Revista Baleeiros

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Tribuna das Ilhas

13 JULHO 2012 Este suplemento faz parte da Edição n.º 525 do Semanário Tribuna das Ilhas. Não pode ser vendido separadamente

Baleeiros


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Julho 2012

Nota de abertura

Edição especial y Nesta edição do Tribuna

das Ilhas integramos um suplemento dedicado à baleação na ilha do Faial, o qual pretende ser um contributo para a informação da sociedade ao nível da temática que aborda, mas também e fundamentalmente, um veículo para a preservação da memória colectiva, que a todo o momento necessita ser alimentada e que, por si só e quando bem presente, se traduz numa homenagem às muitas gerações de intervenientes na actividade, bem como às suas famílias. Para além da evocação da história da baleação e dos seus contornos, o suple-

mento aborda um conjunto de matérias associadas, nomeadamente no que respeita à inventariação, recuperação e conservação do património móvel e imóvel ligado ao que era localmente designado como “pesca à baleia”, bem como a “nova indústria baleeira” que, desde há alguns anos, atrai aos Açores alguns milhares de turistas-baleeiros que, de máquina fotográfica em punho, caçam imagens dos belos exemplares de cetáceos que podem ser observados no mar dos Açores. Este será o primeiro de uma série de suplementos que o Tribuna das Ilhas pretende editar nos tempos mais

Para além da evocação da história da baleação e dos seus contornos, o suplemento aborda um conjunto de matérias associadas, nomeadamente no que respeita à inventariação, recuperação e conservação do património móvel e imóvel ligado ao que era localmente designado como “pesca à baleia”, bem como a “nova industria baleeira” (...) próximos, com o objectivo de contribuir para o conhecimento e divulgação de um conjunto de temas que consideramos pertinentes para os nossos leitores, podendo consubstanciar-se, a médio prazo, quem sabe, numa

revista com edição periódica e que aborde, de forma aprofundada, assuntos que merecem tratamento jornalístico e que nem sempre são compatíveis com as características de um jornal semanal. z

Fonte: Colecção postal Ruspoli&Soulaire.

Vigia: A partir do mastro da lancha a motor, seguiam-se os sopros do cachalote.

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A baleação no faial

Fonte: biblioteca pública e arquivo regional joão josé da graça.

baleação pelágica navios baleeiros norte americanos no porto da horta, inícios do século xx.

y O tempo dos Baleeiros, tempo de gente rija, de têmpera, homens e mulheres que, pela força do trabalho manual, venciam as barreiras da distância, das dificuldades impostas pela natureza, que dia após dia foram construindo estas ilhas, dandos-lhe forma e uma história. Esta é a memória que devemos recuperar e contar. O tempo da baleação tem cheiros, tem lendas, tem angústias e júbilos, tem um legado e tem naturalmente um passado, um presente e um futuro. Os primeiros relatos de capturas de baleias no mar dos Açores remontam ao século XVI, apesar de só no inicio do século XVIII, com a chegada dos navios baleeiros, podemos afirmar que o tempo dos baleeiros açorianos teve o seu inicio. Não podemos, pelo relato de Gaspar Frutoso, assegurar que a baleação, nos Açores, se tenha iniciado na nossa

ilha, mas podemos, com toda a certeza, afirmar que o Faial foi o berço desta atividade no arquipélago (aliás em todo o território nacional), até ao início do século XX, mantendo uma atividade intensa e regular até 1984, fim do 2.º período da caça à baleia. É esta História que necessita ser relatada e colocada no seu devido lugar. A ilha do Faial tem uma relação muito própria, no contexto açoriano, com o Mar, pelo que assume particular pertinência a recuperação de tão relevante memória, para que a possamos entender e estender aos nossos filhos e netos. É importante que as gerações vindouras saibam o trabalho que muitos tiveram para construir cada pedaço desta terra. Nesta senda surge esta revista incluída numa edição do Jornal “Tribuna das Ilhas” e que esperemos dê o mote à publicação da História da baleação na ilha do Faial e nos Açores.

Baleação Pelágica de 1740 a 1920 Em 1765 terão começado a aportar ao Faial os primeiros navios baleeiros provenientes dos Estados Unidos, mais concretamente da cidade de New Bedford e da ilha de Nantucket (ilha atlântica que corresponde a um dos catorze condados do estado americano de Massachusetts), os quais praticavam a designada baleação pelágica ou em “mar aberto”. Estes navios, para além de transportarem as pequenas canoas

utilizadas para a caça propriamente dita, possuíam também a capacidade de desmanchar os grandes cetáceos, derreter a gordura e proceder ao seu armazenamento. Ao longo dos séculos XIX e inícios de XX, fundamentalmente entre setembro e dezembro, era frequente encontrar ancorados, na baía da Horta, entre 10 e 15 navios dedicados à atividade baleeira, os quais, permanecendo em média cerca de 5 semanas, descarregavam o óleo processado, reabasteciam de consumíveis e descansavam as tripulações. Este era também o momento

BALEEIRAS. – Entrou a barca baleeira portugueza Firmesa trazendo 37 barris d’azeite: è pouco, mas sempre teve melhor pesca do que o patacho Julia, e a barca americana Colchis da casa do sr. Dabney. Infelizmente a fortuna não querido ajudar ultimamente as nossas emprezas da pesca da balea, que tão grandes interesses podia dar a este districto. In O Fayalense, de 3 de novembro de 1867 3

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fonte: foto jovial

anos 50 O Posto de vigia do costado da nau na costa oeste da ilha do faial

para o recrutamento, em regra clandestino, de tripulantes locais que granjearam a fama de marinheiros e baleeiros de qualidade excecional. Este processo de engajamento terá, em boa verdade, marcado o início de uma primeira vaga de emigração para os Estado Unidos

da América, criando-se uma forte ligação entre a Horta e a Nova Inglaterra, que mais tarde traria frutos e a partir do Vulcão dos Capelinhos, viria a permitir uma segunda vaga de emigração. Durante este período destaca-se, no apoio à frota norte ame-

ricana, a família Dabney, que para além do apoio logístico, procedia à aquisição do óleo de baleia, seu armazenamento provisório e posterior exportação para os Estados Unidos da América. Importa aqui referir que, em pleno século XIX, verifica-se

também o surgimento de uma frota baleeira pelágica portuguesa, que operava fundamentalmente ao largo de Portugal Continental e dos seus, então, territórios ultramarinos. Em meados deste século, parte significativa desta frota teria registo no Porto da Horta, o que bem evidencia o papel desta ilha no contexto da baleação açoriana, portuguesa e até global. Não obstante e por razões de ordem vária, ainda antes do início do século XX, esta frota tinha já desaparecido. Em 1921 o Porto da Horta regista a última escala de um navio baleeiro americano, pondo-se desta forma fim a uma atividade que foi próspera durante mais de cem anos.

Baleação Costeira de 1832-1984 Em 1832 terão arreado pela primeira vez nos Açores, a partir da ilha do Faial, os primeiros

autor desconhecido, foto disponibilizada por carlos lobão

tensão O mestre josé rufino durante um episódio de caça à baleia

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Tribuna das Ilhas botes baleeiros afetos ao que seria designado por baleação costeira. Esta baleação, melhor adaptada às características da Região e dos seus mares, terá sido numa primeira fase empreendida pela família Dabney embora, por falta de sucesso inicial, por um curto período de tempo. A baleação costeira viria a ser retomada, com sucesso, entre 1850 e 1860, mais uma vez pelas mãos da família Dabney, mas desta feita em parceria com a família Bensaúde. As embarcações utilizadas e designadas por canoas, correspondiam a adaptações dos modelos utilizados nos navios americanos da baleação pelágica, embora melhor adaptadas às características do oceano contíguo às ilhas e tipologia de caça pretendida. Cada embarcação, propulsionada à vela e a remos, tinha uma tripulação que era composta, em regra, por pelo menos 7 homens, sendo um o oficial ou mestre, um arpoador/trancador sendo os restantes marinheiros/remadores. Esta forma de baleação, desenvolvida até 1987, ano em que foi arpoado o último exemplar de cetáceo, teve um enorme significado económico e

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fonte: colecção postal ruspoli & soulaire

Costado da nau Esta vigia ficava na ponta oeste da ilha do Faial

social em praticamente todas as ilhas dos Açores, com particular destaque para as ilhas do Faial e do Pico. Refira-se que a caça à baleia, para a maioria dos baleeiros, sendo complementar à sua atividade profissional, era fundamental à subsistência dos respetivos agregados familiares. Diretamente associada à caça estava a atividade de processamento das carcaças. Em

terra, os cetáceos eram desmanchados para a extração do óleo, do âmbar-gris, das barbatanas e da carne, sendo os ossos reduzidos a farinha. Até à década de trinta do seculo XX, a transformação da gordura animal em “azeite de baleia” era realizada artesanalmente pelos próprios baleeiros, através de um processo conhecido como “a fogo direto”, em estruturas designadas como “trai-

óis”, constituídas, no essencial, por duas caldeiras adossadas, assentes numa fornalha. A partir do primeiro quarto do século passado, este processamento passou a ser, progressivamente, feito em unidades fabris para o efeito construídas, sendo o derretimento realizado por recurso a enormes autoclaves, alimentados a vapor. Em 1984, com a proibição da caça à baleia em Portugal, foi definitivamente abandonada a atividade, tendo surgido, mais tarde, aquela que passaremos a chamar – “A Nova Industria”, também ela ligada aos grandes cetáceos, mas agora numa ótica de estudo e de observação.

A Nova indústria

Fonte: josé manuel garcia

Reboque: Auxiliados pela Walquíria, os botes preparam-se para mais uma regata.

Com o final da caça à baleia, houve um interregno na utilização comercial destas espécies. Curiosamente, foi uma interrupção de pouca dura. O engenho do homem adapta-se às novas situações e, nos Açores, invariavelmente, conseguem-se transformar adversidades em oportunidades. Apenas meia dúzia de anos após o final caça, pela mão do cidadão francês Serge Viallelle 5

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e sua esposa, a picarota Alexandra, começou a preparar-se uma nova atividade: a observação de cetáceos. Utilizando os métodos e técnicas que antes serviam para perseguir os cachalotes, nasceu na ilha do Pico uma nova atividade que, rapidamente, se estendeu às ilhas em que o potencial era mais evidente. Hoje, há duas dezenas de pequenas embarcações que, todos os dias, partem em direção aos grupos de golfinhos, baleias e cachalotes. No total, ao longo de todo o ano, duas dezenas e meia de espécies são observadas por 50 mil visitantes que pagam, em média, 50 euros. Portanto, hoje, os cetáceos valem dezenas de milhares de viagens aéreas, estadias e alimentação nos Açores. Hoje, a atividade

de observação de cetáceos já rende o equivalente aos anos áureos da atividade de caça. Também muito contribuiu para o sucesso o facto do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores ter acompanhado o desenvolvimento da atividade. Graças a isso e ao empenho do Governo rapidamente se desenvolveu um código de conduta que em 1999 foi transformado na primeira legislação de observação de cetáceos da Europa. Hoje, qualquer interferência com os cetáceos dos Açores implica conhecimento, enquadramento e autorização expressa das autoridades ambientais marinhas. Para além da simples observação, recorrem ao nosso arquipélago diversas das melhores

equipas de cinema documental do mundo para recolher imagens destes magníficos animais oceânicos. BBC, National Geographic e NHK são apenas algumas das grandes empresas televisivas que anualmente submetem pedidos para, nos mares dos Açores, filmar os maiores animais jamais existentes. Para além do fascínio dos próprios animais e do mar, hoje subsiste também uma curiosa indústria relacionada com o património baleeiro. Depois de um estímulo dado pelo Governo, hoje antigas fábricas, lanchas e botes são permanentemente conservados e tornados testemunhos bem vivos de outros tempos e outras vivências. Essas fábricas são hoje núcleos expositivos e as lanchas e botes são envolvidos

em animadas competições entre os descendentes das antigas companhas. Mais do que o resultado comercial, que existe, o importante é o impacto social ao nível da memória cultural coletiva e do divertimento lúdico contextualizado. Hoje, nos Açores, as atividades derivadas dos cetáceos, com especial ênfase para a observação de cetáceos, tem um significado económico de mais de duas dezenas de milhões de euros. Este é um exemplo de como os açorianos se souberam adaptar aos tempos modernos e em que, apesar do nosso diminuto contributo para o problema inicial, optamos pelo desenvolvimento sustentável e com enormes dividendos comerciais. z

os baleeiros e a religiosidade “A procissão chegou-se ao bote, silenciosamente, sem barulho de pés, apenas um murmúrio. Na luz já fraca, a cruz não era mais que uma silhueta; os véus brancos e diáfanos na cabeça das senhoras e das meninas demarcavam-se com uma luminosidade própria. Quando a imagem da santa foi trazida e pousada no leito da popa, ao lado do logaiéte, os sussurros deram lugar ao silêncio total. O mestre postou-se diante dela, por momentos, muito direito, de lábios cerrados. Com as mãos abertas e juntas, pegou na linha da selha da popa, deu-lhe uma volta em torno do logaiéte, dobrou-a e passou-a sobre os ombros da imagem, simulando um nó ligeiro. Depois vergou-se, rígido, e beijou-lhe as vestes; e falando suavemente, como se a sua voz interior fosse mais audível, disse: “Nossa Senhora da Guia, acompanha-nos. Leva-nos em segurança. Ajuda-nos a encontrar baleias. Protege-nos dos perigos da caçada. Vela por nós no regresso às famílias que nos esperam”. Depois calou-se, ainda de pé, frente à imagem. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo, sobre a pele morena, crestada pelo mar.” Esta transcrição do livro “Baleia! – Os Baleeiros dos Açores”, de Bernard Venables, sendo um relato de uma cena observada na segunda metade da década de sessenta do século passado, ilustra bem a intensidade da religiosidade dos homens envolvidos na caça à baleia. Na verdade, era frequente as embarcações serem batizadas com o nome de uma Santa, ou de um Santo de particular devoção entre os marítimos, sendo denominador comum o apadrinhamento por um conjunto alargado de Santas (os), cujas imagens eram afixadas no interior da proa das canoas. Em terra, nos portos de origem, era também comum a existência de nichos onde eram expostas as imagens de Santos (as) de devoção, de que são exemplo Nossa Senhora do Socorro, na freguesia do Salão, Senhora de Santana, no Capelo ou São Pedro.

