Revista Entrevista - Edição 20

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c z i o E a , a o di da tale rm atas é o ne ch e eu. cas. a c mo fo Tere que asa q va lic odo s tip iança o en r , f o o a o i c u F ig q de er Olh iolã ús Co Dona ndo ma bota ca. T ia trê a cr Eu fa tas as s io – ar v m am o do as m um as. scoi mu i foi u eu ros faz h c r i m o — ia is u ram Sânz ia to m u s vel imei r, tod a aqu aqui , faz sa. E ue ne as co os b desse , i r a o b a c p c a s çú na ess ente peta m ca era q mer ado e tudo ndar , o s as o m as g as e sa nã enat muit nou ta nr o , e r r a c o a e o t i i n m a d t e a ser rçal, ens zia aqu Alfre ito d e-ló assi pra m em c sm faa f e e u d ra a ca -d o ou ui íMa e m p ros o — ava m pão meç egav s. Aq l ue rna ra l e o h de . t ma eu q o bo gos tas d . E c ue c is dia ente de P nve , o u t so e bo ele as la ra ele nte q e do de g hora a co “Oh u : q r zia os p ha ge ava d cheio a sen eçou dela i com . a, ixa u ela m nh . Tin pass im, o de os m i i q o t u a c ár m h s a o a e os fil eit oçar, oi as egou . Aí, ivers ando s pr um j p a u i o f n n h : c ara alm pre ia, c ozinh ra a ersar rabé tend isse rep p e d a d e m v s i sp se Um ou que ab me ava ela an g o, a. tô tamo ela t ndo, e o p , h d u m n n ha ai e ,c i. oc cas o i ba , dize rezin í, ca i qu foi s qu pre esta a iss a r A o r e e la sa a T ra”. tra pel foi os a ach u s do e n a n E m e s o a d o e r ê i d enh ou. uan ho mo voc ue p va a v estu r n o s h Q o e q c s in a , já ta ... ch em m om e m hos) o. T isla lema ne va c bem e eu foi a u E a l r q d i o i b r sf tã o qu ab fica ro e”. me a C e Po o s eu Eu tô ruim cê nã gent o — os (o uito erez é qu o p ã n g , T eu osto dias. o de : “Vo uita u che tod ho m pra omo u dig a e g u u m oe . E Ess rc ten ixo ois tud sim ,q o da o me ns d bou e as com uand eu já de se ve quilo qui. . Fiind a a l a s u a s s a s e Q s h u m o é i c i i “ P nos e sa ilh do at vie va mun e a Eu d ass sim: e e u la ali tu sa ca ete f eito, ue t e e m e q ”. st j en s e . É as a rq es o a g ga te rec tindo não e diz rav mos ir pra esmo ”. Po of e u t d e u i n u a t h e is e r q e r s o q m t pa i c s rt os ce se e, só me ente ilho pe a are crent , sf pri ós pode a des o, nã g v p o ta o m e s çã erTe i no , que ega tólic , eu qu ém sa ca gera tão en ss a h u s a e a e c t h e c q s c a ra es pa re ss ui as for es ga m ercei , né? ora a eit boa, as ue a, ela duz, ão ”. Aq , che ia de oda e c t q t e h r d a e r á ro as r a ar um sen ? As ceita , com relev Jeov . Um uma ... ach ua c ora p a tas a e ic s — o s u r f s r E a e i h ã m o o a e e d h eu m ta mi eram ? Ent enh ro da sen de? im. E s, o — s rec ezinh mui s vel m u que a s r n t z a s g a i p A e ia ir a Ter em vro s tê e né ve M en ,f a, ão só, o — tá d lo qu hora o qu or. eça u na T s li ma esm eg g . p i v e e m s m h m ) n s a u u a un já, da m Do livro am seé u Gust iva q ra aq a se u ac om — co stas r s i m e a o ma E ê c l t s .T e a m i s s c p e u o d s o a o a r n ga o lh po ém s q a — tud forç ra as er u m ma de c i as s fi pert agia tamb ento zinh aço a te od a ant das a oas, as c pa faz u s s , a ar, im ere eu f que onta pra teon ai t a l o i b o a t s a e m d s c s uito z. a T m, loí tud a an va do ap lejo s an . o? sa ros ha fol tas m em fi — Qu fica vand . A He e es ess - p Don ue si notan zinha u pe a. Ma isos) ra u sa s r é i q (r ç e e ho .E ô cei ca n rges dela obse reza dar. D rto, tel i ho eu t a Ter ndo is for doce sen a co e c n wi a a l a l u , a T u u a a t a a m s a n Ed , e u on ab or es o q ... E ui, m r, qu inha — , ag ui (d e ac nho das d zinha era eze eas, coz zinha er de ada n hosa daq mês e q s n e e e r a t a r e a i a f nh qu ra n Tere a sab tranc carin o sa esse gar o - d estão não tach a Te a, qu .. nh i co r da i i o na . s n e n e t h d r a – o a e ê h i p o n t e r a in fu n Do qu Ficav é tã Qua aqu pra a (cid 50 ois exi t — D coz men . Não . Eu cansa c ó a e . . u s a l a e m .. s o g ia aíb a 3 a, ler tev sai .E eu Alinn a su anti a — utan o de çul , de ippie do d ela Ela Parn fica eram n b a d h . o o er in an ás inh nã é h ase t ando orei r pra iauí, eles , um eez não t Terez o a g esper h ai e u o P r m c o f u u d u Q d q q a ã e do an an eu pr o. da qu Dona a fog tava fon rand ou, e anhã orte ). Qu ra ca a. Qu iro. A u h tin ão, e cho chor e m no N esina va, p dav inhe eais e o ã s d d e g r a n el fo 0 ela bus izada l Ter o d , ma em d i e2 .E l cer ôn loca apita lfre inho ais la d lso” acor

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Mã as s a d ei Di ns s h do m u ª fil co s (4 o e em Inê and a ui uaq to d ro Qu ... M t ar a d á or men qua eia m ot a h s d h ar, cas mo ra c , So ten e ci ta u tud o es ozei cus casa ran a Á ria pr o g nós e a a, (F ro) d i a p u, ino nã — qu nh or fo rre a en ase po , por Riti (Soc que mo An .. m , á . a ar u qu tem o — s d filha ha), ue j rida nte aê o h eg q n a ge s r E i t , a uit r fil ch a. m erez nda arg nta s me r d m s e m u M a ca te ra t Fora a T aze o ( a t ela sta ran s p e. on a f ed er qu go t a o ra e d , d lfr ue ia an en o p A z g c a d déci do sei q , fa ino re de im e te n pr Zé A hos . Eu noi me pr m .. de . Ô a, brin se ? e , s s é a eir ue ele m s so or , n fos t oq a r nh os e s trê br é pr ze se ilh a us f omo e fa u lem caf e E e d C s Me s de — alho utra fil m o se da rab m inha la os ot ,e ef e ha ha , m d l os e n o i m tin la ã u t Ri au a m esc co e a ! E da ra os as ir p que ir pr mp filh nin ra la erro e do m s p me ra e int o Q a p edo ch o d r uit a, m ntea Alf ez tal pe eu S or se aF A pr

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al z xo arv apai . Fi ndo: C m o s é a d ize eu b r e eeem tam ava d . O m eu e e l” ád er e in o J es po r faz term z ma aí qu d a a l e f t i r t e e u u is en Fo en aio m lm zia aq i a t im q nima ta!” a a p fa ru s a oi oe ece al f dú ele com uito m do ê é p u q m c , e ? m es r s e Eu eto ue v s vo go reve a, s Lop o i n a q lh r ir so do am sc !M es r a e ogue bama Carva eu s “Tu : “Oh s i a N e i a: . R i – D a inic lho o tuta.. outr pa a a ue ar rv .E ia p Ca Porq eio m aior c n m a. am luê um esia ênci as. inf h u n ne a po infl oem a sp a m i d i v ia u a fo le o faz gueir a a e No strav mo

sa Es ? sa. rda as m rio eta me 0 oe cu o r her rei :2 19 s p isa efeit Guil ntu o 08 se co e 20 es a de de av . E o e 8/ 4/ u n é um ba po me tad se c )2 to m n s s m , i n e 13 ca lha a bo o t ama a vo o, e 6, (7 N j en O h ig te io – um o. ca, tin am ais ânz aí é íssim nun em sse m S ad eu u n é e ria tó ard a, , e e ou his ret eid ai qu u s io, lm haic ick, e e co d A r n qu as do de faze rew or ss ais –p m e m a ul D aão te er rv Ra ch e sab se ou qu ob and ou ou em r alt ão er r az e m ost e f raç ue a f el m ge ns q a ou ue le e ov s. eç o q i. E s j elho com net orte o v is , ele m s eu c m éu e be a at se, s inh orta c

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ão C UF uaç em da grad rte a, ra ós- pa anç u atu (p de, a Fr e e o er e s , a n Lit ích sid o om . Is or n r u de and nive io a ito b teca Vict ue e u s U q e io to l r r en rso) ma os m i m bib sob po oras m u m , fo na fiz ês, s h e rta (cu m a m c o s t e o i s pa m ue fran . Na u co tr De o u arte s pa mu tod o q ou ês , e tip ta p . Nó isou po balh s em tugu asa do na fei tra) squ tem tra livro por m c trás ssio . lo pe o ou pe a o um m em va e m a pre rece e v rg la ela av eu co o sta i u im pa qu s r d e o , s o v é Jo re O nte . 62 os, pa e ren tod a li eu Aí f as b ce ou d m h o m M XXXXX/XXX

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Apresentação Ao pôr os olhos sobre estas páginas da Entrevista, o leitor terá acesso ao conteúdo de quatro histórias de vida que dão continuidade ao projeto iniciado em 1992, no Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). Passaram-se 16 anos e o projeto está consolidado. Mais: trata-se de uma experiência rica, profunda e diversificada com a prática jornalística na perspectiva humanizadora, a qual se reflete de modo significativo na vida dos estudantes participantes do projeto e na minha própria. Neste 20º número, Entrevista oferece ao leitor narrativas sobre as vidas de dona Terezinha Mapurunga, Waldonys, Caco Barcellos e Sânzio de Azevedo, escolhidos pelos alunos e as alunas do semestre letivo 2008.1 para tomarem parte de mais um capítulo da história da Revista Entrevista. Quem participa desta edição na condição de entrevistador? Alinne Rodrigues, Ana Karolina, Diego Silveira, Edwirges Nogueira, Ivna Bessa, Giselle Soares, Isabele Pequeno, Lucíola Limaverde, Luis Gustavo, Síria Mapurunga, Talita Christine e Thiago Mendes. À turma, deixo meu testemunho quanto à competência demonstrada e à dedicação à prática do Jornalismo com J maiúsculo. O que oferecem ao leitor os entrevistados? Dona Terezinha Mapurunga, quituteira de vida e ofício na cidade de Viçosa do Ceará, é um doce de criatura humana, cuja história de vida é recheada de humildade, honestidade, amor e leveza no modo de ser e viver. É, essencialmente, uma artista na lida com a preparação de alimentos e licores, embora a maior riqueza dela seja o amor pelo marido Alfredo Miranda. A entrevista com dona Terezinha é uma lição de vida! Waldonys José Torres de Menezes nem parece nome de sanfoneiro e rapaz arteiro. Somente Waldonys, o nome soa como uma nota musical tirada na sanfona, no ritmo do forró de pé-de-serra. A entrevista com ele pa-

rece saltar das páginas da revista, marcada pelo uso de onomatopéias, gargalhadas, histórias que provocam riso fácil e, ao mesmo tempo, revelam saudades doídas para vida deste sanfoneiro cearense, herdeiro da tradição de Luis Gonzaga. Já o jornalista Caco Barcellos – de nome oficial Cláudio Barcelos de Barcelos – é estrela de primeira grandeza no universo jornalístico brasileiro (universal, ora bolas!) a enriquecer as páginas desta edição, embora tenha dado uma entrevista-relâmpago de exatos 41 minutos e, ainda por cima, com problemas de saúde. Faz um pequeno apanhado de como veio parar no Jornalismo, refletindo sobre ética e práticas jornalísticas de vários matizes. Caco fala com mansidão na voz de quem sabe o que faz com obstinada dedicação. As últimas páginas da Entrevista acolhem Rafael Sânzio de Azevedo, professor de Literatura na UFC em vias de aposentadoria e um ardoroso defensor-amante-pesquisador-entusiasta do Parnasianismo. Filho de poeta e com nome de pintor, Sânzio exala conhecimento, simplicidade, humor, riso fácil, modéstia e um expressivo brilho no olhar e arguta capacidade de interlocução com os entrevistadores, tudo fruto de uma vida marcada pelo signo duplamente estabelecido, dionisíaco e apolíneo, no quotidiano da vida mundana e no rigor da vida acadêmica. As entrevistas aqui publicadas alargam o alcance da proposta e dos princípios editoriais do projeto Revista Entrevista, sedimentando, ainda mais, a inserção da publicação no rol das experiências pautadas pela ética e o compromisso com o exercício de um Jornalismo responsável. Ronaldo Salgado

Ronaldo Salgado é jornalista e orientador da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso. É o idealizador da Revista Entrevista e, atualmente, coordena o Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC).


Expediente: Revista Entervista é uma publicação da disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso, com edição e texto final dos alunos do sétimo semestre do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). Número: 20 Professor orientador: Ronaldo Salgado Projeto Gráfico: Norton Falcão Edição de arte: Norton Falcão Tiragem: 2.000 Impressão: XXXXXXXXX Fortaleza, XXXXXXXXXXX de XXXXXXXX Avenida da Universidade, 2762, Benfica. CEP: 60020-181 Fone: (85) 3366 - 7711 e (85) 3366 - 7718 Site: http://www.dcs.ufc.br Email: coordcoms@ufc.br; publicidade@ufc.br


Terezinha Mapurunga Waldonys

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Caco Barcellos

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S창nzio de Azevedo

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Terezinha Mapurunga Quituteira


// Terezinha Nogueira Mapurunga

A avó de fala baixinha e ligeira nos abençoa com a mais deliciosa de suas receitas: o amor Foi uma chuva “monstra” – como diz o pessoal de Viçosa – que desabou sobre nossas cabeças. Não somente aquela feita de água, mas a que irrompe quando somos sacudidos pela vida. Nada mais inspirador, para uma entrevista, e também ruidoso para o doloroso processo de transcrição de uma fala como poucas por aí. A responsável por isso? “A avó que todo mundo queria ter”, segundo o depoimento de um, o desejo de outro e a própria confirmação de dona Terezinha Mapurunga, 74 anos, sobre a quantidade de netos “por opção” cultivados mundo afora. Esse olhar de um azul profundo e calmo veio “das bandas” das Oiticicas e foi acolhido pela cidade de portas escancaradas, àquele ano de 1947. Terezinha poderia prescindir de Viçosa, mas o que seria Viçosa sem dona Terezinha? O encontro entre a menina em forma de boneca de tão linda e o tocador de pife, 18 anos mais velho, de nome Alfredo Miranda foi certeiro. “Um amor assim que parece que já nasceu amor” só poderia erguer uma casa onde a generosidade transpôs as barreiras consangüíneas para abrigar a quem precisasse se arranchar. Então, estava fundada a Casa dos Licores, depois de erguida a Casa dos Valores – sim, porque esta misteriosamente se solidificou através de laços invisíveis e desde que construída morada o trabalho significa prazer. Engana-se quem pensa que foi qualquer material de natureza palpável ou a construção do Bondinho de Ubajara os responsáveis pela chegada de turistas e pesquisadores ávidos por sabedoria popular. A pedra fundamental teve natureza intrinsecamente humana, estava no “feito à mão”, em ritmo que foge do tempo dos relógios. Apesar da constatação, é impossível não se deliciar com “a melhor peta do mundo” para muita gente, sequilhos, “bulins”, esquecidos, geléias, doces e outras tantas receitas surgidas da fusão entre a culinária sertaneja e a serrana e da inventividade de quem não estraga uma fruta. Dona Terezinha não esconde

os ingredientes, afinal “o mundo é para todos”, mas quem pode nascer com a mão que dá o ponto certo, quem pode carregar o dom de cozinhar e amar tão bem quanto ela? Para além de toda pretensão científica, não são necessários tubos de ensaio, nem manipulações de realidade para descobrir a existência de uma energia tão forte “que parece que a gente vai saindo leve” de lá – e a vontade é de não se despedir nunca. A Terezinha, lutadora e amável, sempre foi o ponto de convergência da família. E continua sendo mesmo com a sensação de que as forças “no lugar” estão se acabando, talvez por conta do esforço sobre-humano que fazia ainda na infância, quando plantava, cuidava dos irmãos mais novos ou atravessava os rios. Hoje, a coragem ao cuidar da mãe, dona Julita, com quase um século de vida e a atenção ao “Seu” Alfredo, sua metade indissociável e companheiro no verdadeiro sentido da palavra, não destróem a força que vem de fora. Quem sabe cultivada através da fé e da crença de que “no fim dá tudo certo”? Aos sete filhos, 12 netos e uma bisneta, dona Terezinha deixa a herança imaterial de uma casa “que não pode ser partida”, de livros de receitas guardados como relíquias, de álbuns, enxovais e recordações tão bem zelados que não se apagam nunca da memória. Assim, como o “doce de metade” feito por suas mãos e dado, uma parte, a quem lhe desse o açúcar, o “doce do legado” aos sucessores faz milagres: a quem vem com amor é lhe retribuído o dobro do sentimento. A chuva que cai hoje celebra os frutos de quem aprendeu a fazer, fazendo; de quem enxerga a importância do trabalho pela serventia e prazer que pode proporcionar a um sem número de pessoas. A Santa Terezinha de que falamos não age por orações e novenas, mas cozinha em fogão a lenha e nos convence a sentar e provar uma de suas deliciosas receitas, enquanto nos fala baixinho e ligeiro sobre a vida difícil, mas repleta de felicidade.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Giselle Soares Síria Mapurunga Talita Christine Texto de abertura: Síria Mapurunga Participação: Alinne Rodrigues Ana Karolina Cavalcante Diego Silveira Edwirges Nogueira Giselle Soares Gustavo de Negreiros Isabelle Pequeno Lucíola Limaverde Síria Mapurunga Talita Christine Thiago Mendes Foto: Alinne Rodrigues



Entrevista com Dona Terezinha Mapurunga, dia 26/04/08.

Giselle — Dona Terezinha, a gente sabe que a senhora veio de uma família de dezenove filhos lá das Oiticicas (vila do distrito de Lambedouro, localizado no município de Viçosa do Ceará, que fica na Serra da Ibiapaba, a 365 km de Fortaleza). Desse tempo lá das Oiticicas, qual é a lembrança mais marcante para a senhora? Dona Terezinha — Eram as festas da igreja. Eu era cantora (risos). E os bailes também. Era uma beleza! Giselle — A senhora sempre cantava nas festas da igreja? Dona Terezinha — Era (a festa de) Santa Luzia, padroeira (comemorada em 13 de dezembro). A mamãe (Julita, senhora de quase 100 anos) era quem tomava conta da festa, quem recebia os convidados, fazia almoço. Nos dias de Santa Luzia, almoçava de cento e vinte pessoas lá na casa da mamãe. Giselle — E eram a senhora e a sua mãe ajudando? Dona Terezinha — Eu sempre ajudei. Eu ficava no comércio ajudando. Quando você (o cliente) chegava, eu subia numa cadeira para tirar as peças de fazenda (tecido). José Maria Mapurunga, meu irmão, era comerciante. Então, eu pegava aquelas peças de fazenda que o pessoal queria comprar, dobrava e enrolava todinhas no papelão. Tinha muita fazenda boa que vinha de Umirim (município distante 97 km de Fortaleza). Na época, tinha a venda de comprar as oiticicas, a fruta, que vocês não conhecem, mas servia para fazer óleo, que era bom. A gente ia apanhar oiticicas pra vender. Éramos eu e o “Chiquim”, meu irmão mais novo. Eu (fazia) porque gostava, né? Na beira do rio, tinha um pé de oiticica grande, que ficava cheio, cheio. A gente apanhava aquelas latas, não eram baldes, eram latas de querosene (cheias de oiticicas) pra vender. Então, a gente chegava e botava na calçada no sol pra secar e vender. Aquilo dava um dinheiro monstro! Os carros iam comprar lá nas Oiticicas. E tudo isso a gente participava. Eu ajudava a plantar, a cuidar da casa, a colher milho verde, a botar água, eu botava água mais ele (o irmão) pro jumento... Tudo isso fazia parte da vida da gente. O papai plantava nas terras do Lambedouro, e a gente ia ajudar. A minha irmã (Franci) que morreu cedo, em um acidente de carro, essa aí não gostava não. O negócio dela era

costurar, bordar. Ela trabalhava muito bem na máquina, mas nós éramos da roça, aprendíamos tudo, eu e meu irmão. Síria — Dona Terezinha, a senhora vem de uma família de muitos irmãos, né? Eram 18 irmãos. Como era a criação de vocês? Foi uma criação muito presa? Dona Terezinha — Não, não era presa não. A gente podia sair. A gente saía pra tomar banho no rio. A mamãe teve muitos filhos, mas nunca deixou de dormir depois do almoço, nunca! Agora, a gente é que ficava olhando os meninos. Cada um era mais lindo! Todos loiros dos olhos azuis e cabelos cacheados. Eram uma coisa linda os meninos! A mamãe achou pouco ter muitos filhos e ainda criou um (Eduvar Nogueira, sobrinho de dona Julita). Ele dava mais trabalho pra mim. Ele tinha três anos quando a mãe morreu de parto. E eu disse: “Mamãe, fique com essa criança que não tem mãe”. O pai (do menino) não ligava... Hoje ele mora bem aqui, pertinho de nós, e já está com quatro anos que não vê a mamãe e é sobrinho dela! Eu sei que quem ficava com ele era eu e, naquela época, ele comia barro, né? Eu fazia um saquinho pra, quando ele colocasse a mão dentro, ele não pegar. Eu cuidava também do Antônio Raimundo (irmão), do João Nogueira (irmão caçula), tinha a Luzia, que era a coisa mais linda, a que morreu com um ano e meio. Eu só faltava ficar doida com os meninos, mas eles sempre foram muito atenciosos comigo; eu tinha cuidado com eles. Hoje, quando é meu aniversário, todos eles me dão presentes. No Dia das Mães, dão presente; no Natal, sempre mandam. Hoje, não sou eu que moro com a mamãe, é a mamãe que mora comigo. E é ela quem mora comigo, né? Diego — Dona Terezinha, qual foi o motivo da saída da sua família das Oiticicas pra Viçosa? Dona Terezinha — Política, meu filho. Meus pais viviam bem, meu pai (Clóvis) tinha um comércio grande e meu tio (Mauro, irmão de dona Julita) gostava muito da mamãe e sofreu muito. Foi por causa de perseguição política. Nós sentimos muito, a mamãe chorava muito. Porque toda vida o papai acompanhava o tio Mauro na política. E, nessa época, foi o irmão dele (do pai dela) quem se candidatou. Ele tinha que acompanhar o irmão dele, né? Era justo. E aí esse irmão da

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O nome de dona Terezinha Mapurunga foi sugerido por Giselle, que já havia visitado a Casa dos Licores em viagens com o professor Gilmar de Carvalho e outros estudantes de Comunicação Social. Síria, que também pertence à família Mapurunga, apoiou a sugestão.

A equipe de produção não demorou a ser formada. Entre os desafios colocados, estava uma viagem a Viçosa do Ceará para conhecer dona Terezinha e pessoas próximas, levantando, assim, o maior número de informações para a construção da pauta.


O professor Gilmar de Carvalho, que inclusive já escreveu sobre a Casa dos Licores, sugeriu uma conversa nossa com o antropólogo Ismael Pordeus, professor do Departamento de Ciências Sociais, pois este, em viagens feitas à cidade, havia observado a culinária e a movimentação na casa de nossa entrevistada.

Na viagem para Viçosa, no dia 4 de abril, levamos vários livros e reportagens sobre dona Terezinha e a cidade em que vive. Em sete horas de viagem, Giselle se divertiu com as crônicas “Viçosalianas”, de Juca Fontenelle, e Talita tentou dormir, sem sucesso, é claro.

mamãe ficou com raiva, e nas perseguições jogavam pedra, aquela coisa toda... Então foi uma coisa horrível, e a gente teve que vir pra cá depressa. Mas foi bom. Ainda hoje, quando eu viajo, lembro daquelas velhinhas que gostavam lá de casa, de comprar fazenda. A mamãe quando morria uma pessoa pobre – nessa época não tinha caixão, como agora tem tudo pra vender – dava mortalha pras crianças pobres. Ela dava uma fazenda pra cobrir o caixão. Às vezes, chegava uma pessoa lá em casa dizendo: “Meu filhinho morreu”... Ela dava tudo. Ela fez muita coisa boa, a mamãe, muita mesmo. Hoje é muito diferente! Eu nasci lá. Papai morou em Chaval (município distante 400 km de Fortaleza), morou aqui em Viçosa, morou no Jaguaribe (município localizado a 308 km de Fortaleza)... A mamãe era como eu: fazia bolo pra vender. A gente tinha uma loja, e ela botava muito bolo pra vender. E aí eu fui aprendendo a fazer bolo: bolo de puba (goma extraída da macaxeira), bolo de macaxeira, bolo de milho... Tudo eu aprendi lá nas Oiticicas com ela. Ela cozinhava bem! Ela fazia uma lingüiça caseira que eu vou te dizer... Paçoca... A comida dela era uma beleza. Giselle — Dona Terezinha, tinha muita festa na época em que a senhora veio pra cá? Dona Terezinha— Tinha. Ai, minha filha, as festas eram uma maravilha! Eu tinha um irmão tão difícil que não me deixava ir pras festas, o José Maria Mapurunga, meu irmão mais velho.

“A mamãe, quando morria uma pessoa pobre (...), dava mortalha (...). Às vezes, chegava uma pessoa lá em casa dizendo: ‘Meu filhinho morreu’... Ela dava tudo. Ela fez muita coisa boa, a mamãe, muita mesmo. Hoje é muito diferente!”

Síria — E onde eram as festas aqui em Viçosa? Dona Terezinha — Ah, no gabinete, onde hoje é a Câmara. Eram as coisas mais lindas as festas. Tinha um sofá no salão. Quando a gente terminava de dançar, ficava todo mundo sentado no sofá do salão. Em cada sala daquela, tinha umas estantes cheias de livros. Era uma coisa linda, decente! E tinha uns sofás de palha bem amarelinhas, tanto a madeira como a palha. Tinha o gabinete e tinha a legião. A legião era chamada de segunda. Não sei se vocês entendem o que é a segunda... (Nesse momento a filha, Tereza Cristina, que acompanhava a entrevista, interrompe explicando que a legião, ou segunda, eram as festas para as classes mais baixas e miscigenadas. Ao que dona Terezinha acrescenta: “Mas os brancos não entravam na segunda, não, (se entrassem) botavam pra fora!”) Mas as festas eram lindas! No Carnaval, era uma beleza. Os “Pinho” (referindo-se a uma família tradicional de Viçosa) faziam uns blocos lindos no Carnaval. E a gente fazia fantasias todas lindas. Todo mundo ia desfilar naqueles blocos, e era assim uma coisa... Hoje não tem mais festa, não tem mais Carnaval... Talita — E a senhora gostava de dançar, dona Terezinha? Dona Terezinha — Gostava, eu gostava muito de dançar. Íamos eu e a Franci. O meu irmão, o José Maria Mapurunga, ficava só prestando atenção na gente. Ninguém fazia nada. Não podia arranjar um namorado que ele ficava em cima, mas as festas eram muito direitas, muito boas. Só que uma vez, em uma festa de São Francisco (comemorada no dia 4 de outubro), lá em Camocim (distante 395 quilômetros de Fortaleza), e tinha um velho lá... E este homem me perseguiu tanto que eu saí correndo da festa. Eu saí de uma vez. Naquele tempo era tão bom que até as portas ficavam só encostadas. Síria — Dona Terezinha, a senhora disse que esse homem era mais velho, mas a senhora casou com o Seu Alfredo (Alfredo Miranda, marido de dona Terezinha, exímio tocador de pife), que é 18 anos mais velho que a senhora... Dona Terezinha — Mas ele era um bêbado! O Alfredo era um homem direito. Ele tava bêbado. Era uma desgraça... Edwirges — Foi em uma dessas festas que a senhora começou a se aproximar do Seu Alfredo? Dona Terezinha — Não. Ele não ia à festa não. Ele ia me ver dançar com os outros e não gostava não. Eu pegava a Assunção, minha irmã mais nova, saía com ela pegando pelo braço, e ele dizia: “Tá muito linda”, aí depois dizia assim: “Mas não é a pequena

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não, é a grande”. E foi aí que eu fui notar que ele queria alguma coisa comigo. Síria — E a senhora se interessou logo de cara? Dona Terezinha — Não. Naquele tempo ele era mais velho que eu e muito, né? Giselle — E como foi que a senhora começou a se interessar mais pelo Seu Alfredo? Dona Terezinha — Pois é... Ele queria tanto que eu namorasse com ele... À noite a gente sempre ia pra calçada, nós ficávamos todos na praça e o negócio foi se animando... Nós casamos no “queima”. Ninguém podia fazer festa, e aí foi marcado o casamento pra cinco horas da manhã. Só iam os noivos e os padrinhos. E na noite antes da gente casar, ele passou a noite todinha assobiando lá na pracinha. Mas foi um casamento muito lindo! O Alfredo é uma pessoa muito boa, um marido muito bom, de ouro. Nunca me tratou mal, nunca foi grosseiro, era muito bom. Eu pra ele era que nem uma boneca. A gente saía toda noite pra casa da mamãe, ficava até tarde... Depois que nós tivemos filhos foi que a gente ficou mais preso em casa. Thiago — E teve convidado no casamento? Dona Terezinha — Não teve nenhum (enfática). (risos de todos). Foi num domingo. Foi muito simples, o casamento. Eu e ele bem alinhados... Aí o pessoal foi desconfiando, mas lá em casa só teve mesmo um café bem simples. Nesse momento, a filha mais velha de dona Terezinha, Tereza Cristina, explica que, depois do casamento, os parentes e amigos receberam um cartão comunicando o matrimônio. Diego — Dona Terezinha, houve alguma dificuldade no casamento de vocês devido à diferença de idade? Dona Terezinha — Não. Perguntavam se era o segundo casamento (dele). Mas a casa... Ele chamava pra eu vir olhar a casa (construída por Seu Alfredo durante o noivado)... eu nunca vim. Quando eu cheguei aqui, a casa tava linda, cheia de colchas, toalhas, as coisas todas... Era tudo branco. Nesse momento, Seu Alfredo entra e faz brincadeiras. Aí, em casa, quando era domingo, enchia a casa de gente. Os parentes, os rapazinhos, as moças passavam a tarde todinha aqui em casa. Tinha aqueles bolos, tinha umas merendas boas pra eles. A única contra o meu casamento foi a Nenenzinha — a Nenenzinha que é tua tia (referindo-se à Síria). Ela dizia: “Como é que uma mocinha nova dessa vai casar com o Alfredo Miranda, um ‘véi’ desse?”. E eu dizia: “Mas não tem nada não, eu gosto dele”. Então eu casei, tive meus filhos, e ela nunca casou (risos de todos). Giselle — Dona Terezinha, desde que a senhora se casou, a movimentação aqui na

Passando pela estrada do município de Itapajé, a 124 quilômetros de Fortaleza, presenciamos uma cena lamentável: um microônibus caído no precipício. O acidente causou a morte de seis pessoas e deixou 24 feridos. Na volta para Fortaleza, outro desastre: quatro banhistas foram arrastados por uma cabeça d’água na cachoeira do Itarumã, em Viçosa.

sua casa é do mesmo jeito? Dona Terezinha — É, é assim. Mais gente pra passear, pra visitar, né? Síria — A senhora se incomoda? Dona Terezinha — Não. Toda vida eu gostei. Eu vivia disso. Eu nunca fui de ficar parada, não. Agora, na bodega, vendeu pouco porque ele adoeceu logo (referindo-se à tuberculose de Seu Alfredo, após 10 anos de casamento). Mas de noite eu acordo e fico pensando... Eu não sei mais como foi que eu passei... Quando o Alfredo ficou doente, o médico mandou que ele viesse pra casa só morrer. Só tinha a Cristina e a Verônica (filhas de dona Terezinha). E eu não sei como foi que eu criei esses meninos porque eu tinha que dar atenção a eles, e cadê o dinheiro pra manutenção? Tinha uma pessoa aqui, que era muito amigo da gente (Chico Passos), um primo, esse homem me ajudou muito. Todo dia ele mandava uma negra que trabalhava na casa dele deixar coisas aqui. Vinha leite, vinha doce de leite, vinha tudo pra alimentação do Alfredo. Ele morreu em Fortaleza, e o velório foi aqui em casa. Eu fiz questão de trazer ele pra cá. Ele foi uma pessoa muito bacana com a gente. O Alfredo passou três anos em tratamento. As roupas dele, quem lavava era eu, porque as empregadas tinham nojo, né? Tinham medo de pegar a doença. Não tinha aquelas latas de querosene? (grandes latas usadas na época como depósito). As roupas (dele), eu botava pra ferver numa lata, e a rede quem lavava era eu. Nunca tive medo de pegar a doença dele. Diego — A senhora passou por problemas financeiros durante a doença dele. De que forma isso afetou a relação de vocês? Dona Terezinha — Não. Ele ficava isolado. A primeira coisa que o médico disse foi que ele tinha que ficar isolado, porque tinha as duas crianças, e ninguém deixava ele entrar no quarto, não. Ele chorava, chorava porque era louco pelos meninos. Eu tive meus sete filhos todos em um quarto só, e ele nunca saía do quarto, era ele quem botava os meninos pra mamar, tinha muito cuidado com as crianças.

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Chegando a Viçosa, fomos recebidos pelo avô de Síria, Francisco Mapurunga, ou simplesmente Chico Alípio. Ficamos hospedadas no sítio dele, a poucos quilômetros da cidade. Sua hospitalidade e suas boas histórias, com certeza, fizeram a diferença durante a viagem.


No dia seguinte, seguimos para a Casa dos Licores, onde passamos toda a manhã. A doçura de dona Terezinha e a graça de Seu Alfredo logo encantaram as meninas da produção. Difícil não se emocionar com a bonita história de amor dos dois.

Após uma pausa para o almoço, no restaurante ao lado da igrejinha do Céu, seguimos para uma série de entrevistas com pessoas conhecidas de dona Terezinha. Zé Mapurunga Filho (sobrinho), dona Ritinha (irmã) e dona Marina (irmã) ressaltaram que ela sempre foi muito dedicada ao trabalho. Não podemos esquecer também da visita à casa de seu Zé Músico, que antigamente entoava canções ao lado de seu Alfredo.

Lucíola — Só quem entrava no quarto era a senhora? Dona Terezinha — Só quem entrava era eu, mas ele levantava, ele andava... ele engordou 18 quilos em seis meses. Quando o Alfredo chegou no médico, ele ficou horrorizado, perguntou onde é que tinha se tratado, quem tinha tratado, e o Alfredo disse: “Foi minha mulher”. O médico disse: “Pois você é uma heroína”. Foi um sofrimento. E nunca eu me queixei com nenhuma pessoa minha, nem ele com uma pessoa dele (referindo-se às famílias de ambos). Tinha um irmão (Pedro Miranda, já falecido) dele que ele ajudou muito. Ele fazia as cachaças, em tudo ele ajudou muito, mas eu nunca me queixei pra ele, nunca ninguém soube. No dia que nasceu o Alfredo Filho (3o filho do casal, nascido em 1959), quando o Alfredo ficou bom, eu não tinha dinheiro pra comprar um pão, mas não tinha quem soubesse. A casa se encheu de gente. Era o primeiro filho homem. E era uma época de seca, mas nesse dia teve uma chuva... e o Arnaldo (primo de dona Terezinha) disse: “Teu filho vai ser tão feliz, porque nasceu com uma chuva dessas, quem era que ia esperar?”. Gustavo — Como foi criar os filhos? Quais os valores a senhora ensinou a eles? Dona Terezinha — Eu nunca paguei uma professora pra ensinar o dever de casa aos meus filhos. Eles chegavam em casa e iam fazer o dever de casa todinho. Eu não mandava ninguém estudar. Eles chegavam, pegavam a bolsinha, penduravam na cadeira, tiravam a farda e iam estudar. Nenhum deu trabalho. Todos passavam... Só essa aqui que ficou (de recuperação) uma vez, um ano (referindo-se à filha Tereza Cristina). Gustavo — O que eu queria saber é quais foram os valores que a senhora passou pra eles durante a criação. Dona Terezinha — Eles tavam vendo! Eles tavam vendo o sacrifício. Eles foram embora pra estudar fora. Nós nunca demos dinheiro pra eles, nós nunca pudemos dar. Eles faziam a prova pra Escola Técnica (atualmente, Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – CEFET-CE) à noite, pra durante o dia ter o pé-de-meia pra poder “passar” (manter-se). Nos primeiros anos que eles estudavam, a gente alugava uma casinha. Quando a gente achava (e alugava), no outro ano, o aluguel já tinha subido, e a gente procurava uma mais ordinária pra alugar, mais barata... Até que um irmão meu comprou uma casa pros sobrinhos estudarem. Eu mandava dinheiro do pão e do leite todo dia, mandava contadinho. Mandava uma cesta também, com carne, bife passado, paçoca, mas dinheiro nós nunca demos.

A filha Tereza interrompe para explicar que Gustavo se referia a valores morais. Dona Terezinha — Isso eu ainda digo pra eles hoje. Passam umas coisas na televisão, e eu digo: “Meus filhos, eu tenho tanto medo de escutar alguma coisa de vocês, eu tenho muito medo. Sejam honestos. Não queiram nada de ninguém”. Deus me defenda de alguma coisa que um filho meu faça, um roubo... Eu tenho muito medo. Digo: “Sejam honestos, não devam nada a ninguém, não queiram nada de ninguém”. Uma vez a Tereza Cristina chegou aqui com um lápis, não foi, Tereza? Eu fiz ela voltar. Ela disse que tinha achado o lápis, e eu disse: “Não senhora, pode voltar”. Talita — Dona Terezinha, como é que a senhora se sente tendo filhas tão talentosas, umas filhas escrevem (Tereza Cristina e Verônica), uma canta (Inês Mapurunga, cantora soprano) (Também há uma filha artesã, Heloísa Helena)... Dona Terezinha — Muito feliz. A minha riqueza é essa: são os filhos, né? Porque todos são bons — uns mais aperreados que os outros — mas todos vivem aperreados, todos vivem aperreados. Pelo meu gosto, eu ajudava todos, mas... (pausa) mas quando eu posso, (quando aparece) uma brechinha, qualquer coisinha eu tô mandando. Edwirges — A senhora acha que a musicalidade do seu Alfredo pode ter influenciado pra que as meninas tivessem criado esse talento? Dona Terezinha —...É, eu acho que foi ele. Eu não fui uma pessoa muito estudiosa não, porque eu não tinha tempo. Eu não fiz nem o primário completo. É por isso que eu digo, eu sou uma semi-analfabeta. Estudamos no lugar onde eu morava, nas Oiticicas. O professor, o coitadinho, não sabia de nada também. (risos da turma). Tereza Cristina interrompe — A mamãe diz que é semi-analfabeta, mas sabe escrever corretamente, sabe as quatro operações, sabe aplicar as quatro operações nos problemas do dia-a-dia. Ela fez um primário muito bem feito. Dona Terezinha — Eu sabia (enfática). Eu sabia análise (sintática), eu sabia verbo, sabia tudo. Hoje eu não sei mais. Mas eu sabia de tudo. (pausa) Graças a Deus, meus filhos sabem tudinho. Síria — Dona Terezinha, parece que não foi só com os seus filhos que a senhora foi boa, não. A senhora hospedou muita gente aqui, durante temporadas pra estudar... Dona Terezinha — Ah! Eu queria mostrar o álbum. No álbum dos meus 50 anos (de casamento) eu fiz questão de ter todos os que moraram aqui em casa. Eu me casei em maio (de 1952), quando foi em agosto, começou a

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chegar menino pra estudar, morar aqui em casa. Eu quase não gozei o casamento durante muito tempo — nós custamos quatro anos pra ter filho —, porque a casa era cheia de gente. Foram três da Ritinha, (Franci, Socorro e Marluce) uma filha (Socorro) da Áurea (prima de dona Terezinha), que foi a primeira, Zé Adécio, da fazenda, que já morreu, três sobrinhos do Alfredo (Margarida, Ana Júlia e Clara)... Eu sei que era tanta gente... Me lembro que, de noite, fazia aquelas mesadas de café pra eles. Ô menino pra gostar de café com pão! Giselle — E a senhora sempre recebeu como se fossem seus filhos, né? Dona Terezinha— Como se fossem meus filhos! Eu tinha o trabalho de fazer trança nas meninas da Ritinha, em outra eu fazia os cachos pra ir pra aula, minha filha! Eu tinha muito medo que a mãe dela visse ela despenteada pra ela ir pra escola. Seu Alfredo interrompe – Penteaaado! (risos da turma) Dona Terezinha — Quando foi pros meus filhos irem pra Fortaleza, eu não achei uma casa. Gustavo — A senhora se sente bem servindo as pessoas? Dona Terezinha — Me sinto. Me sinto muito bem. Olha, tem uma pessoa aqui, um mendigo, que às vezes eu choro com pena dele. Eu digo assim: “Ô, meu Deus, eu só queria poder fazer uma casinha e pagar uma mulher pra tomar conta desse homem”. Porque ele já tá quase morto, já. Ele chega e se senta naquele batente (da frente da Casa dos Licores). Anteontem ele veio aqui. Me chama de Julita. Aí, eu me sinto bem. Eu só queria poder fazer alguma coisa pelas pessoas que precisam. Quando tá chovendo, a primeira coisa que eu me lembro é de Pedro Cabaço (nome do mendigo). Eu não me lembro nem dos meus filhos, eu lembro é dele. Coitado, será que ele tá enrolado? Mas esse sem-vergonha (em tom de brincadeira), eu dava era muito lençol pra ele, agora eu não dou mais, porque desde uma época pra cá, ele carrega. Edwirges — Dona Terezinha, mudando de assunto, quando a senhora se casou com seu Alfredo, ele já tocava pife? Dona Terezinha — Não, eu não sabia não. Ele tocava, mas eu nunca tinha visto. Edwirges — Quando ele começou a tocar, a senhora gostava ou achava que era coisa de matuto? Dona Terezinha — Eu achava, eu achava, mas eu gostava. Tinha umas valsas que ele tocava, que me dava saudade, viu? Tocava umas valsas bonitas... Hoje ele não toca mais. Edwirges —...Ele fez uma música pra senhora, não foi? Dona Terezinha — Ele fez um xote agora,

do Dia das Mães. Agora não, que já tá bem com uns seis anos. Fez só a música, e a Maria Inês (4ª filha do casal) fez a letra. É bonita... Quando ela canta com ele, eu fico emocionada... Mas, eu vou dizer, Ave Maria... O Alfredo tá desse jeito (com Mal de Alzheimer). Eu tenho muito medo de perder ele (chora). Ao fundo: exatamente nesse momento começa o som do pife de seu Alfredo no corredor. Edwirges — Quais eram as músicas que ele tocava na época? Dona Terezinha — (silêncio) Tereza Cristina consola a mãe — Mamãe, o papai ainda vai durar muito. Se preocupe não. Dona Terezinha — Hoje eu banhando ele — quem banha ele sou eu —, ele disse assim: “Ah, mas se não fosse você, o que era de mim?”. Pequena pausa para dona Terezinha se recompor. Lucíola — Ele fazia serenata pra senhora? Dona Terezinha — Não, fazia não. Serenata quem ganhou foram essas meninas (as filhas), quando eram mocinhas novas; ele (Seu Alfredo) gostava, achava bonito... Eu também gostava muito de serenata, mas hoje em dia não têm mais, as músicas (eram) lindas. Eram antigas. (Os músicos) faziam nessas portas, aqui nessas janelas, ficavam na calçada, de frente pra onde era o quarto delas. Karolina — Dona Terezinha, depois de mais de 50 anos de casados, como é hoje a sua relação com Seu Alfredo? Dona Terezinha — Minha filha, é do mesmo jeito. Giselle — Qual o segredo, Dona Terezinha, pra ter um casamento tão duradouro?

