Revista UMA - Artigo Indefinido nov2014

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UFRRJ

UMA

artigo indefinido NOVEMBRO 2014


sumário

REVISTA UMA | ARTIGO INDEFINIDO

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3. Editorial #EuFeminista 4. Relato Editorial Não consigo amar quem não ama o outro 5. Audiovisual 6. (contra)posição Nome Social 11. Arte & Expressão 18. Back do Black 37. Entrevista - Manuela Alves 51. Moda e resistência Saia de saia 67. O estilo de um mito: Frida Kahlo 69. Ser mulher e livre na cultura islâmica 71. Crônica

UMA EQUIPE: CLÍVIA MESQUITA, GABRIELA VENANCIO, MATT CABOT E MATHEUS MARTINS COLABORADORES: ANA CORNEAU, TAINÁ REI, ELLEN ROSA MODELO DA CAPA: LEYLLE COSTA

37.

Manuela Alves

A primeira estudante transsexual da UFRRJ, Manuela Alves, conta o que mudou de lá pra cá desde que começou o tratamento hormonal há mais de um ano.


69. Ser mulher e livre na cultura

islâmica

A mulher iraniana e o uso do véu tradicional islâmico, especificamente o hijab, dentro e fora da territorialidade do Irã

CAPA

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18. Back

to

black

Ensaio fotográfico mostra meninas da UFRRJ que decidiram assumir a beleza natural dos seus cabelos black.

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editorial

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#Eufeminista

U

ma: revista feminina aos moldes do feminismo. É possível uma abordagem mais crítica e complexa dos fenômenos sociais acerca da mulher cis e trans* do que nos é diariamente reforçado pelo machismo e reproduzido pela mídia. Nossas temáticas não se prendem as expectativas impostas ao papel do feminino na sociedade. Nem tem como objetivo instruir, educar ou criar um ideário de sexualidade, comportamento e beleza para as mulheres; ou a pretensão de ser referência em estilo de vida e sucesso.

Pelo contrário, pretendemos ser um lugar de ampliação do espaço social, de atuação, expressão e informação das universitárias da UFRRJ, além de promovê-la como agente responsável pelo próprio corpo e pela própria vida.

tíamos todas as pautas, menos Manuela. Parecia algo certo. Já tínhamos uma primeira entrevista de 2013. Ouvimos os 17 minutos imaginando o que havia mudado em sua vida em um ano e meio. Agradecemos às pessoas que mudaram a direção do que estávamos criando. O inesperado poderia ser mais interessante. Uma mensagem de última hora arrancaria lágrimas e nos confortaria, uma capa nova - a única original - surgiria na última madrugada. Agradecemos a todas as meninas que nos contaram suas histórias de autoaceitação, que assumiram seus cabelos e tomaram as rédeas das suas próprias vidas. Agradecemos Pedro Corneau, por ser membro extra do grupo, ouvir nossas ideias, ajudar na transcrição das entrevistas e por ter nos dado luz nos momentos escuros. Agradecemos a todos os colaboradores.

Agradecemos Manuela Alves por ter sido a nossa maté- Obrigadx a todxs que inspiraram e construíram ria principal, mesmo antes de realizarmos a entrevis- conosco um trabalho incrível e único. ta. Durante o semestre, em todas as reuniões discu- Agradecemos as umas e uns, agradecemos a todxs. POR CLÍVIA MESQUITA, GABRIELA VENANCIO, MATT CABOT E MATHEUS MARTINS


relato editorial

NÃO CONSIGO AMAR

QUEM NÃO AMA O OUTRO Homofobia na Universidade é não só problema dos homoafetivos. É um problema que todo mundo que se engaja na causa por igualdade de direitos sofre. Aconteceu comigo. Eu encontrei um cara legal e começamos a namorar. Achei aquilo muito bom. Você gosta da pessoa, a pessoa gosta de você. Até que ele começou a falar: ‘Você tem amigos gays e isso não é legal. Isso não é certo.’ E você começa a pensar: até que ponto influencia com quem a pessoa dorme com o caráter da pessoa? Não influencia. Da mesma maneira que eu escolhi dividir meu relacionamento com ele, tem homens que dividem com outros homens e mulheres com outras mulheres. Dado que é de consentimento livre, as pessoas podem fazer isso.

Nós continuamos namorando, até que um dia eu compartilhei uma dessas tirinhas no Facebook: ‘Não há maior tristeza para um pai do que ter um filho homofóbico’. Ele disse pra mim: ‘Existe. O cara pode matar e roubar’. Uma pessoa que ama o outro não rouba, não mata. Quem ama o outro, de verdade, não faz nada de errado. Uma vez eu ouvi algo do tipo: “Errado é não amar.” e eu não consigo amar quem não ama o outro. Eu deixei aquilo que eu jurava ser um amor muito bonito. O cara sabia me amar mas não sabia amar outras pessoas. Eu sou contra a homofobia, eu sou a favor de direitos iguais para todos. Você tem o direito de amar quem você quiser.

POR ELLEN ROSA, 21 ANOS, ESTUDANTE DE FILOSOFIA NOVEMBRO 2014

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audiovisual

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Letícia e Fernando vivem oprimidos pelo pai extremamente religioso e conservador. A descoberta da homossexualidade de Fernando piora drasticamente o ambiente já opressor, influenciando Letícia, que busca desenvolver sua primeira coreografia de ballet contemporâneo com o apoio do irmão. Na dança ela encontra liberdade, mas em casa o pavor está à espreita.


(contra) posição

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Nome Social

O indivíduo trans* é registrado com nome não condizente com a sua identidade de gênero, mas com seu sexo biológico. Isso pode gerar inúmeras situações constran-gedoras. Uma alternativa é assumir a identidade de gênero com a qual nasceu, adotar outro nome clandestino, e ser lembrado diariamente através de preenchimento de formulários, da necessidade de apresentar documentos, de procurar um emprego e demais situações cotidianas, de que na realidade seu nome não é o que alega ter. Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), no âmbito do Colégio Técnico da Universidade Rural (CTUR), o aluno que era registrado com o nome civil de Caroline de Paulo Pires da Silva se identificava como pertencente do gênero masculino. Nesse ano ele reivindicou o uso de seu nome social Guilherme Leoni de Paula, chamando a atenção da Universidade sobre o constrangimento de ser chamado Caroline nas frequências, provas e demais documentos internos do colégio, mesmo sendo conhecido por todos como Guilherme. Após discussão e votação no dia 15 de julho deste ano, em uma reunião extraordinário do Conselho da UFRRJ, foi aprovada por unanimidade a inclusão do nome social escolhido pelo estudante em documentos do CTUR. Guilherme chamou a atenção da Universidade para a situação dos transgenders no meio acadêmico, acarretando uma deliberação editada pelo CONSU (Conselho Universitário). Este órgão da Administração Superior decidiu que o nome social pode ser requerido pela/o estudante transexual e deve ser utilizado em todos os documentos não-oficiais da Universidade, excluindo-se então, o histórico escolar, diploma, certificados e declarações. A carteira estudantil passou a constar o nome social, além do nome civil.

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A natureza do nome está intimamente ligada ao feminino e ao masculino, por exemplo: João, Bruno e Guilherme são nomes do gênero masculino impostos aos que nascem com o sexo biológico masculino, quando deveriam ser atribuídos aos que tem identidade de gênero masculina. No entanto, não podemos culpar os pais por isso. A alternativa seria não registrar a criança até que ela definisse seu gênero, o que seria ilegal, pois o registro não é facultativo. É ato compulsório previsto na lei de registros públicos. O indivíduo trans* poderá adotar nome condizente com a sua identidade de gênero ao menos para se auto definir e para usar em seu ciclo social, mesmo que o Estado não o reconheça como legítimo. Ou seja, este novo nome clandestino irá, de certo modo, suprir as necessidades do indivíduo nas funções privadas e subjetivas do nome, mas não na vida pública. Para o indivíduo trans* este nome representará a quebra com o seu passado. Este ato de ruptura demonstra a coragem da/o transexual em quebrar com as normas de gênero estabelecidas há séculos e em enfrentar uma sociedade transfóbica, que provavelmente o marginalizará social e profissionalmente.

