259). Já os escravos diminuíram ao longo do tempo. Quais seriam os motivos? A redução de cativos esteve vinculada às alforrias, às mortes, às fugas e às vendas de escravos para as áreas de ponta na economia imperial. Quanto à distribuição sexual dos escravos, no ano de 1840 havia 130 homens para cem mulheres, enquanto que, em 1872, foram contados 98 homens. Tal diminuição esteve associada à redução de africanos na população escrava: em 1856, 62,6% eram crioulos, contra 37,4% de africanos. Em 1872, encontramos, respectivamente, 82,9% e 17,1%. A respeito da faixa etária dos cativos, no ano de 1856 28,7% tinham entre 0 a 14 anos, 43,7% possuíam de 15 a 40 anos e 27,6%, 41 anos ou mais. Já em 1872, localizamos, respectivamente, 28,4%, 41,5% e 30,1%. Portanto, os escravos de Angra dos Reis, entre 1840 ou 1856 e 1872, diminuíram em percentuais, houve uma tendência ao equilíbrio entre os sexos, os crioulos tornaramse mais frequentes e houve um predomínio de escravos em idade produtiva, embora sua participação tenha diminuído entre 1856 e 1872. E as famílias formadas em Mambucaba e Ilha Grande? Haveria variações quanto à formação dos laços parentais entre as duas freguesias? Esta pergunta foi o “motor” do projeto de pesquisa. Desejávamos verificar as características das propriedades das duas localidades e, posteriormente, avaliar os laços de compadrio e de apadrinhamento entre escravos. Visando responder às questões formuladas, recorremos aos registros paroquiais de batismo e de casamento de escravos localizados no Convento do Carmo e na Igreja de Jacuecanga, em Angra dos Reis, e aos inventários post-mortem de escravistas, encontrados no Museu da Justiça do Rio de Janeiro e no Arquivo Nacional. Por meio da análise de 26 inventários da Ilha Grande e de Mambucaba, observamos um predomínio das chamadas “grandes propriedades” (11 ou mais escravos), com 42,3%; 38,5% eram escravarias com 1 a 5 escravos; e 19,2%, médias propriedades (6-10 cativos).


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Quanto às atividades realizadas na Ilha Grande, observamos que em 32,3% dos inventários existiam referência ao café; 26,2% à agricultura; 21,5% ao comércio; 20,0% à pesca. Em Mambucaba, 31,8% de inventários citaram a presença de cafezais; 31,8% de agricultura; 22,8% de atividade pesqueira; e 13,6% de inventariados eram comerciantes. Ou seja, os inventários não mostraram variações quanto à economia, mas, por meio do Almanak Laemmert, soubemos que em Mambucaba existiam armazéns que guardavam o café do vale do Paraíba e o produzido na localidade. A região contava com a atividade de escoamento da produção via o embarcadouro de Mambucaba, ao contrário do que fora verificado para a Ilha Grande. Em seguida, veremos os laços de compadrio e de apadrinhamento criados nas duas freguesias, entre 1822 e 1871. Ritual responsável pela purificação do pecado original, o sacramento do batismo oferecia ao pagão a passagem ao cristianismo, sendo-lhe conferido um nome cristão ou de um santo, tornando-o apto a participar das cerimônias da Igreja, além de adquirir igualdade, humanidade e liberdade (GUDEMAN & SCHWARTZ, 1988). Constituíram-se determinadas regras na hora da escolha dos “pais espirituais”, forma como eram compreendidos os padrinhos e madrinhas: não poderiam ser os pais carnais, deveriam ser batizados e conhecedores da doutrina católica (GUDEMAN & SCHWARTZ, 1988, p. 39). A eles caberia a formação moral dos afilhados, entendidos como “substitutos eventuais do pai e da mãe, são parcialmente responsáveis pela educação espiritual daquele ou daquela que levaram à pia batismal” (LEBRUN, 1998, p. 89). Para o estudo partimos do pressuposto que os escravos eram sujeitos históricos capazes de, nas brechas do sistema, fazer valer seus interesses. As relações senhor e escravo eram permeadas de vantagens para os primeiros, pois eram detentores das instituições, do poder e das normas do sistema, mas tinham consciência que estavam lidando com seres humanos. Os escravos, por sua vez, tinham anseios e interesses, como a formação de uma família, a obtenção de uma roça de cultivo, a alforria e sabiam que eram importantes para seus proprietários. Logo, a escravidão não teria perdurado por 300 anos somente à base da violência física, mas de conquistas obtidas pelos cativos, ou concessões conferidas pelos senhores. As palavras “negociação” e “conflito” estavam presentes no dia a dia de homens e mulheres submetidos ao cativeiro. (REIS e SILVA, 2009; VASCONCELLOS, 2006). No caso dos batismos, acreditamos que foram os pais e


