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Cal\u00E7ada da m\u00FAsica
ENGAJADOS, CRIATIVOS, UNIDOS EM COLETIVOS OU SOLITÁRIOS, ARTISTAS OCUPAM O ESPAÇO PÚBLICO E DÃO NOVO ÍMPETO À TRADIÇÃO ANCESTRAL DOS SHOWS DE RUA
Por Michele Miranda, de São Paulo
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Artistas independentes e novatos são muito criativos não só culturalmente, mas também quando o assunto é driblar as dificuldades de mercado. E isso ocorre desde tempos imemoriais. Na antiguidade clássica já havia relatos de cantores e atores apresentando-se pelas ruas e “passando o chapéu” em busca de uns trocados. Muitos séculos e uma revolução digital depois, a velha ágora se transferiu para as redes sociais. Mas não se apagou o ímpeto de criadores que ocupam o espaço público – real – com arte e estilo renovados, graças à supercontemporânea ajuda de coletivos, produtores, marcas de moda, comércio local, leis de incentivo e, principalmente, aos aplausos do público.
“Comecei a tocar na rua quando cheguei a São Paulo e não vi alternativas”, diz o associado Diego Goldas, que menciona a nem sempre tranquila relação entre bares e artistas. “Na rua a gente toca na hora em que quiser, onde quiser, o tempo que quiser. Os ganhos na rua são muitos, inclusive financeiros. Na rua, tive o prazer de cantar com Alceu Valença (que passava e resolveu dar uma canja).” Diego ressalta ainda que uma cena assim só pode crescer se houver estímulo - ou, pelo menos, se não houver perseguição - do poder público. “Em São Paulo foi possível na gestão (Fernando) Haddad. Até então havia perseguição. A população precisa de uma reeducação cultural.”
O Rio, onde há um claro reflorescimento da cena de rua - do carnaval, das festas e dos shows -, um projeto de shows em praça pública começou a três anos e vem se fortalecendo no Méier, Zona Norte da cidade. Batizado de Leão Etíope do Méier pelo DJ, produtor e idealizador, Pedro Rajão, e iniciado na praça Agripino Grieco, o coletivo já reuniu mais de mil pessoas num só evento e teve em sua programação nomes relevantes da nova safra da música brasileira.
“Muita coisa linda acontece num evento de rua. Você vê a mistura de classes sociais e ideológicas, as reações, os encontros inesperados”, analisa Rajão, nascido e criado nos arredores da praça. “No caso do Leão, a gente reativou um espaço abandonado e mostrou a potência que ele pode ter. O maior legado é que muita gente passou a fazer evento ali depois da gente. Agora somos procurados por muitas bandas e diretores de cinema que querem fazer evento, e até grandes marcas já demonstraram interesse em apoiar.”
ASSOCIADO CRIA EVENTO PARA BANDAS NOVAS
Algo parecido é fermentado em Caxias do Sul (RS), onde o associado Luciano Balen, integrante da banda CCOMA, vai pôr em pé mais uma edição do Festival Brasileiro de Música de Rua, entre entre 14 e 19 de março, com previsão de um público de 30 mil pessoas. Em cinco encontros anteriores, mais de 500 artistas nacionais e internacionais já passaram pelos palcos montados em praças, avenidas ou antigas estações ferroviárias de cidades da região.
“CCOMA começou a tocar na rua no fim de 2008, como uma forma de buscar espaço. Com o objetivo de democratizar o acesso à música, aproximar artistas e público, nasceu em 2012 o Festival Brasileiro de Música de Rua, que terá sua sexta edição em março. Hoje temos financiamento da Secretaria Municipal de Cultura de Caxias do Sul, do Governo do Rio Grande do Sul, de algumas prefeituras vizinhas, além do Sesc. Esse apoio e a boa recepção do público são herança do tradicionalismo gaúcho, que sempre foi muito difundido através da música.”
