Em Busca da Espiritualidade

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EM BUSCA DA

espiritua lidade



C a rlo s Que i r oz

EM BUSCA DA

espiritua lidade


EM BUSCA DA ESPIRITUALIDADE – O MERCADO DA FÉ E O EVANGELHO DA GRAÇA Categoria: Espiritualidade / Igreja / Vida cristã

Copyright © 2013, Carlos Queiroz Primeira edição: Setembro de 2013 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Revisão: Lícia Rosalee Santana Diagramação: Bruno Menezes Capa: Souto Crescimento de Marca

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Queiroz, Carlos Em busca da espiritualidade ; o mercado da fé e o evangelho da graça / Carlos Queiroz. — Viçosa, MG : Editora Ultimato, 2013. ISBN 978-85-7779-098-2 Bibliografia 1. Cristianismo 2. Espiritualidade 3. Idolatria 4. Mercado da fé 5. Religiosidade I. Título. CDD-248.4

13-08750 Índices para catálogo sistemático: 1. Espiritualidade: Cristianismo

248.4

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br

Encontro Publicações – Movimento Encontrão – Rua Francisco Caron, 630 82120-200 Curitiba, PR Telefone: 41 3302-5111 www.encontropublicacoes.com.br

A marca FSC é a garantia de que a madeira utilizada na fabricação do papel deste livro provém de florestas que foram gerenciadas de maneira ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente viável, além de outras fontes de origem controlada.


Sumário

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Apresentação

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Introdução

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Parte 1. Práticas de espiritualidade na vitrina religiosa brasileira 1. Espiritualidade num cristianismo idolátrico

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2. Espiritualidade fertilizada pela magia e pelo fetichismo

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3. Espiritualidade como fenômeno de mercado

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4. Espiritualidade que supervaloriza o estético em detrimento do ético

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5. Espiritualidade gnóstica e sensitiva

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Parte 2. Fundamentos da espiritualidade e missão 6. A graça de Deus – o relacionamento na espiritualidade

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7. Amor – o coração da espiritualidade

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8. Humildade – essência e estética na espiritualidade

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9. Fé e justiça – transcendência e resposta ética na espiritualidade

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Referências bibliográficas

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Apresentação

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Espiritualidade tem sido um tema muito em evidência nos últimos tempos. A espiritualidade não é mais uma abordagem de interesse apenas de pessoas religiosas. Um dos últimos livros que li, de Afonso Murad, aborda as relações entre a gestão e a espiritualidade. Várias empresas estão investindo tempo e recursos para que seus trabalhadores desfrutem de algum momento de espiritualidade. Não se descarta a possibilidade de que o propósito último das empresas seja o melhor desempenho dos trabalhadores, com vistas à produção e ao lucro, e não ao desenvolvimento da espiritualidade das pessoas. Como a espiritualidade gera bem-estar, obviamente favorece melhores relacionamentos nas empresas, maior capacidade de produção e, consequentemente, o lucro.


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Em busca da espiritualidade

Em Busca da Espiritualidade – o mercado da fé e o evangelho da graça não se propõe a este fim. Aqui procuro apresentar uma espiritualidade que possa gerar mais vida do que lucro material, mais virtudes do que sucesso, mais amor às pessoas do que apego às coisas, mais solidariedade do que competição, mais integridade e virtudes do que religiosidade e hipocrisia, mais sensibilidade humana, mais renúncia de si mesmo e coragem para lutar pela garantia de direitos para todas as pessoas. Nos últimos anos tenho relacionado espiritualidade e missão, partindo do pressuposto de que para cada tipo de espiritualidade manifestam-se práticas missionárias correspondentes. Uma espiritualidade legalista, por exemplo, desembocará numa manifestação missionária formal, ritualista, intransigente, tendente à hipocrisia e ao fundamentalismo opressor. Uma espiritualidade intimista e egoísta poderá inspirar uma vocação e missão voltadas para o isolamento e distanciamento das demais relações com a sociedade, denominada de mundana. Ou, como já sinalizei, podemos cair no risco de fomentar uma espiritualidade para tornar homens e mulheres mais produtivos, porém alienados e escravos do lucro e da produção. Eu poderia relacionar várias outras manifestações de espiritualidade. Porém, interessa neste momento citar apenas algumas para ilustrar as formas mais evidentes e que, possivelmente, estão direcionando o jeito de ser e de fazer missão no cristianismo brasileiro. Em Busca da Espiritualidade surge neste cenário em que o entendimento e a prática da espiritualidade podem significar tudo ou qualquer coisa. Mas como encontrar um roteiro em busca de uma espiritualidade que possa nos fazer pessoas mais humanas, desfrutando de todas as dimensões importantes da vida? Sem excluir outras possibilidades, ou experiências