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os dabney e a baleação BALEAS – Na manhã do dia 22 do corrente appareceram ao norte d’esta bahia alguns spermacettis. Duas canôas da casa Dabney foram em sua perseguição, e tiveram a felicidade de matar um, que foi conduzido para o Porto Pim onde se està derretendo. Muita gente tem concorrido àquelle sitio para o ver. Nos dias seguintes mais alguns peixes appareceram na bahia, mas quando as canôas foram em sua caça já os não avistaram. In O Fayalense, de 25 de junho de 1871

fonte: biblioteca pública e arquivo regional joão josé da graça

o tufo encostada ao monte da guia, formou-se a primeira estação de apoio à baleação costeira no faial

y Oriunda dos Estados Unidos da América, mais concretamente de Massachusetts, a família Dabney instalou-se na no Faial em 1804 (para alguns terá sido em 1806), após a nomeação de John Bass Dabney, pelo presidente Thomas Jefferson, como Cônsul Geral dos EUA no Faial. Dois descendentes de John Bass Dabney exerceram, sucessivamente, as funções consulares após a sua morte, seu filho, Charles William Dabney e posteriormente, o neto, Samuel Willis Dabney, até janeiro 1892, momento em que a família acaba por abandonar o Faial. A título de curiosidade, importa referir que a despedida da família em causa, após 88 anos de marcante presença empresaria, social e cultural, em 1891, é marcada pela realização de uma regata de botes baleeiros. Em boa medida favorecida pela função consular, a atividade empresarial da família foi de suprema importância no contexto local e regional, marcando aquele que será um dos mais prósperos ciclos económicos do Faial. Os Dabney incidiram a sua dinâmica comercial em produtos como a laranja e o vinho; mas também no negócio associado à baleação e neste, fundamentalmente, a três níveis: no apoio

logístico à frota de embarcações norte-americanas dedicadas à baleação pelágica no Atlântico, que aportava ao Porto da Horta; na aquisição dos óleos de baleia processados e subsequente exportação. Esta atividade era particularmente importante à data, na medida em que permitia aos navios baleeiros americanos o escoamento do produto obtido, com lucro, sem necessidade de regresso aos portos de origem. E finalmente, de forma perfeitamente inovadora, a formação de uma armação de pequenas embarcações (botes baleeiros) dedicadas à baleação costeira. A atividade empresarial desta família acaba por entrar em declínio em finais do século XIX, com a queda da produção de vinho e laranja, pelo progressivo abandono da baleação pelágica nos termos em que tinha ocorrido até então, mas também pelo aparecimento de outras prósperas empresas ligadas aos mesmos ramos de negócio, de que são exemplo a Bensaúde. Em paralelo, o governo Norte Americano havia já começado a orientar o seu corpo consular para a necessidade de não serem acumuladas, pelos respetivos membros, funções consulares e funções empresariais. z

fonte: biblioteca pública e arquivo regional joão josé da graça

PORTO DA HORTA – O Atlantico, de quinta-feira, publica o movimento marítimo d’este porto no anno findo de 1871, que com a devida venia transcrevemos. «No anno findo de 1871 deram entrada na bahia da Horta 253 embarcações com 93:000 toneladas, 94 navios eram portuguezes, 50 inglezes, 79 americanos, 15 francezes, 4 italianos, 3 allemães, 1 hespanhol, 1 liberiano, 1 norueguez, 2 suecos 2 belgas e 2 brazileiros. Entre estes incluem-se 32 vapores mercantes e 13 de guerra e 42 baleeiras americanas, as quaes descarregaram 363, 818 litros d’azeite de spermacetti e de balea, egual a 381:627 kilos do mesmo. Em 1870 so deram entrada 30 baleeiras, as quaes apenas descarregaram 115,523 litros d’azeite, egual a 157:466 kilos.» In O Fayalense, de 7 de Janeiro de 1872 7

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Porto do Comprido: um posto baleeiro (1884-1957) y Na ponta Oeste da ilha do Faial, junto ao Vulcão dos Capelinhos, encontramos uma pequena Calheta, formada há centenas de anos por uma escoada lávica. A Ponta Comprida, assim descrita na cartografia do século XVIII, proporcionava um abrigo natural numa área de pesca costeira, frequentada desde as primeiras décadas do povoamento da ilha. Aberto na rocha, entre as falésias e o mar, o porto do Comprido era um lugar isolado, ideal na partida do Homem para o combate com o Cachalote. A curta distância ficavam as águas profundas que limitam a ilha do Faial, onde se acumulam as presas marinhas que atraem grandes predadores, como é o caso dos cachalotes. As altas falésias do Costado da Nau, de onde se perscrutavam os movimentos das embarcações vindas de Oeste, permitiam um longo alcance aos vigias da baleia, e uma comunicação visual com as vigias instaladas na Costa Norte da Ilha, nos Cedros e no

fonte: acervo documental das obras públicas do distrito da horta

varadouro plano de reparação do porto do comprido, 1927

Salão, em conexão com a vigia do Alto das Concheiras. Lá em baixo, a menos de 100 metros do mar, os baleeiros reuniam-se durante os meses de Verão, como um exército sitiado, em habitações de pedra cobertas com palha de trigo, mantendo as suas canoas varadas na rampa do porto. O núcleo habitacional do porto do Comprido

alojava baleeiros das ilhas do Faial, do Pico e de São Jorge. Neste aspecto, aparentemente singular, o porto do Comprido poderia ser comparado com outros postos baleeiros espalhados por zonas inóspitas do globo, como a ilha de Spitsbergen no século XVII, onde os baleeiros ingleses e holandeses conviviam durante o Verão,

fonte: colecção do museu do pico

arreada em poucos minutos, depois de dado o sinal, todos os botes baleeiros estavam na água

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ou as estações baleeiras da Geórgia do Sul, no Antártico.

As fases da baleação costeira na ilha do Faial e o caso do porto do Comprido A caça à baleia no porto do Comprido ter-se-á desenvolvido entre 1884 e 1957, tornando-se um posto baleeiro cada vez mais importante no conjunto das ilhas do grupo central. Este período pode ser dividido em três fases sucessivas. A partir da década de 1870, com a crise do comércio de exportação do vinho e da laranja a afectar o fluxo comercial do porto da Horta, o negócio da baleação costeira torna-se um foco de entusiasmo para as empresas locais. Neste contexto, a casa comercial Dabney&Sons, experimentada na baldeação do óleo dos navios baleeiros norteamericanos e em condições propícias para importar canoas baleeiras, 8


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Fase industrial

fonte: colecção do museu do pico

porto do comprido Antes da saída os botes eram cuidadosamente inspeccionados

antecipa-se na criação de infraestruturas de apoio à baleação costeira. Em 1884, Samuel Dabney pede autorização para a construção de uns “ turcos de madeira junto à costa no local denominado – o Comprido […] para poderem arrear as embarcações empregues na pesca da balea”(1). As baleias caçadas a partir do porto do Comprido seriam rebocadas, a remos ou com o auxílio de um vapor do porto da Horta, até à estação de traióis de Porto Pim, o “Tufo”, onde se procedia ao desmancho do cachalote e se derretiam os toucinhos em grandes caldeiros de ferro. Esta primeira fase de baleação costeira está, contudo, determinada pelos poucos meios e o insucesso na maioria de tentativas de captura dos cachalotes, tal como nos indicam as notícias contemporâneas. Às canoas de terra uniam-se, em interacção ou concorrência, as canoas dos navios baleeiros norteamericanos que permaneciam ao largo das ilhas do Triângulo. Apesar das incertezas, a baleação no porto do Comprido prevaleceu durante as décadas seguintes. Uma segunda fase, situada entre os anos 20 e os anos 40 do século XX, caracteriza-se pela concentração de funções da baleação costeira no porto do Comprido. Por outras palavras, era no porto do Comprido que arreavam os botes bale-

eiros - auxiliados por lanchas a motor, a partir dos anos 20 – e, depois de capturados, os cachalotes seriam encalhados e desmanchados na zona do porto. Segundo uma inspecção feita pela Capitania do porto da Horta, em 1928, era a Sociedade Baleeira Aurora que possuía no porto do Comprido “uma casa com duas caldeiras e respectivas fornalhas e mais apetrechos para o derretimento do óleo, achando-se tudo em bom estado e regularmente instalado”(2). De resto, esta fase está marcada pela proliferação de pequenas armações ou sociedades baleeiras em vários portos da Ilha (Ribeirinha, Cedros, Salão, Castelo Branco), cada uma com os seus apetrechos e instalações, ou em sociedade com outras armações. Na ilha do Faial existiam, em simultâneo, entre cinco a oito armadores da “pesca da baleia”, entre 1920 e 1930. Durante a época de caça, o porto do Comprido já seria frequentado por sete canoas baleeiras, algumas das quais permaneciam durante todo o ano. Com a complexificação da actividade baleeira, são também mais notáveis as intervenções das autoridades marítimas na vida do posto baleeiro, e os requerimentos das instituições de poder local, como a Junta de Freguesia do Capelo, para a realização de obras de construção e reparação do porto.

Mas se existe período em que o porto do Comprido se converte num destacado posto baleeiro, em toda a sua especificidade, é durante a fase industrial da baleação na ilha do Faial, entre 1940 e 1957. Nos anos convulsos da 2ª Guerra Mundial, a forte subida do preço do óleo de cachalote incentivou o crescimento da actividade baleeira nos Açores, e da ilha do Faial em particular. As obras para o desenvolvimento do porto do Comprido estavam no centro do debate. Com a construção das Fábricas da Baleia de Porto Pim (1942) e São Roque (1944), e a expectativa de dobrar a produção de óleo através do processamento industrial do cachalote, era necessário optimizar as condições do varadouro onde estacionavam os botes baleeiros do Faial e do Norte do Pico. Os projectos de construção de 1942 e 1944 previam

a construção de uma muralha de defesa do porto e um cais acostável, além de um nivelamento da rampa de varagem, com mais de 110 metros. No entanto, estes projectos nunca viriam a ser concretizados. Durante este período, a rampa de varagem chegou a ter 18 botes baleeiros varados e 7 lanchas a motor amarradas ao largo, condições que exigiam o envolvimento de, no mínimo, 200 indivíduos na actividade baleeira. As armações baleeiras, em menor número mas melhor organizadas, recebiam instruções relativas à saída coordenada dos botes baleeiros para o mar e o trabalho colectivo dos vigias, pertencentes a diferentes armações baleeiras. Na retaguarda da actividade, os armazéns da Reis&Martins, na Horta, prestavam todo o tipo de fornecimentos às embarcações estacionadas no Capelo: linha de baleia, tintas, óleo de linhaça, lanças e arpões, entre outros, eram enviados regular-

Baleeiros no Capelo

Fonte Foto: Fotojovial.

A tradição oral recorda “o Comprido” como um lugar de alegria onde os baleeiros celebravam a vida de Verão em comunidade. Enquanto o foguete não estalava, dançava-se a Chamarrita, festejava-se o São Pedro ou assistia-se à festa de Santana. Os picarotos, protagonistas da migração sazonal, dispuseram de meios para transportar consigo as mobílias, os animais domésticos, as famílias inteiras. À noite também se pescava, de dia salgava-se o peixe. Balear no Comprido transformava o quotidiano dos homens que, por norma, nunca seriam baleeiros a tempo inteiro. 9

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mente para o posto baleeiro. A aldeia dos baleeiros era mantida segundo uma organização familiar e com o apoio de comerciantes locais, da freguesia do Capelo, que asseguravam o seu aprovisionamento. Sem dúvida, foram nos derradeiros anos da baleação no Comprido que mais se caçou à baleia, e de forma mais eficaz, com uma forte concentração nos meses de Verão (cfr. Gráfico). Em Setembro de 1957, quando se iniciaram as erupções no Vulcão dos Capelinhos, o porto do Comprido foi imediatamente abandonado. Em poucos meses, todos os anos de história

deste posto baleeiro seriam abruptamente consumidos pelas cinzas, deixando-nos uma paisagem desolada, escurecida pelo Vulcão.. z

Notas: (1): Fundo da Capitania do Porto da

Baleeiros na américa Com a erupção do vulcão dos Capelinhos e a abertura das fronteiras norte americanas, muitos jovens baleeiros seguiram o rumo da emigração, conservando a memória dos tempos áureos, e dificeis, da baleação.

Horta. Arquivo Histórico da Marinha (2): Idem.

Fonte foto: Colecção Privada de Manuela Rosa

Francisco henriques

Os Homens da Baleia

OMA

Fonte Foto: Mário Ruspoli, Les Hommes de la Baleine (1956)

fonte: colecção postal ruspoli & Soulaire

trancar josé rafael prepara-se para arpoar um cachalote

No Verão de 1956, o italiano Mário Ruspoli propôs-se realizar um documentário sobre os últimos caçadores de baleia do tempo de Moby Dick. Depois de conseguir um empréstimo de 2 milhões de francos, concedido pelo milionário grego Aristote Onassis, M. Ruspoli reuniu uma talentosa equipa, composta por Jacques Soulaire e Gilbert Rouget, e instalou-se na casa dos faroleiros dos Capelinhos. Durante dois meses, a equipa recolheu as imagens e os sons únicos da actividade baleeira no porto do Comprido. Les hommes de la Baleine é um precioso documento realista e lírico sobre a baleação na ilha do Faial.

Caça à baleia no porto do Comprido

Fonte: Colecção Documental Reis&Martins Lda. – Fábrica da Baleia de Porto Pim.

A partir de determinada época do ano, os botes baleeiros deixavam de “arrear” na cidade da Horta e concentravam-se nos postos baleeiros do Salão e do porto do Comprido. A actividade no porto do Comprido era, sobretudo, inconstante: podia haver 4 a 5 dias consecutivos de caça, mas também uma semana inteira à espera que os vigias dessem o sinal de “arreada”.