“Às vezes, eu chego no quarto, e ele diz: ‘Ô, eu tava morto de saudade! Tava morto de saudade. É muito bom quando você chega pra se deitar’. Eu digo: ‘Por quê?’, (e ele responde:) ‘Porque você’ tando aqui na cama é outra coisa”.

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A entrevista com os familiares de dona Terezinha ocorreu na casa de dona Ritinha e foi regada a café, pamonha, rosca de goma e petas. Nesse mesmo lugar funciona o hotel em que a turma ficou hospedada no final de semana da entrevista.

À noitinha, depois de um longo dia de trabalho, a equipe resolveu passear um pouco. Chovia, e a neblina já começava a tomar conta da cidade. No meio de um book fotográfico, numa praça deserta, aconteceu um blackout que fez a equipe, principalmente a Talita, “meter o pé na carreira”.


Antes da volta a Fortaleza, às 9h da manhã de domingo, passamos na casa de Tereza Cristina, primogênita de dona Terezinha, para entrevistá-la e acertar a data e o local do encontro com toda a turma.

Na semana seguinte à viagem, ainda entrevistamos muitas pessoas que conheciam dona Terezinha. Para nosso desespero, a ligação originada do telefone da coordenação caía a cada cinco minutos, O controle de gastos até é justificável, mas era constrangedor, ah, isso era!

Dona Terezinha — Essa noite eu tava achando graça, esse homem (seu Alfredo) se levantou — porque eu fico fazendo de noite esses trabalhos, fico fazendo licor com as meninas — e ficou me chamando: “Você não vai dormir agora não?” Aí eu disse assim: “Agora não, é só mais tarde”. Aí ele vai e se deita. Às vezes, eu chego no quarto, e ele diz: “Ô, eu tava morto de saudade! Tava morto de saudade. É muito bom quando você chega pra se deitar”. Eu digo: “Por quê?”, (e ele responde:) “Porque você ‘tando’ aqui na cama é outra coisa”. Outro dia, eu acordei, e ele tava me penteando (risos da turma). Aí ele disse: “Mas você passou o dia (anterior) todinho trabalhando e você já vai se levantar”. Eu disse assim: “Só não quero que você se levante, porque ainda não tem café passado, não”. É do mesmo jeito, ele tem aquele mesmo cuidado. Ele tinha muito cuidado comigo, o Alfredo... Muita preocupação quando eu tava pra ter menino, pra descansar em casa, sem médico, sem fazer um pré-natal, sem nada. Foram sete filhos, todos nasceram no quarto, nunca fiz um pré-natal, nada. Descansava com “cachimbeira”— cachimbeira é parteira — e nasceram todos sadios. Eram as crianças mais lindas. Tinha gente que dizia: “Meu Deus, esses filhos da Terezinha parece que nem pisam no chão”. Eu tinha muito cuidado. Tereza Cristina explica que mesmo com o fator RH negativo de Dona Terezinha e o RH positivo de Seu Alfredo, todos os filhos nasceram sadios, mesmo com possibilidade de doença congênita – eritroblastose fetal. Dona Terezinha — Pra vocês verem como

“(...)quem fazia tudo quanto era compra aqui era ele (seu Alfredo) (...) E eu nunca fui ao mercado, ele nunca me deixou ir. Ele dizia: ‘Mulher de homem não vai ao mercado, não’. Não conheço nem o mercado daqui”.

é uma coisa de Deus. Quando Deus quer... E eu vou dizer: o berço em que nasceu, em que se deitou primeiro a Tereza Cristina, deitou até agora as minhas. O mesmo berço! Foram os sete filhos... Até o cortinado eu guardava e dizia: “Aqui é pra outro”. Deitaram os sete filhos, todos os netos já se deitaram... Eu fazia muita economia. Também ensinei os meus filhos a serem pobres, todos serem pobres, todos serem pobres. Porque eu criei todos com sacrifício, mas nunca faltou nada. Até hoje ele (seu Alfredo) pergunta: “Terezinha, meus filhos não passaram fome não?”. Aí eu digo: “Não. Seus filhos foram os que comeram melhor aqui na Viçosa”. (risos da turma e dela). Porque não faltava o leite. Faltava tudo, mas pros filhos, nunca faltou nada. Nada, nada. Diego — Dona Terezinha, a senhora tava falando da sua relação com seu Alfredo. A senhora cuida dele, da casa e cuida também da sua mãe, D. Julita, que vai fazer 100 anos. Como é a relação da senhora com a sua mãe? Dona Terezinha — Eu tenho muito cuidado com a mamãe. De vez em quando eu olho o quarto (dela). Se ela fala mais alto ou tá tossindo, eu digo: “Ei, a mamãe tá tossindo!”. Ainda agora, (ela) tava sentadinha na cama. Tem uma pessoa (que cuida dela) do dia e outra da noite. Quantas vezes eu escuto ela tossindo! Eu me levanto e vou lá... a companheira (fica) dormindo e ela tossindo. Aí, eu chamo a Silvinha (a menina que cuida de dona Julita à noite) pra enrolar ela. Trato ela do mesmo jeito. Tinha uma menina que queria levar ela (a mamãe) pra passar o dia na casa dela, aí eu digo: “Não! Não vai mais levar ela, daqui não”. Porque ela já tá com quase 100 anos. Já tem aquele jeitinho pras coisas dela, as coisinhas dela, e ela toda a vida gostou foi daqui. Ela não gostou de outro lugar. Isabele — De onde é que vem tanta força, dona Terezinha, pra cuidar do Seu Alfredo, da sua mãe... Dona Terezinha — ...Ah, mas agora eu não tenho mais força, minha filha! Tô ficando sem força... As minhas forças estão se acabando. Na semana passada, ele passou mal, e só tava eu e ele no banheiro, e a porta do banheiro trancada! Ele deixa a Tereza Cristina (entrar no banheiro para ajudar no banho). Agora a Heloísa Helena, a mais nova, teve aqui, e eu deixei a porta aberta, pra ela segurar...Porque eu não tenho mais força nos meus braços. Mas ainda agora eu banhei ele, Tereza Cristina! (dona Terezinha conversa com a filha) Ana Karolina — Como é que a senhora concilia cuidar da dona Julita, do seu Alfredo e ainda cuidar da casa?

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Dona Terezinha — Olha, eu não me deito de dia, eu me levanto às cinco horas da manhã. Quando as empregadas chegam, até a manteiga já tá passada no pão. Tem dias que ainda vou dar uma voltinha com o Alfredo aqui no quarteirão, mas tem dia que não dá tempo, não. Aí eu tenho que telefonar pro mercantil, pro frigorífico — porque quem fazia tudo quanto era compra aqui era ele. A única coisa que eu ainda sinto muito falta é disso (tom triste). E eu nunca fui ao mercado, ele nunca me deixou ir. Ele dizia: “Mulher de homem não vai ao mercado, não”. Não conheço nem o mercado daqui. Mas, dá tudo certo, no fim das contas, dá tudo certo. O Alfredo dizia: “Mulher, não se preocupa não que no fim dá tudo certo”. E dá. Agora, quando os meus filhos estão pra vir, pra mim é uma coisa boa. Eu tenho pamonha guardada na geladeira: faço pamonha com açúcar, com sal, de tudo eu boto nos freezers. Agora uma coisa que não faço mais que eu fazia muito, que ele (seu Alfredo) gostava, é sorvete. (No exato momento em que Dona Terezinha fala de seu Alfredo, ele, novamente, chega. Dessa vez, perguntando pela tapioca. Ela ri e pede pra ele ir atrás da Tereza Cristina. Dona Terezinha continua falando dele). Dona Terezinha — Tem vezes de noite que ele acorda e diz assim: “Terezinha, se não fosse nossa filha Tereza Cristina, o que é que era de nós?” Ele reconhece ainda, se lembra, viu? Isabele — Falando um pouco das dificuldades da sua vida, a senhora passou por muita coisa: teve a falta de dinheiro, a doença do seu Alfredo... A senhora nunca teve medo de não conseguir em algum momento? Dona Terezinha — Não... O Alfredo era um homem de fé e passou pra mim. Passou esse tempo todinho doente, se alguma coisa tava custando, ele dizia: “Não, amanhã a gente tem! Nem se preocupe, amanhã a gente tem...” E tinha mesmo. Mas um dia, nós estávamos precisando de um dinheiro, e eu não sabia o que fazer. Aí eu fui no santuário (oratório na residência dela) abri um livro, pois não é que tinha dinheiro dentro do livro! Thiago — A que a senhora atribui isso, a Deus, à fé? Dona Terezinha — A Deus, é só Deus. Ave Maria, nós temos muita fé em Deus! Mas agora nem ele (Seu Alfredo) nem eu estamos quase rezando. Anteontem, ele chegou: “Terezinha, deixa eu rezar essa Salve-Rainha pra ver se ainda é assim.” Diego — A senhora ia à Igreja com freqüência? Dona Terezinha — Ah, meu filho, o Alfredo ia à Igreja todo dia, e eu só ia com ele de tarde. À noite, eu não ia não. Eu não podia

sair. Toda vida eu (ficava) trabalhando. Mas, ele ia à missa todo dia. Todo dia se levantava cedo, tomava café, fazia o fogo — que era no fogão a lenha — botava a chaleira no fogo, tomava café, aí ele (ia) saindo pra Igreja e dizia: “Terezinha, eu já tô indo pra Igreja.” E eu me levantava (pra cuidar da casa), porque a porta ficava aberta, e as empregadas só chegavam mais tarde. E isso foi (assim) a vida toda. Agora é que ele não vai mais. Gustavo — E a senhora continua indo? Dona Terezinha — Não tô indo, porque não posso mais ir não. Tenho medo de deixar ele só. Ele não tem mais noção. Eu assisto muito à missa e ao terço na televisão, mas ele não olha, não se concentra mais. Giselle — Mas a senhora recebe a comunhão aqui... Dona Terezinha — ...Todo domingo, o Ministro da Eucaristia vem trazer a comunhão pra mim, ele e a mamãe. Mas ele gostava muito (de ir à missa), era um homem de fé. Se existia um homem de fé, que acreditasse em Deus, era o Alfredo. Teve uma época que ele sabia a Bíblia todinha de cor. Quando ele tava doente, ficava deitado lendo a Bíblia. Giselle — Dona Terezinha, a gente ficou sabendo que o arcebispo de Fortaleza, D. José Antonio, esteve aqui. Como foi essa história? Dona Terezinha — (manda a filha Tereza ir buscar um álbum que continha um cartão escrito por ele ao casal) Ele veio aqui foi duas vezes. Veio a primeira vez, pertinho das nossas Bodas de Ouro (em 2002). Ele disse que não ia esquecer a data, porque era o dia do Papa (18 de maio, aniversário do Papa João Paulo II). Quando foi no dia, nós recebemos um cartão dele. Quando ele veio a segunda vez, foi entrando e disse: “Como foi a festa?” (dona Terezinha fala empolgada). Aí eu disse: “Muito bem! Vou lhe mostrar meu álbum”. Quando ele viu, disse: “Ô, mas a senhora está muito chique”! (risos) Diego — A senhora se lembra da segunda vez que ele veio aqui? Dona Terezinha — Eu não lembro qual foi o ano. Não fazia nem um ano, não. Giselle — E o que significou pra senhora

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Na véspera da viagem para a entrevista com dona Terezinha, durante a reunião de pauta, ficamos sabendo do falecimento do então Reitor da UFC, Ícaro Moreira. A viagem teve de ser adiada por uma semana.

Durante a viagem, ainda na topic que levou a equipe a Viçosa, soubemos que o então diretor-presidente do Grupo de Comunicação O Povo, Demócrito Rocha Dummar, havia falecido. O clima entre os estudantes, que até então era de muita animação, ficou tenso.


À noite, tivemos oportunidade de contemplar a neblina de Viçosa. Nem mesmo o espectador com a visão mais apurada conseguiria avistar alguma coisa a poucos metros de distância. No exato momento em que a entrevista começou, fomos contemplados com uma chuva forte – a tradição popular diz que é sinal de sorte.

No repertório da viagem, tanto na ida quanto na volta, predominou o eclético – as músicas variavam de Capital do Sol (grupo cearense de forró existente desde 1995) a Chico Buarque.

essa visita? Dona Terezinha — Aí, eu vou dizer: eu fiquei tão emocionada, que eu chorei quando recebi o cartão dele. Olha, aqui anda muita gente. Outra vez, ele veio com outro bispo também. Dessa outra vez, quando ele veio, eu dei pra cada um deles uma garrafa de licor. Aí, ele falou: “Mas a senhora vai fazer uma coisa dessa?” Era muita gente. Aí eu disse: “Mas eu não dei pro senhor? Eu dou pros outros também”. Pra cada um deles, eu dei um licor. Thiago — Dona Terezinha, eu queria voltar pra uma questão que a gente já falou, que é a relação da senhora com Deus. A senhora falou que é devota de Santa Terezinha... Dona Terezinha — ...De Santa Terezinha, do Coração de Jesus... Pra mim, o maior santo é o Coração de Jesus. Thiago — A senhora acha que a melhor forma de agradar a Deus é através da fé ou de nossas ações? Dona Terezinha — Da fé e das ações. Acho que mais da fé, eu tenho uma fé muito grande; eu não, eu aprendi com o Alfredo. O Alfredo teve muitas doenças pesadas, ele fez 30 operações na garganta, botava compressa na garganta, (fez) 105 radioterapias (método capaz de destruir células tumorais) na garganta. E o médico disse que quando ele começasse a fazer as radioterapias, ele ia perder a voz. Na sexta (vez de fazer a radioterapia), o médico disse: “Seu Alfredo, fale aí”, ele deu um grito. Ele fez “uhhhh!” O médico disse: “Esse homem é doido mesmo!”. Olha, o Alfredo já teve dois AVCs (Acidente Vascular Cerebral). Não sei como é que ele

“A mamãe temperava muito bem. As comidas que ela fazia que eram muito boas - eram da terra mesmo, como se diz, típica, né? Carne com banana... Eu faço do mesmo jeito. Aprendi tudo com ela.”.

ainda tá desse jeito, graças a Deus! — é a fé que a gente tem. Já teve tuberculose. O médico disse: “No seu raio-x, você não tem uma mancha, não, você tem uma caverna no pulmão!” Por isso que eu digo: é um homem de fé. Talita — Dona Terezinha, a senhora é uma pessoa que gosta muito de ajudar as outras pessoas. A senhora acha que isso é fruto da sua religiosidade? Dona Terezinha — É, é coisa minha mesmo, porque eu gosto de fazer. Olha, às vezes, eu faço as coisas escondidas aqui, e eles (os filhos) nem vêem. Quando eu asso um bolo no forno, eu asso (escondido), porque eles não querem mais que eu faça, e as empregadas não olham não. Eu tenho não sei quantas (empregadas) na cozinha, mas elas não olham não. Giselle — Até hoje a senhora inventa receita, né? Dona Terezinha — O livro que eu gostava era de receita. Hoje eu não decoro mais, antes eu decorava. Hoje, uma meninazinha que vende revista me deu um livro de receita deste tamanho (muito grande). Eu não tive tempo ainda de olhar. Eu anotava, mas agora não tenho mais força na mão pra escrever não. Edwirges — A senhora ainda tem o caderno que anotava as receitas? Dona Terezinha — Tenho. Nos cadernos, rasgam-se as folhas, mas eu ainda boto tudinho nas pastas. Hoje, eu tava aqui me lembrando: “Meu Deus, não sei onde eu coloquei uma folha de papel que tem umas receitas de um molho, que é bom, que eu quero fazer agora pra guardar, porque os meninos (filhos) vêm. Vou preparar logo o molho, que assim fica mais fácil.” Síria — A senhora lembra qual foi a primeira recordação que a senhora teve da cozinha, de alguém fazendo uma comida? Quem foi que fez a senhora gostar de cozinhar, de aprender a fazer as coisas? Dona Terezinha— Foi a mamãe mesma. A mamãe temperava muito bem. As comidas que ela fazia — que eram muito boas — eram da terra mesmo, como se diz, típica, né? Carne com banana... Eu faço do mesmo jeito. Aprendi tudo com ela. Preparava no fogão à lenha, nesses fornos de barro. Não tô dizendo que eu botava num caixão à medilha? Síria — O que é isso? Dona Terezinha — Medilha era uns caixões de madeira que se fazia para medir. Botava na boca do fogão pra poder alcançar pra assar o bolo. Giselle — Dona Terezinha, as petas da senhora são conhecidas. Como foi que a senhora começou a fazer? Dona Terezinha — Eu aprendia (a fazer)

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essas coisas minhas, eu fazendo... Tereza acrescenta — Com a vovó Júlia (mãe de Seu Alfredo) também... Dona Terezinha — Mas as delas eram diferentes... Alinne — Mas é porque a da senhora é diferente, tem que ser diferente. Dona Terezinha — É. Alinne — É muito gostosa! Alinne e Síria — Qual é o seu segredo, dona Terezinha? Dona Terezinha — Não sei. Uma vez teve um médico aqui, amigo do Plínio (marido de Tereza Cristina). A Tereza Cristina tava botando a janta pro Plínio, aí o médico disse: “Ô, carne cheirosa essa daqui!”, aí a Tereza Cristina perguntou se ele queria, aí ele disse: “Quero!”. Ele pensava que era carne importada. Aí a Tereza Cristina botou e ele perguntou: “Dona Terezinha, que carne essa?” Aí, eu disse: “Essa aí é carne de terceira.” (risos da turma). Eu comprava um pouquinho de carne, aí vinha carne ruim e eu tirava (ela) todinha pra fazer de um jeito, pra aproveitar. Eu fazia muita economia, muita coisa, e nunca passamos fome. Minha mesa toda vida foi farta: paçoca, galinha à cabidela... Tinha um monte de comida que eu fazia. O Alfredo Filho, quando chega aqui, diz: “Mamãe, esse bife que a senhora faz, não tem quem faça igual”. Quando eles (os filhos) chegam aqui, eu faço tudinho: é bife, é carne moída. Pra Maria Inês e o Henrique (Carlos Henrique, sexto filho de dona Terezinha e Seu Alfredo), é a carne seca com banana, é a carne de sol. De todos, eu sei o gosto. Edwirges — A senhora sempre segue a receita do jeito que é ou a senhora tenta colocar mais algum ingrediente? Dona Terezinha — Não, é do jeitinho que ela tá. A Tereza Cristina é que gosta de inventar, ela aproveita tudo. Eu não estrago uma fruta aqui em casa. Quando eu vejo que vai estragar alguma coisa, eu faço um suco, faço uma torta, invento uma coisa, mas não deixo estragar. Talita — E qual a receita que a senhora mais gosta de fazer? Dona Terezinha — Gostava muito de fazer rocambole de batata com frango. Gostava muito de fazer... Quando foi domingo eu fiz, mas não foi pra cá, foi encomenda... Agora eu quase não faço mais aqui pra casa, (porque) somos só eu e o Alfredo. Diego — A senhora ainda recebe muitas encomendas? Dona Terezinha — Não. Já tô deixando. Mas antes eu fazia muita comida. Numa Sexta-feira Santa, uma vez, eu recebi oito encomendas de rocambole de batata com peixe. Eu fazia tudinho...

Giselle — E a senhora fazia também buffet pra festa, né? Dona Terezinha — Ah! Eu era a maior banqueteira! (risos da turma). É banqueteira que se diz? Fazia muito pra casamento, 80 anos, 15 anos... Eu fazia uns de graça, minha filha! Da minha sobrinha, uma vez, eu fiz tudinho. Só pedi o material — ela me deu — e eu fiz de graça. Já cheguei a fazer pra 700 pessoas! Thiago — E a receita dos “bulins”? Onde é que a senhora aprendeu? Dona Terezinha — Meu filho, eu nem sei... Síria — Dona Terezinha, a gente sabe que todo mundo conhece Viçosa por causa das petas, né? E eu queria entender... A peta é feita de goma, não é? Mas a sua é diferente de todas as outras que a gente provou aqui... Dona Terezinha — ...É porque eu boto mais ovos e boto óleo. As petas que eles (os concorrentes) fazem aqui, têm umas que (eles) não botam nem um ovo. Síria — E qual é a receita da sua peta? Dona Terezinha — Desde que eu faço que é a mesma! (risos da turma). É um litro de goma, cinco ovos e uma lata dessas de óleo, de quarta de óleo de coco de babaçu. É só isso. Aí você vai preparar, o material é esse: a goma, os ovos, o sal e o óleo de coco. Olha, eu tirava era óleo de coco com o Alfredo. Pois sim, pois as petas são essas. Eu gosto mais de fazer com ovo de galinha caipira. Aí um homem disse que tava queimada. E eu disse: “Não é queimada não, meu senhor, ficam assim amarelinha por conta do ovo de galinha caipira”. As outras são brancas. Mas tem gente que chega aqui e diz: “Não, eu quero as petas brancas”. Aí eu digo: “É doido!”. Síria — A gente ouviu falar que a senhora conhece o pessoal da mata que tira esse óleo que a senhora tava falando. Como é que tira? Dona Terezinha — Tinha um sitiozinho, que tinha uns cocos que eu mandava trazer pra cá, pra gente fazer... Você quebra um coco, tem que quebrar o coco com machado, você taca no chão — nós trabalhamos todo o tempo juntos (ela e o marido), o mais pesado ele fazia — aí ele (o Alfredo) quebrava no machado, eu com a ponta de faca ia tirando (o miolo do coco); aquele coco a gente escorre todinho, os inteiros pra um lado e os quebrados pro outro. Coloca no forno pra torrar, depois de torrado, aí a gente vai pisar no pilão. Pisa até ficar uma água. Aí depois que fica só aquela água, a gente bota pra cozinhar. Quando tiver fervendo a água, aí vai soltando o óleo, soltando o óleo, soltando o óleo e a gente vai aparando. Thiago — E hoje ainda é o mesmo processo? Dona Terezinha — É não, meu filho! Hoje

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No trajeto, tivemos oportunidade de conhecer o famoso calor sobralense. A cidade nos acolheu não só com seu já conhecido clima, mas também com um delicioso almoço no percurso de volta.

Em Viçosa, passamos pelo inferno e pelo Céu. Literalmente! O inferno vem primeiro – ao chegar à cidade, o visitante passa pela conhecida “Ladeira do Inferno”, também denominada “Ladeira das flores” – sendo esta alcunha menos popular. No Céu, além de visitarmos a belíssima igreja, também provamos um pouco mais da deliciosa culinária viçosense, durante o almoço no dia da entrevista, o que nos fez chegar à casa de dona Terezinha de “barriga cheia”, empazinados.


Seu Alfredo interrompeu a entrevista várias vezes – tanto para fazer graça para os visitantes ao contar piadas e tocar pife, como para matar a saudade de dona Terezinha. A filha, Tereza Cristina, acompanhava atenta a entrevista, cuidava do pai e recebia turistas que chegavam à Casa dos Licores naquelas duas horas.

Duas irmãs de dona Terezinha, que foram visitá-la naquele dia – Assunção e Marina –, aguardavam a irmã enquanto conversavam com a mãe, dona Julita, na sala da degustação. Enquanto a entrevista ocorria, dois ônibus de turistas chegaram à Casa dos Licores.

têm é as forrageiras, que moem aquele coco, extraem o coco e num instante tiram, mas não fazem mais óleo. Giselle — Desse processo pro outro muda o gosto? Dona Terezinha — Não, é a mesma coisa, é a mesma coisa. Mas era desse jeito. Síria— E como se faz o sequilho? Dona Terezinha — É (com) goma, açúcar, nata de leite e sal. Bota toda aquela nata na vasilha, junta o sal e bate bem. Eu desmanchei nessa semana 61 litros de goma pra fazer biscoito. Só num dia! E ainda sou eu que boto a manteiga, que boto a nata, que boto o leite. Quem bota tudo sou eu. Síria — A senhora se preocupa em deixar as receitas que a senhora sabe para os filhos continuarem? Dona Terezinha — Me preocupo, me preocupo. Porque nós só temos esta casa. Síria — Por que a senhora acha isso importante? Dona Terezinha — Porque minha vida foi essa. Porque hoje todos (os filhos) já estudaram, né? Mas eu tenho muito medo. Tem muita coisa que eu já deixo pra Tereza Cristina, queria que ela viesse ver como é que amassava, misturava ali tudo aquilo. Eu digo pra eles: “Nós só temos essa casa aqui. Essa casa ninguém pode partir pra sete filhos. Fiquem com essa casa desse mesmo jeito, até agüentar a terceira geração, não sei”. Porque tem que ficar um, né? Thiago — E a senhora acha que os filhos vão seguir as receitas? Dona Terezinha — As receitas estão todas nos livros. Tem muita receita boa, receita antiga. Têm uns livros velhos, com as folhas todas amarelas já, mas têm umas receitas muito boas, de comida mesma, que eu nunca nem fiz. Edwirges — Quando suas filhas eram pequenas, qual delas ficava mais perto da senhora na cozinha, observando? Dona Terezinha — Tereza. A Heloísa, a caçula, só queria saber de estudar. De estudar, não, de ler. Ficava trancada no quarto, é essa que é hippie. Ela é tão carinhosa... Ela telefona quase todo dia. Quando sai daqui, sai chorando. Quando ela teve aqui nesse mês, ela chorou, e eu chorei. Ela saiu pra pegar o ônibus de manhã pra ir pra Parnaíba (cidade localizada no Norte do Piauí, fica a 350 km da capital Teresina). Quando eles eram pequenos, o Alfredo dava, pra cada um, um dinheirinho. Pouquinho, mas dava. Quando é agora, ele não pega mais em dinheiro. A Tereza Cristina deu uma cédula de 20 reais e disse: “Papai, guarde aí no seu bolso”. E ele botou no bolso. Quando ela (Heloísa) acordou, abraçou ele, beijou ele pra ir viajar, aí

ele foi e deu: “Pegue, pra ajudar na sua passagem”. Eu chorei, porque nunca mais ele tinha feito uma coisa dessas. Ela chegou pra mim e disse: “Ô, mamãe, eu vou saindo com meu coração partido de pena do papai”. Giselle — Dona Terezinha, como foi que a casa da senhora virou a Casa dos Licores? Como foi que isso aqui começou? Dona Terezinha — Isso, minha filha, pra todo mundo que chegava aqui — porque essa aqui foi uma casa que sempre veio muita gente aqui — eu botava licor, botava patê, fazia as petas, fazia rosca. Todo dia eu faço rosca aqui em casa. Eu fazia três tipos de bolo — o Alfredo era que nem uma criança, ele gostava muito de comer as coisas. Eu fazia as latas de pão-de-ló torrado e os biscoitinhos pra ele. E começou assim, tudo desse jeito. Tinha gente que chegava pra merendar, almoçar, passava de dois dias. Aqui em casa, sempre foi assim, cheio de gente. Um dia, chegou uma senhora de Parnaíba, chegou sozinha. Aí, começou a conversar, dizendo que era aniversário dela: “Oh, dona Terezinha, tô aniversariando aqui com a senhora”. Aí, cantamos parabéns pra ela. Ela chorou. Eu sei que ela tava tendo um problema... Quando ela foi saindo, ela disse: “Olha, dona Terezinha, eu cheguei aqui e eu vinha com o astral lá em baixo, tão estressada, que eu não sabia nem como entrar aqui. Pelo meu gosto, eu ficava com vocês pelo menos uns dois dias. Eu tô tão bem, que parece que acabou tudo de ruim que eu tava sentindo”. Eu disse assim: “Você não foi a primeira não. É assim com muita gente”. Tem gente que diz assim: “Quando eu chego aqui no seu Alfredo, eu sinto uma energia tão forte, que parece que a gente vai saindo leve”. Aqui chega crente, chega testemunha de Jeová, chega católico, (eles) fazem oração pra mim. Um dia desses, eu tava perto do fogão, fizeram uma roda e rezaram. Mas Deus é um só, né? Então... Gustavo — A senhora acha que essa energia positiva que tá dentro da sua casa, ela passa também pra aquilo que a senhora produz, pros alimentos que a senhora vende? Dona Terezinha — Eu acho que sim. Eu acho que sim, eu faço tudo com amor. Mas, agora eu tô notando que as forças — começa daqui (dona Terezinha aponta para as costas) – estão se acabando. Eu pelejo pra fazer uma coisa e não tenho mais força. Mas anteontem eu mexi três tachadas de doce (risos). Alinne — Dona Terezinha, a senhora usa freezer na sua cozinha, que era uma coisa que não tinha antigamente... Dona Terezinha — ...Não tinha freezer, não tinha fogão a gás butano. Eu fui conhecer fogão, eu tava esperando descansar da

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Maria Inês... Alinne — E por que ainda hoje a senhora usa o fogão a lenha? Dona Terezinha — Ah, eu não deixo não! (risos) Porque eu quero bem, eu gosto. Giselle — O gosto (da comida) é diferente? Dona Terezinha — É diferente... Depois que o Alfredo ficou doente, já mandei consertar (o fogão) duas vezes — e é caro o conserto. Tem dois guardados que eu deixei pra Tereza Cristina, porque ela tem muita vontade de fazer uma pousada aqui. E eu digo: “Mulher, faz, enquanto eu ainda tenho força ao menos pra temperar as carnes”. Quero deixar pra ela não pra usar, mas pra enfeitar, né? Olha, eu tenho uma fé tão grande... A Heloísa — ela é hippie, artesã mesmo — fazia Letras, fugiu daqui com este hippie (referindo-se ao companheiro de Heloísa), passei um ano chorando. Aí, ela queria morar em Parnaíba, pra ficar mais perto da gente — ela só gosta de praia. Aí, ela telefonou pra mim: “Mamãe, eu vou comprar uma casinha aqui, a senhora pode me emprestar mil reais?”. Eu disse: “Empresto não, minha filha, eu dou” — mãe não empresta nada pra filho, nunca emprestei. Aí, eu disse: “Tá certo, pode fazer o negócio”. Eu tinha uns fogões guardados pra vender, nunca mais ninguém tinha procurado, e ela precisava de 700 reais. Tinha dado uma parte e precisava de mais 700. Ela tava aqui em casa — era um período de festa, tinha muita gente. E eu tava apurando esse dinheiro pra dar pra ela. Eu nunca fui apegada a nada. Aí, chegou um rapaz de Ubajara (município localizado na microrregião da Ibiapaba, fica a 304 km de Fortaleza) dizendo: “Dona Terezinha, eu ouvi falar que a senhora tem uns fogões de ferro pra vender. A senhora quer me mostrar?”. Chegou, comprou logo o fogão por 700 reais em dinheiro e disse que vinha buscar na quarta-feira, mas pagou logo. Aí eu disse: “Meu Deus, obrigada, meu Deus, como é uma coisa dessa!”. Aí, quando ela chegou, eu disse: “Heloísa, tu nem sabe, pois eu não já apurei os teus 700 reais?”, e ela disse: “Mamãe, pelo amor de Deus!”. Outra vez, ela tava longe e precisava de dinheiro pra inteirar a compra dum carro – mas essas coisas eu fazia combinando com a Tereza Cristina, a filha mais velha, né, que é a que mora aqui — aí eu disse: “Deixa eu ver que eu mando esse dinheiro pra ti” (referindo-se à filha Heloísa Helena). Parece que era 800 reais. E eu: “Meu Deus, como que eu vou fazer pra apurar esse dinheiro?”. Foi quando veio uma mulher pra eu fazer um banquete. A mulher me deu o dinheiro, e eu não fiquei com nenhum tostão, mandei pra ela pra comprar o carro. E aí tudo dá certo, né? Só não deu certo

ainda um apartamento pra Maria Inês, que a pobrezinha tem tanta vontade, e meu sonho é esse. Mas eu tenho fé em Deus que antes de eu morrer eu compro. Síria — Eu queria voltar a falar um pouco sobre a Casa dos Licores. Eu quero saber quando foi que a senhora notou que isso aqui virou um ponto turístico da cidade? Dona Terezinha — Começou assim, foi gente de toda parte chegando... Foi abrir com o bondinho em Ubajara. O pessoal vinha pra visitar o bondinho, aí lá sempre avisavam que aqui tinha a cachaça velha e as petas, não era tanto nem o licor. O licor era pouco, eram só dois tipos de licor, três. Aí foi começando. Na Semana Santa e no Carnaval, era assim uma coisa, nunca dava, porque eu não fazia o suficiente, tinha medo. Agora, não, pode chegar é gente. Thiago — Mas, no começo, já vendiam de tudo? Dona Terezinha — Vendia. Vendia o biscoito, a peta, e os licores eram poucos sabores. Tinha o doce de buriti que, desde que eu me casei, eu faço. Olha, todos os anos eu faço 1600, 1800 quilos de doce. Isabele — Como é que a senhora se sente se lembrando da infância no sertão, das dificuldades, e hoje sabendo que a Casa dos Licores é um ponto turístico da cidade? Dona Terezinha — Eu sinto saudade e acho que isso, essa Casa dos Licores, foi a coragem que eu tive de trabalhar lá e tenho de trabalhar aqui. Olha, eu tenho uma força e vontade tão grande de trabalhar que, se o Alfredo me chamasse, eu passava a noite todinha acordada trabalhando, arrumando

“Aí, ela (a Heloísa) telefonou pra mim: ‘Mamãe, eu vou comprar uma casinha aqui, a senhora pode me emprestar mil reais?’. Eu disse: ‘Empresto não, minha filha, eu dou’ – mãe não empresta nada pra filho, nunca emprestei”.

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No dia da entrevista, dona Terezinha nos presenteou com um vidro de licor para cada um. No dia seguinte, quando fomos visitá-la, ela nos deu um saco de petas, um de bulins e um de sequilhos. “Para merendar na viagem”, disse ela com aquele tom de avó preocupada com os netos.

No nosso percurso pelo Céu, onde almoçamos, encontramos colegas de universidade – estudantes do curso de Engenharia Civil da UFC, que também faziam trabalhos em Viçosa. No dia em que ocorreu a entrevista, parte da equipe foi conhecer o forró das Oiticicas.


Dona Terezinha nasceu no dia 2 de agosto de 1933, no sertão das Oiticicas (vila localizada no município de Viçosa do Ceará). Ela é a sexta dos 19 filhos de dona Julita e Seu Clóvis. Durante a infância, dona Terezinha ajudava na lavoura, cuidava do comércio do pai e, ainda, dos irmãos. Foi por essa época que também aprendeu a cozinhar observando a mãe.

as coisas. Às vezes, eu acordo 4h30, 5h, pra arrumar os licores tudinho; o pessoal compra, aí é difícil tá arrumado. E as meninas que ajudam, assim que o pessoal sai, elas debandam (saem) também e deixam do jeitinho que ficou. Aí eu vou arrumar. Tem um rapaz que trabalha aqui que, quando eu me levanto, eu acho bom que ele já tem feito o fogo, botado a chaleira no fogo, aguado planta... Mas eu sinto saudade ainda da Oiticica. Eu fecho meus olhos e vejo aqueles rios que a gente tomava banho, aqueles pés de planta, aqueles coqueiros, a casa em que nós morávamos. Me lembro de tudo, de tudo e de quem fosse, porque eu trabalhei na Oiticica, trabalhei muito. Com oito anos, eu tomava conta de uma loja. Sabia quanto centímetros de fazenda era em dinheiro. Eu com oito anos. E agora não sei mais não. Eu fazia as coisas bem direitinho. Talita — E como começou essa história da degustação? A pessoa chegava aqui, pegava... Terezinha —... Aqui toda vida foi assim. Chegava, botava o café na mesa, os licores. Um dia desses a Tereza Cristina queria botar a mesa pra cá pra degustação (na sala onde acontecia a entrevista, ao lado da antiga bodega de seu Alfredo), mas não deu certo não. Eu disse: “Não dá certo não, Tereza Cristina, é do jeito que tá mesmo.” Às vezes, a gente pensa que o pessoal come muito, bebe muito, mas, menino, passa a semana todinha, e eu abasteço os vidros só uma vez. Thiago — Dona Terezinha, e, quando a senhora tá na beira do fogão, tem ajudante ali com a senhora? Dona Terezinha — Tem. Eu tenho quatro pessoas todo tempo. Mas as minhas carnes quem ainda tempera sou eu. A Tereza Cristina compra carne pra casa dela, e sou eu quem tempero. Aí os filhos dela dizem assim: “Mamãe por que é que quando a gente come na casa da vovó é um gosto e aqui é outro?” A Tereza Emília (neta de dona Terezinha e filha

de Tereza Cristina), quando vai pra Fortaleza, eu compro três, quatro quilos de carne e dou pra ela todinha já assada, parece churrasco. Ela congela e todo dia assa. A mãe dela nem sabe, eu compro com meu dinheiro. Lucíola — Dona Terezinha, como é a história do doce de metade que a senhora fazia? Dona Terezinha — A gente tinha um quintalzinho que tinha muita fruta, tinha umas bananas, aí eu fazia o doce. Isso em 1955, 1956. A pessoa dava o açúcar, e eu dava banana, aí eu repartia no meio e dava pra ela a metade. Depois eu fiquei: “Que besteira essa minha!”. Trabalhava, mexia as tachelas de doce. Um dia, chegou uma mulher e disse: “Terezinha tá aqui o açúcar...”, e eu disse: “Não, agora eu vou fazer pra vender. Se você quiser, você compre”. Olha, quando eu tava tendo contração pra descansar do meu último filho (Sérgio Roberto, que nasceu em 1970), eu sentindo dor pra descansar e mexia uma tachela de doce. Terminei de mexer às 11h30, quando foi às 18h30, eu descansei. Nem morri. Hoje eu peço: “Minha filha, mexa aqui pra mim enquanto eu vou ali”. Aí ela (a empregada) diz: “Eu não, que eu me queimo toda”. Eu digo pra esse povo que trabalha comigo: “Minha gente, eu tirava era capim, eu sei cavar com enxada pra plantar... Tudo isso eu fazia no sertão lá nas Oiticicas”. Quando era no domingo, papai ia jogar e ficava só a mamãe com os filhos pequenos, e os animais tudo precisando comer. E aí a gente ia tirar comida. A gente tinha que atravessar o rio com um grajal cheio de capim, e o rio era uma enchente monstra. A gente botava o grajal na beira do rio, eu pulava dentro d’água, ele (o irmão) jogava o grajal, eu segurava, e ele pulava, saía empurrando e eu puxando. Isso dentro d’água que era mais maneiro, né? Quando chegava na beira, a gente se agarrava. Mas eu não achei ruim não, que eu me acostumei.

Aos 14 anos, Terezinha mudou-se para Viçosa por conta do envolvimento do pai dela com a política.