Sem tanto apoio governamental, o cantor e compositor Qinho inventou no Rio o festival Dia da Rua ao observar o que chama de decadência da sua geração. “Fomos afetados diretamente pelo fechamento de importantes casas de show, e ainda não éramos organizados o bastante para promover eventos de rua”, ele analisa. “Esse movimento maior está acontecendo no Brasil todo. O ideal para um artista independente é gerar uma cadeia produtiva na qual você tenha um público espalhado, mesmo que ele seja pequeno. O rendimento vem através da formação de público, consolidação do trabalho, venda de discos e produtos.”
Pedro Rajão, produtor e idealizador
Apesar de haver iniciativas estaduais e municipais, como leis que garantem a livre manifestação cultural sem autorização prévia, criadores e produtores relatam perseguição da polícia, por desconhecimento, além de verdadeiras vias crúcis atrás de papéis de vários órgãos públicos. Para evitar a burocracia e minimizar os custos, o cantor Brunno Monteiro, associado à UBC, teve uma ideia:
“Eu me juntei a um amigo que tinha uma banca de jornal e fiz quatro shows lá, em 2016, com base na Lei do Artista de Rua. Pegamos emprestado o equipamento na camaradagem, usamos energia elétrica da própria banca e vendíamos cerveja para arrecadar algum dinheiro. Um casal de mexicanos comprou vários discos meus para levar como souvenir do Brasil. Outra boa história foi um cara que deixou R$ 50 no chapéu e se ofereceu para ser meu produtor.”
NOVA VIDA AOS CORETOS
Os coretos espalhados por diversas cidades brasileiras são outro palco potencial. Em Salvador, o projeto Coreto Sounds, de ocupação desses espaços com música, teve diversas edições em 2016. Numa delas, em outubro, no Largo Pedro Arcanjo, Anelis Assumpção, Curumin e Márcia Castro foram as atrações principais de um concorrido tributo aos Novos Baianos. O espírito de coreto se espalhou por lá, e dois projetos inspirados nesses espaços democráticos vieram a reboque: o Coreto Hype, com shows em Lauro de Freitas (BA), teve Lenine tocando num antigo armazém, e Alex da Costa criou um trio especial, circular, móvel, o Coreto Elétrico, para encher as avenidas soteropolitanas de frevo, ijexá, samba, xote etc.
Na Ilha de Paquetá (RJ), foi num coreto que a extinta banda Letuce, de Letícia Novaes e Lucas Vasconcellos, fez seu show de despedida para mil pessoas, em dezembro passado, dentro do festival Circuladô.
“Sempre tivemos uma carreira de comunicação despretensiosa, e a rua é o melhor lugar para conjugar isso”, comenta Vasconcellos. “Quando você toca na rua, é a pescaria de um novo público. Financeiramente também é bom, porque o independente vende disco na rua, muito mais numa tarde do que o mês inteiro numa loja. E você pode fazer transmissão ao vivo no Facebook ou pedir para alguém filmar e depois disponibilizar esses vídeos no YouTube.”
NÃO SE ENGANE, A RUA É EXIGENTE
O associado Átila Bezerra, que vem fazendo shows na Baixada Fluminense e em Niterói (RJ) desde 2012, celebra a proliferação desses coletivos que movimentam as nossas ruas, crê que a cena tende a se fortalecer cada vez mais, mas sentencia: não adianta tocar qualquer coisa, o público da rua é tão qualificado quanto qualquer outro:
“A rua é exigente, o público vai atrás de eventos interessantes, de qualidade e, preferencialmente, gratuitos. Sem falar que as pessoas estão privilegiando eventos locais. Daí a necessidade da profissionalização, da busca por parcerias e de tentar caminhos como editais, por exemplo. É possível, sim, a geração de emprego e um retorno financeiro.”
Se você tem o que dizer, a exposição sem dúvida abre novas portas. A rua, como sinônimo de mercado, num sentido mais amplo, pode projetar o artista para um público de massa. Ter tocado na calçada aqui em São Paulo pôs Diego Goldas na TV. “Hoje, eu e alguns artistas estamos numa série no canal Sony sobre compositores de rua. Isso tudo foi a rua que trouxe.”
VEJA MAIS!
Brunno Monteiro e Diego Goldas em shows de rua.
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