APRESENTAÇÃO

semelhantes, resolvi partir de minhas percepções tomando como campo de observação a espiritualidade praticada pelo Jesus Cristo de Nazaré e a primeira geração de discípulos. Peço a sua bondade para acolher algumas ilustrações pessoais sobre exercícios ou práticas de espiritualidade que vão surgindo ao longo das páginas. Meu propósito é testemunhal e pedagógico, partindo da ideia de que a espiritualidade faz parte de todas as peregrinações da existência. Então, uso o texto e as reflexões como se você estivesse peregrinando comigo nos meus caminhos e roteiros – práticos e teóricos. Jesus Cristo de Nazaré e a primeira geração de discípulos são os nossos guias e inspiração. Meus testemunhos são indicações fortuitas de alguém que tem procurado responder com muitas limitações, mas permanente deslumbramento, ao jeito de ser e viver dos discípulos de Jesus Cristo. Este livro está dividido em duas partes. Na primeira parte, são relacionadas cinco formas de espiritualidade visíveis nas prateleiras religiosas brasileiras, indicando o tipo de vocação e missão evidenciadas a partir dessas práticas de espiritualidade. Os títulos para cada forma de espiritualidade são uma escolha descritiva; não há a pretensão de desenvolvê-los como se fossem categorias específicas. Mesmo que cada prática de espiritualidade seja observada separadamente em nosso texto, tudo indica que elas interagem entre si, atraindo para o espaço religioso manifestações da mesma natureza. Os discursos e as expectativas dos devotos ou clientes em torno do “altar” são marcados por uma fé materialista, pela busca de soluções individualistas e pelo lucro dos empreendimentos religiosos. Cada forma de espiritualidade identificada na vitrina religiosa brasileira é observada negativamente. Concluímos que, por mais legítimas que sejam tais espiritualidades, na essência

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Em busca da espiritualidade

elas e seus respectivos negócios religiosos são antagônicos à missão e espiritualidade vividas e anunciadas por Jesus Cristo. Em se tratando da cristandade brasileira, aqui não se diferenciará a espiritualidade católica da protestante. O sincretismo instalado nos dois segmentos e a concorrência por clientes têm gerado, do ponto de vista da espiritualidade e missão, aspectos bem semelhantes tanto no catolicismo quanto no protestantismo. Além dos pentecostais e neopentecostais, o protestantismo histórico tem passado por uma de suas transições mais comprometedoras entre a sua identidade histórica e a necessidade de contextualização. Claro, o crescimento dos evangélicos no Brasil, aliado a fatores culturais, tem gerado um sincretismo religioso sem precedentes no processo de formação do protestantismo brasileiro. Outros fatores relacionados ao “espírito da época” têm influenciado e comprometido a espiritualidade e missão da igreja. Devido à complexidade e à ampla presença das formas de espiritualidade a que faço referência neste livro, uma nomenclatura aberta é estabelecida para descrever as manifestações de espiritualidade e missão recorrentes nos diversos terrenos da cristandade brasileira. Atenção a esta nomenclatura, pois é exatamente no final de cada uma que, de maneira resumida, explicita-se a missão como decorrência de cada tipo de espiritualidade. Elas são apresentadas separadamente, mas, de fato, acredito que todas elas se manifestam de maneira interativa e estão inter-relacionadas. Logo, uma espiritualidade marcada pela magia e pelo fetiche, aliada aos elementos das idolatrias, encontra no mercado uma grande oportunidade para fomentar a mercantilização da fé nas empresas religiosas. A busca da espiritualidade é uma condição peculiar da natureza humana. Assim, nessa busca as pessoas podem encontrar