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Património Baleeiro da fase industrial da baleação no Faial - Resgate, inventariação e conservação y Na década de trinta do século XX, durante o auge da indústria baleeira nos Açores, foram constituídas várias empresas nas diversas ilhas para a exploração e comercialização dos produtos obtidos a partir dos cachalotes. No Faial, foram constituídas três sociedades: a Reis & Martins Lda., armação baleeira e exportadores de óleo; a Companhia Baleeira Faialense Lda., armação baleeira; e a Sociedade Industrial Marítima Açoriana Lda. (SIMAL), ligada à indústria transformadora. A Reis & Martins Lda., constituída em 1945, adquiriu um armazém na Rua Nova, na cidade da Horta, que servia como casa de botes e oficina de carpintaria, marcenaria, tanoaria, ferraria e mecânica, ofícios essenciais para a construção e manutenção das embarcações baleeiras (lanchas a motor e botes) e respectiva palamenta. Depois do fim da actividade baleeira nos Açores, no início dos anos 80 do século XX, o armazém da Rua Nova e grande parte do seu espólio foram parcialmente mantidos, até à actualidade, embora seja notória a degradação tanto do imóvel, como de muitos dos objectos e equipamentos aí armazenados. Perante o risco sério de este espólio se perder e dada a importância deste espólio para o estudo da baleação no Faial, e nos Açores, considerou-se ser urgente efectuar o seu resgate, levantamento e estudo deste património, garantindo assim a sua preservação. Assim, os actuais proprietários e herdeiros da Reis & Martins, Lda.

FOnte: Rodrigo sá da bandeira

Rua nova Interior do escritório dos Armazéns da Reis & Martins, Lda.

estabeleceram uma parceria com o Observatório do Mar dos Açores (OMA), com o objectivo de salvaguardar o património existente e integrar parte dele no museu da Fábrica da Baleia de Porto Pim O projecto “Levantamento de Património Baleeiro e Dinamização do Espaço Expositivo da Fábrica da Baleia de Porto Pim” iniciou-se em 2008 e em 2009 passou a ser co-financiado pela Direcção Regional da Cultura (DRaC), que o considerou de “interesse relevante para a Região e capaz de contribuir para o desenvolvimento da política cultural dos Açores”. Este estudo integra: a) a inventariação preliminar do património móvel (e.g. maquinarias, equipamentos, embarcações, palamenta e demais acessórios); b) a inventariação do acervo documental do arquivo da Reis & Marti ns, Lda.; e c)

o levantamento e descrição arquitectónica dos Armazéns da Rua Nova. Entendeu-se que esse trabalho deveria inserir-se numa investigação antropológica, que permitisse aprofundar o conhecimento existente sobre a indústria baleeira no Faial e nos Açores. A metodologia adoptada consiste no levantamento dos vestígios materiais, móveis, imóveis, e imateriais, ligados à actividade baleeira. Iniciaram-se os trabalhos com o levantamento, identificação e inventariação preliminar de um variado conjunto de objectos que se encontrava nos Armazéns da Rua Nova. Parte desse património foi transferido para a Fábrica da Baleia de Porto Pim, tendo sido classificado, recuperado e incluído na sua exposição permanente. Este estudo integra: a) a inventariação preliminar do património móvel (e.g. maquinarias, equipamentos, embarcações,

palamenta e demais acessórios); b) a inventariação do acervo documental do arquivo da Reis & Marti ns, Lda.; e c) o levantamento e descrição arquitectónica dos Armazéns da Rua Nova. Entendeu-se que esse trabalho deveria inserir-se numa investigação antropológica, que permitisse aprofundar o conhecimento existente sobre a indústria baleeira no Faial e nos Açores. A metodologia adoptada consiste no levantamento dos vestígios materiais, móveis, imóveis, e imateriais, ligados à actividade baleeira. Iniciaram-se os trabalhos com o levantamento, identificação e inventariação preliminar de um variado conjunto de objectos que se encontrava nos Armazéns da Rua Nova. Parte desse património foi transferido para a Fábrica da Baleia de Porto Pim, tendo sido classificado, recuperado e incluído na sua exposição permanente. 11

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FOnte: rodrigo sá da bandeira

objectos- exemplares do espólio resgatado dos armazéns reis e martins

inventário do espólio reis e Martins, Lda Os objectos encontrados foram analisados e descritos quanto às características funcionais de origem e às transformações eventuais que possam ter sofrido ao longo do tempo. Se alguns objectos têm uma função óbvia (p.e. botes e sua palamenta, arpões, etc.) outros há cuja sua utilidade é difícil de descodificar. A identificação e interpretação funcional dos objectos encontrados foi consubstanciada por fontes documentais, quando existentes, e/ou por depoimentos orais, fonte de informação única e insubstituível para a compreensão abrangente da actividade industrial em estudo. A identificação de cada bem foi registada em ficha própria, onde os elementos considerados adequados para o seu reconhecimento foram descritos em detalhe. A ficha inclui uma fotografia do objecto, o seu número de inventário, a sua função original, a categoria a que pertence, o seu estado de conservação, a data do inventário e a referência das fotografias existentes

desse objecto. Os bens inventariados foram classificados em categorias, consoante o tipo de colecção e suas características (tipologia). Assim, optou-se por classificá-los em classes, segundo a sua função original, e em subclasses, que correspondem ao local ou à infra-estrutura a que pertenciam (ex: Selha–de-linha, Classe: Palamenta; Subclasse: Bote Baleeiro). A inventariação individual de

cada peça permitiu a criação de um inventário fotográfico e de uma lista geral de inventário, onde constam todas as 468 peças resgatadas até ao momento. O passo seguinte consistiu na conservação e restauro dos objectos classificados. As intervenções foram criteriosamente efectuadas para não comprometerem a constituição original das peças. Aspiração, lavagem, restauro com óleo e tratamento contra

pragas, foram as operações adoptadas para as peças de madeira. As peças de metal, a maioria com níveis de oxidação consideráveis, foram objecto de tratamentos específicos, adaptados a cada caso. z

Márcia dutra

OMA

fonte: OMA

salvaguarda: Classificação das 468 peças inventariadas até ao momento.

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Inventário do Património Baleeiro Imóvel do Faial

y Em 2010, o OMA estabeleceu um contrato de cooperação técnica com a Direcção Regional da Cultura (DRaC), com o objectivo de inventariar o património baleeiro imóvel de todo o arquipélago. A execução do projeto, foi assegurada por uma equipa multidisciplinar na área da investigação histórica,

arquitectura e fotografia profissional. A recolha prévia da informação foi o ponto de partida para um trabalho de campo que decorreu entre os meses de Junho e Dezembro de 2011. Foram inventariados os antigos complexos baleeiros, postos baleeiros e varadouros baleeiros, rampas de varagem das embarcações, rampas de alagem de cachalotes, casas de botes, traióis, fábricas de processamento de cachalotes e plataformas de desmancho,

vigias, residências sazonais, carpintarias, oficinas, armazéns, entre outros. Na ilha do Faial foram inventariados 17 imóveis (ver Fig. 5) identificados no Complexo Baleeiro das Angústias (local onde as armações baleeiras tinham a sua sede, com armazéns, fábricas de processamento de cachalotes/casa de caldeiros e estacionavam as embarcações prontas para uma rápida arriada à baleia), nos Postos Baleeiros do Porto

do Comprido, do Salão (estes dois como local de estacionamento sazonal das armações baleeiras do Faial e do Pico) e do Varadouro. Identificaram-se, ainda, apesar de menos representativos na actividade baleira da Ilha do Faial, os Varadouros do Cedros, Castelo Branco e Ribeirinha, todos com rampa de varagem para estacionamento de botes baleeiros. z Márcia dutra

OMA

Inventário do Património Baleeiro Imóvel dos Açores: a Ilha do Faial. Complexto Baleeiro das angústias 1 - Fábrica da baleia de porto pim 2- armazém da reis & martins, lda 3 - casa de caldeiros de porto pim (fábrica velha) 4 - rampa de varagem do porto posto baleeiro do porto do comprido 5 - rampa de varagem do porto do

comprido 6 - vigia do capelo 7 - vigia do costado da nau 8 - residências sazonais do porto do comprido 9 - casa dos botes do porto do comprido posto baleeiro do salão 10 - rampa de varagem do salão

11 - residência sazonal da armações do faial 12 - residência sazonal das armações do pico 13 - vigia dos cedros 14 - posto baleeiro do varadouro 15 - vigia do alto das concheiras varadouro baleeiro dos cedros 16 - rampa de varagem do porto

da eira varadouro baleeiro da ribeirinha 17 - rampa de varagem da ribeirinha varadouro baleeiro de castelo branco 18 - rampa de varagem de castelo branco

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A Fábrica da Baleia de Porto Pim

fonte: OMA

interior a fábrica é um museu permanente

y Em 1939, a Sociedade Industrial Marítima Açoriana, Lda. – a SIMAL foi fundada, na Horta. Esta sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, tinha como objectivos a “exploração da indústria do aproveitamento integral da ba-

leia e outras espécies marinhas e comércio dos respectivos produtos”. A SIMAL era constituída por 25 sócios, sendo os sócios maioritários, o industrial lisboeta Francisco Marcelino dos Reis e a empresa local Costa & Martins, Lda. Desta-

Casa das farinhas, com toda a maquinaria original da reconhecida marca noruguesa myrens verksted e os motores da marca alemã motoren fabrik deutz ag

cam-se ainda quatro companhias baleeiras da Ribeira do Meio (Pico) que, por razões familiares, e por ter sido negada a construção de uma fábrica nas Lajes, se associaram à SIMAL. A fábrica começou a ser construída em 1941, inicialmente no areal da Praia de Porto Pim mas, devido a um forte temporal, ocorrido em Setembro desse mesmo ano, foi completamente destruída e abandonado o projecto. Esta intempérie levou a que os proprietários decidissem construir a fábrica no local onde hoje a conhecemos, na encosta do Monte da Guia. A fábrica começou a laborar em fase experimental em Agosto de 1942. Durante os seus 30 anos de laboração, processaram-se 1940 cachalotes, que produziram 44 mil bidões de óleo. Em 1974, acompanhando o declínio da indústria baleeira a nível mundial, a fábrica fechou as suas portas. Em 1980, o Governo Regional dos Açores adquiriu todo o complexo fabril com o objectivo de ali instalar o Departamento de Oceano-

grafia e Pescas e uma Escola de Pesca, desígnio esse que nunca se chegou a realizar. Em 1984, a antiga fábrica foi classificada como Imóvel de Interesse Público (IIP). Depois de quase duas décadas de degradação do edifício e da sua maquinaria, sem dúvida atenuados pela acção persistente de Manuel da Rosa Correia, conhecido como Patrão Manuel, e de Manuel Medeiros, conhecido com Sr. Amaral (antigo encarregado da fábrica), a fábrica foi finalmente alvo de obras de restauro e de beneficiação. Apelidada de Centro do Mar, foi inaugurada em 2000, por ocasião da 2ª edição da ExpoPescas, com o objectivo de se tornar num espaço de divulgação cultural e científica. Desde 2004, que a Fábrica é a sede do OMA, que desde então tem vindo a dinamizar esse espaço. Em 2010, a Fábrica da Baleia de Porto Pim, como hoje é conhecida, foi inserida no Complexo do Monte da Guia da Ilha do Faial. z Márcia dutra

OMA

Casa das autoclaves, com seis autoclaves, cada uma com capacidade de 11 m#

edificio anexo onde funcionava a antiga serralharia e os escritórios. destacam-se os altos tanques subterrâneos para armazenamento de óleo. actual “sala dos óleos” (sala de exposições e reuniões)

Antigas casas de banho. Actual bar da praia e wcs de apoio à Fábrica da baleia

plataforma de desmancho. destaqca-se a chaminé das caldeiras a vapor.

Antigo armazém das farinhas, com quatro tanques subterrâneos para armazenamento do óleo. actual loja da fábrica e cim

casa das caldeiras a vapor. imponentes caldeiras fabricadas na cidade do porto. em primeiro plano vemos a caldeira que foi instalada em 1950. VISITA GUIADA: Fábrica da Baleia de Porto Pim - Descrição.

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entrevista a joão pedro garcia

“O desafio mais importante é a preservação do património baleeiro”

Fonte: robert clarke, discovery reports 1954

no mar o momento em que se inicia a perseguição ao cachalote

y A inauguração da Casa dos Botes, no Capelo, marcou mais um passo no percurso que começou a ser percorrido há mais de dez anos, quando, por altura das comemorações dos 400 anos daquela freguesia, se decidiu iniciar um processo de recuperação do património baleeiro no Faial, então denominado “recuperação da memória baleeira da ilha do Faial”. Hoje, 25 anos depois de ter sido caçado o último cachalote em águas açorianas, o património da baleação está bem vivo, sendo essa vivacidade no Faial espelhada pela recuperação dos botes baleeiros, da lancha Walquíria, da Fábrica da Baleia e, agora, da Casa dos Botes. Recuperar os botes baleeiros não é, no entanto, suficiente para garantir que a sua memória continua viva. Os botes pertencem ao mar, e por isso foi com naturalidade que este movimento de revitalização do património acabou por passar para a vertente desportiva, com a criação da secção de botes baleeiros do Clube Naval da Horta, que movimenta muitos

desportistas. Na hora de lembrar todo este percurso de recuperação do património baleeiro, bem como de reflectir sobre o que há a fazer numa altura em esse processo está praticamente consolidado, Tribuna das Ilhas conversou com João Garcia, que era em 2000 membro do elenco da Junta de Freguesia do Capelo responsável pelo desencadear deste projecto, e que em 2005 o levou para o Clube Naval da Horta, quando assumiu a direcção da agremiação náutica faialense. Alertando para a importância da manutenção deste património, agora que todo ele está restaurado, João Garcia apela a um esforço conjunto para a consolidação de um campeonato regional de botes baleeiros e defende a alteração da legislação para que os clubes navais possam retirar rentabilidade económica dos passeios à vela em botes baleeiros, de modo a que estes possam sustentar a sua própria manutenção. O processo de recuperação de botes em vá-

rias freguesias com história baleeira no Faial foi desencadeado quando o João era presidente da Junta de Freguesia do Capelo, e preparava as comemorações dos seus 400 anos. O que é que motivou a que o património baleeiro fosse o marco desta efeméride? A importância que tinha essa efeméride levou a que se fizesse um levantamento histórico dos quatro séculos da freguesia. A baleação teve um papel importante nessa história e desde logo decidimos fazer uma regata de botes que ligasse o Porto do Comprido ao do Varadouro, tendo em conta a ligação histórica que os dois tiveram, pela baleação. A partir daqui somos despertados para algo que tem grande valor sentimental e histórico e nasce um movimento de recuperação da memória baleeira. O Capelo teve uma forte implementação da baleação, era uma coisa que estava enraizada no povo e que era importante salvaguardar. Primeiro houve a preocupação de re-

gistar as memórias que havia dessa época, registos feitos por pessoas do Capelo, nomeadamente pelo José Francisco, da Faialentejo, que registou os testemunhos de alguns baleeiros. Depois houve o movimento de recuperação dos botes. O Pico tinha já uma série de botes recuperados e nós quisemos ir um pouco mais longe e abranger não apenas as freguesias com tradição na baleação, como Salão, Castelo Branco e Angústias, mas também outras onde havia recrutamento de baleeiros, como é o caso da Feteira. O projecto contemplava a recuperação da Casa do Bote Baleeiro, que foi recentemente inaugurada, e visa ainda publicar a história da baleação na ilha do Faial. Foi fácil para a Junta de Freguesia do Capelo motivar as restantes freguesias a embarcarem neste projecto? Por acção do Clube Naval, mais concretamente pelo então presidente José Decq Mota, temos conhecimento que na Calheta do Nesquim existe um bote disponível, cheio de his15