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Gustavo — A senhora vê o que a senhora faz mais como um trabalho ou como uma coisa do dia-a-dia, que faz por prazer? Dona Terezinha — Eu gosto, e é de precisão. As duas coisas porque tem a precisão. Faço pra vender, porque nós só vivemos disso, meu filho. E meus filhos, todos têm família, têm filhos, precisam estudar, ninguém vive folgado, não. Meu filho (Carlos Henrique, sexto filho do casal, nascido em 1968) que vive em Teresina, vive muito bem. Ele mandou fazer uma reformazinha aqui em casa. Graças a Deus, eles estão me ajudando, mas eu queria era ajudar. Quando eles vêm me ver, todos levam uma caixinha de coisas. Eu fazia de 10 a 12 litros de café só pra eles levarem. Aí eles dizem: “Mamãe, faça isso não”, aí eu digo: “Vocês acham ruim?” (risos da turma). Quando eles vêm, é uma animação, vão dormir tarde conversando na mesa. Eu quero que vocês vejam o pagode (brincadeira, bagunça, diversão) aqui em casa quando eles chegam, e são os netos tudinho, lembrando quando eram pequenos. Tem um que é gaiato, o Alfredo Filho, que dá cada grito! Fica aquela alegria na mesa (pausa). Mas aí eu começo a sentir que tô cansada... Cansada, não. Eu sinto que as forças nos braços estão acabando. Outra coisa, parece que eu não sinto mais saudade, eu até falo pra Tereza Cristina. E ela diz: “É não, mamãe, é que quando a gente já sentiu muita saudade pensa assim”. Mas, de madrugada, eu acordo e penso em tudinho, rezo pros anjos da guarda deles e peço pra eles rezarem pros filhos a oração do anjo da guarda. Era a primeira coisa que eu ensinava pra eles quando eram pequenininhos. Síria — A senhora sempre diz que trabalhou muito, mas nunca teve muito dinheiro. A senhora nunca teve o desejo de comprar alguma coisa material? Dona Terezinha — Vou dizer uma coisa que eu tive vontade, mas agora não tenho mais não. Sabe o que é? É de visitar a Basílica, em São Paulo, de Nossa Senhora Aparecida (em Aparecida, município a 167 km de São Paulo). Carro, nada, essas coisas nunca tive vontade. Nunca tive vontade. Nós nunca compramos uma bicicleta pra um filho. Nós nunca pudemos. O Alfredo Filho era rapazinho novo, ia pras tertúlias, aí dizia: “Mamãe, vou tirar um cruzeiro da sua vasilha”. Eu dava a liberdade de mexerem no meu dinheiro, mas eles tiravam só aquele tanto. Eu nunca tive vontade dessas coisas. Tinha vontade de (comprar) coisa pra casa: geladeira, freezer; essas coisas eu tive vontade porque era pro trabalho. Assim que eu me casei, mamãe tava vendendo umas jóias, então o Alfredo comprou um relógio e

uma pulseira linda pra mim. Eu nunca usei, dei pras netas mulheres, na época, que eu tinha. Eu disse: “Vocês são filhas das minhas filhas, né?”. Agora eu tinha tudo na minha casa; se chegassem dez pessoas pra dormir, eu tinha mais de dez redes. Essas coisas tudo eu tinha: lençol não faltava, toalha de banho não faltava, prato não faltava. Nunca pedi praticamente nada emprestado pra ninguém. O Alfredo nunca queria. Às vezes, as brigas que eu tinha com ele é que eu mandava comprar dois quilos de carne e ele comprava dez. Eu fazia um almoço ou um jantar, se precisasse de 150 pratos, eu tinha mais 150 guardados. Tem talher, tem tudo, bandeja. E por aí alugam; eu faço é emprestar. Eu digo: “Menino, besteira, não tô mais precisando delas todo tempo”. Quando eu fiz minhas bodas de ouro, não pedi doce de ninguém, nem aluguei, foi tudo que eu tinha. Essas coisas aí eu achava bom comprar, mas coisa mesmo de luxo, não. As coisas do meu casamento, tenho tudinho: rede, toalha de mesa, colcha de cama, e já foi à toda festa: do casamento da Tereza Cristina, da filha da Tereza Cristina, aos quinze anos da filha da Tereza Cristina; agora vai servir pra bisneta. Thiago — Tem alguma coisa na sua vida que a senhora tem muito orgulho de ter feito? Dona Terezinha — Meus filhos. Acho que foi a coisa melhor do mundo que eu tive foi isso. Deus me defenda se eu não tivesse filho, não é? Mas, graças a Deus, eu tive meus filhos, me respeitam como se fosse uma criancinha. Quando eu digo raivosa uma coisa, eles ficam calados; pode é acharem graça. Telefonam pra mim, conto as coisas, as novidades daqui, me adoram, tudo são bons, meus genros tudo são bons. Esse da Tereza Cristina (Plínio) é um filho bom. As minhas noras tudo são boas. Diego — Como é relação com seus netos? Eles costumam vir muito aqui? Dona Terezinha — Agora os pais deles não deixam que é pra não me dar trabalho, mas, quando eu tava mais nova, eu queria que você visse: tinha dia que eu fazia 20 pizzas. Fazia tudo por eles. Tiravam a roupa, vestiam a roupa, nem o quarto eu varria, porque passavam o dia todinho brincando duma cama pra uma rede, era aquela animação. Mas agora as mães não deixam, porque elas estão vendo que dá trabalho, né? Eu não tenho mais aquela força que eu tinha. Tinha dia que eles se sentavam na mesa, e eu assando pizza pra eles, mas comiam... Traziam os amigos deles, parecia que eram tudo meus netos. Edwirges — A senhora sente que algum desses netos pode criar o talento pra culinária? Dona Terezinha — Não (pausa). Só a mi-

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Aos 18 anos, Terezinha casa-se com Alfredo Miranda, primo dezoito anos mais velho e tocador de pífano. O casamento aconteceu em maio de 1952, às cinco horas da manhã, na Igreja Nossa Senhora da Assunção. Segundo ela, isso era chamado de “queima” porque saía mais barato: só iam os noivos e os padrinhos.

O casal tem sete filhos: Tereza Cristina, Verônica Maria, Alfredo Filho, Maria Inês, Heloísa Helena, Carlos Henrique e Sérgio Roberto; 12 netos e uma bisneta.


Dois meses depois da união, parentes e conhecidos já chegavam para se hospedar na casa. Desde essa época, a movimentação pelo lugar sempre foi grande.

Com dez anos de casamento, Seu Alfredo ficou doente de tuberculose por um ano, e dona Terezinha teve de assumir a casa, passando a fazer bolinhos, doces, tijolinhos, esquecidos e petas para vender. Dona Terezinha atualmente mora com o esposo, que tem 93 anos e está com mal de Alzheimer, e com a mãe, dona Julita, que fará 100 anos em agosto.

nha filha a Tereza Cristina que cozinha muito bem; a Verônica também cozinha direitinho. Mas ficam cansadas, se cansam logo. Eu digo que esse pessoal de agora é tudo cansado. Tudinho. Essas moças que trabalham comigo passam o pano na casa e dizem: “Ai, que dor nas costas!”, e eu digo: “Minha filha, eu nunca tive coluna”. (risos) Eu lavava rede, minha gente! E não eram essas redes maneiras (leves) de agora não. Era rede de fio, que se faz em tear, rede de varanda. Num Natal desses, dei a cada um uma rede — já tô dando as minhas coisas pra eles. Olha, eu fazia no Natal — também o que eu fazia pra um, pra todos — teve uma época que fiz as almofadas, tudo em ponto de cruz, ponto de crochê, ficaram as coisas mais lindas. Outro ano, era só colcha de cama; em outro, era conjunto de toalhas. (Tereza Cristina interrompe dizendo que uma mulher que tinha encomendado salgado, havia chegado e pergunta a dona Terezinha quanto custa o cento. Então ela responde: “é quinze reais o cento” e continua). Eu ainda tô fazendo salgado pra vender, congelado. Eu congelo, aí brigam: “Por que é que a senhora tá fazendo isso?” Aí, eu digo: “Menino, isso aqui dá uma ajuda tão grande”. Edwirges — De tudo o que a senhora faz, o que é que sai mais? Dona Terezinha — As petas. Tem gente que diz: “A sua peta é a melhor do mundo!”. Eu achei foi graça. Eu faço peta e biscoito. Agora, eu faço três vezes mais peta do que biscoito. Nesse feriado agora (feriado de Tiradentes), não faltou não, mas sempre falta. Antes de terminar o feriado, já estão se acabando as petas. Tereza Cristina agora há pouco chegou — eu tava até tirando o bolo

“Eu fazia coisa com oito anos – pegava menino – que tinha vez que eu desmaiava! Os meninos da mamãe eram muito pesados, gordos, assim muito sadios. (Eu fazia) é porque gostava de menino mesmo”.

do forno — e ela disse: “Mamãe, pra que a senhora tá fazendo isso?”. Eu tenho que fazer até as coisas escondido dela, porque ela não quer. Quando eu escuto o barulho do carro dela chegando, eu corro e saio de perto do fogão. Thiago — E a forma como a senhora faz essas receitas mudou daquele tempo que a senhora começou pra agora? Dona Terezinha — É do mesmo jeito ainda. A Tereza Cristina diz: “Mamãe, isso é besteira. Se não tiver uma coisa, coloca outra; se não tiver o trigo, bota a maisena”. Eu digo: “Não, eu faço do jeito que eu quero.”. Edwirges — Têm alguns daqueles ingredientes que a senhora usava antigamente que a senhora não encontra mais? Dona Terezinha — Não. Só que a gente usava bicarbonato em vez do Royal (marca de um fermento). No esquecido, a gente botava bicarbonato. Giselle — Como é que se faz o esquecido? Dona Terezinha — Ele é feito com rapadura. Pra cada litro de goma, (coloca-se) uma rapadura, fazia o coco, o mel da rapadura, aí mistura com a goma. Aí, bota bastante ovos, bate, bate, muitas vezes. Aí, ficava desse tamanho de massa. As forminhas eram feitas de flandres (forminhas de alumínio), o pessoal fazia aqui. Aí eu fazia 500, fazia até 1000 esquecidos pra vender. Giselle — Num mês? Dona Terezinha — Num dia! Passava o dia trabalhando, quando era de noite ainda tinha coragem de ir pras barracas, pras festas (vender). Edwirges — E por que esse nome, esquecido? Dona Terezinha — Não sei porque chamam assim. Giselle — Ainda sai muito? Dona Terezinha — Não, sai não. Aqui (em Viçosa) tem gente que faz. Uma vez uma mulher me disse: “Eu comprei um esquecido ali, mas não é igual ao teu, não, Terezinha”. Edwirges — A senhora aprendeu quando era criança, adolescente? Dona Terezinha — Criança, eu era criança. Eu fazia coisa com oito anos — pegava menino — que tinha vez que eu desmaiava! Os meninos da mamãe eram muito pesados, gordos, assim muito sadios. (Eu fazia) é porque gostava de menino mesmo. Tinha aquela responsabilidade de banhar àquela hora. A mamãe pagava a mulher que lavava a roupa no rio, (ela) levava as trouxas de roupa desse tamanho. Quando chegava aquilo, era só (a gente) separando aquela roupa, cada qual guardava sua roupa. Não tinha aquela preocupação de engomar, por isso que passavam bem: não se preocupavam. Hoje, não,

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é mais feliz, tem quem engome aquela roupa todinha. Às vezes, quando eu vinha, eu engomava até 11 horas da noite a roupa deles... As roupas deles eram todas engomadinhas. Gustavo — Dona Terezinha, o que a senhora sente quando uma pessoa come o que a senhora fez e dá aquele sorriso, aquela satisfação de que gostou? Dona Terezinha — Ah, eu fico orgulhosa, fico! Aquele, o Gilmar (Gilmar de Carvalho, pesquisador da cultura popular e professor do Departamento de Comunicação Social da UFC), o Gilmar gostava muito das coisas aqui em casa... Mais o Ismael (Ismael Pordeus, antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC). Eles gostavam muito. Eles chegam aqui, às vezes, e eu boto o café pra eles e aquelas roscas que eu faço todo dia. Eles gostam muito das roscas, gostam muito das coisas que eu faço... E assim é muita gente. Tinha o doutor João Otávio, daí de Fortaleza, advogado, filho daqui de Viçosa e muito amigo do meu irmão, que dizia assim: “Ó, Antônio Raimundo, a carne de porco da Terezinha é muito boa”. Ele mandava o dinheiro, eu comprava os coxões de porco e pronto: temperava e mandava pra ele. O meu sobrinho, filho do Zé Maria, o Netinho, um dia desses chegou e disse: “Tia Terezinha, você tempera uma carne pra mim?” Aí eu disse: “Tempero, meu filho!” Aí ele comprou um coxão de porco, temperei, botei pra congelar pra ele levar pra Fortaleza. Giselle — Dona Terezinha, o ex-governador Lúcio Alcântara esteve por aqui também, né? Dona Terezinha — Teve! Giselle — Como foi essa visita? Dona Terezinha — Olha, foi no Festival que houve. E aí... — é uma loucura o Festival, muita gente por aqui... Giselle — Naquele mel, cachaça e chorinho (Festival Mel, Cachaça e Chorinho, que acontece desde 2007 em Viçosa do Ceará)? Dona Terezinha — Foi não, foi no primeiro Festival, o Festival de Música (Festival de Música na Ibiapaba, que acontece desde 2004). Aí a Tereza Cristina disse: “Vou ali em casa depressa e volto já”. Tava só eu e o Alfredo. Só via era entrar gente, aqui pela frente — e entrando gente. Quando eu olhei, eu disse: “Valha-me Deus, é o governador! (risos) Porque que vocês não avisaram?” (e alguém respondeu:) “Não, senhora, tá muito bem! Mande seu Alfredo tocar o pífano”. Aí eu mandei o Alfredo tocar o pífano, e (eles) tomaram licor. O pessoal que veio com ele — a comitiva — veio tudo foi comprar doce de buriti. E aí eu fui foi vender. Quando ele saiu, acompanhei, ele falou comigo e pegou na mão. Síria — A senhora faz uma comida boa

que todo mundo gosta. A senhora acha que alguém tem inveja? Dona Terezinha — Acho que não... Tem não. Porque todo mundo que perguntasse como é que eu fazia as coisas, eu dizia. Eu nunca deixei de dizer que ensinava, não! Às vezes, tem gente de Fortaleza que andava aqui que telefona pra perguntar como são as coisas que eu faço, e eu digo. Não... Eu nunca fui egoísta. Acho que o mundo é pra todos. Talita — A senhora acha que é um dom, cozinhar? Dona Terezinha — Às vezes, o pessoal diz que é a mão. (risos) Thiago — E a senhora acha que é? Dona Terezinha — Olhe, quando é na Semana Santa, se você vir o que eu faço aqui: eu compro muito feijão maduro, boto aqueles panelões no fogo, e aí os que entram vão tomar licor. Um dia, um chegou com a xícara: “Que caldo de feijão!”, e eu dou! Os meninos aqui em casa têm raiva: “Mamãe, por que essas coisas?”, (e eu respondo:) “Menino, isso não faz mal a ninguém não, uma coisa dessa”. Às vezes, eu saio com uma bandeja com três, quatro xícaras e levo pra mesa pra eles. É tão bom, e não tão bebendo? Quem não gosta muito é a Verônica, que só quer vir aqui quando não tem ninguém, já marcou três vezes — agora, foi assaltada, (baixa o tom de voz), o marido adoeceu, quebrou os braços, ela agora não vem tão cedo. Ela diz: “Ah! Ninguém pode tá sossegada, a gente tá comendo e tá o pessoal entrando...” E eu acho é bom. Nem me importo. Faço tudo que eu quero tá com muito tempo. Alinne — E essa história de Artesanato Alimentar (na placa da entrada da Casa dos Licores, lê-se o nome Artesanato Alimentar – Alfredo Miranda), quem foi que inventou? Dona Terezinha — Isso aí foi a Tereza Cristina que mandou um amigo nosso — que faz umas placas a pedido — fazer. Agora era uma na frente e outra atrás. Pois vocês sabem o que foi que fizeram? Quebraram a placa, ficou só o cano, pois jogaram uma bomba dentro do cano. A gente tava 11 horas (da noite) ainda trabalhando, quando ouvi foi o “papoco” (estrondo). Quando foi de manhã, o rapaz falou que o cano tava lá no meio da rua. Botaram uma bomba dentro do cano. Por isso é que o Alfredo fecha as portas. Ele tem até razão, porque podem jogar até uma bomba, né, dentro de casa? Em toda parte tem gente ruim, né? Todo mundo que vem pra Casa dos Licores chega aqui na rua (Rua Francisco Caldas da Silveira) e pergunta onde é, e o pessoal não sabe dizer. Um dia desses, um menino disse: “Ave Maria, eu perguntei, não tinha quem soubesse ensinar onde era a Casa

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Hoje, com 45 anos de existência, a Casa dos Licores tem nove funcionários. São 55 tipos de licores, e o mais tradicional é o de jenipapo. Além disso, o visitante encontra petas, doces, geléias, sequilhos, esquecidos, bulins e roscas de goma.

Alfredo e Terezinha são muito voltados ao trabalho, mas é sempre aquela alegria: ela mais sisuda e ele sempre piadista, tudo aproveita e conta uma piada.


O casal tem uma relação de amor e cumplicidade. Ela conta que Seu Alfredo só dorme abraçado a ela. Um dia, ele lhe ofereceu 20 reais para que ela parasse de trabalhar e fosse deitar com ele, ao que ela respondeu: “Alfredo, eu tô muito barata”.

Dona Terezinha é muito religiosa, é devota de Santa Terezinha (como não poderia deixar de ser), de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e do Sagrado Coração de Jesus. Ela conta: “Deus está o tempo todo acostado de mim”. Por causa da saúde, os dois não podem mais ir às missas, mas o ministro da Eucaristia leva a comunhão a eles.

dos Licores.” Edwirges — Com quem foi que a senhora aprendeu a fazer os licores? Dona Terezinha — A mamãe fazia quando ela tava esperando menino. Chama-se o mijo do menino, o licor. (burburinho) Saiu uma reportagem no jornal com o Gilmar, perguntando por que era, e eu disse que era o mijo do menino e saiu. O pessoal chega aqui e diz: “Eu vim beber o mijo do menino”. E a mamãe fazia, mas só fazia de jenipapo e tangerina, aí eu comecei. Quando eu me casei, eu trouxe muito licor fresco pras visitas. Na televisão, já tenho visto naquelas festas, naquelas coisas, (as pessoas) servindo licor. Eu digo: “Olhe, meu licor tá na fama também!” (risos) Edwirges — E nessas visitas que a senhora recebia aqui, teve alguém que chegou a passar do ponto, que ficou “alegre” demais? Dona Terezinha — Fica, fica, às vezes tem mulher que fica (risos). A mamãe um dia chegou (e disse): “Eita, que aquela chegou de noite e saiu dando bom dia” (risos). Porque a mamãe era muito assim, muito viva. Às vezes, ela dizia: “Será que esse pessoal tá pagando direito?” (risos). Olhe, quem vem muito aqui é esse pessoal holandês e da Bélgica... Finlandeses, pra mim são os melhores. Os holandeses são assim: (ela faz um gesto com a mão fechada) (risos). Acho graça, porque eles pensam que a gente tem aquela obrigação. Um dia, chegaram 18 holandeses, sentaram na mesa e beberam, beberam, mas bebem! Não gostam de comer muito, eles não gostam... parece que eles têm é medo de comer! Mas beberam, beberam, aí se levantaram e não compraram um saco de peta. Um dia, disseram: “Ah, Dona Terezinha, olha, não compraram nada!”, e eu disse: “Não, eles pensam que isso aí é o governo que tá dando pra eles” (risos). E eu (disse): “Isso aqui, meu filho, é feito com tanto sacrifício”, aí saíram — porque o licor, quando (a pessoa) toma muito, esquenta, a pessoa sua; eles (holandeses) saem pingando suor. Agora, os finlandeses são ótimos, eles compram bastante, são mais decentes; os holandeses, eu não gosto, não. (risos) Alinne — A senhora faz licor de várias frutas e faz os especiais. E tem um que é de pétalas de rosa... Dona Terezinha — ...Esse daí é a Tereza Cristina que tá fazendo. Esses aí eu nunca fiz: pétalas de rosa, chocolate... Os meninos (irmãos de Tereza Cristina) “mangam” (riem) é muito dela: “Tu vendeu muito especial?”, eles telefonam pra mangar dela, pra atentar ela: “Tereza, tu tem vendido teus especiais?”. O Alfredo Filho que brinca, é da-

nado! Esses especiais aí eu nunca fiz... Síria — E canela de cunhã? Dona Terezinha — Canela de cunhã eu faço. Síria — E por que dizem que é afrodisíaco? Dona Terezinha — Ela (Tereza Cristina) já falou com aquele professor Matos, é Matos? (Francisco José de Abreu Matos, criador do projeto Farmácias Vivas da UFC), especialista nesse negócio de planta, ele é da Universidade. Acho que é da UFC, que ele já veio colher planta aqui. Ela conversou com ele, e ele disse que era igual Viagra (risos). Agora, veio um pessoal da Universidade, comprou foi muito... (risos), o pessoal da Engenharia. Olha, esse licor o Alfredo fazia, porque da planta se faz chá, é digestivo, a pessoa tomava chá de canela de cunhã pra cólica. E aí o Alfredo fazia muito, nós fazíamos muito, e nunca soubemos nada. Pois a Tereza Cristina um dia foi conversar com o professor, e ele disse que é (afrodisíaco): que aumenta num sei o quê, num sei o quê. Agora, é o que sai mais; toda semana eu engarrafo um bocado. Porque é assim: a gente faz os licores tudo devagar, meu filho, por isso que a gente trabalha muito, porque tudo é feito à mão. Tem um rapazinho que me ajuda, que é lerdo, preguiçoso, tem hora que eu dou as coisas na mão dele tudinho — é porque eu tenho muita paciência, eu tenho muita paciência. Também tem um rapaz que trabalha comigo, que é grosseiro, ignorante. Às vezes, eu pergunto: “Antônio, você fez...” Aí ele: rrruuumm (Dona Terezinha faz um grunhido) (risos). Aí eu digo: “Ô, rapaz, parece que você tá é doente! Tá sentindo uma dor é?”. Eu faço (esse trabalho) também porque eu preciso, eu faço é porque eu preciso fazer. Olhe, nossa renda é só isso, é só isso. Ele (Seu Alfredo) se aposentou com um salário, e toma remédio de 280 (reais) a caixa.... (Seu Alfredo entra na sala tocando seu pife e interrompe a entrevista. Dona Terezinha diz em tom de brincadeira que vai fugir conosco. Ele ri e pergunta se ela vai deixá-lo sozinho. Ela diz que sim, e ele que vai arranjar três “negas” na Igreja do Céu. Ela pede pra ele ir atrás da Tereza Cristina novamente. Ele começa a tocar o pife. Tereza Cristina chega e o leva). Dona Terezinha — Olha, isso aqui é pra gente sobreviver. E aqui é aquela coisa: tem dia que vem muito (cliente), tem dia que vem pouco, não é aquela coisa certa. Mas a gente faz porque tem precisão; eu gosto e tem precisão. Deus me defenda de chegar um filho meu, me pedir uma coisa e eu não poder dar. Síria — Pois, dona Terezinha, a gente quer agradecer a entrevista. Obrigada!

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Dona Terezinha — Agora, se tiver alguma coisa errada vocês não vão botar não! (risos) (Os alunos aplaudem e dona Terezinha continua falando do comentário das pessoas de que ela deveria parar de trabalhar, porque já tem os filhos dela pra ajudar, ao que ela retruca dizendo que os filhos dela também têm filhos pra cuidar. Depois, dona Terezinha fala do desejo de seu Alfredo de morrerem juntos. Incisiva, conta que gosta do que faz e não deve nada a ninguém. “Meus filhos”, ela afirma com orgulho, “nunca passaram fome!” A turma chama dona Terezinha para a sessão de fotos e, em seguida, todos começam a procurar petas, doces e licores de sua preferência. Para surpresa nossa, ela nos presenteia com um licor para cada. No dia seguinte, fomos novamente à Casa dos Licores e, dessa vez, outra lembrança: petas, sequilhos e “bulins” para degustarmos durante a viagem.)

Entre os visitantes ilustres da Casa dos Licores estão o ex-governador do Ceará, Lúcio Alcântara, e o arcebispo Dom José Antônio.

Todos os entrevistados só fizeram boas referências a dona Terezinha. Pelo que vimos, ela não possui desafetos.

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Waldonys Cantor


// Waldonys José Torres de Menezes

Um delicioso vôo através das histórias cheias de humor desse eterno moleque atrevido Nascido para os livros por querer à mãe, atreveu-se a tocar e virou sanfoneiro por querer a música. Nascido em terra por força de gravidade, atreveu-se a voar e se doou ao céu por força de paixão. Nascido obediente por honrar o pai, atreveu-se a mudar e virou moleque em obediência ao rei. Assim é Waldonys José Torres de Menezes, um homem em constante construção, um aluno em eterno aprendizado, um avião em vôo permanente. Um moleque atrevido, como muito bem descreveu o rei Luiz Gonzaga, cujos ouvidos treinados logo perceberam o talento desabrochando por trás dos óculos “fundo de garrafa” e a molecagem escondida atrás daquela timidez, do receio de transgredir. Por medo, escondeu do pai a paixão pela sanfona, descoberta por acaso, mas já surpreendente, sendo flagrado pelos pais, “seu” Eurides e dona Joana, quando dedilhava os primeiros acordes de Asa Branca, considerada uma música muito difícil de ser tocada por um iniciante das artes do acordeon. E foi justamente por não gostar de seguir parâmetros, que Waldonys não começou a tocar como a maioria dos acordeonistas. De acordo com as palavras de “seu” Luiz, que é como o sanfoneiro respeitosamente se refere ao rei do baião, o menino “começou a construção da casa pelo telhado, quando deveria ter começado pelo assoalho”. Independentemente de como a “casa” musical de Waldonys tenha sido construída, não se pode negar que ela alcança patamares cada vez mais altos, pois ele nunca gostou de se sentir preso ao chão. Seja com relação à música ou à vida, para o sanfoneiro, o céu sempre foi não somente o objetivo, mas a base. Desde cedo, o menino percebeu que adoraria cantar as belezas de sua querida cidade natal, mas nenhuma fortaleza, por maiores os muros, o seguraria por muito tempo no mesmo lugar, pois Waldonys é o tipo de homem que possui raízes, mas não amarras. Nele, a obediência caminha de mãos dadas com a transgressão, e justamente aquilo que poderia parecer antagônico faz o moleque crescer dentro do homem e a vida se

apresentar mais prazerosa a cada vez em que a morte é desafiada. Um dos melhores pilotos do Ceará, aviador acrobático e instrutor de vôos; nas nuvens, Waldonys mostra que só se dedica a algo se for para fazer com perfeição, tanto que foi um dos poucos pilotos civis no Brasil a sentir o doce gostinho de voar com a Esquadrilha da Fumaça. Sempre em busca de aventura, ele procura através dos saltos de pára-quedas suprir a necessidade que sente de adrenalina, não pensando duas vezes antes de se lançar de aviões a mais de 10 mil pés de altura, mesmo sabendo que isso contraria imensamente a família dele. Nesses momentos, quem comanda é o moleque atrevido. Entretanto, o menino tímido e obediente que se esconde por trás da capa de rebeldia se torna completamente visível quando o sanfoneiro fala de “seu” Eurides: “(...) não posso discutir com ele. O pai é o pai”. E foi justamente através do pai que Waldonys descobriu a sanfona, segundo o próprio sanfoneiro, a maior paixão: “Aviação tá ali, colado, na ala, mas a líder é a música”. Esse amor incontido o levou a alçar vôos cada vez mais altos e a dividir o palco com alguns dos maiores músicos do país. Mas é também através da música que o sanfoneiro mostra a dualidade que lhe é característica, mesclando em seus shows clássico e popular, aprendizado e dom, técnica e coração. Este último em concentrações infinitamente maiores, pois é notório o quanto o músico ama e se dedica ao que faz, levando multidões a aplaudirem de pé o seu talento. Talvez seja justamente por essa mistura de atrevimento e obediência que o moleque tenha sido agraciado com tantos padrinhos, os quais contribuíram, cada um com sua “pitadinha”, para a construção desse grande gênio da música brasileira, esse cearense “arretado”, esse homem paixão que é Waldonys José Torres de Menezes. Um universo de opostos, onde a segurança de quem sabe ser um dos melhores sanfoneiros do Brasil jamais ofusca a simplicidade que o torna capaz de se autodenominar um eterno aprendiz.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Isabele Pequeno Ivna Bessa Luís Gustavo de Negreiros Entrevistadores: Alinne Rodrigues Ana Karolina Cavalcante Diego Silveira Edwirges Nogueira Giselle Soares Isabele Pequeno Ivna Bessa Lucíola Limaverde Luís Gustavo de Negreiros Síria Mapurunga Talita Christine Ferreira Thiago Mendes Texto de abertura: Isabele Pequeno Fotografia: Alinne Rodrigues



Entrevista com Waldonys José Torres de Menezes feita em 1705/2008. Gustavo – Waldonys, pra começar, eu queria que você falasse um pouco da sua infância, em Fortaleza, na sua escola... Waldonys – Rapaz, é o seguinte, até os dez anos, era uma criança normal, né? Como qualquer outra. Brincava e tal, corria, pulava, fazia as peripécias normais. Eu não diria nem até os dez, até os nove, que foi quando eu realmente comecei a mexer com a história da música, né? E tocar triângulo, zabumba, instrumentos mais percussivos no grupo do pai (Eurides), que vivia tocando, ensaiando, mas não tinha show nenhum, porque era um hobby, uma brincadeira. Gustavo – E na escola? A produção apurou a informação de que você era um pouco inquieto na escola. Como era isso? Waldonys – É, não é que eu gostava de repetir ano não (risos de todos), é porque eu sempre me apegava muito às professoras... (risos). Eu realmente não fui um exemplo de aluno, era muito bagunceiro. Na realidade, não era muito chegado a estudar, mas assim mesmo ainda fiquei um bom tempo preso ali no Colégio 7 de Setembro (rede de colégios particulares de Fortaleza). A sala da diretoria já tinha quase uma cadeira com o meu nome. Quase todo dia eu ia pra diretoria (risos). E aí, a mãe (dona Joana) me tirou do 7 de Setembro e me colocou no Júlia Jorge (antigo colégio de Fortaleza vinculado à CNEC – Campanha Nacional de Escolas da Comunidade), que, comparando com o 7 de Setembro, era um colégio bem... (dá idéia de ser de qualidade inferior) A mãe fez isso pra dar tipo um corretivozinho, um castigo. Só que aí foi que eu achei bom (risos), aí foi que a bagunça aumentou mesmo. Então, resumindo a pergunta, eu nunca fui um aluno que gostava de estudar, de estar sentado e ficar na mesa estudando. Eu de novinho já gostava muito de música, então, na sala de aula, eu ficava batendo e mexendo, e isso deixava os professores meio irritados, sabe? O meu filho mais velho, o Leonardo, tá tendo uma dificuldade danada, rapaz... E eu estou morto de feliz porque estou vendo que ele é meu mesmo, tá seguindo a hereditariedade (risos de todos). Isabele – E como é que foi o primeiro contato com a música? Waldonys – Então, eu bebi na fonte essa história do forró autêntico, do forró puro, forró de raiz, né? Que é Jackson do Pandeiro (músico paraibano, grande divulgador do

xote), Dominguinhos (músico pernambucano, um dos maiores acordeonistas do Brasil), “seu” Luiz Gonzaga (músico pernambuco, conhecido como “Rei do Baião”, um dos maiores divulgadores desse ritmo, faleceu em 1989), Marinês e sua Gente (grupo de xote e baião comandado por Marinês), Os Três do Nordeste (grupo paraibano de forró pé-de-serra), que eu vi novinho. Eles vinham pra Fortaleza e se hospedavam aqui (referese à casa dos pais). Era um show de sanfona, aquilo me impressionava! Então, isso tudo ficou muito gravado na minha memória. Assistia àqueles shows, o cara mostrando realmente a arte da sanfona. Eram artistas até, às vezes, meio circenses. Isso veio, lá na frente, a encaixar na minha carreira. Eu peguei um pouquinho do que eu vi na infância, no caso dos Três do Nordeste, do Sivuca (músico paraibano conhecido como um notável instrumentista, faleceu em 2006), do Oswaldinho (músico fluminense conhecido como Oswaldinho do Acordeon), que é um grande instrumentista, um show de sanfona. Então, isso tudo eu fui vendo de pertinho. Aliás, eu não fui vendo, eu fui convivendo e, aí, não deu outra, né? Quando eu tava com nove anos, eu comecei a brincar no grupo do pai, tocando triângulo, tocando zabumba. Quando eu tava com dez anos e meio, eu peguei a sanfona do pai escondido. Quando ele saía pra trabalhar, aí, eu pegava. Com medo, porque, por conta das minhas peripécias no colégio, eu levei umas pisas assim... bem acentuadas (risos de todos). O pau comia mesmo, sem pena, e eu tinha um medo danado. Rapaz, vou dizer uma coisa, eu tenho 35 anos. Sou fabricação 72, modelo dois mil e alguma coisa, mas brincadeira... (risos). Eu nunca dei um beijo no pai, você acredita? Porque a criação da gente era assim (rigorosa). E eu sinto que ele hoje admira, se realiza no que eu faço, mas nós tivemos aquela criação antiga. E o pai era muito invocado mesmo. A ordem era federal, quando chegava o pai... A mãe era uma pisinha estadual, besteira, não doía (risos). Quando passava pro pai – quando repetia um ano, uma coisa assim, que isso pra mim era quase todo ano (risos de todos) – era violento. Então, eu tinha medo porque ele tinha o maior ciúme da sanfona. “Rapaz, eu vou pegar na sanfona aqui, e, se ele pegar, eu não sei qual vai ser a reação”. Mas, aí, eu comecei com a vontade

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A família de Waldonys é muito hospitaleira. Fomos recebidos com simpatia e muito sorvete nas duas visitas que fizemos à casa dos pais do sanfoneiro.

A mãe de Waldonys, dona Joana, é jovem e bonita. Inicialmente tímida, disse que nunca havia sido entrevistada, mas falou com a equipe por mais de uma hora.


O pai de Waldonys, “seu” Eurides, é bastante engraçado e simpático. Disse que não podia dar entrevista, mas conversou um bom tempo conosco e ainda tocou sanfona. Ele não pode ver um pequeno público que começa a tocar. Dona Joana e “seu” Eurides formam um lindo casal. Eles se chamam de “coração” até hoje.

Quando fala com os outros sobre a esposa, “seu” Eurides a chama de “minha joaninha”. O sanfoneiro Dominguinhos, que é muito amigo da família de Waldonys, foi muito simpático ao telefone com a equipe de produção. Ele passou meia hora respondendo às perguntas. Em vários momentos, riu ao relembrar antigas histórias.

de chegar e mexer no instrumento. Aí, ele ia trabalhar, e eu ficava... Aí, comecei a tocar. Engraçado, isso aí não consigo explicar, é um dom, porque eu comecei sem professor, mas o ouvido velho não falha, e comecei a dedilhar ali as primeiras notas da Asa Branca (canção de 1947, de autoria de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Eu acho que eu deveria ter aprendido Parabéns pra você ou Atirei o pau no gato, né? (risos de todos) E eu comecei com Asa Branca. E aí, um dia ele chegou e me pegou com a mão na massa. Eu tomei aquele susto, ele chegou e me deu o maior apoio... Claro que não foi: “Ah, meu filho!”, porque não tinha isso, mas só de não ter brigado, meu amigo... um grande sinal. Thiago – Foi o primeiro sinal de afeto dele que você sentiu, quando criança, mais forte, mais próximo? Waldonys – Não, não, também não estou pintando um pai... (frio), mas é porque era assim: quando ele era pra falar sério, o pau comia mesmo, não tinha conversa não, mas passeava, andava com a gente. Não era aquele pai de chegar: “Ah, senta aqui no meu colo”, dar beijinho, “abracinho”. Não tinha esse negócio. Não teve esse afago todo, mas deu apoio. Aí, já colocou um professor pra me ensinar. Só que, com isso, veio a responsabilidade da minha parte. “Rapaz... agora eu tenho que mandar ver, porque se não...”. Aí “pá” professor, o que foi ótimo pra mim. Esse cara, o Walmir, era antigamente de uma banda chamada Banda Um. E, na época dessa Banda Um, eram as bandas que eram legais demais. Nada contra as bandas atuais, as bandas de hoje. Eram as bandas (na época) que abriam uma festa, um baile. O artista vinha, fazia o show, depois a banda continuava, encerrava o baile. Hoje não, as bandas gravam CD’s, as bandas são os artistas. Nessa época não, as bandas tocavam de tudo, anos 60 e tal... Então, tinha músicos muito bons. No caso, o Walmir era um deles. O cara é muito bom, só que tinha digitações que ele não sabia fazer, mas sabia ensinar, entendeu? Aí, foi massa, porque eu era novinho, cabeça fresquinha, e com uma certa tendên-

“(...) não consigo explicar, é um dom, porque eu comecei sem professor, mas o ouvido velho não falha...”

cia pro negócio. Ele também achava ótimo me ensinar, porque ele não fazia, mas ele ensinava, e eu fazia. Poxa, ele ficava morto de satisfeito. “Walmir, eu tô querendo aprender essa música aqui”. Ele botava o LP ali, ficava ouvindo, tirava certinho. Não era uma notinha na trave não, era tudo gol. Ivna – E qual foi a importância dele para sua carreira? Waldonys – Total. Eu acho que eu devo muito, muito, muito ao Walmir, porque, é o seguinte: foi o que não aconteceu com o pai. O pai nunca teve um professor, nunca foi a um conservatório, nunca aprendeu uma teoria, uma coisa assim. Então, ele nunca deslanchou. Sempre ficou limitado ali. Porque a música, também, é o seguinte: se você aprender errado, pra depois corrigir, é muito pior. Você já tem aquela mania da digitação errada. Então, às vezes, você pena um pouquinho pra aprender o certo, mas depois essa técnica que você usou pra aprender o certo vai te facilitar muito lá na frente. E o pai não teve isso, então, estacionou. Giselle – Seu pai nunca obteve o sucesso que você conseguiu. Você acha que, de alguma forma, ele se projeta em você? Waldonys – Eu acho. Eu acho que ele se realiza. Ele fica muito feliz quando assiste a um show. Quer ver ele ficar igual pinto no lixo? (brincadeira cearense significando que a pessoa fica alegre) Eu peço a ele pra passar o som. Às vezes, já tá cheio o ambiente. “Pai, dá uma testadinha no som, aí?”. Ah, rapaz, eu não termino a frase, e ele já tá com a sanfona, testando o som, e fala no microfone, aquele negócio todo. Aquilo ali pra ele, parece que ele fez um show. Diego – Quando você era pequeno, você tocava mais pra agradar seu pai ou pelo gosto mesmo pela música? Waldonys – Aí, é que tá: os dois, porque existia uma vontade natural de agradar o pai, mas também eu tinha a minha vontade. Onde entrava em conflito isso... É porque o pai é alucinado por sanfona. Eu gostava de tocar, sempre gostei e tal, mas também eu queria um momento meu, pra ir brincar. Meus primos chegavam, num domingo, brincando de bicicleta, de skate. E chegavam uns amigos do papai. Ele dizia: “Waldonys, venha cá, vamos tocar aqui”. Nesse momento, entrava o conflito, mas eu não dizia nada, né? Não era doido (risos de todos). Poxa, eu olhava os meninos passando, tudo correndo, brincando de bicicleta. Então, eu ficava meio fechado, às vezes, cara trancada e tal. Queria estar era brincando, mas sempre gostei também de tocar. Lucíola – Waldonys, você acha que seria sanfoneiro sem a influência (musical) de seu pai? Waldonys – Eu acho que eu seria, mas

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atrasado, porque isso ajudou e muito. Eu acho que lá na frente eu iria descobrir ou não. Que eu seria um sanfoneiro, realmente, eu não posso te dizer, porque é uma questão de você descobrir. Eu posso contar uma história bem rapidinho? Todos – Claro! Waldonys – É a história do dom. Foi o Tom Cavalcante que contou essa história, muito engraçada! Ele disse que tinha uma igrejinha lá no interior, e tinha um sacristão. E o sacristão, não é o meu caso, claro, era analfabeto total. Aí, mudou o padre da igreja. Chegou um padre lá da Itália, poliglota, com mestrado, doutorado, o cacete, e o outro padre saiu. Aí, o padrezão, todo cheio, chamou o sacristão: “Olha, é porque eu sou um padre muito conceituado... Qual o seu grau de instrução?”. Ele respondeu: “Zero, não sei ler nem escrever”. E o padre: “Rapaz, é o seguinte: tá aqui esse dinheiro e você daqui a um mês volte. Tem que pelo menos saber ler e escrever”. Aí, (depois de um tempo) ele voltou: “Não aprendi nada”. O padre: “Sinto muito, mas você vai ter que sair. Mas tá aqui um dinheirinho pra lhe ajudar”. Quando o sacristão foi saindo, voltou e disse: “Padre, eu posso montar aqui, na sua praça, em frente à igreja, uma banquinha pra vender fruta?”. Aí o padre: “Pode botar”. Aí, ele trazia mamão da serra, e não sei o quê. Aí, foi vendendo. As beatas iam tudo comprar lá, porque o cara era sacristão. Aí, foi, foi, foi e aumentou. Alugou um ponto em frente, construiu um segundo pavimento, comprou uma F4000 (caminhão Ford). Chegou uma hora que ele disse: “Eu tenho que abrir uma conta, não posso guardar o dinheiro aqui”. Aí, chegou no banco, o gerente muito prestimoso: “Tudo bem, senhor? Senta aqui, senhor. Um cafezinho, água? Quanto é que o senhor tem?”. Ele disse: “Aqui, 500 mil”. O gerente já foi preenchendo a ficha dele. Quando termina, o gerente diz: “Assine aqui”. Ele: “Não dá não. Só se eu tacar o dedão aí”. O gerente: “Não sabe ler nem escrever? Rapaz, você é analfabeto? E construiu isso tudo. Já pensou se você tivesse estudado?”. Ele respondeu: “Eu seria um sacristão” (risos). Ivna – E como foi que você conheceu Dominguinhos? Waldonys – O Dominguinhos foi o seguinte: eu já tava tocando e tal. Tocando uns forrós do Dominguinhos, instrumentais, porque o Dominguinhos é fenomenal! É como o Hermeto Pascoal (músico alagoano conhecido pela diversidade de instrumentos que toca). São pessoas que são fenômenos. E, aí, eu soube que tinha um show do Do-

Dona Joana mantém um pequeno museu em sua casa. Ela o chama de “meu cantinho”. Nele, estão discos, notícias e fotos de Waldonys e de amigos sanfoneiros. Apesar das reclamações da mãe, Waldonys sempre pegava coisas do museu e nunca as devolvia. Por isso, dona Joana o mantém trancado e somente ela tem a chave.

minguinhos em Mossoró (município do Rio Grande do Norte, distante 285 km da capital Natal e 260 km de Fortaleza), e o pai tinha uma loja lá. Aí, nós fomos pro show. Saímos daqui, pegamos o carro, fomos bater em Mossoró pra assistir ao show do Dominguinhos. Daqui pra lá, a gente ouvindo tudo do Dominguinhos, os forrós mais cabeludos do mundo, mais difíceis que tem de tocar. “Porra, como é que o cara toca desse jeito?”. Eu fui pra ver, mas eu sabia que eu não ia chegar nem perto, porque artista é bicho complicado, cheio de segurança, aquele negócio. “Rapaz, não vai dar, né? Mas vamos!” Aí, quando chegamos lá, a maior coisa do mundo, porque o Dominguinhos é a simplicidade em pessoa. Nós chegamos lá, foi superacessível. O cara passando assim no meio de todo mundo, não tinha problema. O Dominguinhos é até simples demais, mas ele não tem jeito, ele é durão. Eu falo pra ele, porque eu trabalhei com muitos artistas, né? Graças a Deus! Então, eu comecei a ver, porque artista não é nada, é simplesmente você vender a sua imagem, e se você não cuidar da sua imagem... Não tô falando aqui pra pessoa ser boçal, mas você tem que impor um certo limitezinho. Tudo demais é veneno, já dizia minha avó. E o Dominguinhos é simples demais, e isso estraga, mas só que naquele momento foi ótimo pra mim, porque eu cheguei, conheci. Não toquei pra ele, mas, por ironia do destino, pouco tempo depois ele veio a Fortaleza. Aí, sim, eu toquei pra ele. Daí nasceu uma grandessíssima amizade, de pai pra filho, que dura até hoje. Isabele – E, seguindo os conselhos dele, a dona Joana colocou você no Conservatório Alberto Nepomuceno (escola de música criada em 1938 em Fortaleza), mas você não ia às aulas. Assim como o colégio, não se dedicava muito às aulas.... Waldonys – É mentira, eu ia. (risos de todos) Porque é assim, o Conservatório foi bom, só que acontece é o seguinte – é que a mãe não ia comigo, ela não sabe –, quando eu chegava na sala de aula do Conservatório, ali tinha um monte de aluno que não tinha a menor tendência pra música, que tava ali porque a mãe pegou e disse: “Ah, minha fi-

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Entre as inúmeras preciosidades guardadas no “cantinho” de dona Joana, está a sanfona que Waldonys ganhou de Luiz Gonzaga quando tinha 14 anos. A sanfona de “seu” Luiz é guardada em uma redoma de vidro, juntamente com a jaqueta e o chapéu do rei do baião.