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as mães solteiras os responsáveis pela escolha de compadres e comadres, embora tenha havido algumas situações em que os senhores possam ter interferido. Nos 285 batismos de crianças legítimas30 da Ilha Grande, 62,1% receberam padrinhos escravos, 33,0% livres e 4,9% forros. Nos 247 registros de legítimos de Mambucaba foram, respectivamente, 47,8%, 44,9% e 7,3%. Entre as madrinhas de legítimos da Ilha Grande, os percentuais foram de: 62,9% de escravas, 26,7% de livres e 10,4% de forras. Quanto a Mambucaba, os dados foram, respectivamente, 56,2%, 39,7% e 4,1%. O que podemos verificar é que tanto os pais que viviam na Ilha Grande quanto os de Mambucaba tinham preferência por adotar laços de compadrio, considerado parentesco fictício, com outros escravos. Acreditamos que os casais já tinham contato com os futuros compadres, fazendo do ritual do batismo o momento para fortalecer vínculos de amizade com conhecidos. Estes conhecidos eram indivíduos que portavam a mesma experiência, o cativeiro. Em segundo, destacou-se o apadrinhamento com livres, resultado, talvez, de escravarias com número reduzido de cativos, facilitando o contato com o “mundo” dos livres. No caso dos ilegítimos31, as preferências eram diferentes. Na Ilha Grande, 52,1% de padrinhos eram livres, 42,3% eram escravos e 5,6 %, forros. Em Mambucaba, 48,8%, 46,3% e 4,9%, respectivamente, livres, escravos e forros. Mães solteiras aos olhos da Igreja optaram por compadres em condição jurídica superior. Entretanto, isso não significa que eles gozassem de uma situação econômica favorável. O que parece claro é a busca por reforçar alianças e contatos com homens que ao menos poderiam servir como tutores em ações na justiça. A tendência também pode representar o interesse das mães em obter ajudas para si e seus filhos em momentos delicados, como a venda ou a separação de pais e filhos. Quando da escolha de madrinhas, repetiu-se uma tendência semelhante ao que fora visto entre legítimos. Entre os batismos da Ilha Grande 57,7% eram escravas; 35,7% livres; e 6,6 %, forras. Nos registros de Mambucaba, os percentuais foram de 57,7%; 39,2; e 3,1%. Ou seja, mães solteiras, quando se tratava de escolher madrinhas, selecionavam escravas, mulheres conhecedoras da realidade do cativeiro e possíveis “substitutas” em caso de ausência das mães carnais. 30 31

Crianças que nasceram como fruto de uniões legalizadas pela Igreja. Filhos de mães solteiras, segundo a Igreja.


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Portanto, nas freguesias da Ilha Grande e de Mambucaba existiam plantadores de café, de cana e de alimentos, assim como comerciantes e pescadores. Em Mambucaba havia um constante movimento portuário, escoando, além da produção local, o café proveniente do vale do Paraíba. Nestas localidades, ao longo do XIX, houve uma redução da população escrava, aumento de crioulos e uma tendência ao equilíbrio sexual entre os escravos. Nesse contexto, os casais que viviam em Mambucaba e Ilha Grande adotaram compadrio, preferencialmente, com outros escravos. Já as mães solteiras tenderam a convidar, majoritariamente, livres para o compadrio e escravas, na qualidade de madrinhas. Isto é, o ritual do batismo serviu como momento para a adoção e reforço de laços de amizade que envolviam escravos e, em segundo, livres. Estes passavam, a partir de então, a integrar as famílias dos escravos, instituição essencial para a sobrevivência de homens e mulheres em cativeiro. BIBLIOGRAFIA FONTES: Almanak Laemmert, anos pares entre 1844 e 1882 e anos de 1883 e 1885. <uchicago.edu/info/brazil/almanak2.htm>; Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ; Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro, RJ. ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1982. Censo Nacional de 1872. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Rio de Janeiro, RJ. KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do sul do Brasil (Rio de Janeiro e Província de São Paulo). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1980. Inventários post-mortem de Angra dos Reis, 1800-1888. Angra dos Reis, RJ. Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, RJ. Jornal do Comércio, de 1827 a 1888. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ. Livro de batismos de escravos da Freguesia da Ilha Grande, 1805-1830. Igreja de Jacuecanga, Angra dos Reis, RJ.


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Literatura e memória cultural: representação de imigrantes libaneses na literatura brasileira Shirley de Souza Gomes Carreira 1

INTRODUÇÃO Ao longo dos séculos, a migração tem sido interpretada como uma condição natural da experiência humana e a relação dos imigrantes com os países de adoção tem sido alvo de pesquisas científicas em áreas como a Sociologia, a Antropologia e, mais recentemente, a Literatura. A princípio, os imigrantes constituem um grupo de trabalhadores estrangeiros que interpretam sua condição de vida e a sua relação com o meio como algo provisório. Segundo Hall (2003, p.28), a par dos variados motivos que geram a migração, dentre eles a pobreza, a falta de oportunidades e o subdesenvolvimento, cada disseminação carrega consigo a promessa de um retorno redentor. No entanto, à medida que a possibilidade de retorno ao país de origem torna-se mais remota, a relação puramente instrumental com a vida econômica do período imigratório inicial é extrapolada, estabelecendo-se um vínculo com os países receptores. Antes vista como uma possibilidade, a ideia do retorno acaba por ser substituída por uma relação quase mítica com a terra natal; pois, intimamente, o imigrante acaba por entender que, muito embora se possa voltar ao lugar de origem, não se pode voltar ao tempo da partida, nem ao indivíduo que se era no momento da partida (SAYAD, 1998, p.17).

O processo migratório contínuo gera, amplia e multiplica a experiência da transculturação, uma complexa teia de relações sociais que reflete a tensão gerada a partir da vivência, pelos migrantes, de identidades múltiplas e fluidas fundamentadas ao mesmo tempo nas sociedades de origem e nas "adotivas". O termo “transculturação” opõe-se ao conceito anglo-saxônico de “aculturação”, uma vez que este pressupõe total aderência a uma nova cultura, fruto de um 1

Doutora em Literatura Comparada pela UFRJ. Pós-doutora em Literaturas de Língua Inglesa. Coordenadora do Programa de Apoio à Pesquisa do UNIABEU.