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tória e que é inclusive citado no Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, o bote São José. Sabendo que havia aqui um interesse, ele falou-nos da existência desse bote, que estava sob a alçada da Comissão do Património Baleeiro. Inicia-se aí a sua recuperação e um passo importante para aquilo que queríamos fazer. A recuperação de um bote para a freguesia do Capelo fez despertar as outras freguesias para este projecto. Nesta altura ele deixa de ser apenas palavras e pequenos escritos para começar a ter uma maior dimensão. Em 2000 temos a primeira regata, com botes do Pico e apenas com o Claudina, do Faial, 43 anos depois do último bote baleeiro ter “arriado” no Comprido. Em 2003 aparece o São José, outro bote recuperado para o Faial… As pessoas começam a perceber que este é um projecto com vida. Nesta altura começa também a dinamizar-se a regata internacional de botes baleeiros. O movimento de geminação entre a Horta e New Bedford estava estagnado e a partir daí essa ligação fortalece-se. Foi precisamente a baleação que criou o elo entre as duas cidades, agora fortalecido com

fonte: Susana GArcia

PatrimónioJorge Fontes, João Garcia e João Tavares, três impulsionadores da preservação do património baleeiro da ilha do faial

a recuperação do património baleeiro. E, curiosamente, é na primeira viagem que se faz aos Estados Unidos que o presidente da Câmara Municipal da Horta, João Castro, fica desperto para a importância de se recuperar a Walquíria, outro processo que estava estagnado e ganha nessa altura alento. Há, assim, uma bola de neve que vai crescendo, uma paixão que vai aumentando e um

despertar da consciência para a recuperação da memória que faz com que se torne tudo mais fácil. O Governo Regional, através da Comissão do Património Baleeiro dos Açores, deu um apoio incondicional a este projecto. Este é um desígnio não de um homem só, mas de várias pessoas e instituições. Como é que o objectivo

da preservação dos botes baleeiros é transposto para o Clube Naval da Horta (CNH), com o intuito de criar uma nova vertente desportiva na ilha? Quando me foi lançado o desafio de assumir a presidência do CNH os botes baleeiros assumem uma importância no meu projecto para o clube. Não era possível continuar a gerir

Fonte: josé manuel garcia

baía da feteira: durante a época do verão a baia é engalanada pelas velas dos botes baleeiros

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Tribuna das Ilhas as tripulações e a actividade desportiva dos botes através das juntas de freguesia, porque elas não têm essa vocação. Era inevitável que houvesse uma instituição como o CNH – sólida, agregadora, sem rivalidades – que pudesse dar continuidade ao processo. Nesse sentido, fundámos a secção de Botes Baleeiros da ilha do Faial, que agrega com igual autonomia e legitimidade todos os participantes nesta actividade. Neste ponto tenho de referir o Carlos Fontes, que deu um importante contributo a todo o processo, pela sua dedicação e organização. Outro elemento que emprestou um valioso contributo foi o Nuno Lima, sobretudo na recuperação da lancha Walkiria, a rainha dos mares dos Açores. Houve um momento de explosão com

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mais de cem participantes tanto masculinos como femininos, com miúdos a virem das freguesias para aprender vela, com cursos para oficiais… Esta vitalidade dos botes manteve-se até 2010. Mantenho alguma preocupação quanto a algumas situações pontuais, com receio de que as coisas se desagreguem e as pessoas não percebam os anos de trabalho que estão aqui em causa e os séculos de baleação que estão por detrás deste património. É importante que haja consciência não apenas de todo o trabalho que foi feito mas também do custo financeiro deste projecto. Grande parte desse financiamento foi assegurado pelo governo regional que contou com o apoio do E-GRANT`S. A Direcção Regional da Cultura, o CNH e os clubes navais do

Pico apresentaram uma candidatura para a recuperação dos botes baleeiros que foi aceite. Se não fosse esse apoio hoje não poderíamos dizer que praticamente todo o património dos Açores, botes e lanchas, está recuperado. Estamos a falar de 40 botes. Em 10 anos, no Faial, recuperaram-se sete botes e uma lancha. Se virmos que cada bote tem um custo de recuperação de cerca de 35 mil euros percebemos que esse foi um esforço muito significativo. A associação dos botes baleeiros da ilha do Faial ao CNH veio também dar uma dimensão de ilha ao Clube e criou-se uma dinâmica desportiva importante de que o Faial necessitava. Esta vitalidade em torno da cultura e património baleeiro faz despertar para a necessi-

dade deste ser inventariado e salvaguardado. Em 2008, o Observatório do Mar dos Açores (OMA), entidade gestora da Fábrica da Baleia de Porto Pim, avança para a inventariação do património imóvel da baleação, primeiro à escala da ilha do Faial e depois à escala dos Açores. EEA Grants: Mecanismo Financeiro Norueguês para apoio à coesão social e económica dentro da União Europeia, Islândia, Liechtenstein e Noruega, que complementou o esforço financeiro do Governo Regional para a reabilitação do património baleeiro dos Açores. Neste contexto, foram recuperados 40 botes e 10 lanchas. Anualmente é atribuído, pelo Governo Regional, um subsídio para manutenção destas embarcações.

WALKÍRIA “A RAINHA DOS MARES DOS AÇORES”

“Nasceu para reinar, nunca foi destronada e viverá, esperamos por muitos anos, assim o desejamos. Somos uma grande região marítima que quer preservar a memória coletiva das nossas técnicas e tradições, da nossa vivência multissecular com o mar que nos rodeia, nos separa e nos une.” A lancha Walkiria foi mandada construir pelos proprietários da Armação Baleeira Reis & Mendonça, o industrial continental Francisco Marcelino dos Reis, e o Professor Rui de Mendonça, residente na Vila das Velas, amante de música, Wagneriano, que por tal razão deu aos seus filhos os nomes de Wagner , Weber, Walkyria e Isolda. A construção foi realizada na ilha de S. Jorge em 1937, pelas mãos de José e Manuel Gambão, irmãos e carpinteiros habilidosos, a partir de projeto de Manuel Inácio Nunes, natural do Pico, mas com gabinete de projetos e estaleiro em Sacramento, Califórnia, Estados Unidos da América. - “Quando o antigo paquete a vapor “Carvalho Araújo”, largava do porto das Velas com rumo ao Cais do Pico onde escalava, depois de ter atingido a velocidade plena de cruzeiro, a Walkyria rodeava o navio em marcha passando pela proa e pela popa! Nenhuma outra lancha conseguiu tal proeza.”. Efetivamente a lancha estava equipada com um motor a gasolina de 143 HP, que permitindo atingir uma velocidade de ponta elevada, 18 nós, também acarretava consumos de combustível significativos, facto que levou à sua venda em 1938, por ser economicamente pouco interessante para o trabalho que desenvolvia, nomeadamente no apoio à caça à baleia. Assim a lancha é transferida para a ilha do Faial, por aquisição do Sr. Francisco Reis, ficando afeta ao transporte local de passageiro. Mais tarde, é adquirida pela firma “Reis & Martins”, ficando afeta à atividade baleeira. Em 1955, a quando da instalação de um aparelho de radiotelefonia, foi-lhe atribuída a matrícula final H-21-B. Em 2005, no âmbito do projeto de “recuperação da memória baleeira da ilha do Faial”, depois de anos de repouso nos armazéns da Reis e Martins, a emblemática embarcação volta a ganhar vida pelas mãos do mestre Manuel Monteiro, da Piedade do Pico, entrando de novo, no porto da Horta a 12 de agosto desse mesmo ano, totalmente recuperada. 17

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Um museu não é uma coisa que está dentro de casa, mas é tudo o que nos rodeia. Temos de contar, de forma simples, a todos os que nos visitam, que esta é uma ilha com história.

Fonte: OMA

Embarcação: Os antigos botes tornaram-se também numa peça museológica

Ainda bem que refere a inventariação do património imóvel, pois, de facto, o património da baleação não se resume aos botes… Depois da revitalização da Fábrica da Baleia, este processo de recuperação do património ficou ainda mais completo com a inauguração da Casa dos Botes, no Capelo, há muito aguardada. Fale-nos desse projecto. Em boa hora, a Junta de Freguesia do Capelo acolheu esta iniciativa incluída no projecto “A recuperação da memória baleeira”. Esta era uma casa das armações baleeiras de São Roque do Pico. A sua recuperação não é mais do que devolver ao porto do Comprido a sua história. A história do Capelo não começa em 1957, com o Vulcão dos Capelinhos. Antes disso, o porto do Comprido já tinha dois séculos de história, tendo sido uma das principais estações baleeiras dos Açores. Essa memória

tinha de ser preservada, por respeito aos nossos antepassados. Essa preservação também se faz através do circuito pedestre do baleeiro, que também foi inaugurado agora. Este leva-nos ao conjunto de vigias que existe no Vulcão dos Capelinhos.

Há também a preocupação de reunir em livro a informação sobre a baleação que tem vindo a ser recolhida… Nos últimos anos o Observatório do Mar dos Açores (OMA) tem feito um excelente trabalho o que se traduz num grande avanço na pesquisa. Com aquilo que já tinha sido feito, lançámos um desafio ao Filipe Porteiro, presidente do OMA, para que se documentasse por escrito a memória dos baleeiros. Há um registo de memórias de alguns baleeiros do Capelo, um espólio fotográfico que foi e continua a ser recolhido, um conjunto de informações tanto daqui como de New Bedford no que ao tempo da baleação diz respeito… Portanto, temos informação suficiente para fechar, nos próximos dois anos, esta recuperação da memória com um livro, que permita dar a conhecer a história da baleação no Faial. Há um conjunto

de pessoas disponíveis para colaborar neste processo. Na minha opinião, esta obra deve ter edição bilingue, tendo em conta o interesse que tem para os Estados Unidos. Na sua opinião, o que é que fica a faltar fazer pela recuperação e preservação do património baleeiro? Tenho de deixar uma mensagem importante às pessoas que hoje gerem este processo: procurem os consensos. É muito importante termos um consenso regional relativamente aos botes baleeiros. É importante que se volte aos modelos adoptados em 2005 relativamente às regatas. Não podemos ter regatas em todas as freguesias dos Açores. Temos de ter as cinco regatas tradicionalmente mais antigas, nas quais se inclui a Semana do Mar e quatro regatas no Pico, e fazer as outras três de forma rotativa, para voltarmos a ter um campeonato regional de botes baleeiros em condições. Faial e Pico têm de entender-se nesta matéria. Esta mensagem tem de ser passada para as instituições, para os clubes, para as juntas de freguesia, para as pessoas…

Fonte: josé manuel garcia

Regata: um aspecto de uma regata dentro da baia da horta

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Tribuna das Ilhas É também importante que a secção de botes baleeiros do Faial continue. A rivalidade entre freguesias não traz nada de bom. O CNH tem obrigação de consolidar a secção, custe o que custar. Além disso, temos de ver que o património baleeiro que está entregue às Juntas de Freguesia não é das autarquias. Pertence à Governo Regional dos Acores, ou seja, à Região, e a sua preservação é uma obrigação daqueles a quem foi entregue. É preciso ter muito cuidado nessa preservação senão dentro de alguns anos estamos não a fazer manutenção mas praticamente a fazer novos botes. Os responsáveis de cada uma das instituições têm de ter consciência do património que têm nas mãos e de toda esta história. Agora o desafio mais importante é a manutenção deste património e continuar a despertar nas pessoas o interesse por andar à vela e a remos. O bote baleeiro é uma embarcação ímpar. Não há outra no mundo.