APRESENTAÇÃO

nos ambientes religiosos que lidam com a mercantilização da fé experiências geradoras de opressão e espoliação, de enganos e esperanças falsas. A sinceridade da busca, aliada à crença de que no “ambiente sagrado” tudo é puro e honesto, torna os clientes da religião de mercado vulneráveis à manipulação e exploração. Como evitar este risco? É dessa pergunta que surge a segunda parte do livro. Na busca da espiritualidade, podemos ser engodados pelos encantos e fascínios das promessas dos empreendedores das indústrias da fé. A outra opção, que considero mais geradora de sobriedade e compromisso com a vida, é a busca da espiritualidade tendo como inspiração e modelo algumas virtudes presentes na vida e no evangelho do Jesus Cristo de Nazaré. Portanto, na segunda parte busco em quatro eixos do evangelho – (1) graça; (2) amor; (3) humildade; e (4) fé e justiça – os critérios para discernirmos melhor uma espiritualidade que nos aproxime do Deus revelado no Jesus Cristo de Nazaré e, como consequência, nos alimente de uma missão mais humanizadora e em comunhão com todas as dimensões da vida. Carlos Queiroz Julho de 2013

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Introdução

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Sempre que se fala de espiritualidade, pressupõe-se uma experiência humana exclusiva no campo religioso e subjetivo da fé, alienada das demais experiências da vida. Por outro lado, no cristianismo quando se fala sobre missão muitas vezes a ênfase recai no ativismo, como serviço prestado ao próximo quer pela proclamação do evangelho, quer por obras de misericórdia e justiça. Neste livro, considero espiritualidade e missão como eixos paralelos do mandamento principal das Escrituras: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (cf. Mt 22.37, 39). Assim, amar a Deus é uma espiritualidade que nos leva a amar


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Em busca da espiritualidade

as pessoas, do mesmo modo que amar o próximo é uma missão que gera comunhão com Deus – duas manifestações espirituais que se evidenciam de forma interativa e interdependente. Outro texto fundamental para os seguidores de Jesus é a conhecida oração dominical ou oração do Pai-Nosso. Nesse texto, Jesus ensina seus discípulos a orarem ao “Pai nosso celestial” pelo “pão nosso de cada dia” (Mt 6.9, 11). Já na narrativa sobre a tentação de Jesus, Mateus e Lucas também fazem referência tanto à importância do pão quanto da Palavra de Deus: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4). Ambos os textos fazem referência à sobrevivência física (pão) e à experiência transcendente (“Pai nosso” e “palavra da boca de Deus”). O pão é um bem compartilhado ou acumulado – portanto, fermentado de implicações sociais, econômicas e políticas; da mesma forma, a “palavra” procedente da boca de Deus e “Pai nosso” possuem implicações transcendentes. À luz destas passagens, a espiritualidade inspirada expressa uma prática devocional que encontra em Deus a fonte de amor em missão ao próximo. Se adorar ao Senhor for entendido como um evento em que os adoradores têm uma experiência de encontro com Deus, a espiritualidade visível de tal evento será perceptível à proporção que os adoradores praticarem uma missão de serviço aos seres humanos e ao mundo. De modo que espiritualidade pode ser entendida como uma experiência humana no campo da fé, enquanto que missão é a resposta ética desta mesma fé. Apenas para efeito de exposição das ideias missão e espiritualidade são separadas em categorias distintas; na verdade elas confluem e interagem na vida e no testemunho dos seguidores de Jesus Cristo. Reafirmemos a ideia de que missão e espiritualidade, no evangelho de Jesus, manifestam-se nos espaços em que há