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desenraizamento absoluto, enquanto que aquele aponta para o surgimento de uma identidade híbrida fundamentada na interpenetração de culturas. As ondas migratórias no Brasil foram seguidas de um comportamento xenofóbico, que se refletiu na literatura e foi responsável pela construção de estereótipos, verificáveis, por exemplo, em obras da literatura naturalista brasileira. Os rótulos que acompanharam os imigrantes de diversas nacionalidades, como, por exemplo, “turco”, no caso dos imigrantes de origem árabe, ou “galego”, no caso dos portugueses, funcionavam como umbrella terms, cuja finalidade era agregar os indivíduos oriundos de outros países sob a ótica da exclusão. Na realidade, esses termos lançavam sobre os estrangeiros um estigma generalizante. Os imigrantes portugueses, por exemplo, eram vistos como pessoas intelectualmente pouco qualificadas, a quem cabia apenas o comércio varejista, primordialmente de secos e molhados, como atividade de subsistência. No caso dos síriolibaneses, embora sendo reconhecidamente herdeiros de uma vasta herança cultural, a sua ocupação principal em terras brasileiras, o ofício de mascate, rendeu-lhes a fama de negociantes sovinas, obcecados pelo lucro. A literatura brasileira contemporânea, no entanto, lança um olhar diferenciado sobre a imigração, possibilitando uma releitura do processo de inserção do imigrante na sociedade. Obras de autores como Milton Hatoum, Samuel Rawet e Raduan Nassar, entre outros, permitem uma reflexão sobre os conflitos da condição de estrangeiro por uma via que tanto escapa à visão estereotipada do imigrante quanto foge à mera tematização dessa condição. Essas obras focalizam as vivências íntimas do imigrante evocadas pela memória; se não a memória pessoal dos autores, descendentes de imigrantes em sua maioria, a memória reconstruída a partir de relatos, fragmentos da memória alheia, coletados e transformados em ficção. Nesse panorama, Amrik, de Ana Miranda, surge de forma atípica. A partir de uma extensa pesquisa histórica e de um diversificado inventário textual, a autora, que se dedica à nova ficção histórica latino-americana, reinterpreta criticamente a imigração libanesa no Brasil na ótica de uma narradora que experimenta uma dupla exclusão: a situação de imigrante e a condição de mulher em uma sociedade regida pelo patriarcado. Este ensaio visa à análise da representação da identidade cultural do imigrante em Amrik, de Ana Miranda, a fim de demonstrar como a autora entrelaça a memória ficcional da personagem, que é o alicerce da narrativa, a registros da imigração libanesa no Brasil.


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1. UM RELATO DE VIAGEM ÀS AVESSAS Em O ofício do escritor, Ricardo Piglia afirma que o narrador é um viajante (1994, p.73). Ao fazê-lo, ele caracteriza a narrativa como tributária de experiências que supõem o ultrapassar fronteiras, sejam fronteiras espaciais, sejam fronteiras impostas pela ordem vigente. As narrativas de viagem propriamente ditas reproduzem, em sua maioria, um padrão textual em que as deambulações por lugares distantes se confundem à vivência reflexiva desenvolvida no contato com o Outro, cuja imagem é condicionada pela ótica eurocêntrica. Em Amrik, Ana Miranda constrói uma narrativa de viagem às avessas, posto que a ótica do relato localiza-se nas margens. A narradora é uma mulher, imigrante libanesa, que rememora a sua saga pessoal, desde a infância no Líbano, passando por uma frustrada experiência na América do Norte, até a sua chegada ao Brasil, onde, finalmente, se estabelece. O romance é escrito de modo a assemelhar-se a textos literários, escritos por imigrantes, denominados “Mahjar”. Ao contrário do que ocorre nos relatos de viagem tradicionais, o tempo não é registrado, mas faz-se sentir nas transformações que a personagem sofre, de menina a mulher, ao longo do romance.

1.1 Uma breve viagem no tempo: a emigração libanesa para o Brasil Desde o início da colonização portuguesa, o Brasil tem sido o destino de inúmeros imigrantes de diversas origens. A corrente migratória de sírios e libaneses para o Brasil começou no fim do século XIX, muito embora haja registros da existência de “turcosárabes”, rótulo genérico que aqui receberam, bem antes dessa época. A denominação deveu-se ao fato de que eles viajavam com documentos emitidos pela Turquia. Todos os imigrantes do Oriente Médio foram denominados “turcos” até 1892, quando os sírios passaram a ser listados separadamente. Por essa época, os libaneses eram incluídos nessa lista, porque faziam parte da Grande Síria, que hoje compreende os estados da Síria e do Líbano. O rótulo eliminava distinções entre os grupos que agregava. Conforme Oswaldo Truzzi nos faz recordar:


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Embora a região territorialmente pertença ao chamado mundo árabe moderno, e seus habitantes efetivamente sejam falantes da língua árabe, os sírios e libaneses identificam-se, sobretudo, com a religião professada e com a região ou aldeia de origem, elementos fundadores de suas identidades, muito mais que com um estado-nação, inexistente para eles na época. (TRUZZI, 2005, p. 2)

Assim, a ideia de uma identidade ou cultura árabe unitária, que ignore as características particulares advindas de situações geográficas e históricas específicas, nunca foi totalmente aceita. Considerando-se as bases identitárias mencionadas por Truzzi, a questão religiosa constitui dado relevante, uma vez que a divisão mais ampla entre cristãos (católicos, ortodoxos orientais e protestantes) e muçulmanos (sunitas, xiitas e drusos) acabou por revelar uma tendência ao sectarismo, graças à intervenção ardilosa das potências imperialistas europeias, em sua disputa pela influência política na região. O outro elemento constitutivo da identidade diz respeito ao espaço físico, à região ou aldeia de origem. Segundo Truzzi (2005, p. 2), o localismo das comunidades, em grande parte dificultado pelo relevo, favoreceu as diferenças e as divisões, transformando a aldeia no locus de perpetuação dos valores do grupo. Roberto Khatlab (2007) afirma que foram três as ondas migratórias sírio-libanesas para o Brasil: de 1880 a 1900, 1900 a 1950 e de 1975 em diante. Os integrantes da primeira onda migratória tinham em mente fazer fortuna para poder retornar à terra natal, caracterizando uma imigração de ordem econômica. Sua atividade principal no país era o comércio e logo ficaram conhecidos como “mascates”. A experiência bem-sucedida de alguns pioneiros fez com que a emigração se tornasse uma verdadeira febre, estimulada cada vez mais pela crença de que alguns anos nas Américas seriam suficientes para garantir a aquisição de terras e a prosperidade dos membros da família que ficaram. O modelo de existência para esses primeiros imigrantes ainda era o da terra natal, para onde ambicionavam retornar. É difícil precisar o contingente de imigrantes nessa fase, pois não existem estatísticas sobre a distribuição de libaneses no Brasil do início do século 20. No entanto, conforme Truzzi (2005, p.15) registra, “nos primeiros anos de 1900, havia três centros de atração principais no Brasil para essa etnia: a Amazônia, São Paulo e Rio de Janeiro”. Diferentemente de europeus e asiáticos, os árabes não se fixaram de maneira concentrada em um único lugar, mas se espalharam de Norte a Sul do Brasil, com alguma predominância no Norte.