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E a preservação só se faz completamente se os botes estiverem no mar, a navegar? Exactamente. Há uma parte muito importante do projecto que ainda falta, que passa pela sede do CNH e por saber o que vai acontecer aos armazéns da Reis e Martins. É preciso encontrar um espaço adequado para guardar os botes, fazer a sua manutenção e expô-los. Os botes são património histórico, mas também turístico. As regatas são bonitas, mas os passeios em botes baleeiros também. Se for alterada a portaria que regula esses passeios, em vigor há muitos anos, os clubes podem deles tirar rendimentos. Acha então que faria sentido rentabilizar os passeios nos botes baleeiros para financiar a sua própria preservação? Faz todo o sentido. Na situação económica em que estamos não podemos viver da

“subsídio-dependência”. A manutenção dos botes, as regatas e toda essa dinâmica podem sustentar-se com a criação de uma vertente económica com os passeios de bote baleeiro, porque temos mercado para isso. É necessário alterar legislação nessa área. Noutros tempos a baleia foi um pilar da nossa economia. Acha que hoje, com o whale watching a motivar a existência de baleeiros com máquinas fotográficas em vez de arpões, contribuindo para a economia da ilha, e com os botes baleeiros na água para as competições desportivas, estamos perante uma espécie de nova baleação? Acho que entrámos numa nova fase da baleação e soubemos perceber não apenas a importância que a baleação teve, mas também a importância que os cetáceos têm hoje nos Açores. Há um Departamento

de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores que sabe o que está a fazer, há uma consciência das empresas de whale watching para a sua importância… Não é por acaso que algumas dessas empresas utilizam as antigas vigias dos baleeiros, e inclusive as recuperaram, contribuindo assim para a preservação do património da baleação. O segredo da observação de baleias nos Açores tem a ver com a história que há para contar. Houve uma altura em que caçámos e há agora uma altura em que sabemos preservar. Há aqui um potencial turístico enorme. Os açorianos adaptaram-se muito bem a esta nova realidade. z

marla pinheiro

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casa dos botes do capelo o recuperar da memória y Foi inaugurada sábado, 7 de Julho a Casa dos Botes recentemente recuperada das cinzas do Vulcão dos Capelinhos. Este espaço recria a partir de agora um dos espaços funcionais da actividade baleeira na ilha do Faial. Este projecto foi da responsabilidade da Junta de Freguesia do Capelo e teve como parceiros a Secretaria Regional do Ambiente e do Mar, o Parque Natural da Ilha do Faial, o Observatório do Mar dos Açores e a firma Reis & Martins, Lda.. A inauguração da obra de reabilitação daquela Casa dos Botes, onde as armações armazenavam as suas embarcações e todos os instrumentos necessários para a caça à baleia a partir do porto do Comprido, foi ainda o momento de inauguração de uma exposição com produção do Observatório do Mar dos Açores, e que recupera a história de um dos mais importantes postos baleeiros

fonte: Susana GArcia

De cara lavada A Casa dos Botes está agora aberta ao público e tem patente uma exposição sobre a baleação e baleeiros do Faial

dos Açores, que funcionou de 1884 até 1957, quando se iniciaram as erupções do Vulcão dos Capelinhos. Distribuida por vários painéis, a exposiçao permanente é o resultado de uma investigação exaustiva sobre a história do

posto baleeiro, proporcionando uma viagem sobre o periodo da caça à baleia no Capelo. Ao centro da casa, encontra-se um antigo bote baleeiro, aparelhado com toda a palamenta, como se estivesse pronto para mais uma arreada.

fonte:Susana Garcia

Painel A artista Fátima Madruga retratou neste painel tradições ligadas ao Porto do comprido nos tempos idos da baleação, desde o vulcão dos capelinhos, ao culto ao divino espirito santo, às rodas de chamarrita

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É, indubitavelmente, uma homenagem a todos os baleeiros e respectivas famílias que, no século passado, se mudavam de armas e bagagens para o Comprido para ir à baleia. Conforme foi referido por Joana Rosa, da Junta de Freguesia do Capelo, “o maior tributo que lhes podemos fazer reside na recuperação do património, na evocação da memória e na sua assimilação pelas gerações vindouras”. Importa salientar que a recém-recuperada Casa dos Botes integrava o núcleo habitacional do Capelo e era propriedade das armações baleeiras de São Roque do Pico, após a erupção do vulcão em 1957 ficou submersa e sob as cinzas repousou durante mais de cinquenta anos. Anteriormente já tinha sido levada a cabo uma tentativa de recuperação do edificio, desta feita por um privado, mas sem sucesso. O consequente abandono da Casa, com significativo impacto visual numa zona que é de forte interesse turístico integra20


Tribuna das Ilhas da no Parque Natural do Faial, motivou à aquisição do imóvel e anexos pela Secretaria Regional do Ambiente e do Mar (SRAM). Importa registar ainda que a Casa dos Botes já esta registada no Inventário do Património Baleeiro do Faial (ver reportagem na página 11) e estava indicada como um dos imóveis de prioritária recuperação no projecto “Recuperação da Memória Baleeira”. Entretanto a recuperação só avança quando a Junta de Freguesia propõe à SRAM a cedência da mesma à autarquia e apresenta um projecto no âmbito do Prorural, coordenado no Faial pela Adeliaçor. Esses tempos idos estão também agora imortalizados num painel de azulejos pintado por Fátima Madruga onde elementos tão nossos como o Vulcão dos Capelinhos, o Espírito Santo, a chamarrita, o baleeiro preocupado ou a esposa em aflição, marcam presença. Foi com as palavras do Padre António Vieira “para o vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras” que Paula Rodas, presidente da Junta de Freguesia do Capelo começou a sua intervenção. Para a presidente da junta, “A Casa dos Botes do Capelo é fruto da acção de todos os que nela trabalharam e com muita garra elevaram o nome deste local e dos homens que no passado por aqui fizeram história, é desta forma que homenagemos todos os antigos baleeiros que por aqui passaram” e rematou dizendo que “Hoje, finalmente o Porto do Comprido tem a sua merecida homenagem”. A cerimónia ficou igualmente marcada por uma singela homenagem que a Junta de Freguesia prestou a João Pedro da Terra Garcia, “um homem que não é baleeiro mas que age como ele e capaz de conhecer uma boa oportunidade para o desenvolvimento da sua

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terra muito antes dos outros a perceberem”.

Defender a história e a cultura José Leonardo Silva, vice-presidente da Câmara Municipal da Horta e presidente da Adeliaçor, frisou na ocasião que “no Faial estão a dar-se passos para promover a nossa ilha. Estamos, com esta cerimónia, a defender a nossa história e a nossa cultura requalificando o património que temos e potenciando o turismo. É nestas vertentes de desenvolvimento que temos que apostar no futuro”. Presente nesta cerimónia esteve ainda Álamo Meneses, Secretário Regional do Ambiente e do Mar que considera que com esta obra se criaram “dois novos pontos de interesse, a Casa dos Botes com a sua exposição permanente e o Circuito dos Baleiros. Esta intervenção também proporcionou uma melhoria “muito substancial da situação paisagística” daquele local, já que aquilo que ali estava anteriormente era algo que “retirava dignidade àquele conjunto e contribuía para criar uma situação menos adequada”.

fonte: OMA

Museu A casa do bote é um espaço museológico e tem um bote cedido pela reis & martins

Em declarações à margem da cerimónia. Álamo Meneses explicou que esta recuperação está inserida no âmbito da infraestruturação dos Parques

Naturais de Ilha. O governante destacou ainda o trabalho que foi feito pela junta de freguesia, acrescentando que “o trabalho que é efectuado

fonte: Susana garcia

curiosos no dia da inauguração as lágrimas raiaram os olhos de todos aqueles que têm a baleação no coração 21

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pelas autarquias é um trabalho que às vezes passa despercebido mas, apesar de não se tratarem de obras de milhões, são obras que respondem a necessidades e vontades das pessoas e que criam lugares que são, quer postos de atracção a quem vive nestas ilhas, quer para quem nos visita”. Meneses defende que “é preciso não esquecer que o turismo cada vez mais se faz no contacto com as pessoas, vivências e natureza, pelo que temos que criar lugares para que possamos usufruir do que de melhor temos”. Referindo-se à obra de recuperação da Casa do Bote, Álamo Menezes disse que “foram criadas mais condições e mais atracções para que se visite esta zona da ilha. É mais um espaço que fica à disposição dos faialenses”. A anteceder a cerimónia de sábado, o OMA no âmbito do projecto “Ciência do Bar” exibiu o filme “Os homens da Baleia” de mário Ruspoli” que descreve a actividade baleeira no Porto do Comprido durante o verão de 1956. Este filme foi visionado por uma centena de

fonte: José Manuel garcia

arreada A quantidade de gente em cima do cais fazia lembrar uma verdadeira arreada em dia de caça

pessoas que foram ao Centro de Interpretação dos Capelinhos prestar a sua homenagem aos baleeiros.

CIRCUITO DOS BALEEIROS No mesmo dia em que foi inaugurada a Casa dos Botes, o Parque Natural do Faial inaugurou um novo circuito pedestre que integra o Trilho dos Dez Vulcões. Este circuito retrata um passado cheio de significado e impor-

tância para as gentes destas ilhas. “Uma homenagem aos destemidos pescadores da baleia que na altura desafiavam as perspecticas numa atitude que ia para além da puramente comercial. De cada vez que partiam para a faina, a população e famílias amontoavam-se em cima do cais para um adeus que poderia muito bem ser o último. As verdadeiras lutas pela sobrevivência que se seguiam entre estes gigantes e os frágeis baleeiros nos seus barcos

fonte:José Manuel Garcia

regata O bote do salão, com o oficial pedro garcia, foi o vencedor desta regata comemorativa

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de boca aberta deram origem a lendas perpetuadas até aos nossos dias, fruto da bravura destes homens” - pode ler-se na brochura que apresenta o circuito. que tem 3.9km de extensão, é de baixa dificuldade e pode durar aproximadamente duas horas a percorrer. Ao longo deste percurso sente-se o significado da alma baleeira e da forte ligação que existia entre estes homens, o mar e os seus “leviathans”. De acordo com João Melo, “este circuito vem colmatar uma lacuna que sentiamos existir e que dizia respeito à valorização das pessoas, da sua história e do seu património. É um circuito que promove uma aproximação à história das nossas gentes.” O circuito contempla pontos chave da freguesia do Capelo, sendo que o seu início é mesmo ao pé do Centro de Interpretação, passando pela vigia das Concheiras e do Costado da Nau. Este circuito pode ser feito com guia que ajudará na interpretação do mesmo, bem como dará informação sobre a fauna e flora que os visitantes podem encontrar ao longo dos quase 4 quilómetros. Todas as informações ao longo do circuito estão em braille. A título de curiosidade, quem faz este circuito passa por uma eira que foi recuperada pelo 22


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Parque Natural em colaboração com a Junta de Freguesia. As eiras antigamente desempenhavam um papel importante quer para a agricultura, quer para a vida social das nossas gentes. Eram o local que as pessoas usavam para malhar os cereais e para as festas e missas. Outro dos locais emblemáticos que se visita ao fazer este percurso é a Vigia das Concheiras que teve um papel fundamental na detecção de cetáceos que passavam por esta zona da ilha. A sua vasta abrangência permitia ver as baleias até à Praia do Norte. A Vigia do Costado da Nau, sobranceira ao Farol dos Capelinhos, é outro dos ícones a visitar. Apesar de ter sido destruída com a erupção, permite ter uma visão esplêndida de toda a zona do também recentemente reconstruído Farol, do Porto do Comprido e da Casa dos Botes. Este foi ainda o primeiro sítio onde se viu o início da erupção do Capelinhos. Recomendamos vivamente que façam este percurso, porque, apesar de ser bastante simples, para os que gostam de aventura, conta uma história que é de todos nós.

a oeste da ilha tem uma qualidade “excelente”. Este circuito visa, conforme já referimos, integrar aspectos do nosso património imóvel no Parque Natural do Faial. De acordo com Álamo Menezes, “o PNF, neste momento, já integrou as partes mais relevantes do ponto de vista da natureza. Temos também projectos no sentido de criar uma zona de maior atractividade em torno do Morro de Castelo Branco, que é outro dos aspectos que marcam a paisagem e está numa fase bastante avançada a conclusão das obras do Monte da Guia e que vão permitir também fazer naquela zona, e com a adega que pertençeu aos Dabney, com o aquário virtual e toda a estrutura de visitação que pode ser criada em torno da própria praia e integrando o litoral da cidade da Horta. Isso permite criar ali uma zona de excelência.” O secretário referiu-se ainda à aquisição e valorização da zona dos Charcos de Pedro Miguel, “este segundo polo do Jardim Botânico do Faial permite uma visita à natureza de uma forma muito menos estruturada, mais selvagem, o que é extremamente importante”.

fonte: Susana Garcia

Apresentação João Melo apresentou o circuito aos presentes

fonte: Susana GArcia

Eira de grande importância para os nossos antepassados

Estrutura de excelência Para o Secretário Regional do Ambiente e do Mar que acompanhou os jornalistas no passeio inaugural do circuito dos Capelinhos, este é mais um complemento à oferta turistica que o Parque Natural do Faial tem. Considera este responsável que o Faial, pela sua conjugação com o Triângulo, “congrega uma oferta muito mais priveligiada em relação a outras ilhas, para além de congregar uma estrutura que é, nada mais nada menos, do que de excelência”. Para o governante, os trilhos que estão criados no Faial e, sobretudo, a zona de visitação

PNF estende-se à cidade fonte: Susana Garcia

Vigia das Concheiras A informação toda em braille

Desengane-se quem possa pensar que o PNF se restringe às zonas rurais. Isso mesmo foi firmado por Álamo Menezes que acrescentou que “a criação de um circuito que envolva um circuito pedonal urbano que envolva diversos edifícios e estruturas marcantes da cidade da Horta é outra ideia que está em desenvolvimento e que trará à Horta uma outra forma de se poder visitar o seu espaço urbano”. z Maria José Silva

fonte: Susana GArcia

na vigia A partir das concheiras vemos tudo o que a vista alcança 23

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Ana Marisa Goulart

Do Skiff aos botes baleeiros

Ana Marisa Goulart é atleta do Clube Naval da Horta e, desde há uns anos a esta parte abraçou a modalidade de remo em botes baleeiros. Já pertenceu à Direcção do único Clube Náutico da Ilha e viveu por dentro a logística da modalidade. Foi um dos elementos que compôs a companha que do Faial rumou a New Bedford para participar na V Regata Internacional de Botes Baleeiros. Participou ainda nas 3 últimas regatas internacionais, na IV, V e VI Regatas Internacionais de Botes Baleeiros, duas nos Açores e uma nos EUA. Sendo essencialmente uma basquetebolista, porque resolveu praticar remo? Paralelamente à prática do basquetebol, eu iniciei a minha actividade como remadora em Skiff no CNH, por volta de 1990. Na altura havia um grupo muito unido que praticava a modalidade, tendo proporcionado o desenvolvimento do remo no Faial. O CNH chegou a ter bastantes praticantes de remo federados e fazia-se representar em provas nacionais. Representei o clube em provas nacionais durante cerca de 4 anos, tendo participado em estágios da selecção nacional. Mais tarde, com o desenvolvimento da tradição dos botes baleeiros, fizemos uma equipa feminina de botes que remava no bote Claudina, o único que havia no Faial. Nessa altura participávamos nas provas da Semana do Mar e da Semana dos Baleeiros nas Lajes do Pico. Ao longo de todos estes anos, temos mantido a equipa com gosto pela prática da modalidade e pelo convívio que se proporciona.

fonte: Ana Marisa GOulart

Companha Feminina Ana Marisa GOulart assumindo o papel de proa no Claudina

O que a fascina quando está dentro do bote baleeiro? O remo em bote baleeiro é bastante exigente, é necessário muita força e coordenação. A ligação ao mar, o gosto pelo remo e o convívio que se proporciona são muito gratificantes. O bote baleeiro é um barco muito bonito. Qual a importância de se recuperar esta tradição? Felizmente tem havido a preocupação da recuperação da informação sobre a cultura baleeira na Região. Faz parte do nosso passado, da nossa ligação aos EUA e do nosso desenvolvimento. É importante a nível cultural desenvolver esforços para que se conheça os pormenores e se possa transmitir esta tradição, aproveitando o conhecimento e a experiência dos baleeiros. A parte desportiva é uma forma de manter os botes baleeiros activos e de promover a ligação a esta tradição. Como foi a participação em New Bedford? A participação da comitiva da