Este nome clandestino já é chamado amplamente pela mídia, jurisprudência e doutrina de Nome Social. Atualmente, o nome social é reconhecido em escolas, faculdades, pelos servidores públicos, alguns ambientes de trabalho particulares e em formulários. Entre os casos mais recentes, a possibilidade de nomear a prova do ENEM. Efetivamente a Universidade não solucionou o problema do nome para os alunos transexuais. Simplesmente reconheceu algo que já existia e mesmo assim não o fez da maneira mais adequaO ato de nomear é a primeira norma imposta an- da. O nome social deveria ser o nome cívil, pois o tes mesmo de o indivíduo ser uma pessoa. A mãe, nome deve respeitar a dignidade de quem o porta. du¬rante a gestação traça hipóteses de nomes no caso (ADAPTAÇÃO DO ARTIGO “O NOME NAS QUESTÕES DE GÊNERO”, RICHARD LUÍS da possibilidade de nascimento de cada sexo biológico. TRAJANO - UFRRJ - CAP. 2.3 O NOME SOCIAL DO INDIVÍDUO TRANS) POR MATHEUS MARTINS


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Quem é a

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mulher

da relação? O homem protetor do lar, a mulher delicada que precisa dessa proteção. Nos relacionamentos, o homem que constrói a casa a braços fortes, a mulher que cuidadosamente limpa essa mesma casa. POR MATT CABOT Essa é uma pergunta que 98% das pessoas fazem, respondeu a universitária Vivian Bittencourt (22). Questionada pela UMA, negou a obrigatoriedade dos papéis masculino e feminino em sua relação com outra mulher: “Eu sempre questiono se a pessoa parou para pensar qual o sentido dessa pergunta, porque, se a gente analisar, essa coisa de ‘homem’ e ‘mulher’ vem pra designar as funções das pessoas dentro de uma relação. E que essa é a diferença da relação gay. Isso não existe”. Diferente das relações heterossexuais, em que o homem e a mulher desenvolvem funções social e historicamente incumbidas a seu gênero, nas relações entre pessoas do mesmo sexo há a reorganização ou muitas vezes a anulação dessas funções. Mesmo que dentro de cada relação a lógica machista do ‘homem protetor’, e portanto comandante da relação, e da ‘mulher que precisa de proteção’ possa ser retrabalhada, o senso comum trata de reforçar a imagem do casal heterossexual dessa forma. Automaticamente faz-se a distribuição do que seria papel do homem -forte, ati-

vo, o que constrói a casa-, e da mulher –frágil, passiva, que cuida dessa mesma casa-. E esse pensamento é que causa do estranhamento quanto a uma relação entre duas mulheres ou dois homens. Como funciona? “Não fazemos essa distinção, que não deveria existir em nenhuma relação”, salienta Vivian. “Em relação ao sexo, digo que fazemos o que nos dá prazer sem a necessidade de nos preocuparmos com estereótipos, como o homem que ‘come’ e a mulher que ‘dá’. Damos e recebemos; conforme o gosto de cada uma”. De fato, o estranhamento por parte da sociedade quanto à “organização” dos relacionamentos homossexuais vem atrelado ao sexo, à ideia do homem ativo sexual, e da mulher que se deixa adentrar. Mesmo que sejam duas mulheres, as pessoas comumente buscam de alguma forma identificar esses papeis, como contou a também estudante Mariana (23). Segundo ela, até o tom da voz faz com que ela e a namorada sejam tachadas de alguma forma: “A Nathalie é mais fofinha, então já a ligam à ideia de mulher da relação, já


eu sou mais bruta, gosto de moto, carro, curto muito futebol, então já pensam ‘Ah, a Mariana é o homem da relação’”. Assim como Vivian, Mariana contou ainda que todo esse questionamento é sem sentido dentro do seu relacionamento: “Normalmente quem pergunta são aquelas pessoas que ficam travadas naqueles estereótipos do homem que paga a conta, homem que tem que prover segurança pra mulher, abrir a porta do carro... Isso tudo não existe pra gente. Em nenhum momento da nossa relação existe isso de homem.” Segundo o artista plástico Lucas Moratelli (23), é de uma necessidade máxima descobrir quem da relação se permite ser frágil: “É uma construção cultural e social. A ideia do opressor e oprimido se estabelece em diversas esferas e camadas, e é quase uma prerrogativa para cada relação se estabelecer numa relação de dominacão. O homem da relação é responsável por dirigir o carro, escolher o caminho, decidir o filme, por exemplo”. Fica confuso pra que está de fora perceber como funciona essa relação que eles não estão acostumados. Quem domina? Quem é o dono da relação? É uma dualidade de papéis, apoiados nos estereótipos do que é tido como masculino e feminino, que limita o comportamento adotado por cada componente da relação. “É difícil encarar a sociedade definindo que a pessoa que tem mais inclinação para exercer as ações que sócio-cultu-

ramente a mulher está incumbida (muito erroneamente e infelizmente) é a passiva que precisa de proteção”. São realidades outras que precisam ser evidenciadas. “Se eu tivesse uma definição minha pra encarar, o essencial é saber desconstruir isso de dentro pra fora. Lembrar que você não está obrigado a incumbir certo papel. Se eu gosto de lavar a louça, e se vemos isso simplesmente como lavar a louça e não como entidade determinada em que lavar representa uma bagagem histórica de opressão à mulher, sexo frágil, você tem uma ruptura de opressão, do sentido de dominância e relação de poder”, finaliza ele. Não existe certo ou errado, papeis definitivos, quando se permite vivenciar experiências livremente, sem se limitar para prazeres que culturalmente não competem ao papel imposto para o seu gênero. São preconceitos que impedem os homens de se permitirem ações ditas como femininas, e de mulheres a ações ditas masculinas. Mariana ainda contou que acha engraçado quando amigos perguntam quem é o homem associando a que faz tudo dentro da relação: “Não existe uma pessoa que faça tudo. Não existe homem numa relação entre duas mulheres. A gente divide exatamente tudo. As pessoas criam uma ideia de que sempre tem que ter um que manda, um que vai ficar por cima. Isso é muito estranho.”


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Lesbofobia

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Encontrar estatísticas oficiais que demostrem o mapa da lesbofobia no Brasil é tarefa complicada: não há pesquisas publicadas sobre violência contra lésbicas. Quase nunca é documentada pelos órgãos públicos e se torna invisível nas estatísticas. Além da invisibilidade lésbica ser pontual na sociedade, ainda é preciso conviver com violações aos direitos humanos. POR GABRIELA VENANCIO

Diversos tipos de violência homofóbica têm sido noticiados com grande frequência em todo o país, mas pouco problematizados. Crimes de ódio e violência inexplicáveis acontecem em capitais e lugares remotos. Não fazem distinção entre classes social ou econômica, mas atingem de forma mais agressiva e velada às minorias. Enquanto a homofobia é caracterizada de forma genérica como violência motivada por intolerância à diversidade sexual, a lesbofobia atinge mulheres homossexuais que sofrem violência particular pelo fato de ser mulher e o acréscimo de ser lésbica. A partir dessa perspectiva, o Grupo Gay da Bahia fez um levantamento durante o anos de 2014 e relatou que durante esse ano (até o dia 21 de setembro) a homofobia já provocou a morte de 193 pessoas, entre elas 14 mulheres (4%). As conclusões tiradas a partir desses dados são: a mulher e sua sexualidade são invisibilizadas pela sociedade, ainda mais quando possuem uma identidade não-heterossexual. Numa perspectiva microssociológica, é possível afirmar que a lesbofobia dentro da Universidade reflete o que a sociedade carrega como heteronormas. Quando alguém exerce sua sexualidade de forma ‘não-convencional’ a sociedade se vê apta a decidir o que ‘pode’ e o que ‘não

pode’, o ‘certo’ e o ‘errado’ em cada forma de se relacionar. A aluna Letícia Gonçalves (22) acredita que a lesbofobia está diretamente ligada ao machismo: “eu sempre ouso dizer que não há lésbica que não tenha sofrido opressão. Assumir uma identidade sexual não dominante é estar exposta diariamente a violência, desde a própria casa a, principalmente, espaços públicos.” Para compreender a lesbofobia e as suas consequências na vida dessas universitárias, é necessário relembrar que vivemos em uma sociedade machista e uma Universidade (UFRRJ) fundada nos pilares do patriarcado. Nessa sociedade, a sexualidade lésbica é fetichizada, motivo de piada, constrangimento e desprezo. Diante de uma pessoa intolerante, parece impossível a satisfação sexual de uma mulher sem a participação de um homem. A Estudante de Belas Artes Nathalia (25), afirma que já perdeu a conta de quantas vezes ouviu insultos por ser lésbica: “já passei por muito preconceito na rua, de escutar ‘vai procurar um macho’, ‘um homem nunca te pegou direito’, foram as piores coisas da minha vida”. Os casos de lesbofobia não são isolados, mulheres lésbicas tem duplo medo de serem agredidas quando saem na rua; estão do lado dos oprimidos e suas reivindicações muitas vezes são silenciadas, ignoradas. O medo de ser agredida ainda aumenta de acordo com o estereotipo


agregado a imagem feminina. Nathália conta que já passou por situações preconceituosas quando se vestia com roupas do gênero oposto ao seu. “Hoje em dia eu não sofro tanto mais, porque sou um pouco mais feminina, e com isso eles se sentem ‘menos ofendidos’ então eles não fazem nada mais. O máximo que acontece é chegar e me cantar. Hoje em dia é uma abordagem mais light”.