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Os pioneiros da emigração árabe, conforme registra Khatlab (1990, p. 36), destacaram-se por terem entre eles uma elite política e cultural, pois “a emigração tinha por objetivo procurar uma vida melhor, em liberdade, e depois voltar e viver melhor em seu país de origem”. Eram, portanto, emigrações provisórias. Mesmo os intelectuais libaneses chegavam ao Brasil praticamente sem nada, tendo de reiniciar a vida a partir do zero, atuando no comércio ambulante, e tiveram um papel econômico e histórico, pois, a par do estabelecimento de muitos nos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, eles também se embrenhavam pelo interior, chegando aonde nem o correio chegava, levando notícias das grandes cidades. Os mascates tiraram proveito do surto de prosperidade da borracha que atraía grandes levas de brasileiros para a região do Amazonas. Com o tempo, a decadência da borracha determinou a transferência de muitos libaneses para São Paulo e para o Rio Janeiro, contribuindo para a eclosão de grandes artérias comerciais. A segunda fase de migração foi marcada pelas consequências das duas grandes guerras mundiais, quando o Líbano atravessou uma mais das sombrias páginas da sua história e conheceu a fome, as doenças contagiosas, as disputas político-religiosas e o bloqueio marítimo. Nessa época, os emigrados tiveram um papel importante na vida de seus familiares, a quem enviavam ajuda. O fluxo migratório sírio-libanês atingiu seu auge entre 1920 e 1930. Esse período assinala a mudança de objetivo dos que aqui chegaram. Decepcionados com o rumo que seu país tomou após o fim da dominação política e econômica, os imigrantes optam por fixar residência no Brasil, iniciando uma “imigração de assentamento”. Diferentemente da primeira onda migratória, quando o imigrante não considerava definitiva sua vinda para o Brasil e o retorno ainda permanecia no pensamento da maioria, o libanês da segunda onda migratória não via a si mesmo como parte de um grupo de expatriados, mas como membro de uma coletividade de emigrados que desejavam ter um lugar que pudessem considerar como seu em terras brasileiras. A fixação dos imigrantes nas metrópoles e os casamentos mistos fizeram com que eles passassem à fase da imigração de assentamento, deixando de pensar no retorno. A terceira e última onda migratória, que teve lugar após a guerra civil libanesa, deveu-se à falta de perspectivas para os jovens que viviam em regiões rurais. Mais recentemente, a partir de 1995, começou uma evasão, em grande parte, de cidadãos libaneses qualificados, devido à recessão econômica e ao desemprego.


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1.2 A viagem ficcional A narrativa de Amrik é cíclica; começa e termina no Jardim da Luz, quando o tio da narradora, Amina, transmite-lhe o pedido de casamento do mascate Abrahão.

As

lembranças de Amina surgem fragmentadas e são transcritas em 154 textos breves, à guisa de capítulos, agrupados em onze partes. Ao ouvir a proposta, Amina confronta aquilo que seu tio, Naim, julga ser “felicidade” com o que realmente a espera: [...]viver numa casa imensa, de avental contar ovos, bater manteiga, ralar abóbora, picar amêndoas, a natureza nos dedos, regar uma horta no quintal, alface hortelã tomilho, ter sexo na noite abençoado, açúcar cristal na língua hmm Nas coisas mais simples está o sentido da vida Amina (...)” (MIRANDA, 1997, p.11)

A visão do tio contrasta com a imagem que se forma na mente de Amina: a sujeição física aos desejos do mascate, ter de viver em uma casa cheia de gente e sem privacidade, cozinhar para quinze pessoas, viver para ganhar dinheiro e sonhar com o retorno ao Líbano, representando, a cada noite, uma mulher diferente para o encantamento do marido. O confronto de aspirações resulta na reformulação de um ditado popular que sintetiza o desejo da narradora: “Mais vale um pássaro na mão que dois voando, não, mais vale um pássaro voando, de que vale um pássaro que não voa?” (MIRANDA, 1997, p.12) Assim, a autora instaura no romance o embate da personagem com a estrutura patriarcal árabe. Pela via da memória, Amina resgata a imagem da avó Farida, símbolo da transgressão. A avó que lhe ensinara a dançar às escondidas, que lhe transmitira as tradições ancestrais: as danças, a culinária, as lendas, o repositório da memória coletiva de seu povo passado de geração a geração. No universo ficcional, Amina é alvo da rejeição paterna. Seu pai, Jamil, inconformado por ter sido abandonado pela mulher, transfere para todo o gênero feminino o ódio que a traição lhe causou. Bêbados falavam mal de suas mulheres, das mulheres de todos, papai voltava para casa bêbado e abria o estojo da faca, maldizia mamãe Maimuna comedora de tios-felpudos mulher quando fala mente quando promete não cumpre quando cumpre volta atrás quando nela confiam trai


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quando não trai fere revela facilmente sua parte íntima a qualquer um lança olhares a todos semeia discórdia um homem não pode partir para a aldeia vizinha nem por um dia se voltar antes vai encontrar a mulher na relva com um negro Ó mulheres em multidão não conseguis suportar pacientemente a ausência do objeto peludo nem por um dia? (MIRANDA, 1997, p.16)