Ilha do Faial a New Bedford na V Regata Internacional de Botes Baleeiros, que se realizou de 6 a 15 de Setembro, foi uma experiência fantástica quer ao nível pessoal quer desportivo. A organização da V Regata Internacional de Botes Baleeiros pela responsabilidade da Azorean Maritime Heritage Society foi um enorme sucesso. A realização da regata de vela feminina modificada foi uma mais valia para a Regata Internacional de Botes Baleeiros e estou certa que será um motor de desenvolvimento da vela feminina em Botes Baleeiros. A V Regata Internacional de Botes Baleeiros foi mais do que uma competição desportiva, foi cultura e convivo. Os vários eventos sociais que foram organizados no âmbito desta regata, permitiram a união e o convívio entre os participantes do Faial, Pico e EUA, bem como o convívio entre a comunidade de emigrantes açorianos e portugueses em geral que vivem na zona de New Bedford e arredores que procuram contactar com os seus conterrâneos. A indústria da baleia nos Açores está directamente relacio-

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nada com a indústria baleeira em New Bedford, tendo sido trazida para a Região pelos americanos. Esta regata tem o objectivo de reforçar estas duas ligações e permite desenvolver o conhecimento da cultura baleeira. Sente que neste momento os botes baleeiros têm condições para se fixarem no panorama desportivo e cultural local e regional? Sim, sem dúvida. A nível cultural é muito importante, proporciona o interesse pela cultura baleeira e também é uma forma de promover esta tradição junto da população local e dos turistas. Ainda, permite uma forte ligação aos EUA, à região de New Bedford, promovendo o intercâmbio entre as duas regiões. A nível desportivo, apesar de serem barcos especiais, existem condições para se manter a competição local e regional de vela e remo, até mesmo internacional, sendo um forte elo de ligação à tradição baleeira. z Maria José Silva 24


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Victor Mota trata os botes “como uma pessoa de família” Victor Mota nasceu há 51 anos na freguesia do Capelo. Pescador de profissão, dedica muito do seu tempo à reparação dos botes baleeiros. A paixão que Victor nutre por esta arte nasceu há 12 anos, quando integrou a Secção de Botes Baleeiros do Clube Naval da Horta, altura em que aconteceu o primeiro restauro destes botes na ilha. Foi nessa altura também que percebeu a sua paixão por esta arte, paixão essa que mantém até hoje e que muitas vezes lhe rouba tempo da sua própria vida e do seu ganha-pão. Auto-didacta no que às reparações de botes baleeiros diz respeito, afirma com orgulho que “não recebe qualquer remuneração”. Os Açores continuam a ser um dos locais do mundo onde a tradição e cultura baleeira é preservada. Embora já não se pratique a caça à baleia, grande parte do património baleeiro tem sido mantido e recuperado não só para fins culturais, mas também desportivos, pois as regatas de botes baleeiros são já uma forte tradição. Foi precisamente para falar dos botes baleeiros usados nas competições desportivas que fomos ao encontro de Victor Mota, que desde 2005 faz a reparação das embarcações utilizadas pelo Clube Naval da Horta. Victor Mota disse que aprendeu “a reparar os botes sozinho”, apenas recorrendo à ajuda de João Tavares, das Ribeiras do Pico - construtor destas embarcações - quando precisa de “fazer alguma peça de raiz ou de algum material”. Fomos encontrá-lo precisamente a fazer uma pequena reparação no bote baleeiro Senhora da Guia, da Feteira. Debruçado sobre ele, diz ter estado a “amanhar o olhal do mastro que se tinha desprendido”. Pescador de profissão, afirma que gosta de fazer “um pouco de tudo” e foi desta forma que percebeu que podia reparar os botes baleeiros. A sua relação com os botes baleeiros, que

fonte: Susana Garcia

Vitor Mota Este pescador tem os botes como seus filhos... são a sua menina de ouro”

considera “como uma pessoa de família”, começa por volta do ano 2001, mas foi em 2005, quando veio para o Clube Naval da Horta (CNH), que fez os primeiros restauros de botes baleeiros. “O meu gosto começou quando o CNH possuía dois botes e criou a secção de botes baleeiros. Depois, a freguesia do Capelo, de onde sou natural, por iniciativa do então presidente da Junta João Garcia, recuperou um bote, o São José. Eu comecei a trabalhar nesse bote. Ajudei a ir buscá-lo às Ribeiras do Pico e a trazê-lo para cá e tomei gosto por isto. Vi que andar nos botes me fazia sentir uma coisa fora do normal. Andar no mar a bordo de um bote baleeiro é algo diferente. É um passeio bonito, numa embarcação bonita em toda a sua estrutura… Tomei gosto por isso e agora é difícil sair”, diz, com emoção. Mota não só faz as reparações necessárias como também integra a tripulação de um bote baleeiro como oficial. Apesar de ser descendente de baleeiros, navegar nestas embarcações foi uma novidade para Victor: “eu não tinha conhecimento do que era um bote baleeiro. Em-

bora os meus pais e os meus avós fossem baleeiros, naquela altura era criança não tinha muita comunicação com eles. Só quando vim para o CNH comecei a perceber que tinha gosto por andar nos botes e a partir do momento que comecei a andar houve certas necessidades de restauros que apareciam e eu ia fazendo”, afirma. “A minha vida é pescar. Não sou carpinteiro nem pedreiro mas gosto de fazer de tudo um pouco. E comecei a perceber que conseguia fazer a recuperação dos botes. Comecei por reparar pequenas peças” refere, entusiasmado. Em termos de material, o mestre afirma que “é um bocado complicado arranjar a madeira porque estes botes são feitos de forros de casquinho, muito fininhos, e a sua pregação é toda feita a cobre com anilhas”. “No mercado local não há nada disso, tem de vir tudo de fora”, diz. Neste momento, Victor é responsável pela manutenção de todos os botes baleeiros afectos ao CNH: “neste momento temos oito botes na secção do Faial. Eu sempre fiz parte desta secção e tomei sempre conta dos botes, com o Sr. Carlos Fontes,

que depois saiu e eu fiquei”, refere. “A manutenção e reparação dos botes estiveram sempre à minha responsabilidade. Mastros e qualquer peça que seja preciso substituir, sou eu que o faço. Faço pequenas reparações quando é preciso. Às vezes, numa navegação, parte-se um mastro, um bombo ou um pico, ou alguma tábua fica larga… Eu é que reparo”, afirma, com um brilho de orgulho nos olhos. Para Victor é preciso muito gosto e paciência no que às reparações diz respeito. Estas podem ser mais ou menos demoradas, consoante o trabalho que há a fazer: “se for, por exemplo, um mastro, não tem de tirar um dia de trabalho. Fazer um bombo também leva o seu tempo. São peças planadas e eu é que plano à mão, não pode ser com plainas eléctricas. São peças que demoram um bocadinho a fazer para serem perfeitas”, explica. Os botes baleeiros são a “menina dos olhos” de Victor, por isso é com muito carinho e gosto que trata deles. “Eu é que faço tudo numa embarcação desde a pintura à mais pequena coisa. Já cheguei a reparar velas, ca25

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bos… Faço de tudo um pouco”, diz, orgulhando-se de pela sua mão já terem passado os oito botes do CNH. Com o seu jeito simples, fala-nos do bote que tem agora em mãos: “é um bote que estava na Reis & Martins e que vai para um museu nos Capelinhos”, explica, referindo-se à Casa dos Botes, inaugurada na passada semana. “Pediram-me apoio para a sua recuperação e manutenção e lá fui eu ajudar a tirar o bote. Tenho estado a reparar nele, embora seja só uma pequena reparação e limpeza, ajustar umas peças que estavam descomandadas por dentro do bote e armá-lo no armazém,” explica. Para o mestre da reparação dos botes a iniciativa de restaurar estas embarcações e recuperar

a tradição baleeira para a vertente competitiva foi de louvar: “a frota baleeira acabou por volta de 1980 e morreu um bocadinho. Mais tarde começa-se a recuperação dos botes, que eu acho que foi uma coisa muito boa para a nossa ilha, uma vez que havia actividade baleeira cá e tínhamos muitos botes”, refere, lamentando que o armazém da Reis e Martins, nas Angústias, não tenha sido recuperado para guardar este espólio. “A recuperação dos botes foi uma coisa linda que se fez na ilha, para toda a população. Havia malta nova que não sabia o que era a baleia e mesmo para o turismo isto é uma atracção no Verão, principalmente na Semana do Mar. Temos os dias da semana ocupados com pessoal para andar nos botes, o tempo

às vezes é que não nos deixa sair”, conta. A sua paixão pelo restauro dos botes é algo a que se dedica nos tempos livres, como nos explica: “sou pescador, tenho o meu barco e é só nas horas extras que me dedico a esta arte mas mesmo assim às vezes perco dias do meu trabalho para me dedicar a isto devido ao gosto que tenho. Não ganho nenhuma remuneração por isto, faço por gosto”, refere. Apesar do seu entusiasmo em torno dos botes, Victor não esconde alguma tristeza em relação ao futuro: “vejo pouca gente interessada nesta arte. Ainda este ano andei um bocadinho fora disto mas mesmo assim é que tinha de vir fazer algumas coisas porque eles não tinham ninguém. Não é coisa de muita

especialidade mas não há ninguém para pegar nisto”, lamenta. No seu entender, “é uma pena daqui para lá deixar isto morrer”. “Estes botes estão um bocadinho cansados, já andam no mar há dez anos a bater e estão a ficar um bocadinho degradados”, alerta. “Temos um campeonato local de ilha e antes tínhamos um campeonato regional, por isso são botes que, de Maio até Setembro, andam quase todos os fins-de-semana em provas, com treinos duas e três vezes por semana. Portanto, são botes com muito desgaste tem de haver muita manutenção”, explica. z

Susana Garcia

César Matos

z César Matos é neto de baleeiro e desde 2005 que faz parte da companha dos botes da sua freguesia, o Capelo. Esteve envolvido no processo de recuperação do bote Capelinhos e e competiu, vezes sem conta no bote São José. Antes dos botes a sua experiência em vela e remo era nula, a verdade é que César Matos nunca tinha tido a oportunidade de andar à vela. “Foi nos botes que tive a primeira experiência. Não acho que seja difícil mas é preciso adquirir algumas noções e praticar. Depois de alguma experiencia até se torna fácil. Já ganhar regatas é mais difícil, tendo em conta no meu caso e de alguns colegas, que não tivemos escola de vela e que existe oficiais com formação experiência de vela.” Sobre o papel de oficial de bote diz que tem “a particularidade de termos em mãos e à nossa responsabilidade algo que faz parte da nossa tradição e património. Temos que ter noção da importância e do valor que o Bote Baleeiro representa na nossa cultura.”

Manter a tradição dos nossos antepassados

fonte: Susana Garcia

Oficial Ainda na última regata César Matos foi o oficial de serviço no Capelinhos

Instado a pronunciar-se sobre o que mais o fascina na modalidade, diz que “fascina-me o facto de estarmos a velejar numa embarcação que à alguns anos atrás andava na caça à baleia. É muito bom que os botes possam continuar a ser utilizados embora que agora na prática de vela e remo. Agrada-me tam-

bém o convívio que se gera em torno das regatas.” Sobre a importancia que estas regatas assumem, César Matos diz que, “é muito importante porque os botes baleeiros, como já disse, fazem parte da nossa tradição e património. É a maneira que temos de mostrá-lo tanto a nível turístico como

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local. Devemos também ter em conta a quantidade de pessoas envolvidas nestas regatas. Por exemplo, numa regata com 8 botes participam 56 tripulantes mais o pessoal das lanchas e organização. Isto movimenta um número bastante elevado de pessoas.” z Maria José Silva 26


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Regata Internacional de Botes Baleeiros z A Regata Internacional de Botes Baleeiros, é uma prova que ultrapassa os meandros da competição e que permite estreitar laços de amizade entra duas cidades irmãs (Horta e New Bedford), bem como da sua comunidade emigrante radicada naquela paragem. João Carlos Pinheiro é representante da Azorean Maritime Heritage Society e fundador da Regata Internacional de Botes Baleeiros que se realiza em New Bedford e nos Açores. Possui esta regata a capacidade de juntar nas mesmas águas, gentes com antepassados na baleação açoriana. A Regata Internacional de Botes Baleeiros, é uma prova que ul-

trapassa os meandros da competição e que permite estreitar laços de amizade entra duas cidades irmãs (Horta e New Bedford), bem como da sua comunidade emigrante radicada naquela paragem. É actualmente um dos marcos mais significativos da geminação existente entre as cidades da Horta e New Bedford, e na qual a autarquia faialense tem liderado o processo desde a sua criação. Tribuna das Ilhas conversou com João Carlos Pinheiro que nos contou tudo sobre esta regata que promove a geminação destas cidades irmanadas. Numa viagem ao passado João Carlos Pinheiro revelou-nos que

esta é uma ideia que surgiu há imensos anos enquanto membro da Azorean Maritime Heritage Society. “Pensei, se vão aos Estados Unidos da América bandas filarmónicas, grupos folclóricos, equipas de futebol, porque não irem companhas de botes baleeiros, numa tentativa de dinamizar e mostrar a cultura da baleação?” A regata é uma competição, mas há toda uma história e uma pedagogia associada a este fenómeno. São várias as instituições quer americanas quer açorianas que estão envolvidas nesta Regata e que tornam este sonho possível. Nesta edição, está prevista a participação de uma tripulação

masculina e feminina do Faial, e uma congénere da ilha do Pico, sendo a regata disputada nas modalidades de vela e remo. Cerca de 40 pessoas vão até aos EUA competir em remo e vela. No próximo mês de Junho estes botes vão participar numa regata no Charles River alusiva ao Dia de Portugal. Esta regata realiza-se um ano em New Bedford, outro na Horta e tem um de interregno e assim sucessivamente. Para além dos apoios das Câmaras Municipais envolvidas, esta regata só é possível com algumas iniciativas da Azorean Maritime Heritage Society que visam a obtenção de fundos. 27