INTRODUÇÃO

sinais da sobrevivência humana: suprimento com a Palavra de Deus e com o pão de cada dia. É inerente à natureza humana alimentar-se de virtudes espirituais que possam tornar a vida mais suprida de todas as necessidades básicas. O ideal de uma sociedade plenamente espiritual seria aquela em que todos os seus participantes desfrutassem dos bens necessários para o gozo de uma vida abundante. Quando pessoas exercitam algum tipo de religiosidade com indiferença diante da miséria e da fome dos outros, há sinais de ausência de uma espiritualidade evangélica. Toda a nossa deficiência espiritual é uma deficiência em nossa capacidade de amar. Por isso a falta de pão na mesa do pobre pode ser uma denúncia da falta de espiritualidade no altar dos cristãos. Há dois extremos reducionistas que precisamos evitar no que diz respeito à pratica de disciplinas de espiritualidade e à prática da missão: 1. A missão se torna um serviço ativista voltado somente para o problema da falta de pão para os necessitados. Neste aspecto até mesmo um ateu confesso pode praticar uma missão com critérios filantrópicos e evangélicos, mesmo não possuindo uma fé confessional cristã. Assim como um cristão pode praticar a filantropia, utilizando-se da necessidade do pobre como meio de promoção pessoal ou institucional. Na teoria, os capitalistas acreditam que a economia tem um tipo de racionalidade comercial dos bens (inclusive do pão/alimento) com vista ao lucro; tendo o pão como um bem necessário a todos os seres humanos, o mercado também se utiliza da comercialização do pão, e esse ato apenas lucrativo não representa uma atividade espiritual. Não há uma opção integral de espiritualidade na prática filantrópica focada apenas no suprimento do pão para alguns,

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Em busca da espiritualidade

sem as manifestações objetivas da justiça em que o alimento se torne um direito disponível para todos. Lembremos que os alimentos produzem saúde, geram oportunidades de diálogo, festa, alegria, liturgias – aspectos inerentes à espiritualidade anunciada no evangelho. 2. A espiritualidade se torna uma tarefa exclusiva para atrair mais devotos em torno do altar religioso, sem implicações sociais, políticas e econômicas para os empobrecidos e espoliados. Há um crescimento muito evidente das manifestações de espiritualidade religiosa no Brasil. A cristandade tem se tornado mais praticante e militante, porém, mesmo que numericamente expressiva, não tem conseguido inverter de forma satisfatória a estrutura injusta em que se funda a nossa sociedade. Ainda detemos uma perversa relação socioeconômica baseada na concentração e acumulação de bens e renda. No nosso país há um segmento religioso cristão praticante e rico indiferente à realidade de mais de 26 milhões de brasileiros vivendo em miséria e extrema pobreza. Em muitos casos, a prática religiosa não tem conseguido transformar o cinismo e a hipocrisia das pessoas de mau caráter, nem minimizado o estado de degradação moral que afeta a nossa geração. Uma vez que estamos falando de espiritualidade, não há como desvincular de nossa perspectiva a constatação de que há um escandaloso vínculo entre religião, corrupção e violência no atual contexto brasileiro. A violência se evidencia na linguagem dos sacerdotes, nas letras de várias músicas religiosas, nos eventos de “louvor” invadidos por gritos, paradigmas de guerra e fanatismo. A corrupção e a violência contra o cidadão vão desde a utilização dos espaços públicos, como se fossem propriedades particulares das religiões hegemônicas, até às negociações e trocas de favores entre líderes religiosos inescrupulosos e políticos corruptos.


INTRODUÇÃO

Ou seja, não tem havido uma proporção equilibrada entre o crescimento das práticas de espiritualidade na vitrina brasileira e o crescimento de ações ou atitudes como resposta ética desta mesma espiritualidade. Assim como um ateu pode possuir uma prática de justiça com critérios evangélicos sem uma prática devocional ou confessional, um religioso devoto pode conviver com uma espiritualidade subjetiva, alienada das práticas sociopolíticas de misericórdia e justiça. Neste caso, contudo, esta já não será uma espiritualidade reconhecida pelos critérios do evangelho de Jesus Cristo. A espiritualidade no evangelho é fruto da fé que acolhe o encontro misterioso com Deus, refluindo em missão ao mundo através da mesma fé, que, sendo ética, está marcada por sinais de amor, justiça e paz.

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