A concepção paterna da mulher como um ser ardiloso, desprovido de caráter, faz com que seja ela a escolhida para acompanhar o tio cego, quando este é ameaçado de morte por causa de suas convicções políticas e é obrigado a deixar o Líbano. Por causa dos turcos e dos muçulmanos que queriam matar tio Naim porque escrevia contra eles tivemos de partir de nossa aldeia, tio Naim encheu um baú com seus livros, umas joias de ouro para trocar por comida ou roupa, uma manta de pelo de carneiro e nada mais, pediu a papai que mandasse um dos filhos acompanhar, papai olhou os filhos, todos de olhos arregalados, num silêncio fundo, um dois três quatro talvez todos os filhos homens quisessem cinco ir mais papai escolheu o filho que menos lhe servia, seis a única filha mulher, para que servia uma filha mulher? Os filhos iam casar e quando vovó Farida morresse as esposas iam cuidar da cozinha e fazer mais crianças para o trabalho na agricultura, ele me achava vaidosa, dissimulada, meu rosto lembrava o da minha mãe e isso fazia papai sofrer ainda mais (...)(MIRANDA, 1977, p. 22)

Personagem criada a partir dos relatos de familiares de Emir Sader, marido da autora, sobre um velho tio cego, para quem os sobrinhos se revezavam na leitura, tio Naim não faz da sobrinha sua serva, mas torna-se o seu mentor, educando-a “para o mundo”. Assim, Amina aprende a ler, a escrever, bem como aprende palavras em outros idiomas: francês, inglês, grego e aramaico, porque “mulher saber língua estrangeira é abrir uma janela na muralha” (MIRANDA, 1997, p.27). Quando Amina deixa para trás a sua casa, a avó lhe dá os seus pequenos tesouros: o tamborzinho de mão, os címbalos e o pandeiro, herança que selaria o seu destino. A casa, na verdade, nunca lhe parecera realmente sua, posto que, mesmo entre a sua gente, a sua família era tratada de modo diferente, como estrangeira. Amina muitas vezes se pergunta se a razão era o fato de que sua avó um dia fora dançarina, uma gháziya, segundo o glossário que a autora disponibiliza ao final do romance. Esse sentimento de inadequação persegue a narradora vida afora. Amina e Naim têm por objetivo ir para a América, a tão sonhada Amrik, mas são retidos em Beirute, onde ficam à espera de passaportes turcos e de lugar no navio. O fluxo da memória é construído em blocos de um parágrafo/capítulo, com pontuação escassa e mistura de idiomas. As palavras em árabe se misturam às do


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português, a interjeições e onomatopéias, descrevendo lugares e pessoas a partir de impressões de caráter sinestésico. O dado histórico é incorporado à ficção no relato da passagem obrigatória dos libaneses por Beirute, na imagem da multidão amontoada no porto, “gente miserável seminua tiritava de frio, esmolava, molhados da chuva da madrugada”, “arrastados todos pelos sonhos de riqueza ou de liberdade” (MIRANDA, 1997, p.28). Conforme aponta Oswaldo Truzzi (2005, p.12), a oportunidade de ganhar dinheiro exerceu um impacto profundo no equilíbrio das aldeias libanesas, a tal ponto que as famílias que não enviassem seus filhos temporariamente às Américas perdiam status e prestígio em relação às outras. Amina e Naim partem movidos pela busca da liberdade. O Líbano que Amina deixa para trás é marcado pela dureza do patriarcado: [...]ia queimar talismãs para o navio chegar logo e me levar para Amrik, guiava tio Naim nas ruas, recebia cartas de papai, da aldeia, cartas que me faziam chorar, cruéis, se eu era suave ele brigava se eu era fria ele cuspia se eu dizia elogio ele ignorava de noite na cozinha ele falava mal de mim com a Abduhader, falava mal de mamãe com os outros bêbados de noite e falava mal das mulheres todas elas. (MIRANDA, 1997, p. 26)

A viagem é o início da desconstrução do sonho. Ao invés do “navio moderno, veloz e iluminado” pelo qual ansiavam, deparam-se com [...]um ferro velho sujo enferrujado com carne humana amontoada arrre irrra terceira classe dormiam no relento água racionada salobra nojenta arghhh para qualquer coisa era preciso dinheirinho, beliches duros imundos insetos sugavam o sangue de noite ratos mordiam comiam nossos sapatos mofo calor umidade sal vomitava vomitava arre o camarote era para quatro mas oito ocupavam os quatro lugares eu dormia na mesma enxerga com tio Naim e não podiam levantar os dois ao mesmo tempo que alguém estava sempre pronto para ocupar o nosso lugar arre. (MIRANDA, 1997, p. 28)

A viagem é embalada pelas histórias contadas por Naim ou pela leitura que Amina faz dos livros do tio, que, embora leve no baú livros ingleses e franceses, quer que a sobrinha leia apenas aqueles em árabe, para não perder o amor pela própria terra. Para ele, “a literatura árabe lembra sempre a existência de outros mundos além deste que podemos ver e tocar mas não compreender” (MIRANDA, 1997, p.30), mundos como o universo ficcional, em que a realidade é continuamente transformada e recriada.


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[...] literatura das montanhas e dos desertos sem nunca criar fronteiras entre o real e o irreal como o mundo fora uma miragem [...] uma literatura que pode ser feita e usada por pessoas que não sabem ler nem escrever, mas se ouvem entendem e podem recontar que são histórias e mais histórias e assim foi uma grande parte dela, os livros antigos eram muitas vezes apenas a memória do recitador, outras vezes eram escritos em letras de ouro ou nas paredes, mas fosse como fosse, nunca rompeu com a tradição e nunca romperá ainda que sejam os poetas chamados de imitadores [...] se a literatura árabe é a alma árabe, todavia, não é o mundo árabe o que as pessoas pensam, pensam que o mundo árabe são as Mil e uma noites hahaha (MIRANDA, 1997, p.31)