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João Carlos Pinheiro explicou-nos que organizam provas de vinhos, torneios de golfe e existem muitas doações particulares. Uma regata deste género que promove a cultura açoriana e americana, que trás ao de cima tradições milenares deveria ser olhada com outros olhos e ter uma maior envolvência das entidades governamentais. Na regata serão utilizados três botes com os nomes “Faial”, “Pico” e “Bela Vista”, possuindo estes a mesma estrutura dos botes utilizados nos Açores, contendo a particularidade de terem sido construídos pelo reconhecido construtor açoriano João Tavares, numa iniciativa conjunta da Câmara Municipal da Horta e das câmaras municipais da ilha do Pico. “Apenas temos 3 botes em New Bedford e organizamos a regata de acordo com as regras das regatas de botes baleeiros, mas em sistema de torneio. Cada tripulação anda em cada um dos botes” – explica João Pinheiro, que prossegue dizendo que “queremos promover a cultura marítima e baleeira açoriana não só no mar mas também nas suas outras vertentes, e quando digo isto, refiro-me por exemplo, à construção dos botes. Estes botes foram construídos dentro de um armazém mas sempre aberto ao público em que as pessoas viam como as coisas eram feitas.” Sobre todo este processo, João Pinheiro diz-nos que “as pessoas mostraram-se muito receptivas a todo este fenómeno, mas, curiosamente foram os americanos que mais nos procuraram para ver o que se estava a passar, muito relacionado, claro está, com o facto de New Bedford ser considerada a capital da baleação no mundo. Os emigrantes já começam a aderir mas, atendendo a que naquela zona a maioria são emigrantes micaelenses, a tradição baleeira não lhes é tão intrínseca.” O “Bela Vista” tem uma particularidade que importa reforçar. Foi um bote construído no Faial, nos

Fonte: Museu de New Bedford

New Bedford A regata disputa-se nas modalidades de vela e remo

antigos armazéns da Faialcol. Este bote foi mandado construir por Daniel Ton e teve a curiosidade de trazer ao Faial alunos de escolas americanas para acompanhar a sua construção durante um ano. Isto no inicio da década de 90. “Quando o “Bela Vista” chegou aos EUA a nossa vontade de trazer esta tradição ao de cima falou mais alto e decidimos avançar” – remata. Que impacto tem a baleação ainda hoje em New Bedford? O impacto da Baleação em New Bedford é muito grande. A cidade é chamada “whaling city” e tem o maior museu do mundo alusivo à baleação. O New Bedford Whaling Museum é a maior atracção turística da cidade... regularmente lá realizam-se seminários, filmes, schrimsaw, simpósios, e muito mais. É neste museu que fica a ala dedicada aos açorianos, a “The Azorean Whaleman Galeria” em memória dos bravos baleeiros açorianos. No mesmo edificio encontra-se a “Casa dos Botes” onde estão três autênticos botes Baleeiros Açorianos e que participam nas regatas.

O que mudou desde que se faz a regata internacional? A regata internacional veio dar a conhecer à comunidade americana o valor da nossa história marítima e, ao mesmo tempo,

fazer uma divulgação turística gratuita dos Acores. Muitas são as pessoas que têm visitado o Faial devido à Regata Internacional. Por cá, desde que existe a regata as pessoas, normente os portugueses radicados cá, pro-

A Regata Por tudo o que aqui foi relatado, são evidentes os laços que unem as cidades irmãs da Horta e New Bedford. Esta relação foi reforçada em pleno século XXI, com o nascimento da Regata Internacional de Botes Baleeiros, evento que ultrapassa claramente a dimensão desportiva, assumindo um cariz social, cultural e até turístico. De facto, esta regata ganhou forma no Porto do Comprido, freguesia do Capelo da ilha do Faial, por altura das comemorações dos 400 anos da freguesia. A primeira edição do evento realizou-se em 2004, nos Estados Unidos da América, numa organização do Azorean Maritime Heritage, que reuniu tripulações Norte Americanas, do Pico e do Faial. Importa relevar que em torno desta edição e das seguintes, verificou-se o significativo envolvimento dos municípios do Pico e do Faial. Esta regata disputada na modalidade de vela e remo presta também uma homenagem a dois antigos baleeiros do Faial e do Pico, nomeadamente a José Soares (Pico) - Taça José Soares - e a José Cardoso Pinheiro (Faial) - Taça José Cardoso Pinheiro. A VIII edição da Regata Internacional de Botes Baleeiros realizar-se-á em 2013 nos Estados Unidos da América.

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Tribuna das Ilhas curam visitar o Museu. Tornou-se um ex-libris de New Bedford. O que gostava de ver acontecer? Gostava que esta regata continuasse por muitos anos pois é benéfica para os dois lados do Atlântico. Julgo que se deve alargar e trazer também música dos Açores a New Bedford, o que já aconteceu um ano com a participação do quarteto de sopros da Praia do Almoxarife. Gostava ainda, como fundador desta regata, que ela continuasse por muitos anos. É preciso não deixar morrer esta tradição. Outro dos objectivos é que consigamos aumentar o número de botes e já estão a ser ultimados os contactos nesse sentido.

NOTAS: New Bedford está localizada na região sueste da Nova Inglaterra, na costa da belíssima “Buzzards Bay”. New Bedford é um antigo porto baleeiro que continua a subsistir a partir dos produtos provenientes do mar. As tripulações dos famosos navios baleeiros de New Bedford gritavam estridentemente a seguinte expressão “À Volta do Mundo” sempre e quando embarcavam em viagens que os levavam a todos os cantos do mundo à procura de óleo de baleia. Hoje em dia, New Bedford é uma cidade autenticamente identificada com o seu porto de mar, possuidora de uma grande frota piscatória e uma zona costeira muito activa. As tradições marítimas dos seus antigos habitantes ainda se encontram bem presentes. O Museu da Baleia de New Bedford tem em exposição a maior colecção de artefactos baleeiros existentes no mundo, incluindo um modelo de um navio com um porte tão grande, que permite aos visitantes subirem a bordo do mesmo! O Parque preserva e ilustra o papel desta cidade como a “Capital Baleeira do Mundo” da

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América do século dezanove. A área histórica da “County Street” é caracterizada pelas suas mansões construídas na época baleeira que o escritor “Melville” imaginou terem sido “arpoadas e arrastadas do fundo do mar.” Além de toda a riqueza cultural anteriormente descrita, New Bedford também possui pequenas lojas e galerias de arte. Muitos restaurantes locais, oferecem pratos de mariscos característicos de New Bedford, bem como todo o tipo de culinária tipicamente portuguesa. Durante a temporada de verão, acontecem em New Bedford muitas festas ao ar livre, destacando-se o festival “Summerfest” e a “Festa do Santíssimo Sacramento” que é a maior celebração religiosa e cultural portuguesa que se realiza nos Estados Unidos. z

Maria José Silva

Exposição Permanente

fonte: Tomás duarte

primeira exposição temporária da galeria do baleeiro açoriano:” A baleação no Faial, fase industrial 1940-1984”, realizada pelo oma e reis & martins, lda e que esteve patente ao público entre setembro de 2010 e maio de 2011

Em 2010, coincidindo com a V Regata Internacional de Botes Baleeiros realizada em New Bedford, o New Bedford Whaling Museum (NBWM), inaugurou a Galeria do Baleeiro Açoriano, única exposição permanente nos EUA dedicada ao património marítimo português, e neste caso, à baleação. Esta iniciativa foi possível graças a um financiamento concedido por Jaime Gaima, enquando Ministro dos Negócios Estrangeiros. A exposição apresenta os aspectos mais importantes da cultura açoriana, focando-se essencialmente na presença dos açorianos na baleação americana e na comunidade portuguesa em New Bedford, no entanto, o museu prepara-se para exibir uma nova ala dedicada exclusivamente à baleação açoriana e todos os elementos que a distinguem.

Fonte: Museu de New Bedford

Além-Mar A ala do baleeiro açoriano em new bedord 29

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Observação de Cetáceos – A nova baleação

Baleeiros com máquinas fotográficas em vez de arpões “(…) Nas Lajes,(…) saía o enterro dum baleeiro morto no mar, quando do Alto da Forca anunciaram o bicho. Ia tudo compungido – ia a mulher compungida e os pescadores compungidos, o padre, o sacrista, a cruz e a caldeira – iam aqueles homens rudes e tisnados em passo de caso grave e fatos de ver a Deus – e logo a marcha compassada parou instantaneamente e mudaram instantaneamente de atitude: ficou só o padre com o latim engasgado e o caixão no meio da rua, e os outros, enrodilhados, levaram o sacristão, de abalada, até à praia. Baleia! Baleia!… Deixam um casamento ou um enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a justiça, e correm desesperados a arriar a baleia. No Cais do Pico e nas Lajes ninguém se afasta da praia. Estão sempre à espera do sinal e com o ouvido à escuta, os homens nos campos, as mulheres nos casebres. E enquanto falam, comem ou trabalham, lá no fundo remói sempre a mesma preocupação. São tão apaixonados que até este cheiro horrível, que faz náuseas e que se entranha na comida e no fato, lhes cheira sempre bem” Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas y Esta descrição de um funeral interrompido pelo aparecimento de uma baleia mostra bem como, a partir do final do século XIX e durante várias décadas, a economia açoriana tinha como um dos seus principais pilares a indústria baleeira. Eram muitos os açorianos que viviam da caça à baleia, e diariamente arriscavam a vida para caçar cachalotes, gigantes dos mares que por vezes podiam ter 18 metros de comprimento. A caça à baleia pode ser vista à luz dos nossos tempos como uma prática bárbara, desumana até. No entanto, era o garante da subsistência de muitos açorianos, que ao sinal do vigia largavam tudo e corriam em busca do pão para a boca dos filhos. Tribuna das Ilhas conversou com Norberto Serpa, que há 17 anos fundou a empresa de whale watching Norberto Diver – a primeira a surgir no Faial -, sobre as vantagens e os desafios desta nova baleação.

Como é que decidiu dedicar-se ao whale watching? Antes de começar esta actividade, já trabalhava no Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, onde estou há mais de 30 anos. Quando se deixou a caça à baleia houve um período em que não havia nem caça nem whale watching. Nessa altura o IFAO e a Universidade dos Açores começaram a fazer um levantamento de todas as espécies de cetáceos que existiam na Região, em que quantidades e quais os sítios onde mais provavelmente podiam ser encontradas. Chegámos a muitas conclusões, uma delas a de que, tendo em conta a ocorrência destes animais nos nossos mares, poderia ser rentável partir para a observação de baleias e golfinhos. Não fomos pioneiros, porque já havia outros países no mundo onde isso se fazia. Aqui nos Açores começou-se nas Lajes do Pico, que é realmente um dos melhores sítios da Região para a

actividade, e posteriormente comecei a minha empresa. Quantas espécies podemos avistar na proximidade do Faial, e em que alturas do ano? Quando fizemos o levantamento de que há pouco falei chegámos à conclusão de que existiam mais espécies do que aquelas que os cientistas e os pescadores julgavam. Além disso, enquanto que na caça à baleia apenas eram apanhados cachalotes e um ou outro golfinho, no whale watching o interesse passa a ser visualizar todas as espécies de cetáceos possíveis. Esta “caça visual é mais abrangente”, portanto. Assim sendo, nas nossas águas podemos encontrar muitas espécies. Há cerca de 10 espécies que vemos muito frequentemente, como o golfinho comum, o roaz, a toninha brava, os moleiros, os cachalotes e algumas baleias de barbas, como a comum e a sardinheira. As baleias piloto e as falsas orcas também aparecem de vez

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em quando, e depois temos algumas que aparecem esporadicamente, como as baleias de bossas ou as orcas. Os cachalotes, por exemplo, podem viver todo o ano cá. Mas há registos de um mesmo animal ter sido fotografado em Cabo Verde, nos Açores e na Noruega. Os Açores são o melhor sítio do mundo para observação de cetáceos. Existem alguns que vivem sempre cá e outros que passam aqui nas suas migrações, uma vez que estamos no meio do Oceano Atlântico. Temos águas baixas, junto aos bancos, que alguns animais frequentam, e temos as águas altas, junto à costa, onde animais como os cachalotes e as baleias de bico se alimentam. Às vezes conseguimos ver mais de cinco espécies de baleias e golfinhos no mesmo dia. A prova de que estamos no melhor sítio do mundo para observação de cetáceos é o facto de podermos dizer aos nossos clientes que lhes devolvemos o dinheiro caso não avistemos 30


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baleias nem golfinhos. Se dizemos isso é porque temos a certeza de que vamos ver alguma coisa. No ano passado, em cerca 96% das viagens que fizemos vimos baleias, não falando nos golfinhos, que vemos sempre. As empresas de whale watching trabalham com as técnicas usadas antigamente pelos vigias da baleia. Porquê? Essa é a forma mais confortável de trabalhar, e é fundamental. Investir num vigia a sério é uma mais-valia para qualquer empresa de whale watching. Eu tenho um há 14 anos, que vigia para mim de São Mateus do Pico. Na altura da baleia o vigia nem era um baleeiro, era mesmo vigia, ou seja, desde pequeno que estava destinado a ser vigia e levava a sua vida toda a vigiar. Sabia o comportamento dos animais, o tempo que estavam à superfície, quando mergulhavam… É bom ter uma pessoa com essa sensibilidade. Este meu vigia era pescador, “tinha um bom olho” para o atum.