A Estudante de Filosofia Geisa acredita que a Universidade reproduz comportamentos discriminatórios em números assustadores, sejam eles raciais, religiosos e/ ou de gênero. “Há casos relatados e divulgados de violência contra gays, lésbicas e bissexuais dentro do espaço universitário, entretanto a maioria são “arquivados” ou silenciados. Não há sequer uma atenção especializada de proteção à vítima, tão quanto nenhuma política Geisa (23), Estudante de Filosofia, afirma que, de punição ao/à agressor/a. Isto pode parecer famialém da opressão silenciada, existe a opressão silen- liar, uma vez que acontece diariamente no meio social”. ciosa, que faz subentender como deve ser o comportamento de uma lésbica, por exemplo. A aluna Loriane (24 anos) cursa Engenharia de Alimen“Seria o famoso ‘não dar pinta’, porque assim a pessoa tos e acredita que só a punição não seria o caminho consegue uma vaga em um emprego, viajar com sua ideal. “Não só a lei, né! Eu acho que é uma reação em companheira de forma tranquila, ou conseguir adotar cadeia: os pais vão passando para os filhos aquela menuma criança. Como eu me sinto quanto ao ‘mundo lá talidade, que passam para os netos e vão disseminando, fora’? Desconfortável. É assim que me sinto”, disse ela. perpetuando o preconceito. Se não tiver uma conscientiCASOS DE LESBOFOBIA NA UNIVERSIDADE

Thaila Penido (23) entrou na Universidade em 2009, no curso de História, foi morar no alojamento estudantil e passou a dividir o quarto com 7 meninas. “Eu era muito na minha, não falava nada disso com ninguém”. Ela conta que no início era bem tranquilo e que morou durante dois anos no alojamento como se fosse hétero: “eu não via necessidade de falar sobre a minha vida com ninguém”. “No quinto período eu assumi que era bissexual, e as meninas super apoiaram. Comecei a namorar uma menina que estudava na universidade. E ela começou a frequentar o meu quarto entre os intervalos da aula”.

zação muita gente ainda vai passar por esse preconceito histórico”. Criminalização não pressupõe consciência. PUNIÇÕES PARA CRIMES LESBOFÓBICOS

Nos últimos seis anos morreram cerca de 1,3 mil pessoas vítimas de intolerância a diversidade sexual e no Brasil ainda não há leis que punam a lesbo/ trans/homofobia. Há o disque 100 para denunciar atos homofóbicos mas a legislação atual não proíbe especificamente a discriminação contra homossexuais.

O projeto de lei da câmara (PLC) 122/2006 propõe a criminalização dos preconceitos motivados pela Com o tempo, a ex-namorada da Thaila passou a almoçar orientação sexual e pela identidade de gênero mas no quarto e as meninas mudaram de atitude. Não aceita- ainda não foi aprovado. vam a presença dela e chegaram a expulsá-la do quarto. As provocações aumentaram e as alunas que dividiam o quarto com Thaila chegaram a desmontar sua cama e colocar do lado de fora. Também conseguiram um laudo psicológico alegando que a presença de Thaila fazia mal a rotina de estudos e pediram a expulsão da aluna. “Ela (ex-namorada) nunca dormiu no meu quarto, ela aparecia lá de manhã, e a gente ia pra aula juntas, e depois da aula a gente almoçava juntas, ou fazia almoço juntas”. Diante disso, ela abriu um processo por homofobia contra a psicóloga e as alunas com quem dividia o quarto com apoio do Rio Sem Homofobia. “Eu não tinha casa, eu não tinha pra onde ir. Eu não podia pegar minhas coisas. Foi todo um constrangimento”.

Enquanto seguem os trâmites para o alcance dos direitos políticos e jurídicos pela comunidade LGBTQ, é possível se defender de ataques lesbofóbicos através da Lei Maria da Penha, que também foi criada para prevenir e punir violência contra lésbicas e bissexuais. A lei 11.340/06, mais popular como lei Maria da Penha, diz em seu artigo 2° que toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento oral, intelectual e social.


arte&expressão

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Estética naturalista POR TAINÁ REI

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Docinho, Guarde as tripas na barriga Hoje não tenho fome. Se eu fosse bonita, lhe daria um beijo Mas aceite com boa vontade o meu amor doente. Lascivo, deprimido, apocalíptico e mal-acostumado Este é mesmo um papel ruim para cartas. Mas ele é tão poroso, pequeno e amarelado que Não vejo nada mais apropriado para contar uma grande verdade. O triste é que você me conforta com outras cartas Quando só quero sexo oral.


arte&expressão

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Meu rosto como um POR TAINÁ REI

Ontem eu o vi beijando uma garota bonita, muito comum, dessas que você apresenta para os pais, pra família e pros amigos sem precisar dizer nada, pois todos sabem que ela é bonita. Seu rosto não é um conflito, ela é bonita, é fácil entendê-lo, ele não precisa se explicar porque todos sabem que a garota é bonita, sabem disso desde que nasceram.

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desaf


fio


Mulheres

invisíveis

e livros nas prateleiras

Você já parou para pensar que quando vai às livrarias ou bibliotecas a maioria dos livros nas prateleiras são escritos por homens, sobre homens? Tente lembrar quantos livros escritos por mulheres você lá leu em toda a sua vida. POR ANA CORNEAU


arte&expressão Não é de hoje que há uma ausência feminina na literatura e nas artes, em geral. Alguns vão dizer que elas são menos representadas porque escrevem menos. Porém, a questão é que elas não escrevem menos, e sim têm bem mais dificuldade em ser publicadas. De acordo com uma pesquisa de Regina Dalcastagné, divulgada em 2013, no Brasil 72,7% dos escritores são homens (desses, 93,9% são brancos). O problema da representação vai até para dentro das obras: no Brasil, apenas três protagonistas eram mulheres em 258 livros estudados. Na FLIP desse ano, dos quarenta e quatro escritores, somente sete eram mulheres. Foi por causa desse e outros motivos que alguns projetos para o incentivo da literatura feita por mulheres foram criados. O mais notável é o “Read Women 2014”, criado pela escritora Joanna Walsh. Como o nome já diz, o projeto propõe que leiamos mais mulheres em 2014, que passemos a procurar as escritoras invisíveis e que as coloquemos nas nossas estantes. Em entrevista à revista Língua Portuguesa, Joanna Walsh disse: “Infelizmente, tenho percebido cada vez mais evidências anedóticas que escancaram a gravidade da diferença entre os gêneros. Escritoras são, a maior parte do tempo, julgadas pela sua aparência, em vez de serem julgadas pela qualidade de sua escrita. Exemplos não faltam.”

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esse estereótipo do universo dito como “feminino”. Nas prateleiras, nenhuma novidade: livros de homens sobre homens. Fui crescendo lendo Kafka, Orwell, Nietzsche, Dostoievski, os tendo como inspiração e escrevendo no “masculino”, porque assim pensava que meu texto teria a seriedade e qualidade notória que todos eles tinham. Há quem diga que mulher só escreve sobre amor, casamento e roupas, mas isso não é verdade. Há várias mulheres escrevendo sobre diversas coisas, escrevendo romance, ficção científica, drama, comédia, etc. Porém, poucas possuem visibilidade porque ainda são taxadas como inferiores pelo simples fato de serem mulheres. Já ouvi comentários como “Você escreve bem para uma mulher!” e até mesmo “Você escreve como um homem”. Sim, as pessoas pensam que dizer isso é elogio porque se esquecem de problematizar a hegemonia masculina na literatura. Falam isso com naturalidade e um sorriso no rosto, porque não percebem que ofende. Perdi as contas de quantas vezes já escutei “Não gosto de livro escrito por mulher, nada contra, é só a minha opinião”. Só a sua e a opinião de quem controla livrarias, bibliotecas e prêmios literários, não é mesmo?

Nunca tinha parado para pensar que eu me escondia nos meus próprios textos, era algo inconsciente, só fui perceber que algo estava errado quando conheci escritoras Bem, escrever sempre foi tudo para mim, escrevo como Sylvia Plath e Ana Cristina César. Ver mulheres esdesde quando me entendo por gente. Comecei com crevendo sobre todo tipo de coisa, com muito talento, me os diários e tudo ia para o papel: devaneios sobre encheu de esperança e vontade de mudar essa situação. a escola, as pessoas da minha sala de aula, professores, família, livros. Escrevia histórias e criava aventu- O feminismo foi essencial para que eu viesse a conheras. Porém, na maioria dessas histórias havia somen- cer e me inspirar mais em mulheres, como Simone de te meninos como personagens principais, nenhuma Beauvoir e Virginia Woolf. Às vezes, nós, mulheres que era contada com a minha perspectiva e a minha voz. escrevemos, sentimo-nos ridículas pelo simples fato de escrevermos partindo da nossa verdadeira condição. Na televisão sempre via meninos correndo, se sujan- Temos receio de mostrar para outras pessoas, medo do, brincando com carros, aviões e fazendo tudo que de fugir do padrão. Mas essas mulheres fizeram com quisessem. Via homens cientistas, astronautas, enge- que eu percebesse que não devia ter vergonha ou medo nheiros, escritores, ganhando prêmios e visibilidade. de escrever usando a minha voz, que isso iria me fazer Ao mesmo tempo, as meninas só apareciam como bem, me libertar e libertar outras mulheres. Afinal, ter princesas delicadas, modelos simpáticas e alegres representações femininas é essencial para a nossa idenusando vestidos floridos. Nunca me identifiquei com tificação. Nos sentimos acolhidas. Nos entendemos.