Nas últimas linhas da citação, a autora deixa entrever uma crítica à imagem eurocêntrica do Oriente: um mundo exótico, misterioso, que se distancia da realidade dos conflitos políticos e religiosos vivenciados pelos povos de origem árabe. Na parte 2, intitulada “Amrik”, a narrativa se reporta à estada de Amina na América do Norte. Os libaneses que saiam do Líbano pensavam estar se dirigindo à América do Norte, mas poucos conseguiam entrar no país. Muitos eram rejeitados, outros enganados, e acabavam por desembarcar no Brasil, no porto de Santos. Na América, tio e sobrinha são separados. Ela fica para trabalhar como dançarina em uma Feira de Negócios e o tio, “cachorro morto”, é despachado para a outra América. Com os olhos cheios com os atrativos da América, Amina se esquece de tudo, do tio, da terra natal, forma uma banda e persegue o seu sonho de liberdade: “eu pensava que ia ficar rica verdadeiramente rich era a terra das liberdades das oportunidades ia me vestir como a rainha de Sabá ia me cobrir de jóias perfumes chapéus com plumas de veludo...” (MIRANDA, 1997, p.36) O sonho, no entanto, se dissolve rapidamente: [...] muito trabalho a meio dólar por dia, jornada de dez horas mas trabalhavam dezesseis, haviam marcado a minha pele com uma etiqueta na alfândega e me deram um banho, mudaram meu nome no papel, acabou a feira e me soltaram na rua. (MIRANDA, 1997, p.36)

Sem dinheiro ou roupas de frio, Amina vai dormir na rua, nos dormitórios e cortiços de imigrantes, onde crianças e velhos “morriam como moscas envenenadas”. O choque entre culturas é perceptível nas lembranças de Amina. [...] as casas eram de madeira, as galinhas ciscavam na rua, os carros para lá e para cá numa velocidade estupenda e as pessoas não se


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matavam por religião mas se matavam por dinheiro, os americanos comiam aveia de manhã feito cavalos, eram de uma religião diferente da nossa mas eu não condenava a religião deles, rudes e falavam alto, havia desempregados, policiais estúpidos arrogantes patrões ladrões greves de empregados reuniões de operários, trabalhadores de minas viviam feito escravos, havia dedos esmagados nas máquinas das fábricas comida em lata solidão falta de falar a língua falta da comida da vovó Farida falta de amigos falta de um corpo falta de amor. (MIRANDA, 1997, p. 37)

As cartas de Naim para a sobrinha acenam com a possibilidade de vinda para o Brasil. Na descrição que ele faz da cidade de São Paulo é possível detectar a pesquisa da autora no intuito de fornecer informações sobre a cidade na época em que se passa a história: [...] havia na cidade de São Paulo cento e quarenta e seis lojas de fazendas e ferragens, sessenta armazéns de gêneros de fora, cento e oitenta e cinco tavernas, todos pagavam direitos à municipalidade [...] Vem Amina minha flor de luz [...] vem para São Paulo. (MIRANDA, 1997, p.39)

Amina vê a vinda para o Brasil como uma derrota, pois “o Brasil era um lugar de abismos e depósito de imigrantes cachorros mortos que não conseguiam entrar na outra América” (MIRANDA, 1997, p. 45) e resiste o quanto pode à idéia de deixar a América do Norte, o seu “eldorado”. Porém, a solidão é um flagelo diário, que faz com que um mero cumprimento, ou mesmo umas palavras trocadas, desperte em Amina uma fome descontrolada de amor e carinho, que é narrada de forma cômica: [...] à luz da vela escrevi cartas para tio Naim, para vovó Farida para os meus irmãos, para desconhecidos, uma carta para um homem de cabelo vermelho que eu vira atravessar a rua, uma carta ao Mark Twain uma carta a um remador que me dissera Good morning na fonte Bethesda no terraço de onde saiam remadores em barcos compridos, voltei à fonte uma dezena de dias e nunca mais vi o remador mas deixei para ele uma carta de amor [...] a carta marcava um encontro e no dia marcado esperei esperei brbrbrbrbrbr gelada mas ninguém apareceu, veio um policial de ronda, quem sabe porque fazia muito frio o remador não veio, caía neve suave o policial me fez umas perguntas, quase me apaixonei por ele (MIRANDA, 1997, p.41).

A solidão acaba por vencê-la, forçando-a vir para o Brasil. Os capítulos que se seguem fornecem dados da história dos imigrantes libaneses no Brasil, bem como da cidade de São Paulo, como, por exemplo, o desvio do rio para fazer a Rua 25 de março, a


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vida dos imigrantes libaneses, que girava em torno do Tamanduateí, na parte nova da cidade, sem nenhum progresso, e as dificuldades de aceitação na nova terra: No começo, disse tio Naim, vinham os italianos e os alemães à porta ver despejar de mais árabes, riam de nossos modos, contavam histórias engraçadas sobre nós e não tinham medo [...] mas o mascates foram prosperando e de miseráveis ambulantes descalços que vendiam cigarros em bandejas dependuradas no pescoço ou quibe frito em tabuleirinhos passaram a mascates de santos de madeira e escapulários depois a mascates de tecidos botões linhas arre, assim os mascates se tornaram perigosos sujos traiçoeiros ambiciosos usurários [...] mas não somos o que eles pensam, libaneses são limpos, cultos, temos a Université dos jesuítas e a Universidade Americana, sabemos falar inglês grego francês, sabemos ler escrever, inventamos álgebra astronomia matemática, os algarismos arábicos o alfabeto, disse tio Naim, trouxemos para ocidentais a laranjeira o limoeiro o arroz, ensinamos ocidentais a melhor cultivar a alfarrobeira e a oliveira, a criar cavalos, a plantar uvas, figos e imensas maças, a regar, pintar as unhas, fazer hortas de verduras e talhões de legumes, mais de seiscentas palavras à língua dos lusis. (MIRANDA, 1997, p. 52)

O capítulo intitulado “Ilhas de Elisã” contém palavras começadas com “al” que foram incorporadas ao português, evocando de forma concreta no discurso a herança cultural árabe e reivindicando um espaço social, pois “os árabes são como avós dos brasileiros” (p.53). A ascensão social dos sírio-libaneses despertou não apenas a inveja de outros grupos de imigrantes, mas também dos brasileiros, o que contribuiu bastante para a criação e manutenção de estereótipos negativos. Ana Miranda incorpora outros dados sociológicos à narrativa, como, por exemplo, a importância da aldeia natal: [...] chegavam as pessoas todas de uma mesma aldeia, gente do cultivo que vinha para a agricultura, mas acabava mascate, ganhava mais dinheirinho, trabalhava para ninguém, problema dos libaneses que pensavam na aldeia, disse tio Naim, não pensavam no país, se falavam pátria diziam aldeia, sua terra sua aldeia queria dizer sua aldeia sua alma [...] (MIRANDA, 1997, p.55)