O nome de Waldonys é uma homenagem a um irmão de dona Joana. Ela e o irmão eram muito unidos, e ele faleceu quando tinha cerca de 11 anos.

Waldonys é casado há 12 anos com Luciana e tem três filhos: Leonardo, 11 anos; Lívia, 10 e Luciano, 9. Os filhos são os únicos a apoiar sua paixão por avião, mas ele não costuma levá-los para voar. Luciana e Waldonys são primos de 3º grau. Ela morava em Mato Grosso do Sul. Segundo dona Joana, Luciana passava as férias em Fortaleza, e, nessa época, o casal já paquerava.

lha vai fazer balé, vai fazer piano, bota lá no Conservatório”. E aí, o professor ficava meio que preso, porque ele tinha um ritmo lá a seguir, mas o ritmo, às vezes, ficava meio atrasado, porque aquelas pessoas... E, aí, eu e mais um, ou dois, três alunos lá que tinham uma tendência maior pegava muito mais rápido a matéria e tal. E a gente se sentia meio travado, entendeu? Porra, a gente sentia que dava pra adiantar muito mais, então, ficava meio chata a aula, sabe? Legal e tal, mas não deslanchava muito. Aí, eu saí do Conservatório. Estudei ainda um tempo lá e saí. Eu peguei um professor tête-à-tête, chamado Tarcísio Lima, só pra teoria, porque o Walmir passava... (a prática). E esse cara entende muito, muito, muito. E, aí, foi ótimo, porque ele “arrochava” o volume de acordo com os meus ouvidos. Se eu ia adiantando, ele adiantava a matéria. Ele ia junto comigo. Então, a sua graduação é muito maior, né? Então, essa foi a grande vantagem depois do Conservatório. Aí, comecei a aprender com ele e a aprender com o mundo. Thiago – E toda essa dedicação do seu pai na sua carreira, foi ele quem levou você pra Mossoró, sempre acreditou. Isso de alguma forma causava ciúmes nos seus irmãos? Waldonys – Vixe, tu é doido? Demais! Principalmente no mais velho, e o mais velho... invocado demais. Ele achava – e não era, se fosse, eu dizia mesmo porque eu não tenho vergonha – que eu deixei de apanhar muito por causa da sanfona (risos de todos), e ele apanhou muito mais porque ele não tocava. Mas não era, era porque ele era muito mais danado. Aí ficava, né? “Porque o Waldonys não sei o quê... Quando vai apanhar, pega a sanfona”. E nunca, nunca... Se eu tivesse eu dizia... Não lembro não (risos). Ivna – Voltando pro Dominguinhos, foi ele quem te levou pro Som Brasil (programa de televisão dos anos 90, exibido na Rede Globo), e depois gravou um disco, o Choro Cho-

“(...) o ‘seu’ Luiz tinha a preocupação da extinção do instrumento, porque não tinha jovens enveredando pelo caminho da sanfona”.

rado (disco de Dominguinhos, 1994 – Warner/ Continental). O que Dominguinhos representa na sua carreira? Waldonys – Eita, é porque eu comecei dando muito mérito, e, merecidamente, ao Walmir, mas o Dominguinhos, vixe Maria, passa de tudo, né? Porque é o seguinte: infelizmente, você tocar... Precisa de um padrinho. É um negócio assim que tem que ter. E, ao mesmo tempo, é uma “faca de dois legumes” (ele brinca com o ditado “é uma faca de dois gumes”), porque, quando você tá com padrinho, que você consegue atingir algum ponto assim legal, aí, o cara diz: “Ah, é porque é afilhado de não sei de quem”. Nunca é pelo seu mérito, e, se você também não tiver esse padrinho, é difícil demais chegar, é muito complicado. Síria – Você sofreu com essa comparação, Dominguinhos e Waldonys? Waldonys – Total, sempre teve uma pitadinha de veneno no meio, mas você tira de letra, sabe? Se souber, se tiver uma presença de espírito boa, você vai escapando, mas você sente as pedradas. Gustavo – Tem algum exemplo que poderia falar de alguma pedrada? Waldonys – (risos constrangidos) Não. Tem, mas é porque eu não quero falar não (risos). O Dominguinhos representa muito pra mim. Às vezes, a pessoa pensa que o cara vai dar uma travada, porque pode ser ameaçador, alguma coisa desse tipo, isso é o que acontece muito, né? A pessoa vê o cara se dando bem ali numa área, que é a sua área, e ele bota uma pedra em cima... Não, o Dominguinhos não. Ele pega e leva e mostra e tal. “É meu afilhado e tá tocando bem...”. Taí tudo o que ele fez por mim, de me levar pra São Paulo, de gravar o primeiro (disco), (primeira) vez que eu entrei no estúdio. Logo em seguida, eu entrei também com “seu” Luiz, mas foi através do Dominguinhos que eu conheci o “seu” Luiz (Gonzaga). Na época, o “seu” Luiz tinha a preocupação da extinção do instrumento, porque não tinha jovens enveredando pelo caminho da sanfona. E o Dominguinhos chegou: “Tem um menino lá em Fortaleza, assim novinho e tudo, e tá tocando, tá tocando bem”. Aí, o “seu” Luiz “pá”, numa conexão bem demorada, saiu do aeroporto e veio aqui em casa pra me conhecer, mas tudo por conta do Dominguinhos. Entrar no estúdio e gravar o Choro Chorado foi legal demais. Isabele – Waldonys, você disse que foi o Dominguinhos que lhe apresentou o “seu” Luiz Gonzaga. Conta pra gente como foi o dia desse primeiro encontro, que ele veio aqui. Waldonys – Foi massa, “seu” Luiz, né? Como eu disse, eu nasci e me criei vendo os

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LP’s, ouvindo muito o “seu” Luiz. Ouvindo o pai tocar e o meu tio cantar. Aquilo tava muito presente, mas com uma distância enorme, porque ele era o “Rei do Baião” e aquela coisa toda. E, aí, ver o “seu” Luiz entrando aqui em casa... Rapaz, foi um negócio marcante demais, né? “Poxa, não é possível”. Na verdade, você endeusa a pessoa, querendo tocar, fica querendo estar perto ali. “O cara é de verdade mesmo”. Thiago – Você, com 12 anos, já tinha essa noção da grandiosidade de Luiz Gonzaga? Waldonys – Já, porque eu convivi com isso aqui em casa. Era o pai idolatrando, todo mundo falando, onde chegava... Luiz Gonzaga é Luiz Gonzaga. Então, eu aprendi desde cedo o valor que tinha o “seu” Luiz. Dominguinhos já era demais, mas, aí, é engraçado, né? A história da simplicidade. Com a simplicidade do Dominguinhos, ele se tornou tão, assim... comum pra mim. Já o “seu” Luiz não. O “seu” Luiz, quando chegou aqui, foi um negócio arretado. E veio gente demais, e aquela coisa do mundo, o cara entrando e tal. Era o Rei mesmo. Forma aquela expectativa no telespectador, no caso, eu, que tava esperando. No caso do “seu” Luiz, no dia em que eu o conheci, já toquei pra ele. Depois, nasceu também uma grandessíssima amizade, porque o pai se desmanchou de carinho, de atenção com o “seu” Luiz. Lucíola – Como foi no momento em que você tocou pra ele? Waldonys – Nervoso pra caramba! Nervoso total! Mas graças a Deus, saiu legal. Porque isso mexe muito... É natural. Você tá nervoso, dá uma escorregada, uma notinha fora, dá uma erradinha. Graças a Deus, saiu tudo beleza, porque também eu já tinha tocado não sei quantas mil vezes esse mesmo repertório. Eu toquei um pot-pourri (expressão que se refere ao modo de executar várias músicas mescladas) de músicas dele. O Algodão, o Último pau de arara (começa a cantarolar baixinho a música pra lembrar o nome), Paraíba e Que nem jiló. Foram essas quatro músicas. Gustavo – Waldonys, você sentia que aquele momento ia ser providencial na sua carreira? Waldonys – Cara, não deu tempo, eu não pensei nisso não (risos). Eu não sei nem o que eu pensei no momento. Eu sei que eu tava diante do Papa, assim pra mim, da sanfona, né? E tocando pra ele, e ele muito bem sentado olhando e, aí, se admirou, né? Por quê? Por conta que o Walmir passou tudo direitinho pra mim e tudo moderninho, tudo com acordes já pra frente, nada quadradão, pé de galinha – como a gente chama sanfoneiro que toca assim só com os três pés de

galinha (apenas com três dedos) –, usando a digitação. Isso tudo impressionou o “seu” Luiz, graças ao Walmir. E ele: “Rapaz, aplicando as sétimas e não sei o quê”. E ele gostou muito da forma como eu toquei. Já me convidou para ir para Exu (município pernambucano, cidade natal de Luiz Gonzaga), no aniversário dele, 13 de dezembro. Ele me deu uma sanfona. A sanfona hoje está guardada ali num aquário (redoma de vidro que se encontra no quarto em que está o acervo de Waldonys). Essa sanfona é de 120 baixos, uma sanfona de 120 baixos normal é desse tamanho aí (aponta para uma sanfona grande). Quando eu ia colocar uma sanfona de 120 baixos, eu desaparecia atrás dela (risos de todos), então, não dava. E o “seu” Luiz tinha uma sanfona de 120 baixos reduzida, que era uma raridade, não era muito comum, muito fácil de ser encontrada, e que dava certinho no meu pé, era o meu número, 120 baixos – quer dizer, eu podia fazer a mesma coisa com que a que eu faço hoje, é tipo o padrão – e reduzida, que dava certinho pra mim que era um menino. “Pega essa sanfona aqui”, ele disse. Muito, mas muito melhor que a minha, né? Eu saí de um Fusquinha para um Mercedes. Eu com vergonha, tímido. E seu Luiz: “Pode mexer, pode regular aí a correia”. Eu regulei pra mim, direitinho. “Agora toque”. Eu toquei um choro chamado 13 de dezembro, composto por ele, que é a data do aniversário dele. E é um choro meio chatinho de tocar, sabe? Não é um negócio muito simples não. Eu taquei o pau, toquei o 13 de dezembro. “E, aí, gostou da sanfona?”. Nem encarava ele, né? “Gostei, ‘seu’ Luiz”. E ele: “Mas gostou mesmo?” (aumenta o tom da voz, imitando a voz grossa de Luiz Gonzaga). Ele falava firme, né? “Gostei, ‘seu’ Luiz, gostei”. Ele: “Encaixou bem no peito?”. Eu disse: “Encaixou”. Ele: “Então é sua”. E eu (pensando): “Não, ele tá brincando”. Então, eu não reagi como deveria ter reagido, entendeu? Porque eu fiquei... (sem acreditar). “É sua”. E eu ganhei realmente a sanfona, autografou no fole (parte da sanfona onde o ar é comprimido). Foi quando eu fui pra Exu e tal, me levou pra São Paulo. Fui fazer show com ele em Iguatu (município cearense distante 380 km de Fortaleza), fui fazer show em um monte de lugar. Viajamos juntos, ele não tinha medo de avião, como o Dominguinhos tem, mas ele gostava também de dar uma viajada assim de carro, parar na beira da estrada... E aquilo era muito legal, eu ver, conviver com aquele negócio. Chegar nos clubes lotados e tal, pôxa, aquele assédio, aquela coisa. Chegar o momento... Porque ele parava o show e me chamava... “Vou trazer um menino aqui,

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Segundo dona Joana, Waldonys noivou a primeira vez, de brincadeira, aos 14 anos. Sua primeira paixão foi a professora de alfabetização. Waldonys brinca que gravou uma música de Raul Seixas especialmente para Luciana. Um trecho da canção diz: “... Se você pensa que eu sou seu escravo...”.

Waldonys contou que a esposa não gostou da “homenagem”. Assim que ele terminou de dizer isso, o telefone tocou, era Luciana.


Com 16 anos, Waldonys passou seis meses tocando nos EUA. Dona Joana diz que ela e o marido temiam que o filho chegasse ao Brasil cabeludo, tatuado e usando brinco. Quando Waldonys tinha 10 anos, saltou de asa-delta pela primeira vez. Dona Joana ficou chorando de preocupação, mas ele adorou.

A aviação só reapareceu na vida de Waldonys por volta dos 20 anos de idade.

assim, assim, assim”. Legal pra caramba! Só que não entrava como eu entro hoje, claro, né? Porque isso veio com o tempo, eu entrava tímido, escondido atrás da sanfona. Poderia ter aproveitado muito mais, mas só o tempo é que vai fazendo você amadurecer. Edwirges – Waldonys, nessa época, com todo esse contato com Dominguinhos, com Luiz Gonzaga, ele chegou a te chamar de moleque atrevido quando vocês gravaram juntos, você já tinha noção de que era tão bom ou se sentia inseguro? Waldonys – Era bom, mas eu me sentia inseguro, porque eu tô dizendo, era muito tímido, e aquilo era meio chato pra mim, sabe? Subir no palco e tocar... não é como hoje, que eu me realizo, eu acho massa, sabe? Eu acho que eu não consigo viver sem... Eu já fico pensando lá na frente, porque tudo é uma fase na vida, isso vai passar, e eu tô vivendo intensamente o momento, até porque eu acho maravilhoso. Na época, eu não achava tão bom quanto hoje, porque (pensava): “Será que as pessoas vão gostar? Será que vai dar certo? Será que eu não vou errar? Será que eles estão querendo ver isso mesmo?”. Sabe, um monte de “será” que era meio travado, meio chato. Ivna – Mas você tinha noção do seu talento? Waldonys – Eu acho que sim (risos). Thiago – E hoje, no palco, você toca, você canta, você conta causos. Como foi essa superação da timidez? Waldonys – Vixe, cara, não teve um estalo não, sabe? Eu acho que foi, foi, foi vindo com o tempo, foi acontecendo. Eu fui vendo as várias maneiras, e foi indo porque vem com o tempo, não tem jeito, é trabalhar, tocar com outros artistas. Três anos que eu fiquei com o Fagner (cantor e compositor cearense) como músico, né? E tocando ali, você vai vendo, você vai começando a pegar. Sem querer, você pega as coisas. Vamos então com o Zé Ramalho (cantor e compositor paraibano). Chega com a Ivete Sangalo (cantora baiana), toda extrovertidazona, esse jeitão dela legal e tal. Você começa: “Ah, rapaz, sabe que isso (a timidez) não leva a nada mesmo?”. O tempo vai te ensinando, não tem jeito. É a

“Era bom, mas eu me sentia inseguro (...) Subir no palco e tocar... Não é como hoje, que eu me realizo”.

história da maturidade, você não amadurece assim “tum” (estala os dedos). Tem Marisa Monte (cantora e compositora carioca), viajando e tal, no exterior. Tocar com o Armandinho, que ele já mostra um lado mais poprock. Você diz: “Poxa, eu acho que esse aqui é um caminho mais meu”. A primeira vez que fui pros Estados Unidos, eu fui contratado por um empresário italiano chamado Franco Fontana, que me viu no Som Brasil, e era massa esse programa. Eu fiz esse programa cinco vezes. Uma vez eu fui com o “seu” Luiz Gonzaga e o Dominguinhos lá no SESC Pompéia (pólo que reúne teatros e uma ampla área de lazer), em São Paulo, era gravado. Ainda hoje, quando eu passo lá, não tem jeito de eu não me lembrar disso. Uma fase massa! “Queria trazer um menino aqui e tal, do Ceará, que tá tocando e tal...”. Eu toquei, as pessoas gostaram demais, aplaudiram muito. Depois, a Globo me chamou de novo, eu fui. Chamou de novo, eu fui de novo. Chamou de novo, eu fui de novo. Chamou de novo, eu fui de novo. Quatro vezes. Um empresário, o Franco Fontana, me viu no programa e tava querendo um sanfoneiro novo pra ir pros Estados Unidos. E que não tivesse mulher, não tivesse filho... Todo esse negócio que atrapalha, às vezes, um pouquinho. Deu certinho, né? Foi pra mim o negócio. Só que ele tinha dúvida: “Rapaz, esse cara será que dá certo mesmo, será que presta, será que não presta?”. Ele tinha uma representante aqui que era tia do Caetano Veloso. Ela falou com “seu” Luiz: “Oh, ‘seu’ Luiz, um menino assim, assim, assim”. “Seu” Luiz: “O Waldonys”. Ora, eu, o afilhado dele... Ele “pá” avalizou, né? Falou com Dominguinhos, Dominguinhos também (avalizou). Ora, não deu outra, eu “pá”, fui embora pros Estados Unidos. Gustavo – Foi fácil pra você ir? Waldonys – Foi não. Ivna – Você tinha dezesseis anos, não é isso? Waldonys – Tinha dezesseis anos. “Primeiro passaporte concedido com a autorização dos pais do menor” (risos). Porque assim, nunca nós fomos ricos e tal, mas a gente vivia relativamente bem, né? E eu tinha que sair da casa do papai, da mamãe, com os irmãos, com os primos todo fim de semana, com aquela estrutura ali. Eu tinha que ser arrancado dali e ir pros Estados Unidos sozinho... Pessoas que eu não conhecia, língua diferente, sem saber falar, nem pedir água em Inglês, nada, nada, nada. E eu tive que... Sangue no olho mesmo e vou embora. E o pai e a mãe apoiando. Eu “tchuuu” (imitando barulho de aviões), embarquei pros Estados Unidos. Eu e uma mulher que foi comigo pra chegar lá e me

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apresentar, eu nem conhecia o cara. Chorando que só uma porra, fui. Quando cheguei lá, tá lá o cara, né? Franco Fontana, italianozão frio, de Nápoles, mafioso, que a mãe morre e ele nem... O cara não sabe o que é sentimento não, esse cara não tem coração não. Eu tô falando demais, tô? Todos – Não! (risos de todos) Waldonys – Sim, cheguei lá, fui conhecer o pessoal que fazia o show, os americanos, todo mundo. “Pá”, sanfona no peito do menino. “Toca aí a música”. Eu (pensei): “Vou tocar a música aqui mais difícil que eu sei pra me amostrar” (risos). “Pá, blu, blu, blu” (com as mãos finge que toca uma sanfona no ar). O dedo só faltou cair da mão (risos). Quando eu terminei, os caras ficaram assim... “Você lê?” (partitura). Eu: “Dou minhas cacetadinhas, leio”. Endeusaram, né? Porra, foi massa. Pra você ver, se eu tivesse desmontado a sanfona como eu fiz, mas não ter uma teoriazinha, pra eles... (faz sinal com a mão indicando descaso). Eu me lembrei muito do (Conservatório) Alberto Nepomuceno, do Tarcísio Lima e tal. Quer dizer, eu não acho que o músico deva ser só teoria, que dá um vento, a partitura voa, o cara não sabe mais pra onde é que vai. Mas também não acho que só ouvido, só a música no sangue... É legal você ter um conhecimentozinho ali. Se for pra escolher, eu prefiro no sangue, porque o Dominguinhos é assim um negócio... Falando agora do Dominguinhos, pelo amor de Deus! Por várias vezes, não foi uma, nem duas não, eu já vi maestros se curvarem. Chegam com a partitura: “tá aqui”. O Dominguinhos: (imita a voz grossa de Dominguinhos) “Sei ler não, senhor” (risos de todos). “Toca uma ‘vezinha’ aí pra mim”. O cara “pá”, tocava. Uma vez! O Dominguinhos: “Ah.. Blurrrrrrum”. O maestro: “Porra! Como foi isso aí, como foi, pera aí, pera aí”. Queria escrever o que o Dominguinhos fez. Ele fazia diferente. Dez vezes diferente. “Esse cara não é desse mundo!”. Agora, é muito raro. Voltando pros Estados Unidos, toquei e fiquei lá. E lá eu convivi com muitos músicos e isso foi muito bom. Conhecer o acordeon como é que é usado lá no country, e aprendendo cada vez mais, porque a música, cara, não tem fim. É como o Sivuca uma vez disse no Projeto Asa Branca (programa de educação profissional voltado para jovens de baixa renda e escolaridade, Natal-RN), ele disse pra mim, e é verdade: “Oh, Waldonys, no dia em que o cara chegar pra ti e disser ‘Rapaz, porque eu peguei a sanfona ali e eu tô fazendo e acontecendo’. No dia em que o cara disser isso, ele nem começou. Porque não existe isso, não tem fim, você tá sempre

aprendendo”. Então, foi isso que aconteceu lá. Eu convivi com outros grandes músicos, comecei a ver também o outro lado da moeda, que os caras muito doidos, bicho, usando um monte de coisa lá que eu: “Vixe, Maria, lá no Ceará, lá em Fortaleza, não conhecia esse negócio não”. E os caras muito doido e tal, cheirando e fumando... o cacete! E eu.. “Rapaz, pelo amor de Deus, eu tenho um tio que é frei, uma tia que é freira também, venho duma família.. eu não vou cair nessa, né?” Pronto. E isso foi muito bom. Eu vi grandes amigos e grandes músicos conseguirem assim, palácios, apartamento no Leblon (bairro de classe alta da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro), “pá”... Tudo por causa de um arranjo que ele fez pra Elba Ramalho (cantora paraibana) que estourou. Eu não vou dizer o nome do cara aqui, e o cara ficou “beeeem” mais rico, apartamento, o cacete, carro novo, era assim direto, o cara entrou nessa. Cheirando e tal, bateu o carro, fez a maior merda, cheirando a família, acabou com a família, cheirou o apartamento, foi embora o apartamento, cheirou o carro... o cara se acabou. Hoje em dia, a gente se encontra com o cara, o cara colostomizado (abertura cirúrgica de uma comunicação artificial do cólon com o exterior). e tal, e eu: “Rapaz, sabe que eu segui o caminho certo?”. Eu acho que vem do alicerce, da história da família e tal, disso aqui que é muito forte. E eu convivia com os caras lá e via que os caras, porra, não sabiam de onde vinham, nem pra onde iam, mãe e pai separados, o maior desajuste do mundo. E eu: “Rapaz, só pode ser isso”. E eu sempre fui muito, fora do palco, brincalhão. Quando eu criava uma intimidade com as pessoas, eu “brincava e era piadista” pra caramba e tal, e eles adoravam isso. Eu sempre soube conviver muito bem com esse tipo de gente, porque eu nunca fui contra: “Ah, tá errado, você tá errado”. Não, “Faça o que você quiser, você tá certo,

“(...) não acho que o músico deva ser só teoria (...) Mas também não acho que só ouvido (...) É legal você ter um conhecimentozinho ali ...”.

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Depois de praticar aeromodelismo, Waldonys passou a saltar de asa-delta. Um dia, caiu e fraturou o joelho. Ele conta que foi a maior dor que já sentiu. Depois, ele passou a voar de ultraleve. Também se acidentou, faltando muito pouco para bater em uma mangueira.

Waldonys possui dois aviões: um vermelho, com assento somente para o piloto, destinado às acrobacias, e um branco, maior, com assento para passageiro.


Segundo “seu” Eurides, Waldonys faz loucuras quando voa. Uma delas é pousar em plena estrada porque teve vontade de comprar queijo. Waldonys é um homem muito simples e solícito. Não hesitou em dar carona à equipe de produção em ambas as vezes em que fomos ao aeroclube.

Quando a equipe esperava a carona de Waldonys até o aeroclube, Isabele e Gustavo tomavam sorvete. Waldonys chegou e Gustavo não havia acabado.

eu também tô certo”. Então, dividi quarto, por exemplo, com o Nando Reis, do Titãs: rapaz, foi um negócio, eu nunca vi aquilo, o cara doido e tal... Mas eu também respeitava e saía, passeava, ia ao shopping e voltava. E o cara trancado no quarto, mas doido, em tempo de pular, e eu: “Esse cara vai se suicidar aí, e a culpa vai ser minha”. Tu sabes o que é o cara passar a noite todinha, tu aqui de frente pra televisão com o controle e o cara passando na tua frente nu? Lá nos Estados Unidos, eu conheci esse lado da música que tem demais, né? Mas, graças a Deus, consegui conviver e consegui driblar na forma melhor possível, e, voltei. Gustavo – Waldonys, lá nos Estados Unidos, como é que conseguia se comunicar com tua família? Quando se sentia mal ligava pra sua mãe, mandava cartas? Waldonys – Ligava e mandava carta direto. Era escrevendo e ligando, porque era assim: a gente tocava quinta, sexta, sábado e domingo, duas sessões (por dia). O show era um show de duas horas de duração. Nessas duas horas, eu fazia 15 minutos, 20 minutos. Eu fazia um trecho do show, o trabalho realmente era pouco. Eu ficava mais lá era passeando, tocando, brincando com os caras. Então, segunda, terça e quarta era horrível pra mim, quando eu não tava passeando, no começo, né? Depois, não, é o tempo “véi” é bom demais. Você começa a se desligar mesmo e vai ficando tranqüilo, mas, no começo mesmo, tu é louco, no primeiro mês: “Eu quero ir embora! Tenho que ir embora daqui, isso aqui é um inferno!”. Thiago – E você relatava isso nas cartas pra sua mãe? Waldonys – Demais! Eu usava até uma malandragenzinha, porque eu exagerava um pouquinho pra ver se eu vinha embora (risos), mas foi ótimo eu ter ficado. Se eu tivesse voltado, cara, teria perdido um monte de coisa. Talita – E o que te motivou a continuar lá? Waldonys – Rapaz, é porque as costas

“(...) tem uma pitada de cada um. (...) detalhezinhos que eu acho que vão carimbando a forma como eu entro no palco e toco”.

largas, e agüentando as chibatadas mesmo.. E fui ficando, ficando. Uma vez, eu falei até com o Fagner. O Fagner tava em Exu, e ligaram. E eu: “Rapaz, aqui tá foda e tal”. Ele disse assim: “A saudade faz bem” (imitando a voz de Fagner). E eu: “É, quem tá aí falar isso é bom mesmo, quem tá aqui...”. Fui ficando, fui ficando, acabei que eu fiquei uns oito meses lá e voltei contratado por uma gravadora. Quando foi pra eu voltar, o dito italiano, friozão... O cara, pra tu ter idéia, a mãe dele morreu, ele não foi pro enterro, porque tava o show rolando lá. “Morreu, enterra lá”. Então, cara, ele não tinha noção do que era saudade. Eu dizia: “Seu’ Franco, eu tô querendo ir embora”, já tava contratado aqui da gravadora, mas eu nem falei muito do contrato. Ele: “Mas o que é? É o cachê que tá pouco? Eu aumento”. Eu: “Não, não é. É saudade!”. E ele: “Mas saudade, eu não entendo, cara, esses brasileiros são... eu não entendo isso. Saudade, que saudade?”. O negócio dele é dinheiro, entendeu? Ele me deu a passagem de volta, disse: “Oh, eu não faço isso pra ninguém não, mas você vai lá e vê essa história dessa sua saudade aí. Depois, você volta”. Eu: “Olha, eu não garanto não (risos), mas você tá me dando a passagem”. Ele: “Não, se você não quiser voltar, tudo bem. Não tem problema.” Mas me deu a passagem pra eu voltar. Eu vim. Ah, tu é doido? Quando eu cheguei aqui, ave Maria. Cheguei, “afilhado do Luiz Gonzaga chegando dos Estados Unidos”, fui pra TVC (TV Ceará, emissora de televisão). “Agora tô artista mesmo” (risos). Pronto, fiquei por aqui, fui gravar lá o negócio da RGE (gravadora), gravei dois LP’s. Tava perto de sair na rua pra perguntar se alguém me conhecia, pra testar minha popularidade (risos). Thiago – Foi nesse período que você ficou conhecido como o afilhado de Luiz Gonzaga? Waldonys – Acho que sim. Quando eu gravei com ele o Aí tem (Aí tem Gonzagão, disco de Luiz Gonzaga, 1988 – BMG), o LP com a faixa Fruta Madura, em que ele me chamou de menino atrevido, os caras lá do Rio, os músicos, já começaram a me conhecer. Existe, uma panelinha, no bom sentido, no Rio de Janeiro, em São Paulo, de grandes músicos. E quando conhecem uma pessoa que tem uma afinidade, que faz um negócio legal, você começa a ser conhecido no meio, e isso facilita. E, também, você tem uma grande responsabilidade, porque se um cara diz: “Rapaz, eu conheci um menino assim, assim, assim...” Quando o cara chama: “Vem cá, menino, pra tu gravar aqui um negócio”. Tu tem que fazer bem feito, porque senão o cara diz: “Ah, menino, é isso aqui que tu disse?” Ivna – Na sua discografia, você faz mui-

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ta referência a Luiz Gonzaga e o chama de padrinho. Mas Dominguinhos também é seu padrinho, por sinal, até de crisma... Waldonys – Isso. (risos) Ivna: Então, você é apadrinhado e aprendiz de quem? Quem mais impulsionou sua carreira? Waldonys – Rapaz, eu não posso colocar a responsabilidade só em cima de um. É como eu digo, a gente tá sempre aprendendo. Por exemplo, essa história dos casos, de contar uma besteirinha aqui, uma piadinha aqui, uma coisinha acolá, já vem do “seu” Luiz. Então eu acredito que tem uma pitada de cada um e dá uma mexida, faz uma salada. Tem uma pitadinha do “seu” Luiz, tem uma técnica usada pelo Dominguinhos, tem... Eu acho que, de repente, um pouco daquela postura do Osvaldinho com Armandinho, de tocar aquela guitarra baiana, de botar a sanfona meio de lado e tal... Pequenos detalhezinhos que eu acho que vão carimbando a forma como eu entro no palco e toco. De cantar, eu já puxei mais para o lado do Raimundo, o Fagner. Então, eu acho que quando eu tô ali no palco é meio que uma simbiose, uma mistura de todos eles. Mas tem muito do Dominguinhos... Para batizar mais. Para dar uma porrada maior em um. (risos de todos). Edwirges – Como foi que você teve o primeiro contato com o Fagner, foi logo que você voltou dos Estados Unidos? Como foi esse contato? Waldonys – Quando eu voltei dos Estados Unidos, eu gravei dois LPs, o Viva Gonzagão e o Veleiros (dois dos primeiros discos de Waldonys, 1992 e 1993 – RGE). Me ligaram falando: “Vamos fazer uns shows com o Fagner e não sei quê...” E eu: “Bora...”. Danamos o pau. Fiquei três anos com ele. O Fagner nunca foi de fazer muito show, entendeu? De dizer assim: “Eita, esse mês nós temos uma porrada de shows!” Era mais assim, se ele tivesse um joguinho, uma pelada, ele deixava de fazer o show. (risos de todos) Fiquei com o Fagner esses três anos e só viajamos uma vez para fora, que foi para Portugal. Nós também fizemos aqui o Som Brasil (programa de música da década de 90). Eu tava inclusive com a perna quebrada por conta de uma queda de asa-delta que eu tive. Tava com a perna engessada e com a calça por cima do gesso, andava a la Roberto Carlos (cantor e compositor brasileiro). (risos de todos) Mas fiz o Som Brasil. Nesse tempo da volta de Portugal, eu tava no Rio (Rio de Janeiro) e recebi uma ligação do pessoal da Marisa Monte. E eu não era fã da Marisa, entendeu? Eu nem conhecia. E falaram: “Olha, a Marisa está aqui no estúdio. É pra tu vir aqui”. Um carro foi me buscar e

fui pro estúdio. E falaram: “É para tu gravar um negócio e tal...” Eu pensei: “Puta merda, mas eu não conheço a mulher... (risos de todos) Eu vou chegar lá e não vou saber nem quem é”. Tinha quatro mulheres lá. Ela falou: “Ah, você é o Waldonys”! E foi assim, negócio de amor à primeira vista - amor no bom sentido – de grandes amigos, irmãos. E eu falei: “Boa noite, tudo bem?”. Fomos conversando, e ela falando: “Ah, Waldonys, vem cá, vou te mostrar...”. Eu pensei: “Olha, se ela me chamou, deve ser essa, as outras devem ser só coadjuvantes”. Ouvi alguém chamando e pensei: “É ela”. Ela disse: “Vamos ouvir aqui a música”. A música era Segue o Seco, do Carlinhos Brown (compositor, cantor e percursionista baiano). E foi massa, sabe? Rolou um negócio muito legal, porque ela foi falando: “Waldonys, eu tava pensando em um negócio assim...” (Waldonys canta como Marisa queria que a sanfona soasse). E ela começou a fazer as frases e eu disse: “É comigo mesmo!” E eu fiz o que ela queria. Era o simples, era o mais complicado... Mas era o que ela pensava. Foi legal. Beleza! Acabamos, tomamos um café lá no estúdio e fui embora. Passou (o tempo)... E eu ainda com o Fagner. Fiz só essa gravação e continuei tocando com o Fagner. Quando foi dois, três meses depois, a gente fazendo o Som Brasil, que era o Som Brasil que passava às terças-feiras. Terça Nobre Som Brasil, que foi inclusive gravado aqui no Parque do Cocó (Parque Ecológico do Cocó, parque de preservação ambiental de Fortaleza). Um “showzasso” grande! Uma estrutura danada da Globo. Antes desse show, liga aqui pra casa a Marisa Monte. Ela em pessoa. Disse (Waldonys imita a voz de Marisa): “Oi, Waldonys, é a Marisa. Ficou tão massa a gravação. O Gil adorou...” E eu: “Gil? O Gilberto Gil?” (risos de todos). Eu fui começando a ver o tamanho da Marisa Monte. Porque, quando eu dizia pras meninas aqui, minhas irmãs e primas, elas diziam: “O quê?! A Marisa?!”. E Eu: “Rapaz, a mulher, parece que tem moral mesmo!”. Depois, ela me ligou: “Waldonys, é o seguinte: eu queria lhe convidar para fazer a

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Como não queria jogar o sorvete fora, Gustavo pediu ao sanfoneiro permissão no carro (limpíssimo) tomando sorvete. Waldonys, muito simpático, permitiu. Todas as vezes em que a equipe de produção entrou no carro de Waldonys, seus CDs tocavam. O que mais chamou a atenção da equipe foi um álbum, ainda inédito, em que o sanfoneiro canta músicas de MPB.

Ele canta músicas de Raul Seixas, Almir Sater, Guilherme Arantes, entre outros. Waldonys mostrou com orgulho a música “Sonho de Ícaro”: “Voar, voar. Subir, subir (...)”. Contou que sonha em fazer um videoclipe da música, aliando-a à aviação.


A equipe de produção foi tensa para a pré-entrevista no aeroclube, pois não sabia se ia ter a oportunidade de voar. Ainda no carro, Waldonys falou que o plano era que os três voassem. Isabele e Ivna começaram a rir de nervosismo.

A equipe estava disposta a voar, mas não foi da primeira vez que o passeio deu certo. Uma falha no avião foi responsável pelo adiamento do vôo.

turnê internacional comigo. Nós vamos fazer Europa e Estados Unidos. São dois meses”. Eu disse: “Tá, eu vou pensar”. (Waldonys escancara um sorriso enorme). Quando eu desliguei o telefone, eu disse: “Puta merda! Vou viajar, numa turnê internacional com a Marisa Monte!”. Só que eu tava com o Fagner e eu venho de uma escola que me ensinou a deixar sempre as portas abertas, a gente nunca sabe o dia de amanhã. Eu disse: “Bom, como é que eu vou sair do Fagner?” Eu fui falar com ele e disse: “Olha, Fagner, eu gravei com a Marisa...E ela me ligou convidando para eu fazer uma turnê internacional. O que é que tu acha?”. Ele falou (Waldonys imita, com perfeição, a voz de Fagner): “Você é que sabe... Só vou lhe dizer uma coisa, você vai viver na mão de secretária. Mas você é quem sabe. Pense aí”. Eu disse: “Tá bom”. Depois ele me ligou e perguntou: “E aí, decidiu?” E eu: “Rapaz, eu acho que eu vou fazer uma experiência... Eu vou. Eu passei dois meses ensaiando no Rio (Rio de Janeiro), com a Marisa, porque ela é extremamente perfeccionista! É gente fina, é tudo, mas quando se trata de cuidar do trabalho dela... Sabe, é impressionante a mulher. Não desafina nem que empurre. Canta muito, sabe o que faz. E ela namorava com o Nando Reis (músico e compositor paulista, ex-guitarrista do grupo de rock Titãs). Teve uma briga, porque o Nando Reis era casado e não sei quê... E se desentenderam quando faltavam quinze dias para viajar. O Nando não foi e deu vez ao Davi Morais (compositor e guitarrista, filho do músico Moraes Moreira, já foi casado com Marisa Monte). E no meio da viagem, lá na Alemanha, o Davi começou a namorar com ela. Eu disse: “Pô, Marisa, na banda tem um cearense e tal, e tu vai escolher o Davi Morais...”. (risos de todos) Tava brincando, é claro. O certo é que nós fizemos vários shows. Porque tem artista que vai pros Estados Unidos, faz dois shows e diz que fez uma turnê (risos de todos). Mas ela, cara, fez muitos shows. Ganhei um bom dinheiro.

“O negócio é que eu sou esquisito mesmo. Eu tive que ser muito duro para chegar aonde eu cheguei.”