Essas meninas nos contaram versões diferentes da mesma história: tinham cabelo quimicamente alisados - a maioria desde pequena - e passaram por um processo de empoderamento e descoberta de identidade. Essas universitárias da UFRRJ não submetem mais sua saúde e autoestima aos padrões de beleza dominantes. O Projeto Back to Black retrata e recolhe depoimentos de quem sempre teve cachos mas só descobriu há pouco tempo. ILUSTRAÇÃO CLÍVIA MESQUITA


comportamento

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Eu era uma garota “estranha” no colégio, sempre ouvia que quem tinha cabelo liso era bonita. E também por inflêncua da minha mãe, que sempre usou química. Com o tempo eu vi que meu cabelo não crescia e sempre caia um pouco na parte de trás. Daí resolvi usar tranças pra ver se resolvia (não adiantou nada), fiz de tudo pra ele crescer e chegou uma hora que não queria mais usar química nem nada.

LEYLLE COSTA, 20 ANOS, ESTUDANTE DE BELAS ARTES


Desde que eu era pequena nunca me reconheci com o cabelo liso. Uma vez fiz uma escova e molhei o cabelo logo depois por não ter gostado nada dessa experiência. E a Rural trouxe o Núcleo Universitário Negro (NUN) para minha vida que só ajudou a reforçar minha identidade negra. ANA BEATRIZ SACRAMENTO, 21 ANOS, ESTUDANTE DE COMUNICAÇÃO



Entrei em transição em 2012, foi difícil, mas consegui! Hoje sou muito feliz com meu black e me sinto linda, essa transição não foi só capilar, sei lá, mudei muito ao longo desses dois anos. Sempre tô em constante mudança, nunca consigo ficar só de black ou de trança e as vezes coloco cores bem chamativas. LEYLLE COSTA, 20 ANOS, ESTUDANTE DE BELAS ARTES




Me amo muito mais! Sair dos padrões que a sociedade te impõe é a melhor coisa, porque a vida não é padrão, você tem que ser você mesmo sempre, mesmo que seja estranho, gordinho, magrelo, não importa... Acho que quando nos aceitamos como somos tudo flui bem melhor. TALITA PIRES, 19 ANOS, ESTUDANTE DE ECONOMIA


Comecei a usar química aos 12 anos porque nao conseguia desembaraçar com facilidade e muito menos controlar o volume. No inicio ficou perfeito, mas com o retoque de 3 em 3 meses foi ficando ralo, seco, com várias pontas duplas... Decidi libertar meus cachos há três anos porque começou a surgir falhas nas laterais do cabelo, e fiquei com medo de avançar e nao ser reversível. Foi bastante complicado no início, porque os cachos não ficavam definidos mas hoje nao me arrependo. DANDARA CANDIDO, 23 ANOS, ESTUDANTE DE QUÍMICA INTEGRAL




Eu fazia química no cabelo desde muito novinha. Me lembro de ter uns 5 anos e minha mãe já me levava no salão (lembro daqueles secadores esquisitos e grandões que pareciam uma estufa, eu nem tinha tamanho praquilo). A questão sempre foi: Cresci rodeada de pessoas brancas, de cabelo liso. Da minha família, só meu pai é negro e eu não convivi com ele. Logo, eu me sentia a “ovelha negra” da família (risos). Por eu ser a única diferente, ninguém sabia como lidar com meu cabelo. Eu queria ter não só o cabelo da minha mãe, mas os olhos e a cor da pele dela. Fui crescendo, mas continuei com a neura de ter cabelo liso. Me submeti a várias técnicas. Alisamento com guanidina, tioglicolato, escova marroquina, progressiva, definitiva, de todas as nacionalidades possíveis. Quando a raiz começava a crescer eu começava a me odiar de novo, porque meu cabelo ficava ridículo. Me sentia esquisita de novo. Quando eu comecei a trabalhar, eu praticamente vivia no salão. Assim que recebia, ia passar 5 horas (sim, CINCO longas horas) pra sair de lá me achando bonita. Daí passei pra Rural. Tive que reduzir minha carga de trabalho e não tinha mais meu salão de confiança por perto. Entrei em desespero, tentei passar química por conta própria, fiz merda. Meu cabelo caiu bastante, mas não me dei por vencida. Encontrei uma cabelereira em Seropédica e continuava fazendo todo mês aquela rotina. Via, pela primeira vez, pessoas com cabelos cacheados ao meu redor sendo lindas, se sentindo lindas. E comecei a me perguntar, por que não eu? A Rural me deu mais confiança quanto a isso. Mas a gota d’água foi a última vez que fui ao salão, em março desse ano. Eu estava acostumada a pagar um valor alto pelo que eu fazia no cabelo, mas na hora que fui pagar a menina resolveu me cobrar mais caro, simplesmente. Aquilo me deu uma sensação de impotência, sabe? Eu era “obrigada” a gastar um dinheiro que me faria falta pra continuar a fugir de quem eu era. Eu não conhecia meu cabelo, e ainda pagava pra esconderem ele de mim. Me senti uma falsa, uma hipócrita. E decidi que seria a última vez. Desde então não fiz mais química no cabelo, e não pretendo nunca mais. HELEN VINCENT, 20 ANOS, ESTUDANTE DE PSICOLOGIA



Eu usei química desde que eu tinha 11 anos porque a minha mãe achava ele cheio demais, embolava muito e ela que decidiu isso. Comecei com o relaxamento e com 16 anos fiz escova progressiva. Sempre usei meu cabelo curto, então na hora da mudança que foi quando eu decidi cortar o meu cabelo todo e deixar ele crescer naturalmente, não me fez muita falta e não foi dramático. Me senti muito bem quando eu cortei. A decisão foi porque o meu cabelo com química estragou todo! Fora que eu sempre via outras meninas com o cabelo natural e eu não conseguia me livrar da química, aí foi que eu decidi parar e cortar. TALITA PIRES, 19 ANOS, ESTUDANTE DE ECONOMIA



Decidi cortar o meu cabelo e usar tranças. Além de ser prático em final de período, ajuda o meu cabelo crescer natural e forte. Amo fazer tranças no meu cabelo porque é algo que eu faço desde pequena. Na Angola, isso é costume e a gente faz diversos modelos de tranças no cabelo. CELCIA MATTOS, 25 ANOS, ESTUDANTE DE GEOLOGIA


Em relação a transição, foi algo muito difícil pra mim. Após uns 2 meses, a raiz alta e os comentários contra essa decisão de voltar aos cachos vinham de vários lados, eu ficava pensando se valeria mesmo à pena. Era difícil cuidar de um cabelo com 2 texturas, me dava trabalho demais e eu continuava escrava de chapinha, com medo de chuva. Com 4 meses de transição eu não aguentei. No dia 17 de julho, uma sexta-feira doida, eu acordei e fui pro salão cortar. Fui em um “especializado” em cabelos afro, o qual eu sempre fiz cara feia quando passava perto. Achava escroto, não me imaginava com um cabelo daqueles. A menina que me atendeu, apesar de não fazer o corte que eu pedi, me encorajou muito, foi válido. Nos primeiros dias foi terrível... Eu chorava pensando “que merda eu fiz?!”. Meu namorado odiou, falou demais. Me senti péssima. Me sentia “um homem”. Postei uma foto num grupo de cabelos cacheados que eu sigo e recebi muito apoio. Foi lindo. Muitas meninas postaram fotos do antes e depois e isso me encorajou muito a seguir em frente. Eu só queria meu cabelo crescendo saudável. Desde então, adotei a

técnica do low-poo (uso apenas xampu sem sulfato) e tento fazer de tudo pra deixar meu cabelo saudável. Mal uso pente (risos). Mas pra mim, a melhor recompensa é ver meu cabelo de um jeito que eu nunca vi. Eu imaginava meu cabelo horrível, “duro”. Eu tenho cachos e não sabia! Dia desses alguém me parou e disse “seu cabelo é lindo, o que você faz nele?” Eu tive vontade de chorar, mas de alegria. Eu sempre falei essa frase pra algumas pessoas, mas nunca, NUNCA imaginei que um dia me diriam isso... Eu hoje consigo perceber a beleza de ser você mesma. Consigo me achar bela mesmo que os padrões de beleza não sejam os meus. E tem quem ache também. Meu namorado me apoia, minha família achou incrível minha atitude, e eu ganhei uma fama de corajosa no trabalho e na roda de amigos. Louca também! (risos). Mas valeu a pena. Enfrentaria tudo de novo, e cada vez que eu percebo uma “molinha” nova surgindo da minha cabeça, sinto como se fosse uma forma do meu corpo agradecer por eu decidir ser quem eu sou, sem máscaras ou químicas.

HELEN VINCENT, 20 ANOS, ESTUDANTE DE PSICOLOGIA



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Meu nome é

MANUELA No dia 18 de setembro do ano passado (2013) realizamos nosso primeiro contato com a jovem, até então conhecida como Tardelli, seu próprio sobrenome. Era uma data especial: seu aniversário. Completava 21 anos e havia começado o tratamento hormonal em julho do mesmo ano. Quase dois anos depois convidamos Manuela - agora com seu nome social - para uma conversa.