Essa mesma aldeia passava ao imaginário do imigrante de primeira geração como um “paraíso perdido” a ser novamente alcançado, fazendo-o esquecer os reais motivos pelos quais teve de deixar sua terra. A parte 4, “Mezze”, retrata a vida na casa de Naim. Os textos constituem um inventário da culinária, dos costumes libaneses, ao mesmo tempo em que se configuram


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parte da narrativa. A tendência dos imigrantes a se agruparem com seus conterrâneos é devidamente representada no romance: Tio Naim estudou na Université dos jesuítas Saint Joseph, escrevia para o ALK-Ahram e agora pediam para escrever sobre imigrantes, dinheiro, política, república, ele gostava de república porque trazia prosperidade, os escritos de tio Naim eram discutidos por libaneses nos mezzes as domingos, senhores de muitos espíritos contrários e dados a leis da imaginação, mais levados por seus sonhos do que pela realidade, cada qual vendo mais a distância que a proximidade, misturando árabe com português [...] (MIRANDA, 1997 , p.62).

O início do processo de intercâmbio cultural é descrito no romance, bem como o desenvolvimento de uma interlíngua e a desconstrução paulatina do sonho do retorno à terra natal: [...] um dia vão perceber que a vida passou, ficaram aqui fazendo fortuna e não voltaram nem ficaram ricos, só alguns, Entendam logo isso e façam os cemitérios clubes igrejas mâdrassas que nos dos outros não nos aceitam [...] (MIRANDA, 1997, p. 64)

Chafic e Abrahão são representações de duas fases distintas da imigração libanesa. O primeiro representa o imigrante de primeira geração, viajando de cidade em cidade, mascateando. O segundo aponta para uma segunda geração, para uma rede de conterrâneos a dar suporte uns aos outros. Os homens dessa nova leva encontraram os primeiros aqui fixados, muitos deles atacadistas, podendo assim lhes fornecer mercadoria e ensinar a língua e os conhecimentos básicos para o exercício das transações comerciais: Abraão abriu a canastra mostrou como vendia renda, bordado, retrós sabonete meia dentifrício coisas pequenas pesam pouco, vendem fácil, preço bom, crédito, lágrimas no olhos, Logo aprendes a língua e se sabes umas poucas palavras podes trabalhar por tua conta, sais de manhã cedo mesmo que chova levas pão farinha pudim de palmito bocajuva vais de casa em casa nos bairros da Sé Santa Ifigênia, havia um mapa da capital da província de São Paulo, Abraão tinha lista de fregueses. (MIRANDA, 1997, p.176)

As narrativas da imigração libanesa no Brasil destacam o papel dos homens, uma vez que a princípio era uma imigração econômica. Quando esta se transforma em


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imigração de assentamento as mulheres libanesas entram em cena, dada a necessidade de transformar algo provisório em definitivo, estabelecendo núcleos familiares. Ana Miranda constrói, no romance, uma narrativa de focalização feminina, permitindo a reinterpretação da história da imigração pelo olhar de Amina, que situa o papel social da mulher imigrante: [...] duas imigrantes passam com cestas de compras rumo ao Mercado, nesta cidade a mulher que faz compra no Mercado é imigrante, arifa ou operária, as imigrantes nunca passeiam, moças feitas de trabalho, vidas diluídas, fumaças de chaminé fufu feitas de perdas e adeuses, moram nas partes escuras da cidade, nas casas olhadas, entre os ratos e morcegos, entre os caixotes vazios e as sacas nos depósitos, nos armazéns, detrás dos balcões, nas margens dos rios um capim de fuligem e fumaça feito os navios belas coisas mesmo sujas e pretas, elas sempre querem passar para o outro lado da cidade, mas são apenas umas mostardinhas ardidas ou umas cadelasdascadelas, corpo de faschefango galho e barro ou casa a Ana ou vira putana ou casa a Beatriz ou vira meretriz haialaia tutti senza denaro, mijar na cova e lamber o dedo hmmmm elas olham para mim e estiro a língua, elas ficam tão vermelhas que parecem as telhas e apressam o passinho de garridice nos sapatos barulho de ferraduras. (MIRANDA, 1997, p. 186)

Amina contraria a imagem das mulheres imigrantes que descreve, pois é avessa ao trabalho doméstico, preocupando-se, apenas, com a dança. O enfoque na dança faz com que seja o olhar de Amina a mostrar a construção de uma imagem estereotipada da mulher oriental como sedutora, sensual e exótica: [...] eu sabia o que diziam mal de mim, dançar era mandar homem nas casas de putas eles em cima delas mas a cabeça em mim, que tudo era para gastarem em mim seus dinheirinhos e eu ficando rica e eles pobres [...] (MIRANDA, 1997, p. 69)

Nesse aspecto, é paradoxal o diálogo com textos ocidentais, e com visões eurocêntricas da mulher oriental, como, por exemplo, a Aziza, de Flaubert e a Mahatab, de Francis Bacon. A autora, ao fim do romance, fornece uma lista bastante detalhada de suas fontes de pesquisa, que vão de relatos de viagens e registros da imigração a livros de culinária, bem como um glossário de termos em árabe e nomes de personagens ficcionais ou históricos citados no livro, desvelando ante o leitor a materialidade da obra. Estudos sobre a imigração têm comprovado que a música e a culinária são marcas de resistência de imigrantes de primeira geração à aculturação absoluta, ou assimilação,