Cheguei aqui meio que falando grosso: “Rapaz, já dá para eu casar” (risos de todos) Chegamos. Nós só fizemos um programa de televisão. Eu trabalhei três anos com ela. Foi o Programa Livre (programa de auditório veiculado na década de 90 pelo SBT – rede de televisão), com o Serginho Groisman (apresentador). Fizemos três músicas. E eu já tinha ido ao Programa Livre com o Fagner, tinha ido com o Dominguinhos duas vezes e tinha feito uma vez sozinho. E quando a gente ia, era um especial, era o programa todinho a gente tocando. Até então, eu só entendia o meio artístico como todo artista querendo um espaço na mídia. Com a Marisa, nós só fizemos um programa e foram três músicas. Uma hora, eu estou passando em um corredor do SBT, e vejo o Leonardo Netto (empresário de Marisa Monte) com um dos caras do SBT dizendo que não tocariam mais nenhuma música. E eu pensando: “Êpa! Estão indo embora todos os conceitos que eu entendia de que a gente quer mais espaço na televisão...” Uma hora, no camarim, eu disse: “Vem cá, Leonardo, o cara tava querendo fazer mais uma música e tu tava dizendo não?”. E ele disse: “Era”. Eu disse: “Rapaz, eu não acredito. Porque toda vez que eu vim aqui, foi o programa todinho”. Ele disse: “Sabe o que é, Waldonys? Se eu quiser, eu boto a Marisa no Fantástico, no Faustão, em todo lugar, mas ela vira uma Carla Perez (ex-dançarina do grupo É o Tchan) e daqui a pouco ninguém agüenta mais”. A Marisa veio e disse: “Oh, Waldonys, é o seguinte, existem duas coisas”. E eu: “Eita pau, “peraí” que eu vou arregalar bem os ouvidos”. Ela: “Uma coisa é o sucesso, outra é o prestígio. O sucesso é muito difícil de ser feito e muito mais difícil de manter. E o prestígio, se você souber trabalhar, você tem a vida inteira”. Thiago – Além desse aprendizado, o que mais você trouxe dessa turnê com a Marisa? O quanto ela foi importante para a sua carreira? Waldonys – Vixe, Maria, demais! O perfeccionismo então, eu peguei de cara, que isso já vem desde a época do Walmir, de aprender a nota certinho e tal, mas aprimorou mais. Mas abriu muito para mim, porque é o seguinte: imagina que se abriam as cortinas do Canecão (casa de shows), no Rio de Janeiro, e entra Marisa Monte, elite total, classe AA da MPB, e não tinha um tecladista. Entra um sanfoneiro do Ceará. O show inteiro é uma sanfona e um guitarrista como o Davi Morais, o baixista era o Dadi, que era do (grupo) A Cor do Som, é um cara muito bem quisto lá. Isso tudo foi muito legal para mim, porque eu tava junto com aqueles caras ali. E, por ironia do destino, eu comecei a ter um destaque muito grande na banda. Ela

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(Marisa) começou também a interagir muito comigo, a ponto de o jornal O Globo, do Rio, preparar uma matéria de página inteira com o título: “O pop brasileiro redescobre a sanfona”. E eu: “Puta merda!”. Quando a turnê veio chegando aqui no Nordeste, a Marisa começou a me dar mais destaque. Eu disse: “Rapaz, eu não tô acreditando, não”. Ela chegou a ponto de sair do palco e me deixar. Dizia: “Eu vou deixar agora aqui o Waldonys, que vai fazer um instrumental”. Mas chegou uma hora em que complicou o meio de campo. Quando chegava junho, eu tinha que fazer meus shows, mas não dava. Porque tudo tem uma fase. Você tem que descer do bonde na hora certa e na estação certa. Eu cheguei e disse: “Marisa, agora eu acho que já peguei o máximo que podia pegar disso aqui”. Isso, sem ser egoísta, é claro, servindo também a ela, do mesmo jeito que foi com o Fagner. Diferente, porque ela foi um doce, só ficou lamentando. E eu tava morrendo de pena, porque a equipe inteira virou uma família. Ivna – Waldonys, voltando um pouco para a sua carreira em geral, o seu pai sempre quis adicionar outros elementos aos seus shows, como dançarinas e outros instrumentos. Por que você nunca concordou? Waldonys – (risos) Pois é. A gente tem, de vez em quando, não discussões, porque eu não posso discutir com ele. O pai é o pai. Mas eu procuro, da minha forma, passar por cima, porque eu não acho que seja para mim, entende? Eu acho que, de repente, ele peca um pouquinho em ir muito “na onda” das bandas. E eu: “Deixa as bandas, rapaz. Eu não sou banda”. E eu acho que é exatamente isso que me mantém durante tanto tempo, é o diferencial. Se fosse por ele, eu botava teclado... Mas a linha harmônica da minha sanfona já é um teclado, eu vou botar um tecladista para quê? É a mesma coisa de botar outro cara cantando junto comigo. É só para fazer volume no palco? Até dançarina o pai já chegou a... (sugerir). Eu disse: “Você tá doido, rapaz?” Coloco não. Até porque eu acho que as pessoas estão carentes de ouvir música, elas só têm ouvido muita bunda. Nas bandas, tem mulher se jogando, joga a roupa e tal. Eu até gosto, mas para mim, não. (risos de todos) Lucíola – E como você vê essas bandas de forró que estão fazendo sucesso atualmente? Waldonys – (risos) Eu acho que a gente não pode generalizar, mas virou um negócio muito comercial, muito comercial. E isso, eu acho que não é bom, porque eu acredito que você tem que andar em cima do muro. Nem muito musical, que as pessoas não consigam entender, como Hermeto (Pascoal), por

quem eu tenho o maior respeito do mundo, mas que atinge um pequeno público, porque nem todo mundo entende a musicalidade dele. E você não precisa ser muito brega, comercial demais. Eu procuro ficar ali, em cima da linha. Tipo, tocar num forró e tacar uma quinta sinfonia de Beethoven (Sinfonia Nº5, considerada um “monumento artístico” de Ludwing van Beethoven – compositor erudito alemão), não completa, que eu não sou doido... Mas dar uma pitadinha ali, sabe? De repente, faço uma salada musical, digamos assim. Porque, rapaz, é fogo! É sensibilidade demais, porque você tem que tá ligado no que é que as pessoas estão querendo naquele momento. Existe, mais ou menos, um repertório que eu traço. Não muda muito aquele repertório, mudam as entrelinhas. Então, por exemplo, eu tô ali, mas eu sei que lá no Kukukaia (casa de shows de forró de Fortaleza), o cara tá ali dançando, tomando umas, que tá a fim é de paquerar as meninas, então ele não tá a fim de ver se o cara toca muito ou toca pouco. Mas também tem o cara que gosta de ver um exibicionismo. Isso, com o tempo, você começa a aprender. Mas às vezes você erra. Às vezes, você vai ao show e o público não reage, e aí? Isabele – E como é um bom show para Waldonys? Waldonys: Show bom é quando o público tá ali, com sede de lhe ver. Tá ali, interagindo legal. Porque é um espelho, não tem jeito. Quando o público te recebe com carinho, você retribui da melhor forma possível. Rapaz, a sanfona pesa demais quando o público é ruim, aquele público morto... Parece que tá é numa missa de sétimo dia... E o show fica deste tamanho (abre bem os braços). Quando o público é bom, quando o show é bom, cara, passa tão rápido, que você mesmo fica: “Cara, já acabou?”. E você se empolga e faz um “bis”, um “tris”, um “quadris”... Entende? Eu acho que é um conjunto: público legal, receptivo, um som bom, uma estrutura legal e astral. E isso, não tem jeito, quando eu entro no palco, é difícil não estar num astral legal. Ah, “seu” Luiz (Gonzaga) me deu uma dica muito boa. Era um negócio engraçado que só. O “seu” Luiz era muito espirituoso.

“(...) eu acho que as pessoas estão carentes de ouvir música, elas só têm ouvido muita bunda”.

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O vôo foi adiado para a segunda pré-entrevista, marcada pelo próprio Waldonys. Seu desejo era que fosse já no dia seguinte, mas o encontro teve de ser adiado. No segundo dia no aeroclube, tudo estava pronto para o vôo e Waldonys perguntou quem iria primeiro, mas ninguém se dispôs.

Como as meninas se negaram veementemente a inaugurar o vôo, Gustavo foi o primeiro e adorou.


Quando Gustavo decolou com Waldonys, avisaram pelo rádio que a trava da porta esquerda não havia sido travada. Isabele comentou que não iria mais voar. Isabele, que inicialmente não queria voar, adorou a experiência. Ficou viciada com as acrobacias e, quando o vôo terminou, não queria mais descer do avião.

Enquanto Ivna estava voando, outro piloto informou pelo rádio: “Waldonys, amanhã tem uma palestra, na Base Aérea, sobre segurança de vôo”. O sanfoneiro disse que seria o primeiro da fila.

Ele disse: “Waldonys, é o seguinte, quando você for fazer um show, você olha pra mulher mais bonita que tiver na platéia. Você faz o show para ela, porque você vai fazer o melhor que você pode fazer”. E eu digo: “E é, “seu” Luiz?” E ele: “Tô lhe dizendo...”. Às vezes, quando eu subo no palco, eu me lembro disso, sabia? O “seu” Luiz sabia dominar o público, sabia botar o público na mão dele. Diego – Waldonys, como é que se dá o seu processo de criação musical? Waldonys – Cara, é o seguinte, eu me reúno com os meninos (da banda)... A gente ensaia muito pouco, muito pouco, mas flui, tá entendendo? Às vezes, numa passagem de som, eu bolo... E lá no meu apartamento, eu fico bolando, estudando, vendo os melhores tons, a passagem de uma música para a outra, como é que a gente bola um arranjo legal... Porque, cara, é o seguinte, show é dinâmica, entendeu? Uma das coisas, claro, do show é dinâmica. É você saber entrar porrada. Tem que entrar: “cheguei”, “pá”. Só que você não vai agüentar e vai ficar sacal, e vai ficar cansativo, o show inteiro pressão. Então, lá no meio do show, tu dá uma relaxada. Aí, vai, vai... Dá um crescentezinho, dá uma relaxada... Dinâmica eu aprendi com a Marisa também. Outra dinâmica, a dinâmica do cantar, entendeu? Eu reuni os meninos aqui outro dia, na gravação do DVD (Vinte Anos de Carreira, primeiro DVD de Waldonys), eu disse: “Olha, cara, vamos usar a dinâmica que eu me lembro do show da Marisa Monte”. Vamos saber fazer a introdução porrada e na hora em que o cantor for entrar - o cantor, no caso, eu -, baixa todo mundo. No refrão, sobe todo mundo”. Então, nós passamos aqui várias vezes, o resultado é outro. Porque no forró, normalmente, na zabumba e no triângulo, eles “sentam o pau” e isso afoga o cantor. E o silêncio faz parte da música. Isso, nós conversamos aqui numa boa. Mas o que eu acho legal também na banda que me acompanha é que ninguém é o dono da verdade. Eu não chego aqui dizendo que vamos fazer assim e assado. Um dá uma idéia aqui, outra acolá. A gente sabe acatar e sabe também não pegar sem dizer: “Rapaz, eu não gostei dessa tua idéia, não”. Gustavo: E essa simplicidade, essa forma de aceitar a opinião de todos, ela veio de

“Quando eu subo no palco, eu não sou de ninguém. No palco, eu sou do povo”.

alguma das suas parcerias ou de algum de seus padrinhos musicais? Waldonys – Rapaz... Tem a simplicidade do Dominguinhos, mas ele nunca precisou aceitar opinião de ninguém. Acho que isso veio de mim mesmo. Isabele – Waldonys, a dona Joana nos disse que, no início, ela tinha muito receio que você seguisse a carreira artística, pois temia que o assédio das fãs trouxesse alguns problemas familiares. Em algum momento isso aconteceu? Waldonys – Tem problema pra caramba, porque é complicado. O casamento já é complicado por si só. Você tem que saber administrar. É difícil, porque você mexe com gente. Então, você tá ali, recebendo uma fã, recebendo um carinho e beijando e abraçando e batendo foto... E paquerando, porque eu paquero mesmo. E eu digo pra Luciana (Luciana Menezes, esposa de Waldonys). Ela fica puta da vida comigo, mas eu digo. Quando eu subo no palco, eu não sou de ninguém. No palco, eu sou do povo. Então, não tem jeito, eu paquero, olho pra todo mundo, entendeu? Se não, trava. E isso é perigoso, porque você tá ali meio que exposto. Edwirges – Waldonys, eu queria voltar um pouquinho. A Lucíola falou a respeito do forró que se faz hoje em dia. Como é com o Waldonys, com a musicalidade que você se propõe? Você se sente isolado, ou encontra outras pessoas que seguem essa mesma linha? Waldonys – Graças a Deus, eu consegui ficar meio que num... Não é blindado, mas também não é num patamar, para não soar como se eu tivesse me achando mais do que alguém. Mas, graças a Deus, não me atinge muito a história das bandas, sabe? E eu acredito que eles devem achar que o Waldonys é uma mosca morta... Isso eu estou achando, porque os caras fazem mega-eventos e tudo mais. Só que eles não se preocupam com o amanhã, eles se preocupam com o ganhar e ganham mesmo. Eu acho, inclusive que, nesse ponto, eles estão certos. Porque os caras não têm uma linha a seguir. Eles não têm uma história. Já eu tenho uma história e tenho uma responsabilidade com essa história. Eu não posso mudar. Não é que eu não possa mudar, eu não devo mudar. Você já pensou? Eu, entrando agora no palco, cantando forronerão (ritmo que resultou da mistura de forró com vanerão – ritmo da região Sul do Brasil), com quatro dançarinas mostrando a bunda, com teclado e o cara gritando: “É o forró do Waldonys!”. Sabe, não encaixa... E o bom é que, graças a Deus, não tem faltado show. Cada vez mais aparece, cada vez mais lota a agenda, cada vez mais é valorizado. Então, eu acho que isso vem com o

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tempo. Você vai conseguindo atingir o seu público. Apesar de ter gente que diga: “Ah, Waldonys, não é uma multidão”. Mas é certo. Às vezes, você até já conhece a pessoa. Faz de conta que não conhece para se fazer mais de artista... (risos de todos) E eu me preocupo em não repetir muito naquele lugar o show. Por exemplo, o Kukukaia. Eu comecei a ficar um pouco incomodado, porque tinha gente que perguntava em que dias eu tocava no Kukukaia. Eu pensei: “Vixe, rapaz, eu acho que estou tocando demais lá, se já tão me perguntando isso...”. Eu reduzi a manete (alavanca de aceleração dos motores dos aviões), entendeu? Tirei potência na decolagem. Dei uma segurada, porque tem outros lugares para se trabalhar. Então, a gente faz um rodízio, procura não secar a fonte e mostrar o trabalho em outros lugares. Então, isso me nivelou um pouquinho diferente das bandas. Mas, com isso, eu vi muitas, muitas bandas subirem assim... “pah”, sucesso total. Depois faz assim... “zium” (faz gesto de descida). E é um meio muito podre. Os caras derrubando os outros e dinheiro e jabá (exposição na mídia em troca de dinheiro). Uns caras pagam para tocar e outros vêm e pagam para você não tocar. Então é um inferno. Mas, graças a Deus, eu tô ali, na minha. Você não pode se envolver nisso, porque, às vezes, a ganância cega. O cara pensa: “Porra, mas o cara tá lotando num sei aonde... Mucuripe (Mucuripe Club, casa de shows de Fortaleza)... Aviões do Forró... não sei quem do forró... Eu vou fazer igual”. Aí, é o seu fim. O que eu fico vendo de fora, assistindo de camarote, é que, às vezes, as pessoas acham que é muito fácil. As pessoa acham: “Ah, eu vou fazer também”. Mas não é assim. Tem uma história que vem desde lá atrás, sofrendo, pegando o carro e viajando o Nordeste todinho, de rádio em rádio, com LPzão, na época, na porta das rádios. Eu chegava, o cara dizia: “Tá num momento esportivo”. Eu pra morrer de fome na hora do almoço,

e o cara: “Espera uma hora aí”. Isso para dar uma entrevista numa AM lá na cidade não sei de onde. E a gente lá, de rádio em rádio... Isabele – Você já teve alguma decepção na música? Algo que te fez pensar em desistir? Waldonys – Não, que fez pensar em desistir não, mas decepção tive várias. Teve uma banda, que eu fui fazer um show em Campina Grande (segundo maior município da Paraíba)... Graças a Deus, hoje, eu chego em Campina Grande, as pessoas já conhecem. Isso é muito bom, é muito legal quando as pessoas lhe respeitam. Mas na época, eu ia mostrar meu trabalho em Campina Grande e tinha uma superbanda lá, não ia citar não, mas vou dizer: Magníficos (banda de forró paraibana, uma das primeiras a iniciar o formato atual de grandes grupos de forró com shows de grande produção). Pra você ver, hoje, a Magníficos já não tá lá essa bola tão cheia. Eu fui tocar lá na casa de shows lá, Forró do Jatobá, grande a casa. Eu disse, eu ainda menino, meio tímido: “Rapaz, vamos ver o som. Pergunta como é, porque eu tenho medo”. Aí (o dono do estabelecimento) ele: “Nãaoo.. o som é da Magníficos. Não tem problema, eles cedem tudo, é a mesma coisa”. Chegou o dia do show, Jatobá relativamente bom de público. Eu disse: “Rapaz, dá uma molhadinha no bolso do técnico de som, porque eu conheço esse pessoal, e ele não tem obrigação de ‘tá’ fazendo o som para mim. Você dá um agradinho a ele que não faz mal a ninguém”. Ele: “Não, vai sair tudo certo, não se preocupe”. Quando eu entrei no palco, pensa num som... Uma verdadeira merda! Mas não era pouco ruim não. O cara fazia assim (gestos como quem regula um som). Ele aumentava a voz bem muito, mas bem muito, que dava microfonia (faz barulho da microfonia). E você no palco não pode fazer cara feia, porque o público não tem culpa disso. E você sabe que está sendo prejudicado, que o cara tá acabando com você ali e não adianta xin-

Isabele e Ivna passaram por entre as nuvens e chegaram a cinco mil pés de altura (o equivalente a 1.524 metros). Com Gustavo, Waldonys demonstrou dois pousos forçados na praia.

Enquanto Waldonys voava sozinho no avião de acrobacias, a equipe o perdeu de vista e, quando menos esperava, foi surpreendida com um vôo rasante por trás. Quando desceu, Waldonys brincou: “Eu vi gente correndo de costas”.

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O mecânico do aeroclube, Arnaldo Vieira, diz que Waldonys é o que mais voa e o mais apaixonado, considerando-o o melhor piloto do lugar. Tiago Martins, secretário do clube, confirma que o sanfoneiro é quem vai ao Aeroclube Catuleve com mais freqüência.

O nome do aeroclube, Catuleve, é uma referência ao rio Catu, que fica pertinho do clube. Este possui cerca de 75 sócios e mais de 40 aviões, todos particulares.

gar o cara que é pior. Você vai lá: “Meu amigo, baixa só um pouquinho a voz e aumenta a sanfona”. O cara: “Ah, beleza”. Quando eu voltava para o microfone, o cara baixava a voz todinha e a sanfona “uuuaaa”. Uma hora de show, os caras desse jeito. A luz era um bico de luz. E o público assim... (imita a cara de decepção do público): “É isso aí?”. Não acertou o som de jeito nenhum porque não quis, claro que a gente sabe que foi máfia, a famosa máfia. Acabou o show. Eu saí puto, eu desci do palco pro camarim sem querer falar com ninguém, danado, com vontade de chorar. Aí, entra a Magníficos, “uahhhh”. Um CD, com a iluminação “uáááá” e tal. Os caras: “Porra, aí sim!”. Rapaz, tu é doido, você vai acabado. “Destá”, a gente se encontra lá na frente. Ivna – Waldonys, Dominguinhos conversando com a gente disse que se pudesse te dar um conselho, seria o de você sair do Ceará. Disse que já falou isso para você várias vezes. Por que você se nega a ir? Waldonys – É porque o Dominguinhos quer insistir nessa tecla, mas eu já fui para São Paulo várias vezes. Hoje em dia, acho que nós estamos em uma outra época. Aqui nós temos várias gravadoras, estúdios, televisões. Temos uma televisão, inclusive, que manda (sinal) para um bocado de lugar aí. Eu acho que, aqui mesmo, eles não sabem a força que têm, que é a TV Diário (emissora de televisão cearense). Eu faço alguns programas nela, e em outras emissoras, e chegam em vários lugares por aí. Os caras: “Rapaz, te vi num programa na TV Diário”. Os caras aqui ainda não têm noção da potência que é. Hoje eu pego um avião e vou para São Paulo. Faço lá tudo, volto. Então, não sinto essa necessidade... Como antigamente, como o “seu” Luiz, como o Dominguinhos, que era um mal necessário. Você tinha que estar no eixo Rio-São Paulo para as coisas estarem acontecendo. Eu fico no mundo. Na realidade, eu gosto muito de Fortaleza, sempre que posso tô aqui em Fortaleza, mas eu vivo viajando. Fui agora para Recife fazer um negócio para a Globo Nordeste, quer dizer, na época do “seu” Luiz não tinha isso. Globo Nordeste era uma mera repetidora da Globo, e você tinha que ir para o Rio (de Janeiro) ou para São Paulo para aparecer no Nordeste. Hoje, engraçado, tem gente vindo do Rio para fazer programa aqui. As coisas mudaram. O Dominguinhos fala isso porque não anda de avião (risos). Diego – Waldonys, você se sente realizado na música. Há alguma coisa que você ainda não fez e que pretende fazer? Waldonys – Eita, tem! Um monte de coisa. Eu me sinto realizado, mas, assim, com

vários sonhos a serem ainda realizados, de gravar um novo DVD... As idéias vão fluindo com o tempo. Por exemplo, eu gravei o DVD, e, apesar de ter gravado em um dia, de ter dado umas panesinhas (falhas) técnicas, que depois nós corrigimos, fizemos milagre pro DVD sair – normalmente, a gente faz dois shows para gravar um DVD – na medida do possível, ficou muito bom. Puxa vida, e o outro DVD? Vou fazer outro DVD como? Qual a idéia? Porque tem que ir daí para melhor. Você tem que estar sempre se superando. Síria – Na sua carreira musical, você decolou a partir do apadrinhamento do Luiz Gonzaga e do Dominguinhos. Mudando um pouco de assunto, de onde veio a vontade de voar. Como surgiu essa questão da aviação? Waldonys – Isso aí é complicado de te explicar (bate na mesa nervoso). Não vem da família, porque o pai não gosta e a mãe odeia. Há muito tempo eu sonhava, me imaginava um dia pilotando um avião... Aquela sensação de liberdade melhor do mundo! Não é hereditário, eu acho que vem de outra encarnação. Eu sempre sonhei, sempre quis. Isabele – A dona Joana estava contando para a gente sobre a aviação, que não gosta muito. Ela contou de um pequeno histórico de acidentes, principalmente no início. O primeiro foi uma história bem engraçada, inclusive na manhã do seu casamento. Como foi? Waldonys – Foi com aeromodelo. A aviação... Eu sou apaixonado, mas há quatro forças que atuam no avião para voar: o arrasto – que segura ele –, o empuxo, a sustentação e a gravidade. Mas, resumindo, esquece isso tudo, e o que faz o avião voar mesmo é dinheiro (risos de todos). Na ciência é assim, mas na realidade mesmo... Eu ia sem apoio, para o aeroclube e não era muito bem-vindo. Tinha uns caras que davam um canto de carroceria (expressão que significa ato de desdém) assim: “Quem é esse menino ‘véi’?” (imita as vozes). Então, eu tinha esse sonho, mas era um sonho meio que frustrado. “Rapaz, eu não vou conseguir. É negócio para quem tem muito dinheiro.” Eu comecei a viajar, tocando com a Marisa (Monte), solteirão, ganhando relativamente bem, porque eu ganhava só para mim, fazendo muitos shows. Cheguei aqui em Fortaleza, de férias, tranqüilão. “Agora eu vou lá no aeroclube, já dá pra eu falar mais grosso, né?”. Quando eu cheguei, eu vi um cara com um aeromodelo, um helicóptero, que eu nem sabia que existia isso. Eu fiquei apaixonado. “Porra, um helicopterozinho. Eu não posso ter um de verdade, vou ter um desses, né?”. Eu cheguei pro cara: “Rapaz, onde é que a gente consegue um bicho desse?”. O cara já

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me conhecia de sanfona. Eu disse: “Pode pedir um pra mim”. Esse cara tinha uma empresa de ônibus, e era fissurado, o cara era fera. Ele pediu, montou para mim. E eu comprei outro, outro. Tinha três. Dizem as más línguas, os meus primos, que isso foi tudo forjado para eu não casar e não deu certo (risos). No dia do meu casamento, ia ser à tarde, eu fui pro aeroclube com o helicopterozinho, a Luciana foi comigo. Cheguei lá de manhã, não tinha ninguém (Waldonys havia explicado que para regular o helicóptero era necessária a força de dois homens). Eu abri o capô do carro, botei dois cabos para tirar da bateria, tirei parafuso, tirei carenagem do helicóptero, isso tudo só para funcionar, só a partida. Funciona, eu acelerava. Quando tava bem acelerado, quase pra sair do chão, o bicho “zummmm”, apagava o motor. Rapaz, isso, com quatro vezes, eu já estava com o sangue fervendo, puto, doido para dar um chute no helicóptero. E a Luciana, que já me conhecia um pouco, viu que eu estava meio com raiva da situação e disse: “Acho que dá para eu segurar”. Eu: “Pois venha cá. Segura aí”. Rapaz, o bicho vibra, tem que ser um homem mesmo (para segurar). E dá um medo... Aquela hélice. Imagine tu chega bem pertinho num ventilador daqueles numa velocidade danada... Muito mais veloz. O barulho, aquele motor, o bicho “zummmm”. Ela disse: “Não dá, não dá”. Eu: “Pára! Bota no chão”. Eu pensei: “Eu boto ele no chão, vou acelerar até o meio, deixo o rádio aqui, vou debaixo do helicóptero, caranguejando, pego na agulha e regulo”. Eu fui. A hélice lambendo aqui (fazendo gestos) minha cabeça, e o barulho no pé do ouvido. Quando eu peguei (na agulha), eu acho que suspirei, foi quando a hélice bateu que nem um coco: “toc!”. Foi só um raspão. E o helicóptero caiu: “pá! zummmm”. Eu botei a mão na cabeça, levantei. E eu não posso ver sangue, que eu desmaio. Botei a mão assim, e aquele negócio quente escorrendo assim. Eu disse: “É sangue!”. E a Luciana: “Ai, minha Nossa Senhora (imitando a mulher)”. Ele (o helicóptero) cortou aqui, abriu o coco, o couro cabeludo (saiu). Nas costas, dois “lechados” (cortes). A Luciana só tinha visto as costas. Quando eu tirei a mão da cabeça, que ela viu o coco aberto, ela: “Meu Deus do céu”. E eu: “Bora, bora, bora”. Eu no banco do passageiro, e a Luciana não morava aqui... Eu disse: “Vou morrer aqui, e ela não vai saber chegar no hospital”. E eu: “Bora, bora, pisa, pisa”. E ela pegou a BR (116). Eu aqui, e ela dirigindo. Ela me dando a maior força: (imitando a mulher) “Afe, Maria”. Eu: “Puta merda, eu tô mal”. “Pá” e sangue aqui, e eu: “IJF, IJF, IJF (Instituto José Frota, hospital público

No mesmo dia em que a equipe de produção voou, Waldonys saltou de páraquedas. Ele desceu com uma aparente tranqüilidade, mas disse que, mesmo depois de saltar mais de duas mil vezes, ainda sente muita adrenalina.

localizado no centro de Fortaleza)”. A vista começou a... (falhar). Ela buzinando, rapaz, parecia uma ambulância. A minha salvação foi que eu me lembrei: “Puta merda! O Antônio Prudente (hospital particular de Fortaleza)”. Eu: “Pára aqui, pára aqui”. Ela parou. Chegando na recepção, a mulher viu aquele “sangueiro”, perguntou: “O que foi?”. “Foi um helicóptero”. E eu não estava mentindo. E a enfermeira: (imitando a enfermeira) “Afe, Maria! Deita, deita, leva ligeiro. Lá vem o médico”. Mas eu não menti, era um helicóptero. “Acidente de helicóptero, como é que pode? Não saiu nem na televisão”. Costurou, anestesia e tal. Ficou a careca aqui (na parte de trás da cabeça). O médico: “Rapaz, era um helicóptero mesmo?” Eu disse: “Vou dizer logo pro senhor. Foi um helicóptero mesmo, eu não menti, mas era um aeromodelo”. Ele: “Mas, rapaz! O Antônio Prudente todinho já sabia que um cara tinha se acidentado num helicóptero e chegou aqui andando”. Aí, eu vim, né? (para o casamento). Pegaram e fizeram uma peruquinha só para eu casar. Botaram um tampozinho aqui (indicando a cabeça), era um “mondrongo” mais alto, cara, ficava estranho pra caramba. Fui casar. O juiz lá, e eu assinei aquele negócio todo e tal. Terminou, o juiz fez assim (bateu nas costas): “Parabéns!” Bem em cima dos dois (cortes) costurados. E eu: “Ai, doutor! Excelência, pelo amor de Deus!”. A mãe: “Rapaz, é que ele sofreu um acidente de helicóptero. Foi hoje de manhã” (risos de todos). Sei que a história do helicóptero foi o primeiro de muitos (acidentes) que vieram depois. Isabele – E a dona Joana conta que, a cada acidente, ela sempre rezava para que isso parasse, para que você desistisse dessa loucura por aviação, mas só piorava (do aeromodelismo, foi para o ultraleve, depois para o monomotor, passando pelo pára-quedas). O que te motivava a estar sempre se aprimorando na aviação, mesmo com tantos perigos? Waldonys – Rapaz, eu não sei não. Sei que sempre gostei muito de ir um pouquinho mais além. Também não sou irresponsável. Sempre gostei de treinar muito. É estatística,

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Waldonys contou que o dobrador é essencial no pára-quedismo e que uma dobradura errada pode fazer com que o pára-quedas não abra direito. “O dobrador mata o pára-quedista”, diz o sanfoneiro, que costuma dobrar o próprio pára-quedas.


Ao sairmos do aeroclube, uma menina na beira da estrada gritou: “Waldonys!”. O sanfoneiro, sempre simpático, abaixou o vidro do carro para falar com ela. O amigo e também aviador, Tom Barros, contou que o sanfoneiro é muito brincalhão no dia-a-dia. Quando menos espera, ele passa trotes por telefone aos familiares de Tom.

Tom Barros é quem costuma fazer a narração dos vôos de Waldonys. Além da aviação, Waldonys também faz mágica, hobby que herdou do avô paterno. Durante a primeira pré-entrevista, ele mostrou que carregava, no bolso da calça, um pacote de cartas usadas para fazer truques de mágica.

cara. Se você voa todo dia, você “tá” sempre mais exposto a um problema que um cara que voa uma vez por semana. Mas eu sempre treinei muito, muito, muito. Então, o que aconteceu, quando eu tive algumas surpresas, eu consegui sair, entendeu? As condições mais adversas possíveis, eu consegui escapar tranqüilo. Às vezes, até sem estragar a aeronave, por conta dos treinos de emergência, por conta do curso de acrobacias também. Ivna – E de surpresa boa qual foi o momento mais inesquecível na aviação? Waldonys – Voar com Esquadrilha da Fumaça (grupo especial na Academia da Força Aérea). Voar com a Esquadrilha foi um momento assim... É como, imagina aqueles caras que são super, superfanáticos por religião e conhecer o (Papa) Bento XVI? Lucíola – E como é que foi esse dia? Waldonys – Rapaz, foi o seguinte. Eles vieram para cá e toda vida que eles vinham, que eu podia, eu tava dando o apoio possível e assistindo. O Tom Barros (jornalista, radialista, locutor esportivo. Grande amigo de Waldonys. Também é aviador e freqüenta o Catuleve) também é fã deles. Para quem entende da acrobacia aérea, sabe o valor que eles. são realmente muito bons. Para estar na Esquadrilha da Fumaça é só a elite da elite da Força Aérea. Então, eles vieram aqui fazer uma apresentação em Umirim (município cearense distante 97 km de Fortaleza). Aí eu deixei um microônibus meu à disposição da Esquadrilha. Eles acharam massa, mas fui eu que achei massa, só em saber que os caras iam andar no meu ônibus... Para servir a eles, peguei um carro particular, porque precisava dois oficiais irem antes. Eu disse: “Tá aqui o carro”. Tudo, tudo na base da amizade. Isso eu sempre soube cultivar bem. Eles também sabiam da história do sanfoneiro voador, que meu negócio era sanfona, e o hobby era voar. A gente vivia os mesmos sonhos. A gente gostando das mesmas coisas fica bem mais fácil. Sabe do que tá falando. Veio o cara do Must (Walney Haydar, apresentador

“Sei que sempre gostei muito de ir um pouquinho mais além (...) Também não sou irresponsável. Sempre gostei de treinar muito”.

do programa) fez matéria com eles, e casou com a história do Hino Nacional no teatro. E tudo nós editamos, mandamos para eles. Por que qual é a função da esquadrilha? É motivar novos alunos para a Academia da Força Aérea, é divulgar o trabalho da Força Aérea, é mostrar a perícia. Então quanto mais divulga, mais eles gostam. E eu tô na área, né? É um toma lá da cá, digamos assim. Pronto, os caras da Aeromagazine, que é uma revista de circulação nacional muito legal, chegaram: “Rapaz tem um cara gente boa, faz acrobacia, que é sanfoneiro e salta de pára-quedas. O cara é um total acrobático e aeronáutico. Vamos fazer uma matéria com ele”. E eu: “Rapaz, é mesmo? Vamos, vamos”. Fui para São Paulo. Comecei a bater fotos lá. O cara disse: “Agora vamos para Pirassununga (São Paulo), para Academia da Força Aérea”. Beleza! “Então vou bater foto do lado do Tucano”, pensei. Cheguei lá à noite, eles estavam chegando de uma apresentação. Peguei a sanfona, e eles tomando cerveja, e aí virou foi uma festa. Ficou uma irmandade muito grande. No outro dia de manhã, eles já sabiam, não tinham me dito, porque eu não ia conseguir dormir. Eles chegaram (os repórteres): “Waldonys vamos lá bater as fotos”. Eu fui para um vestiário deles, botei macacão que eu tenho. Vesti o macacão e a sanfona e saí para bater a foto. O cara, o ajudante de ordem, chegou lá: “Waldonys, o coronel Neves Neto, que é o comandante, pediu para você ir lá para o vestiário. Parece que caiu uma tinta lá, derramaram não sei o que em cima do seu tênis, lá”. “Como é rapaz?”. “Pediram pra tu ir lá agora. Foi uma merda lá. Caiu um negócio em cima da tua roupa”. Eles já estavam com as câmeras todas preparadas. Quando eu fui, eles já tudo vinham atrás de mim, e eu eu não ando olhando para atrás, não sabia. Quando eu entrei no vestiário: “Puta merda”! Tava ali o capacetezão com a pintura da Esquadrilha e com as três letras W-A-L. Máscara de oxigênio, outro macacão, as botas, as luvas. Tinha também um papel timbrado da Esquadrilha da Fumaça dizendo assim: “Caro Waldonys, o que você gostaria de fazer hoje?. Opção A: almoçar no Mc´Donalds de Pirassununga. Opção B: estender a toalha na praia de Pirassununga e tomar um Sol – Pirassununga não tem praia, nem Mc’Donalds. Opção C: desfilar com os cadetes da AFA – Academia da Força Aérea. E opção D: fazer um vôo com a Esquadrilha da Fumaça.” Cara, aí me arrepiei, né? “Pá”, chorei feito um menino “véi”. Eles adoraram ver a reação. Gostaram do cara vibrar com aquilo ali. Pronto, beleza. Pensei: “Vamos voar”. Pensa que é assim? Nada. Me botaram numa

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Kombi, fui lá para outro esquadrão. Adorei essa história para eu ver a seriedade da coisa. Fomos lá para um setor médico, a mulher lhe mede inteiro, mas é inteiro por pedaços. E você tem o mínimo e o máximo de todas as medidas, e você pode ser reprovado. Por causa do acento ejetável. Você tem que ir preparado para utilizá-lo. Quase que eu era reprovado por causa do peso, mas pensei: “Não, eu como chumbo, mas não tem nem perigo”. A doutora assinou “apto” (enfatiza). “Bora, agora vamos voar”. Não, uma hora, um curso com acento ejetável. Tem uma cadeira lá especial, o cara te senta, te amarra todinho, bota a máscara aqui (bota mão na boca), dá uma apertada, ele te dá todas as instruções. “Se o piloto gritar para você, ejeta, ejeta, ejeta. Três vezes, na terceira, ele já foi. Não espere, ejete”. Eles começam a conversar, a perguntar como vai Fortaleza, não sei o quê, outro piloto passando diz: “Ejeta, ejeta, ejeta, pra ver se tu, né?”. É reflexo. Eles te testam pra caramba, sabe? E chegou a hora. Eu vi realmente o que é voar com a Esquadrilha, é outro departamento. Porque fazer acrobacia já é um certo grau de loucura para as pessoas que não entendem. Eu faço acrobacias, mas os caras fazem acrobacias com sete aviões, um do lado do outro, colado! Mas numa maestria... Ninguém fala nada, só o líder: “Puxar um oito cubano”. Parece que o cara tá vendo... “Puxei”. E eu: “Uhhh vai bater, é agora”. Eu já ia era ejetando, mas é muito massa. Terminou a apresentação, o cara que estava comigo, disse: “Comandante permissão para abandonar vôo de elemento”, aquele em que o avião fica lado a lado. O outro disse: “Autorizado”. “Tichuuuuu”. “Agora vamos dar uma arrochada só nós”. “Pá”, looping, não sei o quê. “Agora Waldonys, pega aí, sente a aeronave da Esquadrilha da Fumaça (passou o controle do avião para Waldonys)”. Chorei de novo. Show de bola! Isabele – Qual foi o momento mais engraçado da sua história na aviação. O mais inusitado? Waldonys – Eu fui para Acaraú (município cearense a 255km de Fortaleza) para fazer uma apresentação de acrobacia e depois tocar. Eu saí meio apressado daqui, e que na aviação, uma frase que não pode jamais usar: “Eu tenho que chegar”. Não, não tem que chegar não, não tem que chegar de jeito nenhum, não. Você vai chegar se der para chegar. Existe uma frase que é muito legal: “A aviação é o meio mais rápido de se chegar atrasado em algum lugar”. Então, eu decolei e fui sem GPS (Sistema de Posicionamento Global usado para determinação da posição de um receptor na su-

No dia da entrevista, a equipe de produção chegou mais cedo que o resto da turma. “Seu” Eurides recebeu a equipe com muita simpatia e não se fez de rogado: tocou várias músicas.

perfície da Terra ou em órbita). Mas por quê? Porque eu também estava superconsciente do que estava fazendo. “Acaraú fica no litoral, então, eu vou deixar o mar à minha direita, o sertão à minha esquerda. Não tem perigo, eu vou passar em Acaraú. Na hora que eu botar o mar à minha esquerda, eu vou estar indo para Natal (capital do Estado do Rio Grande do Norte). Quando eu ver o mar à direita, vou estar indo para Teresina (capital do Estado do Piauí)”. Eu decolei, “tchum”. Pensei: “Bom, pela minha velocidade, vai dar uns quarenta minutos”. O vento estava mais ou menos e tal e eu “páaa”. Só que na aviação é foda, quando vem a história do “se” é foda. Você começa a entrar em paranóia. “Mas se eu passar do município, meu combustível não vai estar tão ‘assim’ (suficiente) para eu voltar. E o horário também não está muito bom, eu não posso voar após 17:40min e já são umas 17:20min. Eu tenho 20 minutos”. Começa aquele negócio: “Rapaz, eu não posso passar dessa cidade, mas tem outra coisa. Acaraú não é na beira do mar, é um pouquinho pra dentro. Será que eu já passei?”. E eu sozinho e tal, mas a maré tava secona, uma eterna pista, não tinha problema. Eu tava salvo e pousava onde eu quisesse. Eu disse: “Sabe o que é que eu vou fazer? Infelizmente, eu vou pousar e perguntar a alguém. Eu não vou perguntar como é para ir pra lá, eu chego e pergunto assim... ‘Quem nasce aqui é o quê?’ Porque eu sei onde é que eu tô, né?”(risos). Não aparecia ninguém, foi ficando deserto, e cinco minutos parecem

“Eu vi realmente o que é voar com a Esquadrilha (...) os caras fazem acrobacias com sete aviões, um do lado do outro, colado!”

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O estúdio da casa dos pais de Waldonys, onde ocorreu a entrevista, é decorado com inúmeras fotos dele com artistas que participaram de sua carreira. O destaque, claro, é para Dominguinhos e Luiz Gonzaga.


Em todos os momentos em que a equipe de produção esteve com Waldonys, o telefone do sanfoneiro não passou mais de dez minutos sem tocar. Antes da entrevista, Ivna lembrou a todos que o celular deveria ser desligado. Waldonys riu e disse que pelo menos o colocaria no modo silencioso. A equipe de produção agradeceu...

Durante a entrevista, Waldonys falou sobre as mães que matriculam as filhas no conservatório de música e no balé. A turma ficou em silêncio, pois Giselle se encaixa perfeitamente no perfil: fez piano e balé.

cinco horas. Lá vem, só vinha um cara. Pescadorzinho com as redes nas costas e tal, eu disse: “É ele! Eu não posso perder esse cara de vista nem a pau.” Eu baixei o avião, passei bem pertinho, e ele já olhando, porque o avião já passou baixo, né? Eu passei por ele, na hora que eu passei, eu puxei uma manobra assim (fazendo com a mão), voltei com o avião e pousei. Quando eu pousei, já fui desligando. A hélice parou, eu parei do lado dele. E ele andando, olhando e tal. Eu parei rápido, abri o canopi (teto de acrílico da aeronave) e pulei rápido. Quando eu pulei do avião, ele “puum” (correndo), chega o calcanhar batia na bunda, pé na carreira com mais de mil. Eu gritando na praia: “Ei, ei, ei”. E ele correndo, olhou para trás: “Tu que é o dono tá com medo, ‘avaliese’ eu” (risos). Eu disse: “Não, eu tô querendo uma informação”. Ele se acalmou. “Eu tô querendo uma informação. Acaraú?”. Ele disse: “E esse bicho aí não diz o caminho não?”. Rapaz, foi a maior sorte do mundo. Ele disse: “Três léguas, tu vai entrar pra cá...” Pescadorzinho danado, fez assim com o braço. Eu disse: “Puta merda, na mosca, três léguas, bem pertinho”. Eu decolei, fiz o ângulo que o braço dele fez e “pá” Acaraú, cheguei. Mas o pescador eu acho que ainda hoje... Diego – Waldonys, a aviação, infelizmente, não te trouxe apenas momentos bons, inusitados como você acabou de falar. Te trouxe também momentos tristes, como a perda de alguns amigos. Isso te fez, em algum momento, querer parar de pilotar? Waldonys – Não, fez não. Dá assim, né, cara, dá um frio na barriga do tamanho do mundo. Não tem manobra nenhuma na acrobacia que faça sentir assim... O Lindenberg (Major Lindenberg Antônio Austregésilo de Andrade, vítima de acidente aéreo em 2005, na base aérea de Fortaleza), no caso, que era o piloto da polícia, do helicóptero do Ciopaer (Centro Integrado de Operações Aéreas da Polícia Militar), era um amigo, assim, irmão mesmo. Desses amigos que você vê todo dia, e quando você não vai na casa dele, ele vem na sua casa. Final de semana, então, nem se fala. Viagem e tal. Amigo, amigo

mesmo, irmão. O cara era gente fina. No dia do acidente, ele passou lá no Catu. Eu tava lá no Catu, ele passou lá com o helicóptero, pairadozinho assim, pairado é (quando) o helicóptero pára e não pousa, rolverando que a gente chama. Ficou brincando, fazendo continência para mim e tal. Eu disse: “Ele vai pousar”. E ele não pousou, ele decolou. Eu olhei para um amigo meu, que um ano depois veio a falecer também, que era o Mauro Célio (amigo de Waldonys, falecido em acidente aéreo), tava comigo lá. Eu usei até um termo, que a gente brincava assim: “Rapaz, filho da puta, foi embora. Vai ver, com certeza, ele teve uma ocorrência”. Porque tinha ocorrência às vezes, assalto não sei onde. Porque sempre ele pousava, e nesse dia ele não pousou. E não teve ocorrência, ele tava indo embora, não entendi por que naquele dia não pousou. Cara, quando ele saiu, eu peguei o Mauro Célio, a gente tava olhando o avião, mas já tinha terminado de olhar, vamos “simbora”. Só fizemos entrar no carro. Deu dez minutos, eu já estava chegando em Messejana, o telefone toca. Coronel Zenóbio, era o chefe da Casa Militar. E ele não me ligava muito, não era homem de me ligar direto. E era um homem, a segunda pessoa do governador, digamos assim. E eu tinha uma amizade com ele, mas não era muito amigo. Então, ele não me ligava muito, quando ele me ligou eu fiz a maior festa, né? “Coronel Zenóbio, tudo bem e tal”. Rapaz, ele cortou assim, cara. Coitado, ele ficou numa situação... Me ligando para dar a notícia. “Olha, Waldonys, tô ligando para dar uma notícia não muito boa não”. “Que foi Coronel Zenóbio?” “Olha, tô num avião aqui do Governo do Estado, chegando em Iguatu, recebi uma ligação agora, que o helicóptero da polícia acabou de cair, e o Lindenberg “faleceu”. Assim... “pá!”. O cara acabou de passar, e eu sabia da técnica dele de pilotagem. Eu tinha certeza que aquele homem nunca ia morrer de acidente de helicóptero! Ele era muito preparado, mas muito preparado. “Mas não pode. É mentira e tal, houve um engano, não é possível”. Rapaz, aí chinelei esse carro com o que dava, a luz acesa e tal, sem saber pra onde é que tava indo. Sorte é que peguei a BR, tava em Messejana, fui para a Base Aérea. Eu doido, doido, doido e me tremendo. E o Mauro Célio: “Rapaz, ‘péra’ aí, senão vai ter outro acidente”. Quando eu peguei o telefone, tinha o telefone da torre (de comando). Rapaz, eu vou ligar para a torre, rezando pra torre dizer assim: “Não tenho ciência”. Rapaz, era um dia para o Réveillon. Eu peguei, liguei pra torre. “Comandante, aqui é o Waldonys que ‘tá’ falando”, eu já meio nervoso, não tinha nenhu-

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ma formalidade, disse: “Pelo amor de Deus, o senhor me informa um acidente que teve com o helicóptero da Polícia?”. O cara disse: “ Afirmativo!” Eu disse: “E aonde?”. “Foi aqui do lado do radar”, era dentro da Base Aérea”. E eu já tava no rumo. Aí eu entrei, passei por cima dos canteiros, cacete a quatro lá. Quando eu cheguei, já tinham aberto uma clareira. Eu parei o carro, o Mauro Célio desceu, eu desci também. O primo do Lindenberg, que também era piloto da Polícia, saiu agora, tava chorando encostado no carro, chorando, chorando. E eu: “Dirceu, cara”. E o clima! Um frio na barriga filho da mãe. “Rapaz, eu não tenho coragem de olhar, não”. Eu entrei de mata a dentro, porque também não era muito longe não. Rapaz, quando eu cheguei lá, bicho, o destroço mais horrível do mundo. O helicóptero acabado! Eu: “Porra”! Eu que toda vida vi aquele helicóptero, parecia um troféu. Acabado, detonado, a coisa mais horrível do mundo. E os três corpos assim: um, outro e outro, quase como uma estrela. Tudo já com o pano branco. Eu ia logicamente ali, que ele tava os pés, tinha as botinas, o primeiro que eu fiquei de cócoras, que eu levantei a parte da cabeça, era o Lindenberg. O queixo assim... (quebrado). O punho quebrado. Um cara que há dez minutos tinha passado ali pelo Catu, e eu sabendo da vida dele todinha. Ali vem um filme muito rápido que passa na tua cabeça, da vontade que ele tinha de ter um filho – que ele teve com inseminação artificial, do primeiro aniversário do filho dele, da Betinha (esposa do Major Lindenberg). Assim, eu não sou um santo e coisa e tal, mas o Lindenberg era assim, eu acho, eu acho não, tenho certeza, o marido que toda mulher queria ter. Um cara... fantástico! Amigo, gente boa, total. É nessa hora... (suspiro). Serve como lição também. Por que eu não pensei em parar de voar? Porque cara, se for assim... O tanto que morre de acidente de carro, eu nunca mais vou mais andar de carro. Eu gosto muito da aviação, mas me fez pensar mais e ver mais. Porque quando dá tudo certo, que você faz uma apresentação de acrobacia, que você pousa o avião e está ‘tá’ inteirinho, é tudo lindo. Mas, acontece aquilo que eu vi. E foi bom eu ter visto, porque isso serve também, no psicológico, para você se policiar. “Não, porque eu sou foda, eu sou o tampa, eu faço e aconteço”. Na hora que dá uma merda, isso pode acontecer comigo. Então, na hora que você tá voando, que vai fazer uma manobra: “Rapaz, o Lindenberg era altamente preparado e aconteceu aquilo ali. Isso pode acontecer comigo agora”. Então, eu sei que não foi ele (que a culpa não foi do Major Lindenberg). Eu tenho certeza.