SKIPPER HÁ QUASE DUAS DÉCADAS QUE NORBERTO SE DEDICA ÀS ACTIVIDADES MARITIMO-TURISTICAS

Qual tem sido a evolução da procura pela observação de cetáceos? Há muita procura, principalmente nos meses de Julho, Agosto e Setembro. No Faial ainda estive alguns anos sozi-

nho mas quando começaram a surgir outras empresas foi necessário fazer coisas diferentes. Eu tenho o meu estilo próprio e nunca me preocupei em ser forte comercialmente. Não levo muitas pessoas para o mar, quando comparado com outras pessoas, mas

cachalote a cauda dos cachalotes é um dos principais alvos das máquinas fotográficas dos turistas que nos visitam

levo o tipo de clientes com que gosto de trabalhar. Aparecem-me frequentemente famílias ou organizações que querem algo diferente e requisitam um barco só para si durante um dia inteiro. Há quatro anos, por exemplo, levei mais de quatro mil pessoas. Os grupos grandes têm diminuído mas em contrapartida aparecem clientes interessados noutro tipo de produto, como requisitar um barco para estar um dia todo no mar, por exemplo. É possível estabelecer perfis de um clientes-tipo? Temos clientes que procuram fazer um programa de vida selvagem, pedem um barco só para si e passam todo o dia no mar. Tenho também muitos universitários, da área da biologia marinha e das ciências do mar, que fazem várias viagens durante alguns dias. E depois há os clientes que vêm fazer uma viagem, no âmbito da sua visita à ilha. 31

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Existe cooperação entre os empresários do whale watching e os cientistas que estudam os cetáceos dos Açores? Existe uma grande cooperação. Os cientistas têm os nossos vigias à sua disposição. Além disso nós colaboramos nos seus trabalhos. Por exemplo, se um cientista pretende colocar transmissores em algumas baleias de barbas, avisa as empresas. Estas, ao avistarem um animal dessa espécie, chamam os cientistas e, depois de fazerem a sua observação com os clientes, vão embora, deixando os cientistas à vontade para trabalhar.

do uns com os outros e ninguém tenta passar à frente de ninguém.

Que cuidados são tidos com a salvaguarda do bem-estar dos animais? As distâncias estão estabelecidas na lei. Mas mesmo que não estivessem, os animais é que decidem até que distância nos podemos aproximar. Existem alguns mais manhosos ou mais tímidos, que ficam sempre mais longe, e existem outros que já estão habituados a ver barcos e ficam próximos de nós. Além disso, há muita confiança entre os operadores que trabalham nestas ilhas e quando estamos próximos do mesmo animal acabamos por ficar juntos, vamos conversan-

Considera que, no que respeita à economia regional, o whale watching é, de alguma forma, o substituto natural da indústria da baleia, e vocês os novos baleeiros, com máquinas fotográficas em vez de arpões? Penso que teremos mais anos de whale watching do que houve de baleação. Nos aos 30, 40 e 50, a baleia era um pilar da economia da Região, e envolvia muitas pessoas, nas fábricas e no mar. Mas no whale watching também temos grande actividade à volta. A pessoa que vem cá uma sema-

No mar: : A aproximação aos grandes mamíferos marinhos deve ser feita em sintonia com a naturaza, isto é, sem grandes ruídos ou alaridos

na para ver baleias também está nos hotéis, nos restaurantes… Se cada empresa levar uma média de 3 mil pessoas por ano para o mar, veja a dimensão deste negócio… Na sua opinião, o que é que se deve fazer para garantir que a sustentabilidade económica desta actividade está em ponto de equilíbrio com a protecção dos animais? A protecção dos animais não tem nada a ver com a sustentabilidade económica. Quando começámos a fazer isto havia poucos estudos de como é que os animais se comportavam face à proximidade dos barcos. Diziam que ia

ser uma desgraça, que iam reagir mal e fugir, mas não aconteceu nada disso. Estamos a falar de mamíferos que são como os gatos, os cães ou outros animais. Os meus gatos da adega são ariscos porque quase nunca me vêem, mas a minha gata que anda à volta de casa não é nada arisca porque está sempre a ver gente. Um animal que está num sítio onde vê um barco duas vezes por ano é diferente dos animais que ficam por aqui à nossa volta algumas semanas. Nós sentimos que aquele animal sabe o que estamos a fazer. Quando comecei esta actividade era difícil aproximar-me dos animais. Agora é muito fácil. Eles não se importam com a nossa presença. Quanto à sustentabilidade económica, é importante não estragar a actividade, para que ela não perca a sua rentabilidade. Não é saudável as empresas regatearem demasiado os preços, tentando levar o mais barato possível para cativar mais pessoas. A dada altura, as empresas não podem pagar o suficiente para garantir funcionários de qualidade e a modernização da sua frota. O whale watching pode crescer, mas é importante que se mantenha a melhor qualidade possível, mesmo que isso signifique menos quantidade de turistas. z Marla Pinheiro

No mar: : A aproximação aos grandes mamíferos marinhos deve ser feita em sintonia com a naturaza, isto é, sem grandes ruídos ou alaridos

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Um século (e mais uns anos) de investigação em cetáceos nos Açores

y As primeiras menções a mamíferos marinhos nos Açores chegam-nos não pelas mãos de naturalistas, mas sim pelas de um historiador. Na sua obra “Saudades da Terra”, o sacerdote e historiador açoriano Gaspar Frutuoso (1522 – c. 1591) dá-nos conta da ocorrência nos Açores de focas-monge (Monachus monachus) nos séculos XV e XVI e também nos fala do aproveitamento da gordura de “baleias” encontradas mortas, para a produção de combustível, e dos seus ossos como material de construção. Embora extremamente relevantes, estas notas de Frutuoso não são mais do que um exíguo vislumbre do passado. São comparáveis a uma surpresa dentro de um ovo de Páscoa, que ficou escondida numa obra muito mais vasta, e foi oferecida por aquele excelente cronista aos investigadores vindouros. Após Frutuoso, a janela sobre o passado dos mamíferos marinhos nos Açores fecha-se e só volta a ser aberta na segunda metade do séc. XIX. Com o advento do Iluminismo no séc. XVIII, a ciência tornou-

-se mais sistematizada e a catalogação de todos os elementos naturais (incluindo os seres vivos, minerais, elementos químicos, fenómenos naturais, topografia, etc.) passou a estar na ordem do dia. Foram criadas as sociedades científicas que fomentaram a realização de grandes expedições de descoberta, algumas das quais tocaram os Açores. É nesse clima e como resultado de uma destas expedições que, em 1861, Henri Drouët publica a obra Eléments de la Faune Açoréene, que inclui a primeira listagem de cetáceos dos Açores. Nesta e em obras subsequentes além da presença dos cetáceos também é gritante a ausência da foca-monge, que havia entretanto desaparecido do arquipélago. Mas talvez sejam as expedições oceanográficas financiadas pelo Príncipe Alberto I do Mónaco, entre 1886 e 1913, que marquem o início do que realmente se pode chamar de investigação em cetáceos no arquipélago. Durante estas expedições o Príncipe e os seus naturalistas foram para além do

registo e listagem das espécies observadas, recolhendo dados e espécimes que permitiram realizar estudos sobre anatomia, parasitologia e fisiologia de cachalotes e de alguns delfinídeos, além de registar alguns aspectos da baleação costeira dos Açores. Este burburinho na viragem do século parecia augurar uma crescente actividade científica à volta dos cetáceos na Região, mas tal não aconteceu. Como se pode constatar na Figura 1, a actividade de investigação em cetáceos nos Açores foi muito reduzida até quase o fim do século. Uma parte desses trabalhos não passava de novos registos de espécies e listagens actualizadas, recorrendo a depoimentos, avistamentos e registos de arrojamentos. Outra parte estava intimamente ligada à baleação, versando particularmente sobre a biologia dos cachalotes e os aspectos operacionais da actividade. É também interessante constatar que a ténue investigação desenvolvida foi em grande parte liderada por instituições estrangeiras (embora nalguns

casos com participação de investigadores portugueses). Até o final da década de 1990 a maioria trabalhos até então publicados em revistas científicas era liderada por investigadores estrangeiros. Mas com o dealbar do séc. XXI houve uma alteração radical a este paradigma, sendo nítido um crescimento saudável da investigação, liderada sobretudo por investigadores nacionais. De facto, o número de publicações científicas nesta área de investigação nos últimos 12 anos ultrapassa o dos 100 anos anteriores. Este crescimento súbito da produção científica tem a sua génese numa alteração ao paradigma da gestão ambiental e à entrada de Portugal na União Europeia (UE). Nas últimas duas décadas reconheceu-se que a gestão do meio marinho deve ser conduzida de uma forma integrada e ter uma abordagem focada nos ecossistemas em detrimento da abordagem clássica (e mais simplista) focada em espécies ou ameaças. Esta abordagem ecossistémica está reflectida na Directiva33

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-Quadro “Estratégia Marinha” e nas Directivas “Aves” e “Habitats” da UE. Um dos pilares desta estratégia assenta na criação de uma rede de Áreas Marinhas Protegidas, representativa da diversidade biológica e ecológica dos ecossistemas marinhos. No entanto a aplicação desta nova abordagem relativamente aos cetáceos nos Açores colidiu com mais de 100 anos de estagnação, tornando-se premente adquirir conhecimento científico sobre estes animais e a sua relação com os ecossistemas marinhos regionais. Foi assim que uma nova geração de investigadores arregaçou as mangas e deu início a uma revolução na investigação de cetáceos na Região, com o apoio de colegas mais experientes e colaborando com parceiros internacionais. Lançou-se mão a diversas técnicas de investigação, desde as mais simples que só dependem de um gravador, lápis e papel até a técnicas inovadoras que recorrem às mais recentes tecnologias aero-espaciais e computacionais. Testou-se novas técnicas e novos equipamentos, alguns com mais sucesso do que outros. A nível nacional, os investigadores dos Açores foram os primeiros, e ainda são únicos, a utilizar telemetria por

satélite no estudo de cetáceos. Cometeram-se erros e somaram-se sucessos. Desesperou-se e exultou-se. Em suma, agarrou-se o destino da investigação de cetáceos na Região, sem medo de errar, para poder evoluir. Grande parte deste trabalho só foi possível através de financiamentos directo ou indirecto da UE, mas não menos importante foi (e é) uma grande dose de dedicação e “carolice” de estudantes e eternos bolseiros de investigação, que hipotecam a sua estabilidade financeira

futura em prol de uma paixão quase cega pela investigação. A produção científica crescente demonstra que este esforço não tem sido em vão e atesta a competência dos investigadores nacionais. À volta desta produção científica vai sendo construído um corpo de conhecimento indispensável à criação de políticas de gestão, que é a face menos visível mas não menos relevante do trabalho. Se é importante olhar para o conhecimento conquistado nos últimos anos, ainda o mais é reconhecer a nossa muito mais

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vasta ignorância. Não se compensam décadas de inércia em poucos anos de actividade, mesmo que intensa. Por outro lado, as alterações ambientais cada vez mais aceleradas e dramáticas acentuam a nossa necessidade compreender em profundidade o funcionamento dos ecossistemas. Sem manter um programa consistente de investigação e criar mais e melhor conhecimento, será impossível mantermo-nos a par das mudanças e dar respostas úteis à gestão dos recursos. Para uma região como os Açores, que tem no seu património natural terrestre e marinho um dos principais pilares de desenvolvimento sócio-económico, descurar este aspecto seria catastrófico. Mas a investigação em cetáceos que se faz nos Açores actualmente já não tem relevância só a nível regional ou mesmo nacional. A Região possui uma diversidade de cetáceos e acesso aos animais igualáveis em poucos lugares do Mundo. O mesmo trabalho que noutros locais implica deslocações de centenas de quilómetros e utilização de dispendiosas embarcações de investigação, pode ser feito nos Açores muito mais facilmente e com uma

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Tribuna das Ilhas redução substancial dos custos. Portanto, no que se refere à investigação em cetáceos, os Açores constituem um laboratório único e invejado. Aqui podem ser recolhidos dados, criados modelos e testadas teorias, como em poucos outros sítios do mundo. Com a recente explosão de produção científica sobre a investigação feita nos Açores, este facto não está a passar despercebido no resto do Mundo. Podemos utilizar este interesse a nosso favor, e vir a dar cartas na investigação em cetáceos a nível mundial, ou podemos ser colonizados. Os investigadores que iniciaram a revolução na investigação em cetáceos nos Açores estão hoje um pouco mais velhos e muito mais cansados. Ganharam experiência e querem passá-la. Urge criar condições para engajar novos investigadores, que possam aproveitar o momentum criado e construir sobre ele. Infelizmente parece que a maré corre para outro lado. As actuais condições económicas que o país atravessa estão a ter impactos visíveis na estratégia de investigação científica nacional. Antevê-se cortes drásticos ao financiamento, como os já anunciados cortes às bolsas de investigação que diminuirão as oportunidades de formação no estrangeiro aos investigadores nacionais. Se seguirmos este caminho, que aposta na mediocridade ao invés da excelência, estaremos a hipotecar o desenvolvimento científico e tecnológico e isso terá efeitos deletérios na tão apregoada competitividade nacional. Tal poderá vir a acontecer com a investigação de cetáceos nos Açores. Se não for reconhecida a mais-valia económica e estratégica que os Açores apresentam nesta área, corremos o perigo de que a investigação em cetáceos na Região volte a ser liderada por instituições estrangeiras, respondendo aos interesses dos seus países de origem e não aos da Região e de

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Figura 1: Publicações com informação sobre mamíferos marinhos dos Açores em revistas científicas (não inclui relatórios técnicos, livros, teses e artigos generalistas).

Figura 2: Origem da instituição do autor principal das publicações científicas com informação sobre mamíferos marinhos dos Açores

Portugal. Se não dermos condições aos nossos jovens investigadores para obter formação adequada e não os incentivarmos a ficar por cá para liderar os futuros projectos de investigação, não faltarão investigadores de outras nacionalidades

ansiosos por tomar o seu lugar. A investigação em cetáceos continuará a se desenvolver nos Açores, não haja dúvidas. A palavra já se espalhou e já se sabe que vale a pena investir nessa área de investigação aqui. A única diferença será que

em vez de estarmos no campo a jogar, estaremos fora das linhas, talvez a dar palpites, mas sem pisar o relvado... z

Rui Prieto

biólogo

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Esta compilação de textos, não reunindo as premissas de um estudo aprofundado, esperamos sirva de mote para a consciencialização da necessidade de ser, no futuro, produzido e publicado um verdadeiro grande estudo da baleação na ilha do Faial e nos Açores em geral. Por outro lado e também pelo epicentro desta história estar localizado no Porto da Horta, esperamos possa também esta compilação alertar para a pertinência de ser dada forma à instalação de um museu que permita dar conhecer o papel desta infraestrutura no contexto da história mundial. A memória estrutura as sociedades. Perpetuemos a nossa memória, reabilitemos o nosso património e o futuro evidenciará os resultados.

FICHA TÉCNICA Colaboraram nesta edição: Frederico Cardigos, Francisco Henriques, João Garcia, José Manuel Garcia, Márcia Dutra, Maria José Silva, Marla Pinheiro, Nuno Pacheco, Rui Prieto, Susana Garcia. Impressão: Gráfica o Telegrafo Apoios: Junta de Freguesia do Capelo e Observatório do Mar dos Açores


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