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M

anuela queria ouvir sua primeira entrevista e nós queríamos ouvir o que ela tinha para nos contar depois de tanto tempo. Houve estranhamento. Curiosa e apreensiva, fez breves comentários sobre sua própria fala. Mostrava-se ansiosa para compartilhar como a maioria das coisas negativas citadas anteriormente mudaram.

a gente tinha ido ao Centro (do Rio de Janeiro) e um garoto me abordou na rua. Eu não o conhecia. Ele me perguntou ‘Você é mulher ou é homem?’ em voz alta, a rua estava cheia. Ele tentou tirar a minha roupa no meio da rua, na frente de todo mundo.” Questionada se denunciou a violência citada na primeira entrevista, Manuela explica que isso é algo que ela e a maioria, infelizmente, não fazem. “É por isso que acontece o que acontece: Não denunciam. Eu errei. Eu poderia Manuela nasceu em Paracambi, cidade do interior ter denunciado.” O ataque resultou-lhe mais de um do Rio de Janeiro. Morou grande parte de sua vida mês sem sair de casa. “Eu tinha 18 anos, não foi fácil.” em Brasília, mas voltou para o Rio. Sua nova casa seria Seropédica, cidade universitária, sede da Uni- Manuela não esperava encontrar pessoas preconceituversidade Federal Rural do Rio de janeiro (UFRRJ). osas dentro da Universidade: “Eu não sofri tanto. QuaA principal diferença entre a cidade grande e o inte- se não sofri, aliás. Eu tive problema com uma pessoa rior, segundo ela, era a relação entre as pessoas: Em só, um senhor que fez uma piada. Ele foi irônico comiBrasília, os moradores não se preocupavam com “a go, chegou me chamando de “senhor”. ‘E aí, senhor?’. vida dos outros”. Em Seropédica não é bem assim. Não combina. Não é isso, entendeu? Eu fiquei muito, muito constrangida. Eu acho que ele quis me deixar Após conseguir um emprego, a dúvida: “Eu te- constrangida ali. Ele queria me deixar com vergonha. rei que sair na rua todo dia. E agora? Como é Isso foi resolvido, foi conversado com a coordenação que vai ser?”. Ao ouvir sua própria voz contan- do curso.” Esse foi o único caso dentro de sala de aula, do sobre as inúmeras dificuldades que teve no comemora: “Graças a Deus.” Agradece a Deus taminicio, ela ri e nos diz que não é mais tão difí- bém pois sua voz que já era feminina não se modificou, cil sair nas ruas e andar durante o dia. mesmo após um ano e meio de tratamento hormonal. “Seropédica é uma cidade muito pequena, então as pessoas acabam se conhecendo muito. Eu não conheço muita gente porque eu geralmente não saio muito de casa. Só saio de casa para trabalhar e para ir à faculdade. Mas as outras pessoas me conhecem e aí, rola uma piadinha, rola um risinho, e isso me deixa muito chateada.” Ao ouvir este trecho, Manuela sorri afirmando ter aprendido a lidar melhor consigo mesma e também com a opinião de outras pessoas.

Manuela sonhava em pintar suas unhas, mas isso causava grandes discussões em casa. “Agora eu tenho que fazer (as unhas), mesmo se tiver briga. Porque que tenho que fazer com que eles entendam que eu me sinto bem desse jeito. Eu não sou homem, de jeito nenhum, embora minha avó me veja como homem. Eu não sou homem de jeito nenhum. Eu não saberia jamais ser um homem. Só agora que eu estou conseguindo me vestir da forma que eu quero. Eu só não tenho vestido e saia, ainda. É uma questão de tempo.” EnNotamos certo incômodo no momento em que ouvi- cerramos a audição da primeira entrevista. Em 2013, mos sobre a situação que mais a assustou em sua vida: por medo da exposição, Manuela pediu para que não “Eu estava caminhando pela rua com a minha prima, divulgássemos seu nome e também dispensou fotos.


O TRATAMENTO X CONFLITO FAMILIAR

ACEITAÇÃO X RELACIONAMENTO

Após o início do tratamento hormonal, Manuela percebeu as mudanças físicas logo no primeiro mês. Com medo dos possíveis efeitos colaterais, ela interrompeu o tratamento durante um mês. “Fiquei com medo de prejudicar minha saúde, é perigoso, muito perigoso. Fiquei assustada.” Sua mãe era a única que sabia sobre o processo, incialmente.

Com medo de sair na rua, Manuela conta que não podia continuar presa em casa, refém de pessoas que a olhavam com estranhamento e preconceito. “Eu tive que peitar, colocar o meu pé no chão e falar ‘Não, isso vai passar’ e passou. Eu não sofro mais tanto quanto eu sofria nessa época. As pessoas até mexem, mas geralmente homem, como mexem com uma garota. Eu não ia pra festa na Rural, de jeito nenhum. Eu tinha pavor e agora eu estou em todas. Eu acho que hoje as lutas são outras. Acho que é o meu problema maior hoje: relacionamentos. Somos vistas ainda pelo estigma da prostituição. Se você é trans é porque você já se prostituiu ou ainda vai se prostituir pra se manter. E não é assim. Isso nem passa pela minha cabeça, nunca nem passou. Para você encontrar uma pessoa que te aceite e veja você como gente, acima de um pedaço de carne, é muito difícil”.

Cansada, resolveu de vez se levantar por sua causa: “Agora todo mundo sabe, eu escrachei. Foi por causa do vestido que saí da casa da minha vó. ‘Vou colocar para sair e ver no que vai dar’; coloquei e ela surtou. Falei ‘É isso mesmo, vou sair assim. Vou não, eu sou assim. Você não quer? Vou pegar minhas coisas e vou pra casa da minha mãe.’ Peguei e fui. A gente só voltou a se falar agora, há pouco tempo.”


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Em 2013, por medo da exposição, Manuela pediu para que não divulgássemos seu nome e também dispensou fotos.

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UMA: O QUE MAIS MUDOU DEPOIS DA PRIMEIRA ENTREVISTA, HÁ UM ANO E MEIO ATRÁS? MANUELA: A minha cabeça.

Eu não digo que mudou 100%, porque para atingir esses 100% você tem que estar com uma maturidade muito grande e eu ainda não sou tão madura assim. Se você ficar procurando entender, “Ah, por que eu sou assim?”, ninguém saberá o motivo. Quando eu entrei na pré-adolescência, eu pensei: “Sou menino. Caraca, e agora?” Eu entrei em um desespero absurdo, mas as coisas foram acontecendo. Comecei a entrar na puberdade e fiquei desesperada. Eu acho que eu já imaginava “Nossa, e quando a minha voz engrossar?”, “E se eu tiver gogó?”, “E se eu for forte?”. Aquilo me maltratava demais. Eu não conseguia me imaginar daquele jeito, porque eu sempre tive um biotipo que me favoreceu nesse aspecto. Mas e quem não tem? Muitos jovens se suicidam. Se você pesquisar, tem inúmeros casos de suicídio de transexual na pré-adolescência. O meu pai, - eu o amo demais, ele me ama demais - tentou de tudo pra me mudar. Ele não me deixava usar nem caneta vermelha. “Ah, vou pegar minha caneta vermelha” e ele “Não!”, porque ele achava que eu ia associar as cores ao gênero. Ele questionava: “Por que a caneta vermelha?” Então, “Eu não sei porque a caneta vermelha. É porque eu estou a fim.”.

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era gay, eu ficava desesperada. Fiquei “Que gay?! Quê isso? Não, pelo amor de Deus!” Não! Não é isso. Eu descobri há pouco tempo é que a transexualidade não tem nada a ver com a sexualidade. Eu já vi transexuais lésbicas. E agora estão tentando classificar: transexual homossexual ou transexual heterossexual, que é o meu caso. Eu poderia perfeitamente gostar de mulher. Perfeitamente. Estaria na minha sexualidade, não teria nada a ver com o meu gênero. Transexualidade, homossexualidade, heterossexualidade não tem nada a ver uma coisa com a outra. Sexualidade é uma coisa muito diferente. As pessoas acham que toda trans tem que gostar de homem. O que mais mudou foi a minha cabeça, graças a Deus. Senão, eu estaria louca. O meu primeiro período (na universidade) foi péssimo. Eu ainda de tinha vergonha de mim. Eu não fazia amizade com ninguém. Eu era tímida, não convivia com as pessoas, não conversava. Na rua também, mas mudou. Eu acho que quando você se aceita, é quando você diz: Dane-se, sou isso mesmo!

Dias depois da primeira entrevista, eu resolvi: É isso mesmo que eu vou fazer, eu quero isso pra minha vida. E eu fiz. Só que ela (avó) não reagiu bem. Eu já esperava que ela não fosse aceitar. Eu tive uma briga feia com ela, que disse: “Deus não aceita isso...” Eu falei: “Não, você não aceita. Não coloque as palavras na boca de Deus porque você não aceita”. Foi E eu já era louca pela Barbie. Meu pai trabalhava terrível. Eu peguei as minhas coisas, saí da casa dela em uma loja de brinquedos enorme em São Pau- praticamente expulsa. Estou morando com a milo. A primeira coisa que eu fazia com um ou dois nha mãe até hoje e há pouco tempo eu voltei a falar anos era ir para a prateleira de bonecas. Agora, com minha avó. É uma pena porque a minha vó é você me explica: como um bebê de um ou dois minha mãe, ela me criou. No começo foi bem difícil. anos de idade entende de alguma coisa de gênero, de vontade? Não tem como entender. Quem procurar entender não vai conseguir. Não vai. Não entende. Nem a ciência entende. Não vai UMA: E NA ÉPOCA QUE VOCÊ MORAVA COM SUA AVÓ, A REser você que vai descobrir por quê você é assim. LAÇÃO COM SUA MÃE ERA A MESMA QUE VOCÊ TEM HOJE? Na minha adolescência, quando me falavam que eu

MANUELA: A mesma.