Percebendo o constrangimento, Waldonys perguntou: “Ofendi alguém?”. Todos riram. A entrevista durou cerca de duas horas e meia, e Waldonys mostrou-se bastante simpático e atencioso, assim como em todo o processo de produção.

Gustavo – Waldonys, como a sua família reagiu a esse acidente? Waldonys – Puxa, cara! O pai ligou. E já tava saindo na televisão. E eu lá dentro olhando os corpos. Violento o negócio. O pai me liga. Eu, embargado, não conseguia falar. E a pressão é grande. O pai: “Pelo amor de Deus, deixe isso. Eu vou lhe fazer um pedido: pare com isso!”. Aí, pronto, fica aquela pressão, e vai indo, vai indo... Isabele – O Tom Barros mencionou que você, quando mais novo, se arriscava demasiadamente, e agora você tem mais prudência e tudo mais... Waldonys – Eu acho que até por isso. Ajuda também. Outro cara, outro dia, nem era muito meu amigo. O cara era conhecido assim, ele se acidentou e morreu. Eu fui lá ao IML (Instituto Médico Legal). Eu fiz questão de ver, porque, é aquela velha história, ajuda por um lado. Eu vi aquela coisa feia, muito feia. E é bom você ver aquilo ali, no meu caso que eu arriscava um pouquinho, arriscava demais, porque aquilo servia de exemplo. “Olha aí, isso pode ser eu”. Então, hoje para fazer uma acrobacia, eu penso, repenso, tripenso... Ivna – Waldonys, hoje você teve a oportunidade de relembrar muitas coisas. Diante de tudo que você alcançou na música e na aviação, hoje você se considera ainda um moleque atrevido? Waldonys – (risos) Eu acho que sim. Eu estou sempre cheio de atrevimento, de novas conquistas e pitadas de repertório novo e de novos arranjos. Eu acho que isso tudo tem que ter um pouco de atrevimento, na medida do possível, e que não mude a sua história musical. Thiago – A produção contou que você tem um CD com músicas gravadas de MPB. Aponta aí novos projetos nesse sentido? Waldonys – Pois é... aponta (risos). Eu penso em gravar um DVD, mas, ao mesmo tempo, eu faço muito laboratório, entendeu? De tocar, e num show, discretamente, eu vou soltando, e sentindo a reação do público. Pra que eu não erre feio, é perigoso, às vezes, você mudar totalmente o seu estilo. Mas eu

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No dia da entrevista, Tom Barros estava do lado de fora do estúdio, aguardando a saída de Waldonys. Ao final, apareceu e saudou a turma e o professor Ronaldo Salgado. Ao final da entrevista, a turma foi almoçar fora em comemoração ao aniversário da colega Lucíola.


A equipe de produção, exausta, não pôde comparecer e – mais uma vez – aproveitou a carona oferecida por Waldonys.

queria gravar um DVD assim, para ficar diferente do que eu fiz e pra mostrar exatamente que a minha história com a sanfona transpassa esse negócio do regionalismo, entendeu? Como eu fiz com a Marisa, quando eu vou gravar com o Armandinho, com guitarra baiana, não sei o que e tal. É muito perigoso, porque existem umas pessoas que são muito “gonzagueanas”, e que eu sou também, mas que eu não posso, sabe? Eu visualizo o “seu” Luiz Gonzaga como referência, mas eu tenho a minha história aqui que anda... Eu não posso ficar: “Não, uma zabumba, um triângulo, um gibão (paletó de couro usado pelo vaqueiro nordestino) aqui, botar o chapéuzão de couro daqueles e tal”. Tem gente que força um pouco para esse lado, mas não é a minha história. A minha história passou pela do “seu” Luiz Gonzaga, e eu o tenho assim como uma grande referência. Isabele – Waldonys, música ou aviação, qual paixão é a maior? Waldonys – Música. Música. Aviação tá ali, colado, na ala, mas a líder é a música. Thiago – Falando de uma maneira geral, colocando tudo na sua vida, o que você tem de mais valioso? Waldonys – Meus filhos! Meus filhos! É demais! Filho é um negócio fora de série. Fora de série.

Waldonys deu carona para Gustavo até o Eusébio (município da região metropolitana de Fortaleza). O sanfoneiro, acompanhado de Tom Barros, estava, mais uma vez, indo para o Catuleve. Ao passar pelo cemitério Jardim Metropolitano, Waldonys diminuiu a velocidade e, dirigindo-se a Gustavo, disse, com pesar: “É aqui que o Lindemberg está descansando”.

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Caco Barcellos Jornalista


// Cláudio Barcelos de Barcelos

Sobre o enxergar o outro e ter na existência uma intensa e entranhada missão: ser repórter As palavras são firmes e serenas a um só tempo. Os olhos quase fatigados são do claro mais profundo que na Terra há. As mãos desenham gestos resolutos mas leves, pacientes, prendem nossa atenção e nos guiam pelos muitos caminhos que Cláudio Barcelos de Barcelos, o Caco, já esquadrinhou aos longo de seus 58 anos. Criança tímida em bairro pobre de Porto Alegre, corria da polícia sem nunca ter feito nada de errado para o mundo; apressava-se porque simplesmente sabia ser necessário fugir, e porque tinha a consciência de os perseguidores o odiarem não pelo que havia feito, mas pelo que ele não tinha tido direito a ter. Viveu e presenciou, muito cedo, os abusos de uma polícia a executar não leis, mas vidas. E, como as crianças ainda têm a capacidade de não entender a ilógica da injustiça, ele se perguntou o que havia com o mundo. A resposta ele continua a buscar até hoje, em cada reportagem praticada. Em meio ao sangue escoando pelas ruas, quis ser primavera. Trabalhava, ainda menino, ajudando o tio a vender verduras. Depois foi ser taxista, entrou na Faculdade de Matemática porque queria ser engenheiro, até poder divisar um novo possível vir-a-ser: fazer-se jornalista. Dos jornaizinhos hippies distribuídos entre os amigos até as grandes redações da Rede Globo, Caco nunca prescindiu do propósito inicial: mantém muito abrasada a necessidade de questionar e de transformar o que existe de condenável na sociedade. Acredita ser papel do Jornalismo contar histórias, e não apenas as bonitas, mas todas aquelas que precisam ser contadas. A escrita dele é composta da indignação de ver o que não deveria estar lá: cada palavra de seu texto nasce daquele não-entender trazido de criança. Para dizer uma história, é preciso sabê-la. Caco foi à busca para mostrar o que ninguém tinha coragem de ir lá ver, escrevendo o que para muitos é a própria história dos dias correntes. A narrativa de Caco é a dos meninos que

desde tão novos são obrigados a servir a um mal que não lhes pertence, que não deveria pertencer a ninguém. O relato é o do traficante, tentando fazê-lo sentido à cidade bonita lá de baixo, explicar como aquele sujeito passou a viver uma escolha que não foi bem a dele. A história é a de quem padece dos efeitos de uma guerra cotidiana. A reportagem é a biografia da maior parte dos brasileiros, daquela que não teve voz, não teve defesa, não teve talvez a oportunidade a um nome. Tolhidos em seus direitos mais essenciais, foram condenados a uma vida sem precedentes, ao silêncio cego dos mais fortes. É cômodo calar. Custoso é fazer um jornalismo que vá ao cerne, extraindo a verdade através da ética. É fácil, é muito simples achar que é assim mesmo, tudo é a ordem natural das coisas. Difícil é sair de sua concha e procurar ir ao encontro do outro. Ao invés de incriminar as crianças levadas ao mundo da transgressão, Caco mostra que elas têm olhos por detrás dos mosaicos e tarjas pretas, elas têm um nome que não são apenas um punhado de iniciais. Ele demonstra que a história dos pequenos e dos grandes submetidos à aspereza das circunstâncias está além do que as reportagens sensacionalistas estão dispostas a contar. Em Nicarágua, acompanhou e viveu o movimento de liberdade dos que sofregamente ansiavam por democracia. No Rio de Janeiro, subiu o morro. A bala por alguém perdida sempre acha um destino certeiro. Cada vida ceifada é uma borboleta amarela que se dissipa. Vidas erradas, vidas errantes, puramente vidas; agora, não mais. Caco vive o que o Jornalismo tem de mais visceral e definitivo: aprender com o cotidiano a desvendar universos humanos. Hoje, no programa Profissão: Repórter, instrui e acompanha jovens jornalistas no encargo de descobrir e entrever, na história de cada fonte, um pedaço de alma. Reportar honestamente a realidade: eis a função de um jornalista. E Caco carrega consigo a missão de quem acredita que nós nunca seremos livres até o dia em que Sol for para todos.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Ana Karolina Assunção Diego Silveira Soares Edwirges Nogueira

Entrevistadores: Alinne Rodrigues Ana Karolina Assunção Diego Silveira Edwirges Nogueira Giselle Soares Isabele Pequeno Ivna Bessa Lucíola Limaverde Luiz Gustavo Talita Christine Thiago Mendes Texto de abertura: Lucíola Limaverde Fotografia: Alinne Rodrigues



Entrevista com Cláudio Barcelos de Barcelos, dia 20/05/2008.

Diego — Bem, Caco, a minha primeira pergunta é a seguinte: no livro Jornalismo Eletrônico ao Vivo há um depoimento seu em que você diz que entrou no Jornalismo por acaso. Eu queria saber como se deu esse seu primeiro contato com a profissão. Caco — Foi por acaso porque eu acho que trabalhava... Era taxista. Fazia faculdade de Matemática pensando em fazer Engenharia (tosse e pede desculpas), mas já gostava muito de escrever. Escrevia crônicas, morria de vergonha delas, não mostrava pra ninguém. Escrevia crônicas acompanhado do meu cachorro, um cachorro vira-lata que eu tinha. A gente rodava à noite pela cidade, e o meu cachorro não gostava de caminhar durante o dia. Ele dormia o dia inteiro e à noite ficava muito ligado. E eu sou assim também, eu tendo a ficar mais ligado à noite. Então saíamos. A passear, eu escrevia sobre essas andanças na cidade. E aí na faculdade de Matemática (tosse novamente), um dia, inventaram de fazer um jornal do centro acadêmico e eu achei maravilhosa a idéia. Me candidatei, não tinha nenhum candidato, era o único. Aí resolvi fazer sozinho o jornal, porque ninguém mais se manifestou. Espalhei a notícia pela faculdade e um grupo de hippies, de outra universidade, que nem era a PUC (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), onde eu estudava, era da Federal (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), se interessou e a gente começou a fazer o jornal juntos. Só que em vez de fazer o jornal (tosse novamente) para o centro acadêmico (faz uma pausa, tosse com mais intensidade, e fala do ar-condicionado), a gente acabou fazendo um jornal da comunidade hippie deles e eu passei a morar com eles, nessa comunidade. A gente vendia de mão em mão o jornal. Um dia, um jornalista da cidade comprou, gostou muito. O jornal dele tava passando por uma reforma (tosse) e ele convidou todo mundo que fazia parte do nosso jornal, se quisesse trabalhar lá com um salário. Aí fomos, eu fui, eu fiquei e mais um outro amigo ficou. O começo foi assim, por isso não foi previsto. Isabele — Você começou sua carreira em um momento bastante complicado, que foi a época da ditadura militar. Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas nesse período?

Caco — Bom, era a de ver a sua matéria publicada. Havia várias restrições por parte da censura, temas proibidos, histórias proibidas (Gustavo, que havia se ausentado para comprar uma água para o entrevistado, chega nesse momento. Caco, no entanto, diz que não vai poder beber, porque a água está gelada). Vocês devem estar me achando um chato, né? (A turma nega). É que eu estou muito mal, por isso eu disse que não conseguiria falar... Eu já dei umas quatro, cinco negativas pra outros convites, pra televisão daqui também, eu realmente estou muito mal da garganta. Estou falando baixinho pra ver se ela estabiliza e vai embora. Mas tinha isso, a restrição por temática. Na área de Economia, por exemplo, quase nada podia se falar. Política também não, mas tinha um segmento do Jornalismo bastante marginalizado, que era o segmento que divulgava notícias relacionadas com crimes de violência. Antigamente chamava isso de Editoria de Polícia. E esse jornal (Folha da Manhã, extinto periódico do Rio Grande do Sul, onde Caco começou a carreira no ano de 1972), era muito interessante, a equipe formada era muito legal, muito aberta, muito ativa e resolveram criar... Usar esse segmento chamado Editoria de Polícia pra contar todas as histórias graves que aconteciam na cidade (de Porto Alegre). E na Editoria de Polícia não havia censura porque ali, por um preconceito de classe que perdura até hoje, só eram divulgadas as notícias que envolviam gente pobre cometendo crimes. Então nós começamos a usar a Editoria pra contar todas as histórias envolvendo injustiça e violência. No nosso ponto de vista, as violências mais graves que eram cometidas eram aquelas que levavam à morte das pessoas, como é hoje, como é em qualquer parte. E o que levava à morte era praticado pela ditadura. Então nós começamos a denunciar ali os crimes da ditadura, crime de tortura e crime de morte, que eram mais graves, no nosso ponto de vista, do que o crime contra o patrimônio. E o jornal era, antigamente, coberto de notícias relacionadas ao crime contra o patrimônio, crime praticado por assaltante, por ladrão, pessoas de baixa renda, principalmente, que faziam do crime a sua atividade financeira. A nossa prioridade era o crime contra a vida e não o crime contra o patrimônio. E isso durou nesse jornal, essa experiência, durante

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A idéia inicial era entrevistar a jogadora de vôlei Shelda, o que não foi possível devido à agenda lotada dela. Ela havia acabado de retornar da Austrália e já ia à China participar de mais uma etapa do circuito mundial.

A opção que vinha em seguida, de acordo com a votação realizada para a escolha dos entrevistados, era o jornalista Caco Barcellos. A equipe de produção, então, deu início aos primeiros contatos por telefone, porém sem obter sucesso.


Partimos, então, para um segundo método: enviar e-mail. Edwirges enviou a mensagem no dia 9 de abril. A resposta veio no dia 15.

Nesse dia, enquanto parte da turma comia tapioca nas proximidades das Casas de Cultura, Edwirges recebeu uma ligação da mãe: “O Caco Barcellos ligou aqui para casa!”. Todos que estavam lá ficaram agitados. A turma fez uma “vaquinha” e comprou um cartão telefônico para retornar a ligação. Caco, porém, não estava mais na Rede Globo. O cartão foi apelidado de “cartão corporativo”.

três anos, até o dia em que já os homens da ditadura haviam percebido essa nossa estratégia e começaram a pedir a nossa cabeça e acabamos saindo... Saímos 22 jornalistas desse jornal. Gustavo — Caco... (Antes da pergunta, Caco pede água natural para um funcionário do hotel). Um dos seus trabalhos mais marcantes foi o da cobertura do conflito na Nicarágua (O conflito ficou conhecido como Revolução Sandinista e ocorreu em 1979, na Nicarágua, pequeno país da América Central. A Frente Sandinista de Libertação Nacional, movimento de caráter popular, derrubou a família Somoza, instalada no poder, com o apoio dos Estados Unidos, desde a década de 30). A gente queria saber como foi essa experiência e se quando você estava lá você já pensava em escrever um livro sobre o que houve. (Nicarágua: a revolução das crianças foi o primeiro livro escrito por Caco). Caco — Também foi por acaso. Na minha vida, as coisas acontecem bastante por acaso (risos). Já havia encerrado a experiência ali na Folha da Manhã, trabalhei nela de 72 a 75 e em 75, saídos desse jornal, nós criamos uma cooperativa de jornalistas (Coojornal, fundada em agosto de 1974), eu e esse grupo de 22... Era um veículo de imprensa alternativa bastante forte naquela época. Todo mundo que, de alguma maneira, se sentia lesado pela ditadura e era jornalista tratava de escrever nos veículos chamados alternativos. E eu passei de 75 a 80 trabalhando nesses veículos e a gente trabalhava praticamente para comprar o prato do meio-dia e era tudo o que ganhávamos. Viajávamos com o dinheiro muito baixo, muito pequeno, sempre de ônibus, fazendo as refeições mais baratas possíveis, morando em hospedagem de favor e na de outros companheiros de outras cidades, de outros países, que também militavam na imprensa alternativa. Trabalhávamos dessa maneira, atrás de histórias. Quando encontrava uma história, parava e ficava escrevendo a história e publicava em algum lugar dos nossos veículos de imprensa alternativa, como esse veículo da Cooperativa que nós fundamos. Nós criamos também na época – nós que eu digo eu e uns amigos comuns, repórteres mais ou menos contemporâneos –, uma revista chamada Versus (Fundada em 1975 pelo repórter Marcos Faerman [1944-1999], a revista Versus é um marco na história da imprensa alternativa brasileira. Em sua curta história [75 a 79], procurou expressar os diversos sentimentos que envolviam o período da ditadura militar), que foi uma revista de reportagem dos povos latinos. E viajando atrás das reportagens dessa revista pelos

países da América do Sul, América Central, eu acabei me envolvendo lá na guerrilha da Nicarágua. Era uma guerrilha extremamente popular que envolvia todos os segmentos da sociedade que eram contra a ditadura. Eu morava nessa época já nos Estados Unidos, numa base lá, e de lá eu fui pra Nicarágua e acompanhei a ofensiva final da guerrilha, que levou à vitória da guerrilha, pra minha sorte. Digo sorte porque eu fiquei acompanhando a guerra sempre... Se pode acompanhar a guerra dos dois lados, ou de um lado só, e eu escolhi o lado da guerrilha pra acompanhar. Também por acaso, porque eu fui preso por eles quando estava entrando numa cidadezinha dominada por eles. E eles me prenderam pensando que eu fosse um espião americano, porque eu levava gravadores que naquela época eram novidade, gravadores mais ou menos desse tamanho (aponta para o MP3 de Isabele) e eles achavam que era equipamento de espionagem. Era uma novidade incrível, não havia. E eu, que morava em Nova Iorque, comprei lá e trazia na cintura, usava umas botas americanas também. Enfim, achavam que eu fosse americano e americano apoiava a ditadura. Ao longo de 42 anos, apoiou muito, ensinou lá também o Exército a torturar e a matar, como fizeram no Brasil. Pensaram que eu fosse um espião e me prenderam. No primeiro dia, eu dizia que era brasileiro. No meu gravador só tinha música que eu levava pra ouvir. Nem entrevista tinha. E aí eles me libertaram de madrugada, fiquei preso lá numa vala que eles usavam nos combates, com lodo no fundo, barricada em cima... Me liberaram e eu pedi pra ficar quando o comandante deles chegou. Esse comando era de meninos de 12, 13 anos de idade. Por isso o meu livro, que eu fiz por conseqüência des-

“Me prenderam pensando que eu fosse um espião americano, porque eu levava gravadores que naquela época eram novidade (...) e eles achavam que era equipamento de espionagem”.

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sa experiência com a guerrilha, se chamou A Revolução das Crianças (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1982, 152 páginas) porque eram crianças os guerrilheiros que me prenderam e que depois me libertaram e eu pedi pra ficar ao lado deles. Eles toparam e eu acompanhei a guerra até o final ao lado deles. Pra minha sorte, eles venceram a guerra e eu pude contar a história. Thiago — Além de atuar na Folha da Manhã, em Porto Alegre, você também atuou na Veja e na Istoé. Como foi a sua mudança pra televisão? Caco — Bem depois. De 81 a 84 na Istoé e na Veja... Trabalhei também nesse intervalo, que eu falei de cinco anos na imprensa alternativa, fazia freelancer pra tudo que é revista e jornal... Pra viver, pra ter dinheiro, pagar aluguel, comida... Thiago — E como foi esse impacto da mudança do meio, do impresso para a TV? Caco — Foi grande, sobretudo porque... Bom, eu já havia escrito um livro, trabalhava pra revista, na imprensa alternativa escrevíamos reportagens com até 40, 50 páginas, refletia muito antes de escrever cada frase, pensava na melhor palavra, selecionava a palavra. Televisão você às vezes tem 15 minutos não só pra escrever aquela frase quanto a matéria inteira... Entrevistando, sintetizando... Então foi muito difícil exercitar esse poder de síntese e, sobretudo, quando tinha uma entrada ao vivo, por exemplo, que você tem que usar técnicas de rádio, de preencher os espaços vazios... Você não pode deixar entre uma frase e outra algum silêncio porque vai causar estranheza. Você tem que não parar de falar e eu vinha de um processo de muita reflexão, eu sou uma pessoa reflexiva, então eu estranhei bastante em usar qualquer tipo de palavra que às vezes nem sempre era a mais adequada, a que sintetizava o que eu queria dizer, ou que representava melhor uma determinada história. Então, me incomodava, eu tinha muita vergonha de usar palavras inadequadas, frases mal elaboradas e com pouca exatidão. Mas depois, com o tempo, a gente vai se acostumando e percebe que na TV o texto também tem muita importância. Tem que explorar bem... Esse casamento entre texto e imagem é uma coisa complexa. Precisa ser coloquial, objetivo, simples, mas a simplicidade é complicada pra caramba (risos). Atingir a simplicidade é algo muito difícil, eu acho. Giselle — Caco, no seu livro Rota 66 você fala da violência policial quando você vivia em Porto Alegre. De que forma a sua infância influencia o seu trabalho atual? Caco — (Pausa) Bom, eu acho que todos os momentos da nossa vida nos acom-

panham, né, pra sempre. A minha infância, seguramente, me acompanhou, mas não só pelas injustiças que são decorrentes do fato de você ser pobre, de uma família simples, de um bairro todo assim também. A minha infância foi muito rica. Tive experiências muito interessantes de liberdade conseqüente ou de transgressão produtiva, não sei que termo usar, mas eu tive uma experiência muito legal numa igreja progressista. Padres muito conscientes que me apresentaram os primeiros livros de interpretação da realidade, padres que se preocupavam em ajudar os pobres do bairro onde a gente morava, que me ensinaram a entender por que a gente sofria violência policial. Me explicavam coisas como: “Olha, quando uma viatura entra aqui na rua, sem pedir direito, invadir a sua casa, dar porrada pra todo lado sem mandato judicial, isso não significa nada específico contra sua família, contra sua pessoa... É contra um conjunto, não só ali do bairro, mas é uma coisa maior, contra todos os pobres do País”. Então, não teve diferença nenhuma da nossa realidade da realidade da maioria, porque infelizmente no Brasil a maioria é muito pobre. A polícia no Brasil, historicamente... Uma herança talvez portuguesa... Chegou aqui pra defender os poderosos e não pra defender a comunidade, defender a sociedade. Ela defende sim, a princípio, todo mundo, porém com muita prioridade os mais poderosos e isso acontece até hoje. Então, esse tipo de interpretação, a igreja é que me trouxe. Essa igreja específica lá, que era uma igreja aliada dos pobres, uma igreja progressista, que depois virou também perseguida pela igreja do Vaticano. Mas enquanto durou, ela foi muito atuante lá no meu bairro e contribuiu muito para a formação intelectual dos moradores do bairro. Nos ensinou que a gente era muito fraco, se vistos isoladamente. Nós poderíamos ser muito fortes se vistos em conjunto. Então, o delegado, que era todo poderoso, chegava e torturava qualquer moleque ali que se encontrava em volta da delegacia dele... A comunidade inteira ameaçava invadir se (o delegado) não respeitasse a lei e continuasse com o arbítrio... O cara treme

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O contato, mais uma vez, deu-se por e-mail. Caco aceitou conceder a entrevista, mas não podia confirmar uma data para vir a Fortaleza, devido às viagens que estava fazendo a trabalho. Ele nos pediu para permanecer em contato, até surgir uma data. Semanas depois, revelou que viria à cidade para uma palestra, no dia 20 de maio.

A produção ligou várias vezes para Caco, a fim de saber se a entrevista poderia mesmo ser realizada no dia da palestra. Faltando apenas um dia para a chegada do jornalista, ainda não tínhamos uma resposta.


Depois da reunião de pauta, na segunda-feira (19/5), a equipe de produção foi à Coordenação do curso tentar, mais uma vez, ligar para o entrevistado. Quando já estávamos desistindo, veio a surpresa: Caco Barcellos atendeu o celular.

Ao telefone, Karol tentava confirmar a entrevista. Quando ela contou que a duração seria de duas horas, ele disse ser impossível. Tentamos negociar para, pelo menos, uma hora e meia, o que também não deu certo. Caco daria, no máximo, 30 minutos.

como nunca tremeu na vida. Giselle — Pode-se dizer que veio dessa época o seu interesse pelo Jornalismo Policial, pelo chamado Jornalismo Policial? Caco — Acho que nunca fiz Jornalismo Policial. Na verdade, eu faço Jornalismo voltado para a denúncia da injustiça. Giselle — Investigativo... Caco —... Acho que toda matéria é investigativa também. Só que no Brasil, eu não sei por qual razão, mas a Imprensa, o conjunto dela pelo menos, acha que Jornalismo Investigativo tem que ser associado com polícia, com denúncia. Eu discordo totalmente. De cada 10 matérias que eu faço, nunca calculei direito, talvez oito não tenham denúncia contra ninguém. Mas tem o retrato das pessoas que sofrem violência, que sofrem injustiça. É muito um Jornalismo voltado para as pessoas que são injustiçadas e menos de pessoas que estão cometendo... Políticos que cometem atos de corrupção, como o Jornalismo que está tomado por esse tipo de denúncia hoje. Eu acho que qualquer matéria, mesmo uma matéria positiva, que vai falar sobre uma ONG (Organização Não-Governamental), por exemplo, que atende cinco mil crianças... Antes de divulgar eu quero saber se realmente são cinco mil crianças que ela atende. Se não são sete mil, por exemplo. Talvez nem saibam que essa ONG é tão maravilhosa que atende muito mais do que cinco mil. Mas também ela pode atender cinco, ao invés de cinco mil, certo? Toda matéria depende de uma apuração. Então, eu apuro com vários métodos... Lá no Profissão: Repórter (Quadro que era apresentado no Fantástico e que virou um programa semanal. Caco conduz o programa direto das ruas, onde a notícia acontece. Foi dele a idéia de mostrar diferentes ângulos da notícia, com a ajuda de jovens repórteres, e de envolver cada profissional da equipe em todas as etapas de produção: da reportagem à edição), a gente tenta sempre fazer isso, não usar a produção formal, a produção que avisa: “Estamos aí às duas da tarde pra fazer uma entrevista pra sua empresa”. A gente até faz isso, mas antes disso a gente visita de surpresa, depois disso a gente visita de surpresa novamente. Ou nunca chegar lá avisando, já chega de surpresa na primeira vez. Com isso acho que aumenta nossa chance de se aproximar da verdade. Num Jornalismo mais centrado, assim, na produção, que telefona, marcando, a gente corre um risco grande de ser enganado pela fonte. Então, por isso eu te digo, eu acho que toda matéria depende de uma ação ativa, de um papel ativo do jornalista e não só a matéria de polícia, que normalmente as pessoas

falam. Aliás, curioso (risos), porque eu acho – é até uma pequena crítica que eu faço –, que aqueles que falam bastante de Jornalismo Investigativo esquecem que, pelo menos esse conjunto que a gente vê sendo divulgado, quase sempre é resultado de um dossiê que foi elaborado por terceiros, ou pela Polícia, ou pela Justiça, ou por um político interessado em atingir um outro empresário, querendo atingir algum governo, ou a Imprensa querendo atingir algum governo... Não são iniciativas da própria Imprensa, de forma independente, ou iniciativa da comunidade, da população na rua, gritando, exigindo determinada denúncia contra determinado governo. Quase sempre as coisas vêm de um núcleo fechadinho, que já trabalhou antes de a Imprensa trabalhar. Então, também por essa razão, eu acho que não é muito investigativo não... Quase sempre é uma reprodução de dossiês de terceiros. Gustavo — Então seria como se a imprensa tivesse sendo usada? Caco — Não... Botando mesmo isso como um meio, uma prática profissional, acho que a gente vive uma mau momento do ponto de vista de quem gosta de Jornalismo Investigativo. Eu diria que é o pior momento. Esse é o momento do Jornalismo declaratório, do Jornalismo baseado em entrevistas, fuxicos e acusação de A contra B. Não tem muita verificação de verdade antes da divulgação. Então, isso, pra quem gosta de Jornalismo Investigativo, que é um Jornalismo praticado com independência e, sobretudo, com luz própria, é um mau momento. Um momento de irresponsabilidade e leviandades, de muita acusação e pouca prova... Lucíola — Caco, em algumas de suas matérias, você se utiliza de disfarces. Em que casos você se abstém de se identificar pro entrevistado como repórter e... Caco —... Eu nunca me abstenho. Se sou perguntado, eu falo meu nome. Nunca alterei meu nome, nem nada. O que é necessário fazer, de vez em quando, diria que até raras vezes... Eu preciso verificar se as coisas são verdadeiras ou não. Eu sou, hoje, relativamente conhecido. Dificilmente eu chego num lugar sem ser reconhecido por alguém, como sendo um repórter. E às vezes as pessoas não gostam de fazer determinadas coisas diante de um repórter, porque temem que isso seja divulgado, que se torne de conhecimento público. Então, evitam fazer aquilo que vêm fazendo sistematicamente. Você chega lá, você altera a realidade. Então, eu procuro ficar... Passar despercebido de alguma forma, espiando... De alguma maneira não ser percebido. Por isso, às vezes, eu acho importante a microcâmera, não gosto

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dela, esteticamente acho horrível, tem câmeras muito melhores... Mas ela altera menos a realidade que a câmera grande. Quando a câmera grande chega, todo mundo toma conhecimento dela... Você altera facilmente mesmo que você não queira. As pessoas mudam o comportamento quando vêem a televisão chegar. Num estádio de futebol, se o time tá perdendo de 5 a 0, você liga a câmera do seu lado, talvez você passe a vibrar como se tivesse vencendo, como se a goleada fosse a seu favor. Num velório, todo mundo triste, aborrecido, você liga a câmera, sempre alguém dá um tchauzinho pra mãe e tal. Se não tiver cuidado, ela altera, altera, altera todo tempo. Com uma câmera discreta, ela não altera. As pessoas não percebem. Então acho que ela é mais ética do que...Quer dizer, ética ou não ética depende do profissional, claro. Tanto câmera grande, quanto pequena, quanto fotógrafo, microfone, gravador, qualquer coisa... Pode ser ético ou não ético, depende do uso que a gente faça dos equipamentos. Alinne — (risos) Eu acho que a pergunta que eu ia fazer você acabou de responder... Caco — O quê? Alinne — Era justamente quanto à ética profissional. Se você já foi questionado alguma vez, se sofre muitos processos... Caco — Pelo uso de que, de equipamentos? Diego — Pela adoção de disfarces... Caco — Não, disfarce não causa dano a ninguém... Alinne — Não, é mais pela câmera mesmo. Caco — Qual, a câmera grande? Alinne — A pequena. Caco — Eu nunca sofri nada, eu uso muito pouco a escondida. Eu prefiro chegar: “Sou jornalista, estou aqui e tal...”. Não gosto quando eu sei que essa chegada altera completamente as coisas. Mas se eu já apurei bastante, cheguei lá escondido e ninguém me viu, eu sei que as coisas acontecem daquele jeito... Aí chego no dia seguinte com a câmera, até porque eu vou mostrar pro telespectador, acho que isso vira conteúdo.... “Vocês viram ontem quando eu não disse que era jornalista como estavam as coisas? E como estão hoje? Olha a diferença”. Vocês viram uma matéria sobre corte de cana? (Matéria exibida nos dias 14 e 21 de maio de 2006, no quadro Profissão: Repórter, que mostrou as condições de trabalho dos cortadores de cana). Treze pessoas morreram por exaustão no corte de cana sob o sol intenso. A gente fez um teste que é infalível. A gente telefonou: “Vamos aí, mostrar sua usina, como é que é o trabalho com os bóias-frias que cortam cana, pessoal imigrante que veio do Maranhão pra São Paulo, cortar cana...”. E foi

incrível! Na área do corte havia ambulância, médicos, todo um equipamento de primeira linha para os trabalhadores, assim como uniforme, sombra, água fresca, sombra para a refeição, intervalos regulares de descanso e tal. E a outra equipe foi cortar cana sem dizer que era um repórter ali e, como sempre, a gente, pelo menos comigo, eu não acho correto você falsificar identidade. Todos se apresentaram com seus nomes verdadeiros e suas carteiras profissionais verdadeiras. Nem precisou isso, eles começaram a trabalhar antes do registro. E com eles, como não eram repórteres que estavam chegando lá, foram tratados como são, de fato, tratados os trabalhadores. Equipamentos sem nenhum item de segurança, tudo enferrujado, de baixo do sol como todo mundo, todo dia sem ambulância, sem médico... O que nos ajudou a entender por que 13 morreram sob exaustão. A indústria ficou revoltada e tal, porque não achou ético a gente fazer isso. Eu acho que não seria ético você mentir para o seu telespectador, dizendo que todo mundo recebe condições ideais de trabalho se não recebem. Então, nesse caso, a microcâmera não foi ética? Depende do ponto de vista. Eu acho que foi muito ética, não causou dano a ninguém. Os trabalhadores eu acho que foram beneficiados. Houve pressão depois do Ministério Público nessa usina e nas outras onde estavam acontecendo as mortes. Não aconteceram mais mortes, por coincidência ou não. No ano seguinte não teve mais... Depende do ponto de vista, sempre. Talita — Caco, um dos seus trabalhos investigativos mais conhecidos acabou se transformando em livro, que foi o Rota 66. Como é que surgiu a idéia de escrever esse livro? Caco — Olha, quando eu decidi, a Polícia

“Tanto câmera grande, quanto pequena, quanto fotógrafo, microfone, gravador, qualquer coisa... Pode ser ético ou não ético, depende do uso que a gente faça dos equipamentos”.

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Aceitamos, então, os 30 minutos. O próximo passo foi saber o horário de seu vôo. Caco disse (ou a Karol entendeu) que a saída de São Paulo seria às 14h. Sendo assim, ele deveria chegar por volta das 17h. Depois disso, a produção voltou a se reunir e preparou uma nova pauta, adequada ao tempo de duração da entrevista.

Baseando-se naquele horário, a turma foi, no dia seguinte, esperar o entrevistado no aeroporto. Foi quase todo mundo no carro da Alinne. O carro mais parecia uma Topic. Não faltou quem fizesse piada da situação: “Próxima desce!”.


A turma chegou ao aeroporto por volta das 15h. A equipe de produção foi logo providenciar o local da entrevista. A assessora de imprensa da Infraero em Fortaleza, Joice Ribeiro, disse que a entrevista poderia ser na própria sala da assessoria.

Militar de São Paulo já era a organização brasileira que havia matado o maior número de brasileiros em toda a nossa história, mesmo se você comparar com as guerras convencionais, como a Guerra do Paraguai (Mais longa e devastadora guerra da história da América do Sul. Ocorreu de 1864 a 1870. Argentina, Uruguai e Brasil juntaram forças para derrotar o Paraguai), que foi a que teve maior número de vítimas... Superou até essa guerra. Então, já pela quantidade de pessoas que havia matado, já é um assunto de extrema relevância. Hoje não é mais a que mais mata no mundo, mas continua sendo uma das organizações brasileiras que mais matam no mundo. Hoje já são os alunos da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar. Força tática da Polícia Militar de São Paulo) que são os que mais matam. É o pessoal do Bope (Batalhão de Operações Especiais) lá do Rio de Janeiro... É a polícia mais violenta do mundo. Eu devo falar isso bastante hoje, lá na minha palestra (Caco faz referência à palestra que iria proferir mais tarde, na Faculdade de Direito da UFC, sobre violência). Se você pegar o relatório da Anistia Internacional deste ano, elenca lá a violência nos países que praticam a execução, que as PMs do Brasil praticam, dentro da Lei. São os países que adotaram a pena de morte. O Brasil é signatário de vários tratados que impedem a pena de morte aqui no Brasil, porém pratica mais do que os países que fazem dentro da lei: Estados Unidos, China, Irã, Paquistão, Afeganistão. Os países que têm a pena de morte, no ano de 2007, mataram menos do que, sozinho (bate na mesa) o Bope no Estado (do Rio de Janeiro) todo. Sozinho. E mataram mais... São 1.350 mortos da PM do Rio de Janeiro no ano passado. Mil quatrocentos e cinqüenta. E são mil cento e alguma coisa – eu tenho o número –, as mortes praticadas pelos países que adotaram a pena de morte. Pra você ter uma idéia da gravidade disso, que a sociedade brasileira pratica, já que a Polícia Militar é um braço do Estado, ela funciona com o dinheiro dos nossos impostos, não é? Somos nós que es-

tamos matando dessa maneira, por meio das metralhadoras da PM. Os Estados Unidos, que praticam a pena de morte há dezenas de anos, em toda a sua história, não mataram o suficiente pra bater um ano de ação do Bope e de sua turma no Rio de Janeiro. Foram 1.010 pessoas executadas no Rio de Janeiro até hoje. Apenas um ano, veja aí, 1.450. A Rota, só num ano, 1.500, quando eu lancei o livro, no ano de 92. Então eu acho que o número fala mais do que qualquer coisa, né? Ora, se a gente tem a polícia mais violenta do mundo, temos que contar a história dessa polícia e dessa sociedade – mais do que dessa polícia. Karol — Caco... Caco —... Que horas são? Isabele — Faltam cinco minutos (para o encerramento da meia-hora combinada). Caco — Caramba, como passa rápido (risos). Karol — Caco, no seu outro livro, Abusado, você relata a história do Juliano VP, que foi um traficante do Rio de Janeiro. Pra produzir o livro, você teve, inclusive, que conviver e conhecer pessoas da comunidade. Você já foi pressionado pela polícia para divulgar essas informações ou já foi acusado de encobrir os criminosos? Caco — Não, olha, acusado formalmente, não. Eu recebo algumas críticas, de alguns jornalistas, de alguns intelectuais, principalmente, do Rio de Janeiro, que apóiam essas ações da PM do Rio de Janeiro. E hoje são muitos jornalistas que apóiam. Antigamente se omitiam, hoje, alguns, não são maioria, mas alguns apóiam as execuções praticadas pela PM. E esses que criticam o fato de eu ter subido as favelas, convivido com a comunidade durante cinco anos, fazendo as entrevistas noite e dia quando tinha oportunidade... Acham que isso é uma relação promíscua. O que é curioso, porque quando os criminosos de alta renda cometem fraudes, desviam dinheiro público – e são muitos no Brasil, políticos, advogados, industriais e tal –, e se envolvem em crimes que causam

Até este momento, as coisas pareciam correr bem. Foi quando Edwirges encontrou Eliomar de Lima, jornalista do O Povo: “O Caco Barcellos? Ele já chegou e já foi embora”, disse, para desespero da turma. A turma ficou desolada. Minutos depois, vários telefonemas e contatos começaram a ser feitos. Thiago chegou, inclusive, a ir conversar com taxistas para ver se algum deles tinha levado Caco Barcellos.