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operando como expressões privilegiadas de uma vida entre dois mundos. No entanto, no romance, o espaço da cozinha, “o lugar do mundo onde uma mulher pode sentir a si, sem precisar dos machos árabes” (p. 130), com seus odores e sabores, é evocado como um dos locais onde a mulher árabe não experimenta a subalternidade. A arte da dança tem papel equivalente, pois é por meio dela que a mulher pode atrair um homem, fazendo-o “andar mil passos num vale ou atravessar um deserto sem camelo” (MIRANDA, 1997, p. 20 ). Obviamente, a recorrência aos alimentos de origem árabe, no texto, tem também a função de apontar para o processo de integração social, uma vez que a culinária árabe foi incorporada aos hábitos dos brasileiros. Jeffrey Lesser (1999, p. 22) chama a atenção para o fato de que no processo de integração dos imigrantes no Brasil, a assimilação, na qual a cultura pré-migratória da pessoa desaparece por completo, foi rara, dando lugar às trocas culturais. O romance também registra a questão do casamento entre brasileiros e libaneses: Uns homens daqui mandavam buscar mulheres nas suas aldeias no Líbano, mulheres da sua mesma religião maronita e de virgindade virgindade sempre virgindade, alguns mascates logo que ganhavam um dinheiro voltavam a suas aldeias para escolher uma mulher, traziam a mulher para o Brasil ou deixavam a mulher lá e voltavam sozinhos, outros casavam com uma brasileira e voltavam com ela para sua aldeia no Líbano, uma mascate casou com uma brasileira e levou a brasileira para Beirute, lá estava outra mulher e a brasileira não aceitou a bigamia, o marido deixou a brasileira na rua, ela ficou perdida nas ruas e ia virar mendiga ou prostituta de turcos, na sala de tio Naim eles discutiram o destino da perdida [...] decidiram trazer de volta a brasileira ai que sacrifício pagar passagem assim para brasileiro tanto libanês precisava trazer mãe ou pai ou irmão, não ia custar tão caro, Mais caro é ter boa reputação[...] (MIRANDA, 1997, p. 67)

O tipo de situação descrita no romance se reporta a uma fase da imigração em que os casamentos mistos ainda não eram comuns. Segundo Oswaldo Truzzi (2005, p. 33) o padrão de buscar a noiva na terra de origem era muito comum entre os pioneiros. A parte 5, intitulada “Casa de Amina”, relata a tentativa de independência da narradora, de preenchimento de um vazio interior que ela não consegue diagnosticar. Ela vai morar em um sobrado da Rua 25 de março, em meio ao burburinho de pessoas, os odores estranhos da cozinha dos lusis, as lágrimas sufocadas da portuguesa, o agarramento do português com a empregada negra, na escada, o frio intenso no inverno e o calor absurdo no verão. Os poucos objetos que leva com ela apontam para uma


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característica da personalidade de Amina: a facilidade com que se encanta, e desencanta, com as coisas. Assim é que se apaixona por Chafic, um mascate que vê pela janela, a tomar banho nu, no rio. Por Tenura, a empregada de Naim, fica sabendo que ele é mascate de fogos de artifício e que quando não está no Mercado, vai de aldeia em aldeia no Mato Grosso. A dançarina acostumada a brincar com a atração dos homens rende-se a uma única visão daquele corpo masculino. E, mais uma vez, os odores e sabores da culinária árabe surgem para metaforicamente expressar a ebulição em Amina; [...] nunca mais na minha vida o veria, nunca no exterior de mim apenas o veria no escuro de minhas pálpebras , nu encostando sua língua na boca da mulher, fora ele um castigo mandado pelo Deus dos maronitas para eu pagar minhas maldades todas que fiz contra os homens, Chafic moeu meu coração, marinou temperou com pimenta intercalou num espeto com pedaços de lágrimas de cebola assou na brasa grelhou e não comeu [...] (MIRANDA, 1997, p. 88)

Da parte 7 em diante, o diálogo com a história cede lugar à história pessoal de Amina, que é contratada para dançar no casamento do mascate Abrahão. Por recomendação do pai da noiva, não deveria dançar a dança do al nahal, o que acaba por fazer, deixando os homens presentes hipnotizados, o velho fellah revoltado, um casamento desfeito e uma noiva suicida. O romance termina no mesmo ponto em que começa, com tio Naim perguntando a Amina se ela aceita casar-se com o mascate, que retornara rico da América do Norte e que nunca a esquecera.

CONCLUSÃO A par dos matizes proporcionados pela criatividade de Ana Miranda, o romance revela a cuidadosa pesquisa histórica e textual empreendida na sua elaboração. Ao incorporar os referentes históricos à sua obra, ela engendra uma tessitura que se reporta em detalhes à história da imigração libanesa no Brasil sem, no entanto, perder o estatuto de ficção. A representação da identidade cultural do imigrante em Amrik revela-se diferente se comparada, por exemplo, a de autores como Milton Hatoum. Enquanto este cria personagens que, embora imigrantes, estão totalmente integrados ao país de adoção,


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constituindo identidades híbridas, Ana Miranda detém-se nos primórdios da imigração e no choque entre culturas. Em várias entrevistas dadas à época do lançamento de Amrik, Ana Miranda afirmou que Amina não é real, que foi inspirada em suas fantasias de criança, em suas leituras sobre Sheerazade, Simbad, califas e odaliscas, bem como na interpretação que autores como Borges, Flaubert e Rimbaud tiveram do Oriente. Paradoxalmente, a personagem por ela criada tem como local de fala a concepção eurocêntrica do Oriente que combate. Ao dialogar com a historiografia, a literatura assume ser capaz de contar histórias que historiografia não sabe nem pode contar. Amrik é uma narrativa de olhares, pois, conforme nos explicou Said (2001:16-17), “o Oriente é uma idéia quem tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente”. Assim como Naim, que via o mundo através dos olhos dos que o cercavam, o leitor se debruça sobre a narrativa de Amrik certo de que essa é mais uma dentre as múltiplas interpretações do Oriente, uma vez que o romance foi escrito a partir de um olhar ocidental e contemporâneo.

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