UMA: VOCÊS JÁ SE DAVAM BEM ANTES? MANUELA: Muito bem. A gente não tem relação de mãe

e filha. É a relação que eu tenho com as minhas amigas. Eu conto tudo pra minha mãe. Tudo. Eu acho que é até melhor eu ter ido morar com a minha mãe. Eu me privava de tanta coisa morando com a minha avó. UMA: E VOCÊ CONVERSA BASTANTE COM A SUA MÃE SOBRE CADA PROCESSO?

Sim. O primeiro comprimido que eu tomei de hormônio, falei: Mãe eu vou começar hoje e vou tomar o meu primeiro comprimido agora. E é isso. E ela: “Você quer? Você tem certeza?”. Respondi: Sim, se eu continuar do jeito que eu estou não dá, de jeito nenhum. Eu cheguei a parar durante um mês. Eu fiquei com medo. Dá um medo sim. Hormônio é uma coisa muito séria, não é qualquer pessoa que pode tomar. Você pode ter um ataque cardíaco a qualquer momento, do nada. Então, quem tá fazendo, procura um médico, faz exame. Hormônio é uma coisa muito séria. MANUELA:

UMA: E QUAL FOI A SUA EXPERIÊNCIA COM OS HORMÔNIOS ATÉ HOJE? O QUE MUDOU? O QUE VOCÊ ESPERAVA?

MANUELA: Eu não esperava muita coisa. Eu não espera-

va me transformar completamente, ficar outra pessoa. Eu queria ficar mais feminina, ter algumas formas, e eu consegui. Eu era completamente quadrada. Eu morria de medo. Eu tomava e morria de medo. Você tem duas opções: o injetável e o em cápsula. Conheço pessoas que tomam os dois. Se entopem de “não-sei-quantas-cápsulas” por dia, uma injeção por semana. Uma injeção é uma bomba de hormônios. Não adianta você se entupir porque não vai dar resultado imediato. Você vai ficar cheia de coisas sobrando no seu corpo, só isso. É aquilo: não adianta você se entupir de uma vez. Eu acho que se você começar com calma é muito melhor. Eu comecei com calma e os resultados foram super-rápidos. UMA: COM QUANTO TEMPO VOCÊ COMEÇOU A PERCEBER OS RESULTADOS? MANUELA: Com um mês. UMA: PRIMEIRA COISA QUE MUDOU? MANUELA: Seios. Já começaram a ficar doloridos. Você sente. UMA: E DEPOIS, QUAIS FORAM AS OUTRAS MUDANÇAS?


MANUELA: O psicológico muda porque hormônio mexe

que nem se olham no espelho. Eu já vi pessoas que não tomam banho completamente nuas porque elas não querem ver aquilo. É muito difícil. Eu acho que as pessoas precisam falar disso porque quanto mais se esclarecer mais as pessoas vão deixar de ver isso como sacanagem, como chacota, e vão levar a sério. Não é brincadeira, tem gente se suicidando por causa disso. Não é engraçado.

UMA: VOCÊ FALOU DAS SUAS AMIGAS TRANS* ALGUMAS VEZES, COMO VOCÊ AS CONHECEU?

MANUELA: Sim (ambos). Agora são só homens. Mas an-

com essa parte, também. Isso só acontece com hormônio feminino. Tem muita gente que entra em depressão porque se entope de hormônio e causa distúrbio depressivo. Eu acho que o que eu mais senti foi isso. Você fica mais sensível mesmo. Depois você fica chorando. Mas eu acho que não existe um tratamento hormonal em que você não sinta nada: tem sempre alguma coisa. Amigas minhas passam mui- UMA: QUAIS AS PESSOAS QUE MAIS MEXIAM COM VOCÊ? HOMENS to mal, enjoos, mas não têm distúrbio depressivo. OU MULHERES?

MANUELA: Na verdade, eu não tenho nem muitas amigas

assim. Eu tenho uma amiga de Santa Cruz e há pouco tempo eu conheci uma de Itaguaí, mas eu não tenho muito contato com ela. Essa de Santa Cruz é muito minha amiga, foi por causa dela que eu comecei a tomar hormônio. Ela que me encaminhou pra isso. Me deu dicas de como, sabe? Eu não tinha a menor ideia.

Se você é uma trans* bonita, você sofre muito menos.

tigamente eles faziam piada. As pessoas faziam piadas, agora não mais. UMA: AGORA O SEU CONSTRANGIMENTO É POR SER MULHER, PELO ASSÉDIO? MANUELA: Exatamente. Isso me incomoda muito me-

nos. Não que eu goste de assédio o tempo todo. Isso é chato pra caramba. Mas entre você ser ridicularizada e você ser paquerada é muito diferente. É porque antes eu era uma menina que vestia roupa de menino, então a chance de você virar piada é muito maior. Meu corpo mudou muito daquela época pra cá. As pessoas não reparam tanto em mim quanto reparavam antes. Eu chamo menos atenção agora.

O único problema que eu tenho na faculdade é que eu estou mais conhecida. Antes eu não frequentava o bandejão e agora frequento. As pessoas me conhecem mais, então rola comentário, não tem jeito. Um ou outro vai falar, mas você nota diferença pelo jeito que a pessoa fala. É claro que se você não tem uma aparência de uma mulher feminina é muito mais difícil. É muito difícil. Infelizmente o mundo é aparência. Tem um padrão de beleza. Se você é uma trans* bonita, você UMA: QUANDO VOCÊ COMEÇOU A PENSAR EM TRATAMENTO HORsofre muito menos. Se você estiver naquele processo do MONAL, BUSCAVA INFORMAÇÕES NA INTERNET? começo, em que você não pode colocar certas roupas e MANUELA: Sim, eu pesquisava tudo. Ficava vendo resulta- a sua aparência está masculinizada, você sofre demais. do de operação, como que ficava. Mas você nunca sabe como é que vai ser. Uma pessoa fala uma coisa, outra O mundo é aparência. Eu sofri mesmo não tenpessoa fala outra. Hoje eu tenho uma dúvida: será que do aparência de homem antes. Eu sofria muito. Tem isso é necessário mesmo? Eu acho que tem muita gente pessoas que acabaram de me conhecer, estão ali conoperando e se arrependendo. Faz um ano de acompa- versando comigo e eu falo, porque às vezes eu gosnhamento psicológico, mas mesmo assim se arrepende. to de falar pra saber como a pessoa vai reagir, e aí as Você vai tirar uma parte do seu corpo. Por mais que pessoas ficam me olhando, procurando. Tem gente você não aceite essa parte, tá ali desde que você nasceu. que não acredita. Principalmente homem, em festas. Tem gente que tem repulsa mesmo. Há casos de trans*




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UMA: HOUVE ALGUMA VEZ EM QUE VOCÊ FOI HUMILHADA? MANUELA: Já escutei comentários horrorosos, que eu não

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voz, ele olhou pra mim e disse: ‘Como você não mudou o seu nome ainda? Você precisa! Você vai continuar passando por constrangimento assim?’ Não é um processo fácil. Ao chegar, ele perguntou: ‘Quem é fulano?’ Ele olhou e não tinha “um”. ‘Quem é?’ e eu disse: ‘Sou eu mesma. Tudo bem’. Foi constrangedor demais pra mim. Eu, todo inicio de período tenho que chegar lá na frente, falar: ‘Professor, vem cá. Então, é o seguinte.’ E tem professor que fala: ‘Pelo amor de Deus, ainda bem que você me avisou.’ Eu acho que é muito legal isso. Há alguns anos atrás se eu chegasse lá na frente, talvez não entendessem.

tenho nem coragem de falar. Eu já fui muito humilhada, até pouco tempo. Numa festa um garoto me chamou de aberração. A primeira coisa que eles falam: “Você é homem, né?”. Eu falo: “Não, meu querido. Não é bem assim”. Eu fiquei arrasada. Quando a gente escuta isso você acredita naquilo. Eu chorei horrores e fui embora porque tinha muito tempo que eu não escutava uma hostilidade, então é difícil. Eu jamais vou negar o que eu sou. Não adianta. Assim não muda nada. Você é e pronto. Você vai ser até você morrer. Eu não sou uma mulher. UMA: CONTE-NOS MAIS SOBRE SEU DIA-A-DIA. UMA: ATÉ PORQUE ESSE PROCESSO, TUDO O QUE VOCÊ PASSOU, AJUDOU VOCÊ A SER QUEM VOCÊ É. MANUELA: Eu não sou mulher. Eu sou uma transexual.

Se a gente negar a nossa transexualidade damos corda ao preconceito. UMA: VOCÊS TEM QUE REIVINDICAR UM ESPAÇO, UMA LUTA?