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dano, muitas vezes, maior do que o produzido por alguns crimes que vêm da favela, ninguém me pergunta: “Ué, você tá encobrindo esses empresários pelo fato de estar entrevistando os empresários? Como é que você se relaciona com... digamos... Vamos ver um nome... PC Farias (Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Collor de Mello, acusado de desviar verbas públicas na administração de Collor, causando, assim, o processo de Impeachment do então presidente). Como é que você entrevista Paulo Maluf (ex-prefeito de São Paulo acusado, em 2005, de crimes contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, corrupção passiva e formação de quadrilha. Atualmente é Deputado Federal pelo Partido Progressista de São Paulo)?” Nunca ninguém me perguntou isso. É incorreto entrevistar o eletricista... Juliano ou Paulo, ou Marcos da Silva “vírgula” traficante? E não é promíscuo entrevistar o engenheiro Paulo Maluf “vírgula” padrão público? Qual a diferença? Eu acho que a minha postura tem que ser igual com todo mundo. Discordo radicalmente de quem acha que só deva dar voz aos bacanas. Eu acho que todo mundo tem direito a voz, sobretudo quando você acusa. No caso do Juliano, eu estava acusando, no livro inteiro. Trata-se de uma obra ali que fala do tráfico, do comércio ilegal de drogas. Ora, isso não é uma coisa legal. Se eu tô falando disso, contando a história de traficantes (bate na mesa), eu tenho que contar a história (bate na mesa) deles, completa. O lado deles é importante. Porque assim é quando a gente conta os crimes praticados pelos bacanas. A gente ouve o advogado deles, uma, duas, três vezes, (conta batendo na mesa), não é? Ouve a família, a circunstância que o levou a se envolver com determinada fraude, não é? Então, acho que é uma crítica infundada. Acho que tem preconceito de classe, nisso. As pessoas acham que quem mora no morro não merece receber visita da Imprensa. Não merece receber visita da Justiça, da Promotoria Pública. Não existe um prédio da Justiça nos morros do Rio de Janeiro, e lá moram mais de três milhões de pessoas. Só existe, lá, escola, nos morros, porque foi construída por um governador que era aliado dos pobres, que era Leonel Brizola (ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, foi o fundador do Partido Democrático Trabalhista. Morreu em 2004). A prática dele era coerente com o discurso. Ele realmente era um cara que se preocupava com as minorias sociais. Então tem realmente escolas de primeiríssima linha nos morros. Poucas, porque quando ele criou uma de primeiríssima linha, que foi quando ele saiu, foi perdendo

a qualidade... Tinham escolas lá melhores do que escola de bacana, que paga uma fortuna para estudar nas particulares. Ivna — Caco, você já fez três livros-reportagem. Na hora de produzir essas reportagens “barra” livros, você se considera mais repórter ou mais escritor? Caco — Não sei te responder. Acho que as duas coisas, até porque eu gosto muito dos escritores. Todos os meus ídolos foram, um dia, repórteres ou continuam repórteres de livros. Ivna — E quem seriam? Caco – Ah, são vários. Citar, assim, rapidamente... Gay Talese (editor e ensaísta americano. Publicou, entre outros livros, Fama e Anonimato e A mulher do próximo), Truman Capote (autor de A Sangue Frio, livro considerado como marco inicial do New Journalism), Frederick Forsyth (escritor britânico de O dia do Chacal, Cães de Guerra, entre outros), Stephen Grey (jornalista holandês, autor de Avião Fantasma), Jack London (escritor americano, autor de A Praga Escarlate, Caninos Brancos e O Lobo do Mar), John Reed (jornalista americano, autor de Dez Dias Que Abalaram o Mundo)... Ah, tem tantos... Bom, brasileiros: Fernando Morais (autor de Olga, Chatô, o rei do Brasil, A Ilha, entre outros)... Tem uns latinos legais também, Eduardo Galeano (escritor uruguaio, autor de obras como De pernas pro ar, Dias e noites de amor e de guerra, Futebol ao sol

“É incorreto entrevistar o eletricista Juliano ou Paulo (...) “vírgula” traficante? E não é promíscuo entrevistar o engenheiro Paulo Maluf “vírgula” padrão público? (...) Eu acho que a minha postura tem que ser igual com todo mundo”.

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Karol e Diego conseguiram, finalmente, falar com a assessora da Souza Cruz, empresa que estava promovendo a palestra em Fortaleza. Ela deu o número do celular de Simone Veltrin, que estava acompanhando Caco na viagem.

Simone se dispôs a nos colocar em contato com o entrevistado. Pouco tempo depois, Caco retornou a ligação para o celular de Ronaldo, falou com Edwirges e acertou a entrevista. Com o endereço do hotel em mãos, a turma se dirigiu para lá. Chegamos ao hotel (eram quase 17h). Edwirges ficou com o restante da turma para recepcionar o entrevistado. Karol e Diego foram providenciar o local da entrevista. Uma sala de reuniões estava disponível.


Ao dizer que estávamos ali para entrevistar Caco Barcellos, uma das atendentes disse: “Ah, Caco Barcellos, aquele ator?”. Karol e Diego logo corrigiram a confusão: “Não, ele é jornalista...”. Caco encontrou a turma no saguão do hotel. Cumprimentou todos e foi encaminhado à sala onde se daria a entrevista.

Karol e Diego esperavam em frente à porta. Diego segurava a última edição da Revista Entrevista e, após os cumprimentos iniciais, entregou o exemplar ao jornalista. A entrevista demorou ainda um pouco para começar. Caco estava com dor de garganta e pediu que desligassem o ar-condicionado.

e à sombra, O livro dos abraços e Memória do fogo)... Edwirges — Caco, na apresentação aqui do seu livro, o Rota 66, o Narciso Kalili (Repórter da revista Realidade, na década de 60. Faleceu em 1992) fala que você é um repórter que escolheu um lado: que é o lado das vítimas, é o lado dos mais fracos. O que te move a trabalhar em função desse lado? Caco — Objetividade, principalmente. Se eu morasse na Suíça, eu seria um repórter de classe média, da classe média (retifica). No Brasil, a maioria da população... Depende também do critério do que você considera pobre ou não. Há quem considere pobre aqueles que recebem menos de R$ 500 por mês. Eu acho que pobre é aquele que recebe menos de R$ 1 mil. Mas o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, órgão responsável por coletar dados e informações sobre o Brasil e a população brasileira) considera duzentos e poucos, trezentos e poucos (reais). Então, seguramente, são mais de 100 milhões de pessoas pobres no Brasil. Oh, tem que ter repórter dessa gente, né, e não dos cinco por cento. Então, se eu sou dos 100 milhões, tem que tá nos morros, vai ter que tá na periferia... Por mais que diga que isso é promíscuo, que estou lá fazendo apologia ao crime. Tô falando porque eu sou repórter, por dever de ofício, também (enfático). Não é? Se fosse a Suíça, eu estaria lá, gastando, digamos, dez mil por mês. Diego — Caco, você acha que realmente o Jornalismo tem esse caráter transformador que lhe atribuem? Você tem essa opinião? Caco — Eu tenho, mas não sei se é verdadeira. Eu acredito nisso, eu trabalho pensando nisso. Eu acho que você tem um papel social a cumprir. Acho que a gente tem que ir atrás de assuntos de alto interesse público, sempre. (pausa). E... Se muda ou não muda as coisas, não sei, não dá pra avaliar porque o valor é tão subjetivo no nosso trabalho, não é? Às vezes, você até encontra, sim, uma mudança objetiva, quase que imediata. É muito raro, mas às vezes acontece, quando você denuncia alguma coisa, a polícia prende um “cabra” folgado. Mas isso será que muda alguma coisa pro capitalismo brasileiro? Acho

que as mudanças são mais... Graduais, mais subliminares, mais a longo prazo. Thiago — É preciso indignar-se para fazer essas denúncias? Caco — Considerando que a gente vive num país muito injusto, eu acho que sim. Se não fosse um país injusto, não. Mas a gente é muito injusto, né? (enfático) É muito desigual. Não precisava ser tanto assim. Não só porque é um regime capitalista, não estou fazendo crítica ao capitalismo, só... Por que escolher o mais selvagem deles, né? Podia ser um capitalismo das nações como Itália, França, Reino Unido... Mas tinha que ser o mais perverso, o mais brutal, o mais...? Isso tem que causar indignação. As diferenças são muito grandes, são muito brutais no Brasil. Então eu acho que essa diferença gera conflito, desarmonia. Porque tem que pensar, já que é um país capitalista, nas coisas da... Das possibilidades de oportunidade, das chances de oportunidade. E quando as coisas são tão desiguais, as oportunidades serão desiguais. Por mais que pareça democracia, não é democracia. Então, vamos pensar a chance que têm, de se dar bem na vida, o filho de um industrial e o filho de um operário. Se observar desde o momento em que nasce, eu duvido que o filho de um operário, pelo fato de ter nascido numa família de operário, vai ser um mau elemento por natureza, como muita gente pensa. “Quem mora nos morros, é bandido, a princípio”. Não. (enfático). É uma trajetória que fez com que ele vá para um lado ou pra outro. Eu acho que a chance daquele que é filho de um industrial, sempre vai ser maior... Desde o momento em que ele precisa de uma chupeta (bate na mesa), a chupeta do filho (bate na mesa) do industrial vai ser de melhor qualidade do que a do filho de operário. A proteína de primeira linha... A qualidade da proteína dele vai ser diferente. A qualidade no ensino, nos primeiros momentos, a qualidade da companhia, do amor, da família (enumera batendo na mesa). Coisa que eu mais ouvi nos morros que já andei, foi isto: a falta de amor da mãe. Não que a mãe seja uma desalmada, uma mãe perversa. É que ela trabalha pros bacanas, de segunda-feira a sábado, à noite. Direto. Ela é mãe de dois: do filho do bacana... O filho do bacana tem duas mães. A mãe dele, legítima, e a empregada doméstica, que é a mãe do traficante do morro, que nunca tem essa mãe (bate na mesa), e só tem a mãe domingo. Isso é igualdade de oportunidade? De igualdade até... De oportunidade de afeto, não é? Ele tem a mãe no domingo, e a mãe exausta, passou, na escravidão da classe média alta, lá, a semana inteira. Geralmente por um salário indigno, tão indigno que cos-

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tuma ser três vezes inferior ao trabalho – que não é trabalho, que é um ato ilegal – do filho. Então ele consegue acesso ao tráfico, ele vai ganhar três vezes mais do que a mãe. Com que autoridade a mãe vai chegar pro filho e vai dizer: “Pare de fazer esse serviço, que eu te trago todas as coisas, pra você não precisar fazer isso”, como dizem os bacanas em casa, né? “Se eu te dou tudo, por que você vai para o crime?”. No caso dela, é ao contrário: “Te tiro tudo, que é a minha presença física, de segunda a sábado, só te tenho, só sou sua, no domingo e exausta”. Tem que tá lavando roupa acumulada, essas coisas... Então, o que essa mãe pode oferecer pro moleque? Deixa o moleque abandonado, sendo criado pelo irmão mais velho, ou pelo vizinho, pelo traficante mais próximo, não sei. Os traficantes são amigos, são filhos de outras empregadas domésticas também, elas não vêem como a gente vê esse universo. É muito complicado, não é? Um sistema tão desigual, porque eu te dei um exemplo só de favela, mas se pensarmos no mercado de trabalho também... Essa diferença vai bater. E por isso não estranho que a gente cometa tantos crimes, porque a desarmonia é muito grande, a indignação de muita gente é muito forte. E logo, pra encerrar, porque eu tenho que correr pra lá (para a palestra), não é também por acaso que as pessoas (tosse) de bem, no Brasil, as pessoas comuns, não os criminosos que matam pra roubar, são mais violentas do que os marginais, não é? Nós (enfático) praticamos muito mais crimes do que os marginais praticam. A estatística mostra isso. Porque eu acho que a gente devia, inclusive, não precisar dessa forte desarmonia (tosse). Continuamos depois? Vocês me atacam lá, no final? (risos)

Gustavo foi providenciar uma água para o entrevistado. Quando retornou, Caco disse que não poderia beber, porque a água estava gelada. Uma outra água (agora natural) foi providenciada. Caco Barcellos também perguntou se alguém tinha algum comprimido para dor de cabeça. Thiago ofereceu Neosaldina e Lucíola Paracetamol. Ele aceitou este último – para a alegria de nossa colega.

A entrevista finalmente começou e se deu de forma tranqüila. Os 30 minutos previstos acabaram rendendo mais. Foram no total 41 minutos de conversa. Caco Barcellos sugeriu que continuássemos a conversa após a palestra, mas o professor Ronaldo, preocupado com a garganta do entrevistado, achou melhor encerrar a entrevista. Na saída do hotel, Gustavo soltou a pérola do dia: “Puxa, comprei a água mais cara da minha vida (R$ 3,75) e ele nem bebeu...”. A turma resolveu ir ao Dragão do Mar comer e, depois, assistir à palestra de Caco na Faculdade de Direito da UFC.

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S창nzio de Azevedo Professor


// Rafael Sânzio de Azevedo

A bílis funda que queima no céu: poesia do amor filho da ausência, ciência de tudo quanto sentimos Existe algo de bem e de exato no semblante de Rafael Sânzio de Azevedo: os lábios finos que riem o rosto todo, a expressão tão harmônica quanto sincera, uns meneares de cabeça ingênuos e meio apressados. A racionalidade patente oculta o escritor capaz das junções mais puras. Quando a alma já não encontra espaço dentro de si, necessária se faz a busca por outros sóis. As emoções falam a Sânzio em alexandrinos ou decassílabos, pulsos donde irrompe o verso purpúreo, plácido entre lírios. A dor é silente em suas mãos, pois a angústia de um artista é um pranto sem lágrimas. São muitas na mente dele as remembranças do pai, Otacílio de Azevedo, também poeta destas searas: ele dizia poemas assim, quase inocentemente, rimava e dispunha métricas em versos sem saber o que era sujeito ou predicado. Recordações igualmente tantas de Rubens de Azevedo, o irmão mais velho, encantador de luas a lhe apresentar a glória e o fulgor de estrelas há muito findas. Mas Sânzio gostava era dos cometas, sempre arrastando tão belamente os véus através do infinito. De primeiro, havia o gramofone com o chiado baixo que por pouco não desafinava a viola aguda ao fundo da música e tornava ainda mais cavernosa a voz do cantor do bolero ou da valsa do passado. Havia os corsos no carnaval, as marchinhas. Na meninice de Rafael havia o desvelo da mãe, havia os super-heróis que lhe escorriam dos dedos, havia a curiosidade de quem viria a ser um cientista das palavras. Na celeridade de seus passos reside cada minuto dos 70 anos de Sânzio de Azevedo. Ele flanava numa Fortaleza que corria descalça por ruas sem a pretidão do asfalto; nessa época a chuva trazia um mormaço bom. As madrugadas eram noites do tamanho do céu, violões queixavam à Lua a mágoa do bem-querer distante. Podia-se ir a qualquer porta, janelas sempre haveria... Dos tempos de serenata quase remanesce um sorriso de moça na sacada, talvez nem isso. O manto negro que veste de todas as estrelas já não acolhe o boêmio de outrora; além de uns res-

tos de luar, lhe cai dos ombros agora o vão deixado pela sangria de uma tarde que insiste em não morrer. Ainda na mocidade apartou-se da loura Fortaleza. A saudade não cabia na terra remota, quiçá coubesse nos mares verdes e nos coqueiros tremulantes ao Vento Aracati. Ele bem que procurou, mas em São Paulo pés de coco não havia. Na lonjura apercebeuse do amor extremo pela gleba e por suas letras: no regresso tornou-se maior. A convalescença derradeira foi a firmeza resoluta de estudar nossa literatura. Pesquisador arguto de gênio perspicaz, alcançou prestígio entre os seus, tornando-se referência nas áreas em que se dispôs a mergulhar esmeradamente. De tão pouco serviria tudo o que é se apenas para si ele se guardasse. Mas o professor apascenta tantos jovens nos caminhos de páginas... No mundo dele, povoam poetas e suas noivas pálidas, inalcançáveis e de mãos frias, e os alunos submergem no universo daquelas cantigas. A poesia por ele solfejada cresce da página, é uma reza solene e livre. Sânzio é um lampejo aguerrido e cálido da arte em palavras, é a literatura simétrica que lhe explode os poros. A busca pela perfeição é saga solitária; na sílaba forte, a tônica é a do enlevamento, a precisão alquímica de um salmo estreito. A qualidade do que é autêntico reside na simplicidade e na modéstia do firmamento de Sânzio. Os óculos pretos e de aros grossos beiram a timidez, e aprender é uma fome eternamente insatisfeita. Verdadeiro mestre é aquele a nos ensinar não apenas a teoria, mas também lições para que sejamos alma. No meio da conversa, Sânzio puxa um livro magicamente de dentro das mãos. Ele surge com letras datilografadas em máquina de teclas pesadas e barulhentas, de onde desabrocha o verso azul. As páginas amarelas poderiam ser de qualquer cor, pois os livros de verdade não envelhecem por dentro. De tudo Sânzio guarda uma saudade que nunca fenece: é aquele sentimento que está sempre ali, no íntimo, engolindo todo o ser, como se lhe enforcasse os olhos.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Alinne Rodrigues Lucíola Limaverde Thiago Mendes Entrevistadores: Alinne Rodrigues Ana Karolina Assunção Diego Silveira Edwirges Nogueira Giselle Soares Isabele Pequeno vna Bessa Lucíola Limaverde Luís Gustavo de Negreiros Síria Mapurunga Talita Christine Thiago Mendes Texto de abertura Lucíola Limaverde Fotografia Alinne Rodrigues Diego Silveira Callen Leão



Entrevista com Rafael Sânzio de Azevedo em 10/06/2008.

Alinne – Seu pai (Otacílio de Azevedo) veio de Redenção (município cearense da microrregião do Maciço de Baturité, situado a 63 km da Capital) para morar em Fortaleza aos 18 anos. Por aqui sua família morou em várias casas diferentes. Passou pelo castelo do arquiteto Emílio Hinko, por uma casa na Rocha Lima (rua do Centro) até que se estabeleceu na rua Jaime Benévolo (situada no bairro José Bonifácio, próximo ao Centro de Fortaleza). Qual foi a recordação mais significativa que você guardou desses locais onde passou a infância? Sânzio – Bom, a data mais significativa mesmo é difícil. Agora eu achei interessante você ter assinalado exatamente as casas onde eu morei – você olhou pela data (risos). Eu nasci mesmo foi aqui perto da Universidade, numa rua que se chamava rua da Botija. Era chamado Prado, aqui o bairro, mas eu não me lembro de nada. É incrível eu me lembrar de quando eu tinha três (fala com ênfase) anos. Isso eu tenho certeza. Tenho certeza porque quando eu morei na Aldeota (bairro de Fortaleza) – não que a gente fosse rico –, nós morávamos numa casa do (arquiteto húngaro) Emílio Hinko. Meu pai tomava conta das casas dele. O Emílio Hinko era casado com a Pierina, dona do Excelsior Hotel (localizado na Praça do Ferreira, foi inaugurado em 1932 e foi considerado na época o primeiro arranha-céu de Fortaleza, com sete andares), viúva do Plácido, aquele Plácido do castelo que demoliram (Plácido de Carvalho, primeiro marido de Pierina, para quem construiu um castelo no quarteirão onde hoje se situa o Centro de Artesanato do Ceará – Ceart – na Praça Luiza Távora), porque aqui no Ceará tudo se bota a baixo. Então, lá na Aldeota, nós morávamos numa casa cujo muro dava para a (rua) Costa Barros. Vejam vocês como eu sou antigo... Eu me lembro muito bem, é uma coisa marcante, de uma boiada passando numa rua cheia de areia, e a minha irmã Consuelo me pôs no braço – eu muito pequeno – para eu ver os bois passando. Nisso um dos bois virou os chifres para um lado do muro e eu quase caía de medo. Eu acho que é por isso (que) até hoje eu tenho medo de boi e vaca. Depois eu conversando com a minha mãe, ela me disse: “Era a rua Costa Barros”. Então você imagine: a rua Costa Barros era

areia passando boiada (hoje é das ruas mais movimentadas da Aldeota). Depois fomos para a Rocha Lima. Justamente... em 42 eu estava na Rocha Lima. Nasci em 38, em 42 eu completei quatro anos na Rocha Lima. É claro que o mais marcante para mim vai ser a Jaime Benévolo, porque eu fui com cinco anos para essa rua, número 757, onde hoje mora minha irmã. E todas as minhas lembranças da infância, as maiores lembranças, são dessa rua – que era areia. Não tinha energia elétrica, era na base da lamparina. Depois eu vi quando calçaram a rua e tudo. E o tempo foi passando. Havia circos. Havia um terreno perto lá de casa, onde de tempos a tempos vinha o Circo Boa Noite (fala com ênfase), o Circo Belas Artes, o Circo Alegria, ou então quermesses. E aí eu entrei até pela adolescência. Havia umas quermesses... (Havia) uns parques com as “irradiadoras” (espécie de serviços de autofalantes que permitiam a troca anônima de mensagens) com aquelas músicas. Então nesse tempo, com 17 anos, eu tomava assim umas canas, uma cachaças, e ficava apaixonado por uma moça, ficava botando todo tempo um disco do Nelson Gonçalves (um dos maiores cantores de músicas românticas do Brasil, é intérprete de A volta do boêmio), morto de bêbado junto com um amigo. Então isso a gente não esquece nunca (risos). Justamente, o que me marcou mais foi a Jaime Benévolo mesmo. Eu vivi lá praticamente de 1943 a 1972. Lucíola – Sânzio, você nasceu em um meio artístico: sua mãe era retocadora de fotos e seu pai, além de ser poeta autodidata e pintor, era fotógrafo. Em que momento da sua infância você se deu conta de que seu pai era um poeta? Sânzio – Não é fácil responder isso, não. Eu me lembro de que – parece-me – quando ele publicou em 44 o poema Redenção... Era uma plaqueta, um opúsculo (pequena obra escrita). Eu lembro que eu gostava muito desse poema. Eu comecei a ler e achar bonitos aqueles versos. Eu tenho a impressão de que foi aí que comecei, ainda menino, a ver que papai era um poeta. Os quadros então... Sempre. Sempre vi meu pai pintar e achava aquilo muito bonito. Agora, é uma coisa curiosa, não sei se eu falei isso naquele dia (refere-se à pré-entrevista), mas quando eu entrei na Academia Cearense de Letras,

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Antes que o semestre começasse, Sânzio ministrou um curso sobre Padaria Espiritual no Centro Cultural do Banco do Nordeste. Thiago e Lucíola estiveram presentes.

Na fase inicial da disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso, os candidatos a entrevistados são indicados pelos próprios alunos e submetidos a uma votação.


No dia da escolha, Lucíola tinha na lista cinco autores cearenses: Pedro Salgueiro, Henrique Beltrão, Ana Miranda, Abelardo Montenegro e Sânzio de Azevedo.

Thiago, entretanto, teve a fala requisitada antes da dela e, coincidentemente, indicou o nome do poeta. Até hoje ela reclama a coautoria da indicação.

no discurso (de posse), eu disse uma coisa que parece retórica, e é – mas tem muito de verdade. Eu disse que cresci entre um poeta que ouvia estrelas, alusão ao Bilac (Olavo Bilac, (cronista, contista e poeta parnasiano cujo texto mais famoso é o soneto XIII de Via Láctea), e um astrônomo que observava as estrelas, o Rubens, meu irmão mais velho: Rubens de Azevedo, que é o nome do planetário do Dragão do Mar (Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, um dos principais equipamentos culturais do Ceará). Então, engraçado, eu acho, eu tenho quase certeza de que eu tive uma influência muito forte da poesia de papai e da ciência do meu irmão. Tanto assim que meu primeiro livro se chama A Terra antes do homem. É sobre animais pré-históricos, dinossauros – não é um livro de poemas. Quase todo mundo inicia a sua obra por um livro de poemas. Eu não. Eu já fazia uns poemas, muito ruins (risos) aqui em Fortaleza, quando eu fui para São Paulo. Thiago – Ainda a respeito do seu pai, ele se define, numa gravação que nós ouvimos do Museu Fonográfico do Ceará (iniciado com acervo de áudios, em 1958, hoje leva o nome de Arquivo Nirez, apelido de Miguel Ângelo de Azevedo, irmão de Sânzio) como poeta parnasiano-simbolista. Além do gosto de estudar Parnasianismo e o Simbolismo, o que mais ficou de Otacílio em Sânzio? Sânzio – (Pausa) Olha, eu tenho a impressão de que meu pai me influenciou muito, não só sobre o Parnasianismo e o Simbolismo, mas sobre a Literatura Cearense. Quando eu fui no fim de 59 para São Paulo, eu me senti completamente deslocado, morrendo de saudade do Ceará. Porque São Paulo é muito diferente. Se eu tivesse ido para o Rio, eu acho que eu tinha ficado lá. Me desculpe se tiver algum paulista aqui, mas São Paulo é muito diferente. Parece que se está na Europa (risos). E aquele frio... Eu gostava do frio... Mas eu digo a paisagem... Eu tinha uma saudade, eu sentia uma falta muito

“Cresci entre um poeta que ouvia estrelas (...) e um astrônomo que observava as estrelas, o Rubens, meu irmão mais velho”

grande do Ceará. E meu pai me mandava livros cearenses. Mandava do Dolor Barreira (jurista, historiador, professor e ensaísta. É autor da obra de quatro volumes História da Literatura Cearense, publicados entre 1948 e 1962)... E o Carlyle Martins (promotor e juiz em diversas cidades cearenses, escreveu livros de poesia, biografia, ensaio e ficção), que era poeta parnasiano, amigo do meu pai e meu também. Carlyle Martins também me mandava livros de poetas brasileiros, mas muitos livros do Ceará. E ocorreu que em uma ocasião (pausa), eu morava em Santo Amaro (bairro da zona sul de São Paulo). Eu morei em muitos lugares em São Paulo. Fui morar em Santo Amaro e eu tinha um amigo carteiro, chamado Floreal d’Amore – era paulista mesmo, apesar do nome. Nesse tempo eu estava desempregado e ele me disse: “Quer ir comigo distribuir cartas?” Ele sabia que eu gostava de poesia e quando chegou numa casa ele disse para o morador: “Quem é o poeta de Santo Amaro?” O morador disse: “Paulo Eiró!” E começou a declamar versos de Paulo Eiró. Ora, Paulo Eiró era poeta romântico que morreu louco. Eu achei aquilo tão interessante, tão bonito o cidadão conhecer o poeta da sua terra e comecei a me lembrar do Ceará, onde ninguém conhecia – nem conhece – (risos) os escritores da terra. Eu dou aula de Literatura Cearense e de vez em quando eu estou citando uns nomes que ninguém conhece. Muitas vezes alguém diz: “Ah, a rua onde eu moro” (risos). Então (risos), quando voltei para o Ceará, voltei com a firme decisão de estudar e divulgar a Literatura Cearense. Quer dizer, meu pai (também) influenciou bastante nessa decisão. Quando eu voltei, eu tive a sorte de trabalhar na Casa de José de Alencar (local onde nasceu o escritor cearense, hoje tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, é instituição cultural ligada à UFC) com o doutor Martins Filho (Antônio Martins Filho, cearense do Crato, foi o primeiro reitor da Universidade Federal do Ceará, fundada em 1954), de quem eu cheguei a ser amigo... A gente conversava muito e ele me incentivou a fazer uns opúsculos: A Padaria Espiritual, A Academia Francesa do Ceará e O Centro Literário, (publicados respectivamente em) 1970, 71 e 72 (três principais agremiações culturais do Ceará do século XIX. Na tese de doutorado, defendida em 1980, Sânzio voltaria a tratar da Padaria Espiritual para falar do surgimento do Simbolismo no Ceará). Thiago – Você fala da influência na literatura. Mas e os ensinamentos de pai, o que mais o marcou?

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Sânzio – É meio difícil de eu dizer, porque meu pai não era muito de ensinar, não (risos). Ele deixava a coisa fluir naturalmente. Agora, o que meu pai fazia era me impressionar... Ele me fez desenvolver o meu ouvido. Eu dou até aula de Teoria do Verso e tenho um livro: Para uma teoria do verso. Isso aí eu devo ao meu pai, sem ele querer. Porque eu tinha a mania, quando eu tinha tempo, de pegar livros de poemas e ficar lendo para ele, lendo alto. E ele achava uma beleza, dizia: “Bonito!”. Ele tinha uma prevenção contra o modernismo – confesso que eu tinha no começo um pouco, depois fui... De vez em quando eu pegava um poema de Fernando Pessoa (poeta modernista português, considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa, autor de Mensagem), lia para ele, ele dizia: “Bonito!”, e eu dizia: “Pois é o Fernando Pessoa” (risos). Ele gostava mesmo era do Bilac. Então eu quero dizer: esse negócio de eu ler os poemas me acostumou muito o ouvido. Tanto que hoje você diz um poema para mim e eu digo logo quantas sílabas tem o verso sem precisar estar contando. Meu pai contava que conheceu um poeta, Raimundo Varão, um poeta estranho, que tinha seis dedos em cada mão. Meu pai começou a fazer versos contando nos dedos. Não sei se era porque Raimundo Varão tinha seis dedos... Ele chamava meu pai de “Seu Oton”: “Seu Oton, desgraçado do poeta que conta as sílabas nos dedos!” Outra coisa interessante do meu pai foi eu ver como ele fazia os poemas. Porque um dia, lá em casa, eu me sentei à mesa, peguei papel e caneta, lápis e borracha, e disse para ele: “Vou escrever um soneto sobre Fortaleza.” Papai olhou assim e disse: “Ah! Se eu me sentar para escrever, não escrevo coisa nenhuma.” E ficou andando do quintal para a porta da rua. Todo o tempo andando, andando, andando... E eu lá sabia o que ele tava fazendo! Eu quebrando a cabeça para fazer o soneto e não saía nada. Quando foi daí a um pedaço ele pegou um papel, escreveu e me deu. Era um soneto que ele tinha feito sobre Fortaleza: “Ainda contemplo, ó loura Fortaleza/ no sorriso de sol que ora desatas/ a antiga Canaã num sonho presa/ ao choro dos violões das serenatas.” E terminava dizendo: “E onde cabelos a revoar, dispersos/ eu escrevia os meus primeiros versos/ ao rosário de luz dos combustores.” Eu rasguei o meu e desisti (risos). Eu aprendi muito com ele a maneira de compor as coisas. Eu vi que não tem nada a ver compor um poema assim como quem faz um ofício. Diego – Sânzio, você acabou de falar da sua relação com seu pai, seu Otacílio. Como

era a relação do senhor com a sua mãe? O senhor escreveu um soneto para ela, “A minha mãe”, do livro Cantos da Longa Ausência (primeiro livro de poemas; no soneto A minha mãe, Sânzio escreve: “és tu, apenas, quem me entende as dores”). Sânzio – Mas pode me chamar de você mesmo. É o seguinte. A minha relação com a mamãe era a mais estreita e carinhosa possível. Eu sou o mais novo – ou o menos velho. Mamãe (risos) quase morreu quando eu viajei. Ela passou o ano de 63 lá em São Paulo (quando Sânzio morava lá) e depois voltou. Quando eu voltei, em 65, só a passeio, eu voltei pela cidade, mas principalmente pela minha mãe. Mamãe ficou tão abalada com o fato de eu ter que ir embora de novo que daí um ano eu voltava definitivamente. Eu era louco pela minha mãe. Isabele – O menino Rafael já tinha gosto pela leitura. Aos oito anos, você ganhou do irmão Rubens um exemplar de Viagem à Aurora do Mundo, de Erico Verissimo (romancista e tradutor gaúcho, autor de Olhai os lírios dos campos e Música ao longe. Viajou por diversos países divulgando a cultura e a literatura brasileiras). O que você viu no livro de mais interessante para escrever ao autor? Sânzio – Foi com nove anos. Na verdade, nesse tempo, o meu irmão Rubens já me tinha dado umas páginas de uma revista – não lembro nem que revista era – com uns animais pré-históricos. Eu já estava interessado por negócio de animais pré-históricos. Quando o Rubens me deu esse livro, Viagem à Aurora do Mundo, eu li de ponta a ponta. Eu li o romance, mas, acima de tudo, o que me interessou foi a Paleontologia, porque era a história de um cientista que conseguia captar numa televisão imagens do passado. E apareciam uns animais. Eu fiquei tão encantado com um monte de animais que eu nem conhecia, que... Então eu ditei (a carta) para a minha irmã (Maria Consuelo) – porque até hoje minha letra é péssima, imagine quando eu tinha nove anos. Minha irmã escreveu a carta: “Gostei muito do seu livro. Conheci os animais tais”. E ainda tive a audácia de mandar um desenho, um dinossauro desenhado por mim (risos).

“Eu vi que não tem nada a ver compor um poema assim como quem faz um ofício”

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Alinne conheceu a história de vida de Sânzio na Quarta Literária, evento realizado no Dragão do Mar. No dia seguinte, muito empolgada com a entrevista, ela repetia saltitante: “Que personagem!”

Alguns colegas não conheciam Sânzio. No intervalo de uma aula, no tradicional ponto de tapioca da rua Juvenal Galeno, ele passou em seu carro. “Ali está o nosso entrevistado”, apresentou Thiago.


Ao convidarmos Sânzio para ser entrevistado para a nossa revista, ele comentou que conhecia o projeto, mencionando a edição (nº 2) em que o contista cearense Moreira Campos fora entrevistado.

Ele disse que tinha tempo disponível naquele momento e perguntou se a entrevista seria ali, na sala de aula onde estávamos. Explicamos que a entrevista só seria em alguns meses, depois de longa pesquisa.

Eu já tinha esquecido (quando) eu recebo depois a carta do Erico Verissimo: “Recebi sua carta e o admirável desenho... Quando eu terminar um romanção grande que eu estou escrevendo – que era O tempo e o vento (obra dividida em duas partes, cada uma com dois volumes) –, voltarei a escrever obras de Geologia e Paleontologia. É bom que você seja um geólogo ou um paleontólogo. Isso é bom, porque não temos muitos no Brasil”. E terminava dizendo que, no ano seguinte, em 48, ele iria passar aqui em Fortaleza e, na certa, iria me encontrar. E dizia: “Receba um abraço de quem já é seu amigo”. Ah! Meu pai espalhou essa carta, botou no jornal... Um retrato meu ridículo, vestido de marinheiro (risos). E o pior não é isso! O Costa (José Raymundo Costa) do O Povo (jornal cearense fundado por Demócrito Rocha em 1928), tudo que era relativo a mim ele botava lá. Recentemente, em 98, quando (a primeira publicação da matéria) fez 50 anos (há uma sessão publicada diariamente no jornal que traz resumo do que foi notícia em outras décadas), botou lá: “Há 50 anos: Sânzio de Azevedo recebe carta de Erico Verissimo”. E botou o retrato de marinheiro (risos). Olha que vergonha! Nesse tempo eu já (risos) tocava violão com os amigos e todo mundo deu notícia: “Rapaz, você saiu no jornal!” Alinne – E dois anos depois, ele (Erico) veio aqui para o Ibeu (Instituto Brasil – Estados-Unidos). E aí, como foi? Sânzio – Ah, sim! Ele veio para o Ibeu fazer uma conferência. Nesse ínterim, meu pai saiu mostrando a todo mundo essa carta, mostrou ao doutor Silvinha, cearense, amigo de infância do papai que se formou em Medicina e foi para o Rio Grande do Sul clinicar em Roca Sales (cidade gaúcha). Ele era amigo do Erico Verissimo. E quando ele (Silvinha) esteve lá em casa, disse: “Olha a carta do Erico Verissimo! Erico é meu amigo! Vamos tirar um retrato aqui!” Arranjou um grupo: eu, segurando um quadro do papai, papai, mamãe, não sei quem, minha irmã, eu acho... Eu sei que ele tirou o retrato e levou para o Erico Verissimo. O pior foi a vergonha que eu passei depois. Quando fui

levar o livro para o Erico Verissimo pôr a assinatura, eu pus a carta dentro. Quando ele abriu, viu a carta, olhou para mim e disse: “E como vai aquela família?”. Eu fiquei frio. Eu não me lembrava. Eu fiquei frio e pensei: “Ele deve estar me confundindo com outra pessoa”. Eu disse: “Que família?”. “Aquela, do retrato do Silvinha.” Até hoje eu penso nisso: um homem internacional como o Erico Verissimo, vivia nos Estados Unidos, conhecia muita gente, se lembrar de um paude-arara aqui do Ceará! Só pode ter sido porque eu devo ter sido o único menino que escreveu a respeito de Viagem à Aurora do Mundo. Porque ele escreveu Tibicuera (As aventuras de Tibicuera, publicado em 1937), que é um livro infantil, e deve ter recebido uma dezena de cartas (de crianças), ou mais. Mas (Viagem à) Aurora do Mundo, acho que o único menino que manifestou interesse fui eu. É a única explicação que eu encontro para ele ter lembrado. Edwirges – A sua irmã Consuelo falou que, quando você era criança, gostava muito de desenhar. Desenhava até mesmo à noite à luz de lamparina. O que você desenhava e como surgiu esse gosto por desenhar? Sânzio – Olha, na verdade, eu acredito um pouco na hereditariedade. Papai era pintor e desenhista. Nós todos desenhamos. Bem ou mal, nós todos desenhamos. Todos nós temos essa mania. Inclusive fazíamos histórias em quadrinhos. Eu gostava muito de gibi. Aliás, eu fico furioso ainda hoje quando eu vejo alguém falar mal de história em quadrinhos, dizendo que, como amigos meus... Até a Rachel de Queiroz (romancista, cronista, é autora de O Quinze), chegou a escrever contra a história em quadrinhos, “porque isso tira o gosto da leitura”. Negativo! Lá em casa todo mundo lê e nós, quando éramos meninos, todos lemos gibi, aquelas aventuras... Eu era louco por história em quadrinhos. Eu inventava meus personagens também. O tempo da minha infância era o tempo dos filmes de faroeste, que hoje quase não tem. Mas havia uns faroestes no Cine Majestic... (inaugurado em 1917, era a mais importante sala de exibição de filmes de Fortaleza na primeira metade do século XX). Depois eu descobri que esses faroestes vinham com um atraso muito grande. Porque perto dos anos 50 eu assistia aos filmes de Johnny Mack Brown. Esse Johnny Mack Brown foi um caubói em 36, 37, por aí. Eu cheguei a assistir a um seriado, O Último dos Moicanos, (série norte-americana de 1932) com Harry Carrey (ator de filmes de faroeste nascido em 1878 e morto em 1947). Harry Carrey é “do tempo do ronca”!

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Até porque era mudo... Esses seriados eram mudos e apareciam aqueles letreiros. Para vocês verem como a coisa era defasada. Sim, uma coisa curiosa. Se eu fosse um artista plástico, isso que vou contar seria interessante. Eu merendava no Instituto Waldemar Falcão, de saudosa memória, que era ali onde hoje é a praça do BNB (Banco do Nordeste do Brasil), na esquina da Floriano Peixoto com Pedro I (ruas do Centro de Fortaleza). Era o Instituto Waldemar Falcão, onde eu fiz o curso primário, alguns anos do curso primário. Eu lembro que eu não tinha um tostão para merendar e começava a desenhar. Chegava um colega: “Desenha o Bill Elliot (ator de faroeste conhecido como Wild Bill).” “Desenha o Durango Kid (coubói justiceiro da série de TV americana que levava seu nome)”, que era (interpretado pelo) Charles Starett. “Desenha o Rocky Lane (nome do famoso caubói interpretado por Harry Leonard Albershart).” E por aí ia. Todos os caubóis da época. A gente chamava “roquelane” mesmo (fala numa pronúncia aportuguesada) (risos). Eles me pagavam um, dois tostões pelos desenhos. Eu juntava e merendava. Eu ganhei dinheiro com muito desenho. Depois, eu passei a fazer rótulos de bebidas: de cachaça, de vinho, de conhaque. Aí evoluí e, quando fui para São Paulo, trabalhei na Adesite, uma fábrica daquelas fitas adesivas, fazendo desenho. Eu fazia o desenho, reduziam e faziam um “clichezinho” (clichê é a placa gravada para impressão de imagens e textos por meio de prensa tipográfica) de borracha. Eu cheguei a São Paulo como desenhista, depois é que virei revisor. Ivna – Como professor você é brincalhão em sala de aula e aqui mesmo já percebemos que você gosta de contar coisas engraçadas. E, como estudante, você foi aluno do seu próprio irmão, Rubens. Você mantinha esse espírito de brincadeira? Sânzio – (Como) aluno do Rubens? Ivna – Sim. Sânzio – Não... Nas aulas do Rubens eu ficava meio calado (risos). Ele era professor de Geografia. Mas a gente fazia muita palhaçada no (Colégio) Agapito dos Santos. Ele foi meu professor ali quando eu estudava de dia, de manhã. Depois eu passei para a noite só para não “fazer a farda”. Tinha uma farda ridícula e eu nunca... Thiago –... Tinha que usar a farda? Sânzio – Era. Quem estudava de dia tinha que usar a farda. Era um negócio assim meio cinza e a calça marrom com umas sandálias de franciscanos – tinha uma coisa que “puxava a São Francisco”. E eu passei para a noite só para não “fazer essa farda”,

Depois do convite, Sânzio telefonou para Thiago dizendo que queria enviar uma miscelânea para nos ajudar com a produção, pasta em que guardava as matérias de jornais e revistas sobre ele.

foi! (risos) E à noite eu fui colega do Heitor Faria Guilherme (jornalista e professor aposentado da UFC, primeiro chefe do Departamento de Comunicação Social da UFC). A gente chamava Heitor. Inclusive, o Amaral, Roberto Amaral (ministro de Ciência e Tecnologia do primeiro mandato de Lula), que foi nosso colega também, um dia desses ele disse para o Faria Guilherme: “Vocês todos mudaram de nome! O Rafael virou Sânzio... Você, que é Heitor, virou Faria...” Inda tem um que não foi nosso colega lá, que era o Jáder, Jáder de Carvalho Nogueira, que virou Carvalho Nogueira (sobrinho do jornalista Jáder de Carvalho). Então a gente brincava muito e depois teve uma coisa – aí eu não posso omitir porque é a verdade. A gente saía para beber no bar do Vieira, na (hoje avenida) Domingos Olímpio, e a gente enchia a cara! Então, numa ocasião... Thiago –... Isso no primário? Sânzio – Não. No ginásio. Então eu estava com o Faria Guilherme e mais um bocado de colegas. Tinha um Moreira – que era o mais doido de todos – e era ele quem levava a gente para a perdição (risos). A gente tava enchendo a cara (fala com ênfase) lá, quando parou a caminhonete do Agapito dos Santos. Estava o Lauro de Oliveira Lima (estudioso de Piaget, um dos donos do ginásio Agapito dos Santos), que era o diretor, e o Luís Edgard Cartaxo de Arruda, que foi meu professor de História – gostava muito dele. Os dois olharam e saíram contando e anotando quem era (que estava no bar) para suspender. Acontece que nós tínhamos um jornalzinho, e eu caricaturei os dois. Eu fiz o retrato do pessoal “tudo bebo”, bebendo, e lá na caminhonete o Lauro, que estava sempre com a barba por fazer, eu desenhei a barba dele assim (faz gesto mostrando que a barba era rala), e o Cartaxo. Mas eles riram tanto que ninguém sofreu nada. Toda hora o Lauro chamava o pessoal para mostrar o desenho (risos). Eles acharam foi bom. Então eu já livrei a turma pelo menos com esse desenho. Meus desenhos serviram para alguma coisa. Isabele – Você fala sobre os filmes de faroeste. Ainda hoje, você gosta?