MANUELA: Eu não tenho uma vida muito badalada, não. É

muito normal. Eu trabalho aos finais de semana, sexta e sábado. Vou pra faculdade, durante a semana. Em festas, eu vou também, quando dá. Estou indo a muitas, mesmo. UMA: E SOBRE O SEU CURSO, BELAS ARTES? MANUELA: Eu já não sei mais. Talvez, eu mudaria pra

psicologia. Ou ciências Sociais. Porque Belas Artes é licenciatura. Eu não quero dar aula de jeito nenhum. sou uma trans* mulher. Eu acho que a gente tem que De jeito nenhum. O próximo período eu tenho esparar com isso. tágio e estou desesperada. Um monte de criança. O problema, talvez, sejam os pais. Eu acho que, se não UMA: TEM MUITA GENTE QUE PRECISA DE AJUDA, MUITA GENTE falarem, não vou ter tanto problema. Como eu falei, PASSANDO POR COISAS QUE VOCÊ PASSOU E TALVEZ NÃO TENHAM estou passando despercebida. Eu acho que o maior O APOIO QUE VOCÊ TEM. problema é no ambiente da escola. Tem o pensamento “Ah, você tem que dar exemplo.” E não é assim, genMANUELA: Sim. Eu acho que a melhor forma é dizen- te. A coisa mais ridícula que eu escuto hoje é que um do que você é trans*. Eu sou trans*. Eu acho que isso casal de homossexuais não podem adotar uma criança, é motivo de orgulho. Não é motivo de vergonha. Eu porque vai fazer com que a criança seja homossexual. não tenho que falar que eu sou mulher. Isso é esconder Mas os meus pais são heterosexuais, eu sou transexual. tudo o que eu passei até hoje. Esconder a minha luta. MANUELA: Eu não sou mulher. Eu sou transexual. Eu

UMA: AS PESSOAS PRECISAM DE SEUS NOMES, PRECISAM DE SEUS DIREITOS. MANUELA: Quando eu fui ao médico pra ver sobre a minha

UMA: UM ESTUDANTE DE JORNALISMO DISSE NÃO SABER SOBRE EXISTÊNCIA TRANS* NA RURAL MANUELA: Ele deve ter passado mil vezes por mim. (risos)


Eu sou trans. Eu acho que isso é motivo de orgulho. Não é motivo de vergonha

UMA: O QUE VOCÊ ACHA SOBRE PESSOAS QUE PREFEREM IGNORAR A TRANSEXUALIDADE? MANUELA: Sabe por que não me preocupa? Porque tem mui-

hoje ela não acredita. Com homens tem muita (situação engraçada). Porque homem já chega dando em cima, não quer saber. Já chegam com uma intenção.

to mais gente interessado em saber do que não saber (so- Então, se não sabe, a cara que a pessoa faz é muito bre transexualidade). Porque mal ou bem, instiga o pensa- engraçada. Se tem um cara dando em cima de mim, mento das pessoas. As pessoas querem saber “por quê?”. eu sempre falo: “Eu sou trans*”. Um cara ficou puto comigo porque eu falei. Me disse: “Mas agora eu Aconteceu uma coisa incrível comigo no mês passa- não vou conseguir ficar com você. Não era pra você do. Como eu disse na primeira entrevista, minha famí- ter falado. Você estragou tudo” . Muito preconceito. lia é muito católica. Eu sempre sou convidada pra ir em acampamentos, ir a igreja, isso e aquilo. Uma tia UMA: VOCÊ ACHA QUE ELE IMAGINAVA O QUÊ? UMA FIGURA MAIS minha me chamou pra um acampamento de jovens CARICATA? da igreja. Eu fiquei muito feliz. Lá tinha uma divisão: a parte dos homens e a parte das mulheres. Ela ficou MANUELA: Exatamente. Uma pessoa montada? E eu não desesperada. Então, ela falou com o padre e ele não sou montada. Eu só tenho shortinho, blusinha, e ele hesitou: “Não tem problema nenhum. Não tem como falou: “Cara, caramba, não dá pra acreditar. Não acredeixar ela na parte dos homens. Acho que seria tolice dito que fiquei aqui um tempão falando com você. minha fazer uma coisa dessas.” Um padre. Eu fiquei Você estragou tudo”. O preconceito é muito grande. muito feliz. Eu fiquei surpresa Ele poderia ter fala- Mesmo ele vendo em mim uma mulher, ele não fica do para eu ficar no acampamento dos homens. A úl- porque eu falei que sou transexual. Ele não vai adiante tima coisa que eu esperava era uma reação dessas do ao que ele queria porque eu disse que eu era (trans*). padre. Eu acho que a igreja também está mudando. UMA: QUAL FOI A SITUAÇÃO MAIS ENGRAÇADA QUE VOCÊ JÁ PASSOU? MANUELA: Foram tantas. Às vezes as pessoas ficavam dez

UMA: JÁ ACONTECEU DE ALGUÉM SABER QUE VOCÊ É TRANS E QUERER FICAR COM VOCÊ?

MANUELA: Já. Há pouquíssimo tempo e foi “incredible”!

Corta essa parte. Eu não quero.

minutos me olhando, após eu contar (sobre ser transexual). Teve uma menina: eu a conheci numa boate LGBTQ. Ela ficou a noite toda tentando o ficar comigo. Ela chegou e me perguntou: Você é hétero ou você é lésbica?” Inventei qualquer coisa pra ela. E quando eu contei, ela disse: “Você tá falando isso só Após mais de uma hora de entrevista, desligamos o pra não ficar comigo. Você tá inventando isso.” E até gravador e ouvimos diversos segredos de MANUELA.


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saia de saia















?

Garotas podem usar jeans E cortar os cabelos curtos Usar camisas e botas Porque é legal ser um garoto Mas para um garoto se parecer com uma garota é degradante”.

POR QUE VOCÊ ACHA QUE SER UMA GAROTA É TÃO DEGRADANTE

Madonna - What It Feels Like For A Girl, 2000.


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Antes tarde do que nunca, em 2012, Frida Khalo – ícone do surrealismo mexicano – estampou pela primeira vez a capa da revista VOGUE com a imagem feita pelo fotógrafo Nickolas Muray. A campanha visava promover a exposição “As Aparências Enganam: Os vestidos de Frida Kahlo” realizada na Casa Azul - onde viveram Frida e seu marido Diego Rivera, em intenso amor e conturbado casamento – no cidade do México, e agora Museu Frida Khalo.


O estilo de um mito:

FRIDA KAHLO POR CLÍVIA MESQUITA

A EXIBIÇÃO EXPÔS PELA PRIMEIRA VEZ AO PÚBLICO, EM NOVEMBRO DE 2012, PEÇAS DO GUARDA-ROUPA DE FRIDA NUNCA ANTES VISTAS, ASSIM COMO JÓIAS, ACESSÓRIOS, E PEÇAS ÍNTIMAS.

Durante seus 47 anos de vida, foi marcada por uma série de acidentes, lesões, doenças e operações que mesmo destruindo sua auto-estima e seu corpo, serviam de inspiração para suas pinturas. Em virtude da poliomelite que contraiu aos 6 anos de idade e um acidente que quase a matou aos 18, passou a usar calças largas, vestidos e saias longas que, mais tarde, seriam a marca registrada do estilo da artista. Desde sua época seu estilo já chamava atenção, sendo quase impossível não associar Frida aos seu estilo “excêntrico”, rompendo pilares morais e estéticos da sociedade. Além do excesso de panos, babados e caimentos cobrirem sua deficiência, as cores fortes como o vermelho remetiam ao sangue sempre presente ao longo de sua vida; nos inúmeros abortos e acidentes que sofrera, nas paixões, nos lábios e unhas. Quando se vestia, também, era notável o orgulho que sentia de ser mexicana. Com bordados feitos a mão por tribos indígenas e estampas étnicas e florais, Frida Kahlo simplesmente ditou a moda atual há mais de 60 anos atrás.


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A condição de ser

mulher e livre na

cultura islâmica A página do Facebook My Stealthy Freedom já tem mais de 50mil curtidas e incentiva mulheres iranianas a se libertarem do tradicional véu islâmico, especificamente o hijab, dentro e fora da territorialidade do Irã. POR CLÍVIA MESQUITA

A palavra “Hijab” vem do árabe “hajaba” e significa ocultar do olhar, ou esconder. A internet foi o meio mais seguro pelo qual, desde o início do ano passado, a jornalista iraniana exilada em Londres, Masih Alinejad criou a campanha My Stealthy Freedom. A proposta é convidar mulheres islâmicas comuns a tirarem o véu em locais públicos e compartilharem suas fotos junto a um breve depoimento sobre a experiência no Facebook. Em menos de um mês, a página já tinha mais de 50mil curtidas e recebeu apoio de mulheres ao redor do mundo em prol da liberdade de escolha do que e como vestir.

Essas mulheres, segundo a idealizadora do projeto, “não se sentem perdendo sua identidade, nem sua relação de pertencimento com a cultura islâmica ao tirarem o véu”. Pelo contrário, a liberdade de escolha dá mais legitimidade até no direito de apenas assentir e permanecer no conformismo da ordem vigente.

A maior emissora de televisão do Catar, Al Jazeera, nem sequer citou a movimentação dessas mulheres ou sua causa. Os resultados de uma breve pesquisa com a palavra-chave hijab são crimes de ódio, guerra ao terror, intolerância e proibição. Enquanto outros veículos ocidentais como Washington Post, O Globo e Yahoo Uk dedicaram pelo As mulheres que assim como Masih Alinejad se in- menos uma matéria em seus sites de notícia para se debrucomodam com a obrigatoriedade do véu lutam para çar sobre a questão do direito à liberdade de vestimenta. que a liberdade de escolha não seja legislada (Lei do Véu, em vigor no país desde a revolução de 1979) Outras páginas parecidas com o My Stealthy Freedom nem imposta. Microrresistências como a que essas (algo como Nossa Liberdade Disfarçada) também esmulheres têm formado nas redes sociais são prova tão sendo criadas. Uma delas é a que traduzida do farda criatividade no processo de reapropriação do fun- si, se chama “Liberdade Furtiva às mulheres dos Irã”, damentalismo tão enraizado na sociedade islâmica. com o slogan: “Desfrute do vento em seu cabelo”. Os


FOTOS: REPRODUÇÃO

depoimentos são emocionados: a maioria é jovem, mas as mulheres acima de 40 anos, que nunca cogitaram a possibilidade de tirar o véu, se arriscam na experiência que, dependendo do local, pode levar à prisão, à ações truculentas da polícia moral basij* ou ao chicoteamento.

No Irã, há uma forte tensão no que se diz respeito à igualdade entre os sexos, lá as mulheres são terminantemente proibidas de dirigir ou trabalhar sem a permissão do marido, leis pregadas pelo Sharia, o código de leis islâmico. Contudo, as mulheres possuem o direito ao ensino e constituem mais da Por outro lado, o estereótipo de extremismo, terror, metade das atuais turmas universitárias do Irã, sobresdesigualdade sexual e submissão das mulheres pro- saindo-se sobre as egípcias, marroquinas e sauditas. pagado pelos meios de comunicação e o imaginário Ocidental da cultura árabe é desconstruído nas páginas à favor do uso voluntário do hijab. Existem outras razões secundárias para o uso do véu islâmico: um deles é o da modéstia entre suas adeptas. Acredita-se que, só assim, as mulheres serão julgadas pela competência e não pela aparência ou sexualidade. Nesse contexto, estimula-se o uso pacífico do código de vestimenta islâmico enquanto tática de escape de uma sociedade fútil e superficial. A história do Irã foi marcada por avanços e retrocessos no que diz respeito aos direitos das mulheres, mas entre os países islâmicos, o Irã ainda é um dos menos desfavoráveis à população feminina em geral. Apesar de serem submetidas a leis machistas, as mulheres iranianas tem ocupado cada vez mais espaços em diversas áreas da sociedade se comparado com o resto do Oriente. Com alto índice de escolaridade e acesso a diversos cargos profissionais e políticos, mas ainda discriminadas em termos culturais, jurídicos e financeiros.

BASIJ

Milícia pró-governo formada por membros voluntários da sociedade civil iraniana que tem como objetivo monitorar e reprimir opositores e fiscalizar o uso do código de vestimenta da cultura islâmica e o cumprimento das normas morais. Os basijs fazem uso da violência física quando a repressão verbal não é suficiente.


A

s pessoas perguntavam o que eu fazia, mas nunca para mim. Eu sabia que todos eles sabiam por outras pessoas que eu era a puta da cidade. Cidade pequena. Eu ganhava a minha vida na cidade grande, no Rio de Janeiro. Lá ninguém sabe meu nome. Lá eu escolho quem eu serei de acordo com o meu humor. De acordo com o meu amante. Se toda noite pudesse ser como eu quero, seria o esperado: vestido apertado, salto alto, máscara nos cílios postiços, batom vermelho, cabelo até a cintura, uma pequena bolsa com cigarros, chicletes, mais maquiagem, e uma lata de Coca-Cola. Sem um canivete na cinta-liga. Mas não é assim. Ontem eu me vesti de panda e chupei uma banana. Arranquei a cabeça da fantasia e coloquei na cabeça do Marcos. E ele dizia, com a cabeça de panda na cabeça “Chupa a banana!”. E logo, me devolvia a droga da cabeça de panda. E se masturbava enquanto assistia toda aquela cena. Me deu 300 conto por isso. Eu vendo o meu tempo a homens mais velhos, e para aqueles meninos novos, que tem uma sede tão grande de aprender sobre a vida. Eu vendo meu tempo a todos. Meu tempo, minha atenção, o meu corpo. João era um cliente carinhoso: tudo o que tínhamos que fazer era “Carmen, colocarei aquela minha coleção de Jazz. Dance pra mim vestida de freira.” E eu fazia isso. Era divertido. Eu nunca entendi esse fetiche do João com Madre Teresa de Calcutá. Ele tinha diversos quadros dessa senhora. Paulo me levava para a biblioteca pública e pedia para que eu subisse todas as escadas; escadas de todas as prateleiras. Exigia que eu usasse uma saia longa e isso complicava o meu trabalho. Paulo era professor de literatura e sempre sussurrava nos meus ouvidos “Luz da minha vida, fogo da minha virilidade...”. A cada encontro o tamanho da saia aumentava, e a cada ano eu estava bem longe de ser Lolita. Marta era a minha cliente sadomasoquista. O meu trabalho era prendê-la no sofá, com livros debaixo de sua vagina e chicoteá-la, 39 vezes, como Jesus Cristo. O livro que ela geralmente sugeria que eu colocasse como apoio no sofá era a bíblia. Marta era tão estranha quanto João. Ela tinha quadros de Jesus e Maria pela casa toda. Luiz, músico famoso na cidade grande. Ele tocava saxofone, piano e guitarra. Eu, como aspirante a cantora, tinha que cantar enquanto ele se divertia comigo e com o seu vibrador. Luiz era gentil e aquilo parecia realmente artístico: eu gozava enquanto cantava. Cada pessoa com quem estive gastando as noites nesses últimos três anos ajudou a construir a minha história. Quando alguém pergunta sobre a minha vida, eu falo sobre as pessoas que eu conheci sendo livre. Eu me lembro de Carlos, o jogador de futebol

CRÔNICA

A mo ntan

de Car


nha russa

rmen

aposentado - agora gordo - que me pagava 200 reais por hora para me vestir de goleiro e pular de um lado para o outro de sua cama dizendo “Carlos, vou pegar as suas bolas.” Ele ria tanto. Da senhora que me pagava para me ver dançando com o seu marido, usando seu vestido de festas, enquanto ela cantarolava todas as músicas, sentada em sua cadeira de rodas. De quando uma amiga nos meteu na maior confusão me levando até o ponto das travestis mais influentes da Zona Sul. Manuel, o padeiro de São Miguel, que gostava de manteiga, e esse sem mais detalhes, que era bem desagradável. As esposas desesperadas querendo “apimentar” o relacionamento e maridos que me pagavam apenas para me assistirem fodendo suas esposas com vibradores gigantes. Léo é incrível. Viúvo, 28 anos, charmoso e inteligente como nunca vi por aqui. Ele me paga uma grana para que eu passe todos os feriados mais especiais do ano, inclusive Natal, Ano Novo e o dia do aniversário dela, aniversário de casamento, e também, o de óbito, da querida esposa. O máximo que ele faz é contar sobre todas as suas experiências com a falecida Isabel. Ele nunca me tocou ou falou comigo num tom sexual: ele contava seus sonhos e fantasias pra um melhor amigo que ele não tinha, e eu estava ali, porque ele me pagava pra isso, pra ouvi-lo e quem precisa ser ouvido, precisa de um ombro. E como consolo, Léo não queria sexo. Acho que sou meio psicanalista ou coisa assim. A minha vida é uma montanha-russa. E eu nunca desço. As pessoas compram seus ingressos, dão voltas e voltas e voltam ao mundo real. Talvez eu esteja exposta à sinceridade extrema das pessoas. É tão interessante. Elas me contam seus segredos mais obscuros e selvagens no primeiro encontro. Eu não acredito que a dona Marina conte pra mais alguém que me paga pra levar o seu filho mais novo, que segundo ela “é quase uma mocinha” p’rum motel barato, beira-de-estrada. Na verdade, eu adoro o David, filho de dona Marina, e tenho um contrato com ele: Ele nunca contará a sua mãe que o levo a uma boate gay e uso o dinheiro que ela me dá para nos deixar bêbados a noite toda, batendo cabelo, de salto 15. De todas as esposas que descobrem que seus maridos são meus clientes e me contratam para saberem o que eu posso fazer de tão interessante assim para consumir seus homens; e eu as ensino o máximo de coisa que puder. E eu prefiro essas a seus maridos deprimidos. E a maioria merece coisa melhor. Umas duas ou três abandonaram seus maridos e me pediram para “introduzi-las” ao meu mundo, estão faturando muito bem, obrigada. Eu amo o meu trabalho. O meu cliente favorito, hoje, é um menor, de 17 anos. Ele sempre me leva para ver o pôr do sol no Arpoador e ouvir heavy metal em sua casa, quando seus pais não estão. Discutimos sobre o sentido da vida e sobre o universo, principalmente quando fumamos maconha. Outro dia ele me disse que ia parar de gastar toda sua mesada com erva e começar a chapar na “montanha-russa da Carmen”. Que eu era uma onda. Uma viagem.


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