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No jargão jornalístico, essa miscelânea é chamada clipping. Dirimidas as diferenças terminológicas, Sânzio fez questão de enviá-la por correio com uma carta escrita à mão agradecendo o convite.


Os Departamentos de Letras e Comunicação da UFC são separados apenas por uma avenida, mas Thiago, empolgado por receber carta de Sânzio, não contestou. A correspondência chegou em 10 dias.

A idéia inicial era fazer a entrevista na casa de Sânzio, mas ele não topou. Disse que a casa era pequena, o gabinete era menor ainda e não iam caber 18 pessoas.

Sânzio – Ainda hoje. Ainda hoje. Quando eu posso, eu adquiro. Até filmes atuais, como aquele: Os imperdoáveis, de Clint Eastwood (cineasta e ator norte-americano) eu fiz questão de comprar. Isabele – O que o atrai nesses filmes? Sânzio – Bom, é difícil de explicar. É uma fidelidade muito grande, porque desde menino eu gosto de filmes de faroeste, nunca deixei de gostar. Eu gosto do enredo, eu sei lá porquê... Não sei dizer, não. Inclusive há um contraste muito grande... Eu tenho amigos que têm horror aos Estados Unidos e por isso têm horror até à Língua Inglesa. Eu não sou assim, não. Eu não gosto do George Bush (atual presidente dos Estados Unidos), mas não é por isso que eu vou detestar a Língua Inglesa, muito menos a cultura inglesa. Eu sou louco pelo jazz antigo, o early jazz, o jazz dos anos 20. Eu tenho vários discos... Todo mundo que gosta de jazz tem horror a Paul Whiteman porque ele era do famoso jazz sinfônico, diziam que ele era picareta. Eu sei que só falam em Duke Ellington (Edward Kennedy Ellington, músico americano, recebeu o apelido de ‘duque’ por sua maneira elegante de se vestir), em Louis Armstrong (músico de jazz mais conhecido do público em todo o mundo. Foi chamado de “a personificação do jazz”), mas o Paul Whiteman é esquecido, apesar de na orquestra dele ter tocado o Bix Beiderbecke, que é um dos maiores pistonistas. Duke Ellington, Jelly Roll Morton (auto-intitulava-se o “inventor do jazz”. Ajudou a estabelecer padrões para o estilo e foi o primeiro músico a transcrever suas inovações para as partituras)... Esse pessoal eu gosto muito. Então é isso. O faroeste eu não sei explicar por que eu gosto não. Mas eu gosto muito do gênero faroeste. Gosto também do filme histórico, tipo Ben-Hur (filme épico de 1959 premiado com 11 Oscars e baseado no romance do norte-americano Lew Wallace), El Cid (filme épico de 1961 ambientado na Espanha do século XI), ou coisa que o valha... Os Dez Mandamentos, aquele do Cecil B. DeMille (um dos mais bem sucedidos diretores da história de Hollywood. Dirigiu também o filme Cleópatra). Eu gosto desse gênero. Thiago – Ainda nessa época da infância, do menino Rafael, como a sua irmã ainda hoje chama o senhor... Ela nos contou que umas das maiores diversões de vocês era brincar com um gramofone. Sânzio – Era. Thiago – Como foi a chegada desse objeto na família de vocês? Um objeto que, na época, já era antigo? Sânzio – Se eu não estou enganado, se a minha memória não falha, a gente chamava

“mirafone”. Eu nunca vi esse nome na minha vida, o nome é gramofone (aparelho de reprodução fonográfica). Me parece que o gramofone é anterior a mim, pelo menos à minha inteligência. Porque parece que esse gramofone apareceu na Aldeota, na casa do Emílio Hinko, e com alguns discos de cera. A corda quebrou, mas tinha um negócio chamado “borboleta” que não deixava desandar, que marcava o ritmo mesmo. E eu, quando era menino, bem pequeno, quatro anos, eu botava os discos e ficava rodando com a mão esquerda. E dizem – não quero me elogiar não –, mas diziam minha mãe e minha irmã que eu tinha muito ritmo. E os discos eram de Carmen Miranda (atriz, dançarina e cantora. Foi a artista brasileira que alcançou maior sucesso nos Estados Unidos). É a mesma coisa da história dos caubóis. É tudo anterior ao meu nascimento. Era disco do Almirante (Henrique Foreis Domingues Almirante, cantor, radialista e pesquisador de música popular brasileira) de 1934, disco de Carmen Miranda, de Carlos Galhardo (cantor popular nas décadas de 1940 e 1950, era conhecido como “O Rei da Valsa”), por aí assim. Então esse gosto meu ainda hoje por música desse tempo, música antiga, vem um bocado daí. Alinne – Na sua adolescência, o point era a Praça Coração de Jesus (tradicional praça do Centro da cidade). Lá você teve contato com jovens escritores e jornalistas. Como era? Como foi seu contato com essas pessoas? Sânzio – A Praça do Coração de Jesus, realmente, quem se encontrava... Essa turminha já se conhecia doutros locais. O Carvalho Nogueira – que é o Jáder de Carvalho Nogueira – me foi apresentado umas três vezes pelo Faria Guilherme, lá no Agapito dos Santos. E depois seria um grande (fala com ênfase) amigo meu. Morreu relativamente há pouco tempo (2001). E nessa história de Praça Coração de Jesus, era o Heitor Faria Guilherme, o César Coelho, e outros mais. Nós inventamos – nós inventamos, não, já existia – a Academia dos Novos, que se reunia na Casa de Juvenal Galeno (criada em 1936, é um importante salão de encontro de artistas cearenses. Ainda hoje funciona na rua General Sampaio, 1128, mesmo local onde nasceu o poeta que dá nome à instituição). E eu entrei de gaiato nessa Academia dos Novos, que já tinha publicado uma antologia, mas depois que eu entrei já estava meio decadente (a Academia). Aí era o Roberto Amaral, o José Freire de Freitas, Ribamar Lopes (poeta maranhense, folclorista e estudioso de cordel) – que morreu recentemente, era meu amigo, colega dessa época –, Osíris do Nordeste – era um músi-

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co maranhense. A gente ia para a Praça do Ferreira e ficava dizendo poemas lá. Nessa Academia dos Novos, eu era secretário, pegava o livro de atas e ia para a Casa de Juvenal Galeno. Estava lá a doutora Henriqueta Galeno (filha do poeta Juvenal Galeno, ocupou, na Academia Cearense de Letras, a cadeira que pertenceu ao pai). Isso nos anos 50. Eu chegava lá e ficava conversando com a doutora Henriqueta e não aparecia ninguém. A doutora Henriqueta fazia era rir: “Mas seus amigos não vieram, não?” Eu sei que eu fui uns três sábados e não foi ninguém, aí acabou-se a Academia (risos). A Academia dos Novos morreu. Alinne – Você escreveu no livro Cantos da Longa Ausência o poema “Serenatas de Fortaleza”. E nele você descreve as serenatas de forma muito emocionante. Quais foram as serenatas mais marcantes? Sânzio – Olha, é o seguinte, quando eu não sabia tocar violão nem nada, fiz várias serenatas com um amigo chamado José Marçal, muito mais velho do que eu. A irmã dele me ensinou as primeiras músicas. Eu fazia as serenatas, eu era metido a cantor. Depois que eu descobri que eu não tinha voz... E, quando eu voltei de São Paulo, eu ainda fiz serenatas. O mais estranho é que Edigar de Alencar (teatrólogo, poeta, ensaísta e considerado um dos maiores especialistas em Carnaval do Brasil) – outro amigo meu antigo, nascido em 1901 e falecido em 1993 – escreveu sobre o meu livro dizendo: “Sânzio de Azevedo fala das serenatas. Naturalmente só de imaginar, porque nunca viu uma serenata”. Rapaz, isso não é verdade (risos). Eu ia falar sobre uma coisa que eu não vi? Eu fiz serenata muito, fiz demais! O final do poema, aí sim eu sou obrigado a dizer que eu gosto do final desse poema. Quando eu digo: “E ainda embriagado de sons/ muitas vezes julguei caírem-me dos ombros/ uns restos de luar...” Não deixa de ter sido um achado na época (risos). Alinne – Teve alguma reação positiva de alguma pretendente? Ou algum pai saiu correndo atrás de vocês? Sânzio – Nunca ninguém tomou nem conhecimento das minhas serenatas (risos). A gente tocava ou cantava, nem ninguém abria as janelas, nem agradecia, nem falava mal, graças a Deus. Lucíola – Apesar de ser filho de um grande poeta, você costuma dizer que sua maior influência para começar a escrever não veio propriamente dele, mas sim desses amigos com quem você se encontrava na Praça Coração de Jesus... Sânzio – (Interrompendo) É curioso, isso. Realmente eu via papai escrever e achava

que estava longe de ser poeta: “Que negócio de poesia, que nada!” Mas acontece que, nos primeiros amooores... O Carvalho Nogueira, principalmente, me mostrava uns poemas. Engraçado a relatividade do tempo. Ele me mostrava e dizia: “Olha esse poema aqui, eu fiz faz três anos”. Três anos para mim era coisa do outro mundo. Eu dizia: “Quando eu vou ter um poema que terá três anos de idade?” Então eu comecei a escrever umas besteiras lá. E tinha o jornal do Jáder de Carvalho (jornalista e escritor, fundou, na década de 20, os jornais A Esquerda e O Combate) ali na Tristão Gonçalves (avenida do Centro de Fortaleza), que era o Diário do Povo (fundado em 1947, caracterizou-se pelo caráter libertário de sua linha editorial). Aliás, eu pensei que tinha publicado o primeiro soneto no Diário do Povo. Depois eu descobri que meu pai tinha levado um para o jornal O Nordeste (jornal católico que circulou entre 1922 e 1967 sob responsabilidade da Arquidiocese de Fortaleza), do Andrade Furtado (poeta e líder católico nascido em Quixeramobim), e tinha saído um soneto pior do que o outro – naturalmente. Ainda bem. Eu tenho um caderno lá em casa com essas relíquias horríveis. Um dia eu vou tocar fogo (risos). Quando eu sentir que tô perto de morrer, eu toco fogo. Realmente, por influência principalmente do Jáder e do Carvalho Nogueira, ele fazia aqueles poeeeemas apaixonados... Eu comecei a tentar fazer também. Fiz um soneto muito ruim que terminava dizendo: “Tudo que vem dos animais faz mal”. O meu pai: “Oh! Mas você é poeta!” Foi aí que eu peguei a corda mesmo. Thiago – Desses amigos, qual foi a maior influência para iniciar a escrever? Sânzio – Carvalho Nogueira, sem dúvida nenhuma. Porque o Ribamar Lopes fazia uma poesia meio matuta... Carvalho Nogueira foi a influência maior. E outra: eu mostrava a ele os poemas. Síria – Sânzio, você é muito respeitado

“’Olha esse poema aqui, eu fiz faz três anos’. (...) Eu dizia: ‘Quando eu vou ter um poema que terá três anos de idade?’”

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O número 18, aliás, não saiu da cabeça dele. Sempre que se referia ao número de entrevistadores, insistia nos 18, não nos 12, como a equipe de produção sempre corrigia.

Por sugestão de Ronaldo Salgado, indicamos a Academia Cearense de Letras, mas Sânzio negou: seria falso pois, apesar de escrever bastante para as publicações da ACL, na verdade, nem pisava lá.


A produção passou uma tarde entrevistando Nirez, irmão de Sânzio. Na entrevista, ele disse que, se batêssemos Rubens, Consuelo, Nirez e Sânzio em um liquidificador, não chegaria aos pés do pai.

Para Nirez, Otacílio de Azevedo foi bom pai, bom marido, bom pintor, bom poeta, bom fotógrafo e boa gente (assim, repetindo o adjetivo, para deixar clara a profunda admiração).

no meio literário, já escreveu muitos poemas, mas me parece que você tem uma auto-crítica muito grande. Eu queria saber de onde vem isso. Você está sempre menosprezando seus textos... Sânzio – (Risos) Olha, para ser sincero, a verdade é a seguinte: com relação à poesia, eu não sei se eu sou tão respeitado assim, não. Eu mesmo me depreciava muito porque, no início, quando escrevia uma dedicatória, colocava: “O poeta bissexto”, “Os versos bissextos”. Manuel Bandeira (poeta modernista nascido em Pernambuco, introdutor do verso livre no Brasil) chamava de bissexto o poeta que escrevia uma vez na vida e outra na morte. Então, eu tinha esse negócio de me considerar bissexto e isso fez com que algumas pessoas me considerassem (pausa) pouco importante como poeta, e mais como ensaísta. Também, vamos e venhamos: eu publiquei 23 livros, contando os opúsculos, e desses só quatro são de poesia. Realmente minha obra ensaística é muito mais volumosa. Agora, eu acho que eu tenho noção da (procurando a palavra) validade do que eu escrevo. Realmente no ensaio eu não sou tão modesto não. Eu acho que eu fiz alguma coisa, mas a minha poesia é fraca (risos). Agora não tão fraca quanto a de alguns que tiveram a coragem de publicar. Inclusive, eu ainda tive coragem de publicar os últimos livros porque eu vi muita coisa ruim por aí (risos). Eu disse: “Então eu vou publicar também.” Ultimamente, eu não posso me chamar de bissexto. Posso até me chamar de mau poeta, mas de bissexto não. Já publiquei quatro livros de poemas (Cantos da Longa Ausência, Canto Efêmero, Cantos da Antevéspera e Lanternas Cor de Aurora) e figuro em mais de dez antologias de poesia. Quer dizer, de qualquer maneira,

“Nesse beco do seu Chico um dia desembocou um bloco chamado Garotos do Frevo. E eu ainda lembro o que eles cantavam: ‘Com pandeiro ou sem pandeiro/ ê ê ê eu brinco’”

não sou tão bissexto assim, não (risos). Isabele – Sânzio, você vivenciou um período em que o Carnaval de Fortaleza era bem diferente do que é atualmente, com a passagem de blocos pelas ruas e tudo mais. Como é hoje em dia? Como é a sua participação nessa festa e como você vê hoje o Carnaval? Sânzio – Olha, a minha participação é zero. Eu moro na (rua) José Vilar com Marcondes Pereira. Lá da minha janela, nos três ou quatro dias de Carnaval eu olho pela minha janela e não vejo nada, mas nada! Eu posso esquecer que estou no Carnaval, porque hoje é assim. Antigamente, não. Antigamente havia os papangus (tradicionais personagens mascarados dos carnavais e reisados do Nordeste), havia os sujos. Quando eu era menino, de calças curtas, na década de 40, eu lembro que essa casa da Jaime Benévolo onde mora minha irmã, ela dava para a rua Quintino Bocaiúva. Lembro que a gente chamava o beco do Seu Chico, porque era um beco que dava para a mercearia do seu Chico Mossoró. Nesse beco do seu Chico um dia desembocou um bloco chamado Garotos do Frevo. E eu ainda lembro o que eles cantavam: “Com pandeiro ou sem pandeiro/ ê, ê, ê, eu brinco”, um sucesso de Francisco Alves (cantor carioca de marchas carnavalescas, frevos e sambas). E você via eles de camisa vermelha e calça branca... E ali na Duque de Caxias tinha o (bloco) Zombando da Lua, tinha a Escola de Samba Luís Assunção, era uma coisa linda! Não é saudosismo, não, é que realmente acabou. Até mesmo no Brasil, de modo geral, no Rio de Janeiro, acabou-se. Eu passei carnavais no Rio de Janeiro e, se você não vai para a Marquês de Sapucaí, você não vê Carnaval, não. Thiago – Mas você fazia parte dos blocos? Sânzio – Não, não fazia parte dos blocos. Eu tenho a impressão de que não. Ah! Um tempo aí... Bom, eu era menino pequeno, o Carnaval da Vitória. A guerra (Segunda Guerra Mundial) terminou em 45, e em 46 foi uma festa tão grande que meu pai vestiu uma capa de chuva, botou um nariz de palhaço. E eu me fantasiei não sei de quê, e nós fomos fazer o corso. Até teve o caso de um cidadão que jogou lança-perfume no olho do cavalo, o cavalo desembestou e derrubou um cavaleiro lá... Na verdade é isso. E gostava muito de dançar. Eu bebia e dançava. Eu passava os quatro dias alcoolizado (risos) e ia para os clubes com lança-perfume nos bolsos e tudo mais. Nesse tempo era assim. Depois eu esqueci... Ninguém há de dizer que eu sou, que eu fui um folião, com essa cara (risos). Isabele – De algum modo essa diversão

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de antigamente influenciou na sua produção literária? O Carnaval de antigamente... Sânzio – Não, eu fiz um soneto – muito ruim – sobre Carnaval na época (risos) e saiu no jornal, no Diário do Povo, só. Mas nem entrou no livro não. De forma que o Carnaval passou incólume pela minha pena. Isabele – Você acha que as festas atuais... De alguma forma falta motivo, falta inspiração para fazer poemas atualmente? Sânzio – É muito relativo isso, sobre festas. Eu, por exemplo, nessa altura do campeonato, estou com 70 anos, não sou mais de festas de jeito nenhum. Outra coisa: festa junina, ainda existe isso? Antigamente existia era fogueira; não era fogueira de papel crepom ou papel de seda, não! Era fogueira de verdade! Aquele negócio de pular fogueira, de ter compadre de fogueira. Isso havia muito... Na rua onde eu morava, a Jaime Benévolo, tinha a rua do lado, a Barão de Aratanha (rua do Centro de Fortaleza), que a gente chamava de Rua do Lago. Ali havia muita fogueira, com areia e tudo mais... É outra realidade. Hoje é até proibido fazer fogueira. Giselle – Esse tempo de festas foi um tempo de muitos amores para você? Sânzio – Não... Eu vou confessar uma coisa: na realidade, eram muitos amores platônicos. É engraçado, eu fui mais feliz com negócio de amores depois que eu fui amadurecendo. No tempo que eu era bem jovem, quando eu olhava o retrato e eu me achava até bonito, eu não conseguia nada. Meus amores duravam uma semana, aí eu ficava apaixonado, fazendo serenata, e a moça não queria saber de nada. Ou então era um amor platônico mesmo, de longe, sem nem a pessoa saber (risos). Ao longo dessa minha vida, é claro, houve vários amores, e daí saiu poema... Mas a maioria, não sei se é o Vinicius de Moraes que dizia que o poeta só é grande se sofrer (os versos “Assim como o poeta/ Só é grande se sofrer” fazem parte da música Eu não existo sem você, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes), mas, não é que eu fosse grande, mas eu acho que o poeta tem que sofrer. Um poeta contar vantagem não tem graça, não. Então, na realidade, dos poemas que eu fiz de amor, a grande maioria é mais de levar fora (risos). Thiago – Passando para uma outra fase da sua vida, em 1959 você vai para São Paulo morar na casa do seu irmão Rubens. Por que você decidiu deixar Fortaleza? Sânzio – Por falta de emprego. O problema não era bem falta de emprego. O Amadeu Barros Leal (empresário na época responsável pela cadeia local de cinemas

Cinemar, a qual pertence o Cine Jangada, sala que hoje exibe filmes pornográficos) até me arranjou um emprego lá na Cinemar, mas era para mexer com negócio de conta, contabilidade, e eu tenho horror a número. Veja bem, eu tinha sido revisor em 56, 57. Eu fui revisor do jornal O Estado (jornal cearense fundado em 1936, hoje tem circulação restrita e baixa inserção no mercado editorial), aqui em Fortaleza, no tempo do Fran Martins (Francisco Martins é cearense de Iguatu, jornalista e integrante do grupo Clã, importante movimento literário do Ceará na década de 40). Inclusive, uma coisa curiosa: eu me iniciei no jornal ao mesmo tempo que o Tarcísio Holanda (colunista do jornal Diário do Nordeste, é radicado em Brasília há mais de 30 anos, conhecido pela cobertura de política), que hoje aparece até na televisão com negócio de política (programa Brasil em Debate, da TV Câmara). É um jornalista de verdade, né? Pareceria que eu ia ser um jornalista também. Nós entramos como revisores. Então, quando eu me vi sem dinheiro e sem emprego, eu fui tentar a vida em São Paulo como desenhista, como eu já disse, fui trabalhar na Adesite. Depois me desempreguei e fui trabalhar na Editora LEP (editora paulistana), que era de um português, o seu Abel. Ali, qualquer coisa eu me desempregava. Aqui em Fortaleza, mesmo, outro dia eu encontrei o Guimarães (Fausto Guimarães Filho, amigo desde os anos 50), que é professor aposentado do Labomar (Instituto de Ciências do Mar, vinculado à Universidade Federal do Ceará, fundado em 1960). Ele foi meu colega, desenhista também, na FlamBrasil (Flâmulas Brasil), que era do Aniz Chehab (empresário turco). Foi só o Aniz reclamar não sei o que de mim que eu digo: “Me dê minhas contas.” Eu era irresponsável mesmo, eu brigava e saía. Lá em São Paulo foi a mesma coisa: eu, para sair de um emprego, não custava nada. Acontece que eu saí da editora e houve a alta do papel, e, com a alta do papel, acabou-se condição de trabalhar. Eu fiz teste em muitos lugares, mas não conseguia nada. Aí houve uma coisa curiosa e surreal.

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Na saída, dálmatas nada amigáveis nos esperavam no jardim. Lucíola foi quem mais se assustou com a animosidade dos cães, que a fizeram voltar correndo para dentro da casa de Nirez.

A irmã de Sânzio, Consuelo, foi a pessoa mais simpática entrevistada pela produção. Ela nos recebeu em sua casa na Rua Jaime Benévolo, onde Sânzio viveu grande parte da infância e da adolescência.


No início da conversa, dona Consuelo parecia um pouco nervosa. Terminada a entrevista, porém, ela nos revelou: “Sabia que eu gostei de dar entrevista! Se quiserem fazer outra, podem vir!”

O ambiente, as histórias da infância do menino Rafael e a forma como falou das recordações da família Azevedo despertaram em Thiago a vontade de escrever um conto sobre dona Consuelo.

É que exatamente nessa época, em 1961, eu estava publicando o livro... Que esse livro, da Edart, eu não paguei para publicar, não, pelo contrário, eu recebia. A minha bibliografia foi crescendo como rabo de cavalo: para baixo, porque o meu primeiro livro foram 5 mil exemplares, e eu fui pago, não é como hoje que tem que pagar para publicar, não. Então, eu desempregado, sem um tostão no bolso, me engravatava todo, ia bater na Edart falar com o seu Malheiros (dono da editora, Álvaro Malheiros foi contista conhecido pela obra de ficção científica), e ele (com voz mais grave, imitando o chefe): “Como vai o autor do livro? Olhe aqui a revisão...”. Eu dava uma olhada assim... Doido para pedir um emprego ao homem, mas eu não podia, porque, ali, eu era o autor do livro. Aí foi que eu conheci o Cassiano Nunes (poeta e professor com cerca de 50 títulos publicados, Cassiano dedicou 25 anos ao Instituto de Letras da Universidade de Brasília), que foi professor em Brasília. Ele fez umas observações no livro, conversou comigo. E Cassiano foi meu amigo até a morte. Ele tinha mania de me chamar de erudito. Essa época foi desse jeito. Eu conversando com o Flávio Pereira (irmão adotivo do editor José Olímpio), ele me deu uma carta de apresentação para o Léo Vaz (jornalista do jornal O Estado de S. Paulo e escritor). Léo Vaz, pra quem não sabe, é autor d’O Professor Jeremias (lançado em 1919, considerado por Monteiro Lobato “um dos grandes livros da Literatura Brasileira”), um livro publicado por Monteiro Lobato, muito interessante que passou, ninguém fala mais. Eu fui à casa desse Léo Vaz e, aliás, eu nunca vi uma coisa tão estranha, viu?! Era bom fazer um filme. Eu estava em 1961. Quando eu subi para o apartamento do Léo Vaz, quando eu entrei no apartamento, os móveis todos antiqüíssimos, e uma moça

“Eu não sei se algum dia, quando eu escrever minhas memórias, (...) eu vou saber traduzir a euforia que eu senti ao entrar no Estadão.”

cantando uma música de Paraguassu (Roque Ricciardi, nascido em 1894 no bairro do Brás, em São Paulo. Na década de 20, entrou para o elenco da Columbia e lançou cerca de 150 músicas): “nunca mais um verso meu terás, nunca mais...”, Nunca Mais (título da música). Era como se eu tivesse voltado aos anos 20. Eu digo: “Puxa vida, eu não estou mais em 61”. Aí lá se vem o Léo Vaz, um velhinho, e me entrega uma carta. Nesse tempo não existia negócio de xerox, senão eu teria tirado uma cópia. Eu agradeci e desci. Quando olhei a carta, que estava dentro de um envelope, porque ele era um gentleman, eu abri e estava escrito: “Este moço, Rafael Sânzio de Azevedo, é um moço de muitas prendas.” Ele nem sabia quem eu era nem nada, mas disse que tinha muitas prendas, me elogiou, que eu era inteligente e não sei o quê. E isso, essa carta, veja bem, não era para eu entrar n’O Estado de S. Paulo, não. Era para eu levar ao senhor Montes (José Maria Homem de Montes, diretor por décadas do jornal O Estado de S.Paulo e ex-presidente da Associação Nacional de Jornais), n’O Estado de S. Paulo, e, de lá, ser enviado para o Nelson Lima Netto, que era o chefe da revisão, para ter direito de fazer uma prova. Thiago – Para fazer a prova? Sânzio – Era, para fazer a prova. Não foi pistolão, não. E, nessa prova, caiu uma coisa interessante que, depois, a gente sempre levava na palhaçada: um dos itens era “as vozes dos animais.” “O que é o que cisne faz?”, arensa. “O que é que o camelo faz?”, blatera. Aí depois, todo mundo que ia entrando, novo, a gente perguntava: “Vem cá, algum dia você precisou desse raio dessas vozes de animais?” (risos). A coisa mais sem sentido. Thiago – Você acertou essa questão? Sânzio – Eu tenho a impressão de que eu errei, né? (risos) Ivna – E como foi trabalhar num grande jornal? Sânzio – Ah, eu vou dizer uma coisa: eu não sei se algum dia, quando eu escrever minhas memórias, se eu escrever – Pedro Salgueiro (contista e cronista cearense) vive querendo que eu escreva –, se algum dia eu vou saber traduzir a euforia que eu senti ao entrar no Estadão. Porque, realmente, eu fui ser revisor, trabalhando à noite, ganhando muito, ganhando bem para os meus padrões, entende? Quer dizer, na época era uma coisa do outro mundo. Eu fiquei completamente realizado no sentido profissional. Outra coisa, modéstia à parte, eu era um revisor razoável, e, com pouco tempo, me botaram na “peneira”.

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“Peneira” era uma dupla que fazia a revisão dos outros trabalhos. Eu fui revisor do suplemento agrícola, depois do suplemento feminino, depois do suplemento literário. Esse tempo do Estadão foi um tempo maravilhoso para mim, eu fiz muitas amizades lá. Engraçado, dessas amizades todas, só restou um, Raul Drewnick, que era poeta, bom poeta, mas depois virou autor de narrativas paradidáticas, esses livros quase infantis, mas escreve bem o Raul Drewnick. Esse tempo do Estadão, curiosamente, foi – eu trabalhando à noite, no primeiro ano troquei lente não sei quantas vezes porque gastava a vista ler na luz fluorescente –, foi o tempo que eu estudei mais, que eu li mais na minha vida inteira. O meu conhecimento literário é quase todo dessa época. Eu estudava muito, inclusive essa história de versificação, eu estudava sozinho. Eu vivia na Livraria Teixeira (fundada em 1876, foi ponto de encontro no Centro de São Paulo de escritores como Jorge Amado, Erico Verissimo e Lygia Fagundes Telles nos anos 50. Hoje a Teixeira fica no bairro dos Jardins) e em outras livrarias comprando livros e lendo, lendo, lendo. Nesse tempo eu comecei a escrever uns artigos que meu pai publicava aqui, ou no O Povo, ou no Correio do Ceará (fundado em 1915 por Álvaro da Cunha Mendes, o jornal deixou de circular em dezembro de 1982) ou no Unitário (fundado em 1903 por João Brígido, pioneiro no jornalismo cearense, foi adquirido pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand em 1940), esses dois se acabaram. Ivna – Você falou das amizades que você fez no Estadão, e foi nessa época também que você conheceu pessoalmente o Guilherme de Almeida (advogado, jornalista, poeta, ensaísta e tradutor, principal responsável pela divulgação do haicai no País). Como foi? Sânzio – Eu comecei a fazer a revisão de uma crônica de Guilherme de Almeida, Eco ao longo dos meus passos – eu tenho até os originais de vários, tenho lá em casa bem umas dez (crônicas), escritas à máquina e todas emendadas. Tinha uns colegas, o (Mário) Melo, que a gente chamava Melinho, era quem sabia mais de gramática; o Otávio e o Raul Drewnick, e eles me levaram à rua Barão de Itapetininga, onde era o escritório dele (Guilherme de Almeida), e disseram: “Olha, este rapaz aqui é quem faz a revisão das suas crônicas”. Ele disse: “Ah, muito prazer.” “Ele é cearense”, e ele: “Ah, mas que beleza, a minha mulher é cearense, Baby Barroso” – não sei se era parente do Gustavo Barroso (advogado, professor, po-

lítico, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista, membro na Academia Cearense de Letras) –, e ele disse: “Apareçam sempre, podem vir aqui”. E eu, que sou até muito tímido, achei tanto prazer que... Sim! (lembrando-se de algo) Porque eu já lia Guilherme de Almeida aqui, é uma das influências de meu pai. Papai gostava muito dos versos de Guilherme de Almeida e eu sabia até de cor alguns poemas dele, aí eu voltei. Voltei lá, e ele conversava... O Guilherme de Almeida era um gentilhomme (cavalheiro em francês). Ele era uma pessoa importantíssima, membro da Academia Brasileira de Letras, ostentava o ruban rouge de la légion d’honneur (fita vermelha da Legião de Honra, em francês. A ordem nacional da Legião de Honra é a mais alta condecoração francesa, tendo sido instituída em 1802 por Napoleão Bonaparte e recompensa por méritos militares ou civis dedicados à Nação) na lapela, e eu era apenas um nordestino de 27 anos, e ele, toda vez que eu ia lá, me levava até o elevador, aqueles elevadores assim (faz, com as mãos, o movimento de abertura manual da porta do elevador, da esquerda para a direita). Eu dizia: “Não precisa, não”, e ele fazia questão de me levar até lá. Quando conversava comigo, era dizendo em francês, e eu não entendia nada (risos) – hoje, talvez, eu entendesse, mas, naquele tempo, eu não entendia, não. Um dia eu tive coragem de levar meus poemas para ele ler. “Mestre, eu queria que o senhor olhasse aqui”. Aí, da vez seguinte que eu fui lá, quase que eu desmaio, porque, quando eu cheguei, ele disse assim: “Olhe, eu estou encantado com os seus poemas.” E eu: “Ai!”, chega me faltou chão – porque eu sou

“O Guilherme de Almeida era (...) uma pessoa importantíssima, membro da Academia Brasileira de Letras, (...) e eu era apenas um nordestino de 27 anos.”

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Durante a conversa na sala, a vontade da produção era conhecer os outros cômodos da casa da família de Sânzio. A “estratégia” utilizada foi pedir para ver os quadros de Otacílio de Azevedo.

Os quadros estavam numa pequena biblioteca vizinha à sala de estar, de modo que não pudemos explorar a casa inteira. No entanto, a beleza dos quadros aliviou a frustração da equipe.


Em contato por telefone, Artur Eduardo Benevides disse não poder receber a produção por estar “em tom febril”. Dita desta forma, concluímos, a expressão só poderia ter partido de um poeta.

Na pré-entrevista, Sânzio disse que Guilherme de Almeida fora condecorado com a fita da Legião de Honra da França. Disse em francês: “Ostentava o ruban rouge de la légion d’honneur na lapela”.

ainda de uma geração que tem essas coisas. Hoje os jovens querem saber mais do que os mais velhos. Pois bem, ele começou a fazer observações. Tinha até um soneto que ele mandou que eu cortasse, e eu cortei. Ele mostrou até 22 sonetos que ele cortou do livro Nós, de 1917, a conselho de Vicente de Carvalho (advogado, jornalista, político e contista, era parnasiano e conhecido como O poeta do mar). Ele me aconselhou muita coisa. Umas eu não aceitei, mas a grande maioria eu aceitei, inclusive o corte desse soneto eu aceitei na hora. Eu ainda criei coragem e perguntei se ele prefaciaria o livro, porque seria uma consagração, e ele disse: “Olhe, infelizmente eu não faço prefácios. Eu já neguei tantos prefácios que eu não faço, mas eu posso fazer a orelha!” (risos). Ele fez a orelha, e a orelha começa dizendo: “O moço poeta Sânzio de Azevedo...”. Fiquei muito feliz e publiquei o livro já indo embora de lá. Recebi o livro aqui em Fortaleza. Teve até um lançamento na Casa de Juvenal Galeno – eu era muito ligado à Casa de Juvenal Galeno nesse tempo. O Fernando Jorge (escritor, jornalista e foi jurado nos programas de Flávio Cavalcanti, Bolinha e Carlos Aguiar) foi quem fez o prefácio. Fernando Jorge, não sei se vocês sabem, é muito polêmico, foi até de júri de televisão, fez um livro aí arrasando com Paulo Francis (Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis, lançado em 1999 e reeditado em 2007). Ele gosta muito de briga, mas ele gostou dos meus poemas. Aliás, eu conheci o Fernando Jorge pelo seguinte: ele publicou um livro sobre Olavo Bilac, em 64 – em 65 seria o primeiro centenário de nascimento de Bilac, e ele publicou. O lançamento foi na Livraria Teixeira, e eu fui. Depois eu descobri que ele dizia uma coisa com a qual eu não concordei e botei um artigo no Unitário. Um dia eu o encontrei na Livraria Teixeira e tive coragem de mostrar o artigo com a censura (crítica negativa) a ele. Ah, mas ele pegou esse artigo e publicou na Folha de S. Paulo. Depois me deu o livro As Sandálias de Cristo, e disse assim: “Olhe, pode baixar a lenha!”. Aí eu fiz um artigo elogiando e depois começava a censurar; ele dava risada e publicava na Folha de S. Paulo (risos). Depois disso eu o encontrei em 76, quando eu fui a São Paulo, e, atualmente, de vez em quando, a gente se corresponde. Talita – Sânzio, a amizade que você fez com Guilherme de Almeida lhe rendeu até o contato com um tipo de poema japonês, o haicai. Posteriormente você até escreveu um livro, Lanternas Cor de Aurora. O que mais te encantou nesses poemas?

Sânzio – Olha, é uma coisa curiosa. Essa história aí é uma bomba de efeito retardado, retardadíssimo. No tempo de Guilherme de Almeida, eu nunca, jamais me aventurei a fazer haicai, eu nem tinha vontade. E o Raul Drewnick, que é esse amigo, esse colega meu do jornal, escreveu uns haicais e publicou no Estadão mesmo. Eu achei uma beleza, e o tempo foi passando. Aqui, em Fortaleza, eu fui revisor na Imprensa Universitária (órgão da Universidade Federal do Ceará), fui colega do Faria Guilherme e do Barroso Gomes (Francisco Barroso Gomes, poeta concretista), que morreu num desastre como juiz, era um rapaz muito brilhante, Nonato de Brito (revisor, poeta e contista) também foi meu colega nesse tempo... Pois bem, o Barroso Gomes fez uns haicais muito bons, inclusive no meu livro, Literatura Cearense, de 1976, eu incluí uns haicais do Barroso Gomes, mas o tempo foi passando. Sei lá quando foi na vida que me veio... Por isso que eu acredito em inspiração. Eu conversava muito com Francisco Carvalho sobre isso. Pode inventar outro nome para isso, mas que existe uma predisposição, existe. Você não faz um poema na hora que você quer. Você não se senta aqui e faz um poema. Então, um belo dia, me saiu um haicai. E aí eu fiz outro e fiz outro e fiz meia dúzia. Botei no meu livro Cantos da Antevéspera. Depois eu estava em Paris, porque a Fernanda (Coutinho, esposa, professora, hoje é coordenadora do mestrado em Letras no Departamento de Literatura da UFC) fez tipo um (curso) sanduíche (pós-graduação feita parte em uma Universidade, parte em outra). Nós passamos meio ano na França, ela pesquisou muito, foi muito bom, e eu passava o tempo todo na biblioteca. Isso me rendeu um trabalho que fiz sobre Victor Hugo, todo com livros em francês, porque lá não tinha livro em português. Nas horas vagas, quando eu estava em casa, eu comecei a fazer haicai. Aí foi um atrás do outro, um atrás do outro. Mas é impressionante! Ali eu fiz... esse livro tem 62, parece. Pois tirando os seis, os outros todos, quase todos, eu fiz lá, numa tirada só. Numa semana só eu fiz não sei quantos. Não é uma coisa mediúnica, mas, que há uma predisposição, há. É impressionante, eu não sei nem explicar o que é isso. Lucíola – No poema Poema para Junho, você diz que “A madrugada é um poema de Guilherme de Almeida”. Você vivenciou, quando trabalhava no Estadão, a boemia jornalística que era comum à época? Sânzio – Essa história da madrugada do poema de Guilherme de Almeida, que,

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por sinal, quando ele leu, teve um ataque de modéstia, é a seguinte: aqui em Fortaleza, quando eu lia os poemas de Guilherme de Almeida falando na alameda, no frio, no céu cinzento e os plátanos da rua, eu achava que aquilo era europeu. Um nordestino que nunca tinha saído do Nordeste, eu lá sabia que São Paulo era daquele jeito! Eu tinha a impressão de que aquilo era influência da leitura de Verlaine (Paul Verlaine, poeta francês do século XIX, influenciou o desenvolvimento do simbolismo) ou coisa que o valha. Acontece que, quando eu fui para São Paulo – porque eu não fui a São Paulo, eu fui para, eu ia ficar lá –, uma noite eu estava na Avenida Rio Branco e vi as folhas caindo das árvores, aquele vento frio, e aí eu digo: “Puxa vida, está aqui. É isso que o Guilherme de Almeida via”. Eu fiz o poema, que termina com “as flores se arrastando na alameda” que, para ele, para o poeta, “a madrugada é um poema de Guilherme de Almeida”. Thiago – Mas em relação à boemia jornalística? Você trabalhava à noite, e imagino que, na época, saía do jornal... Sânzio – Engraçado: eu já tinha passado essa fase desse negócio de beber, já estava mais sóbrio, mas acontece que a gente não resiste muito. A gente ficava jogando sinuca até o dia raiar. Muitas vezes eu emendei noite – era uma loucura o que eu fazia, mas, muitas vezes, eu emendava, eu ia trabalhar sem ter dormido a noite anterior. Às vezes a gente fazia era beber mesmo, encher a cara, e aí ocorreu um caso curioso: existe lá a Ladeira da Memória (localizada no Centro de São Paulo, possui um obelisco, monumento mais antigo da Capital), uma pracinha – eu nem me localizo mais hoje. Para vocês verem como São Paulo era diferente: madrugada, eu e o Otávio estávamos tão tontos, pesados de bebida, que adormecemos na grama. E o Raul Drewnick ficou sentado, tomando conta. Aí disse que um outro colega foi chegando: “Quem é esse?...”, e Raul: “Shhh! (faz indicação de silêncio) Peraí que

eles tão dormindo” (risos). Dormindo na Ladeira da Memória. Imagine, se fosse fazer isso hoje, era para levar um tiro. Thiago – Sânzio, ainda no livro Cantos da Longa Ausência, você escreveu assim sobre Fortaleza: “Pois se não tenho a ti como desejo,/ ó Fortaleza amada, eu te revejo/ com os olhos da saudade...”. Aí eu pergunto: além da saudade, o que fez você voltar para Fortaleza? Sânzio – O que me fez voltar, em primeiro lugar, foi a saudade, mas principalmente o fato de, em 65, eu ter vindo aqui a passeio. Se eu nunca tivesse vindo, talvez eu ficasse por lá. Mas, quando eu vim, em 65, era época da chuva, e o céu estava cinzento, plúmbeo, e eu vendo os coqueiros diante do céu cinzento – não sei se vocês sabem, mas em São Paulo não tem coqueiro. Esse meu amigo, o Floreal d’Amore, aquele que eu citei no negócio do Paulo Eiró, ele era metido muito a ser botânico, ele dizia pra mim: “Opa, encontrei um coqueiro, vamo lá!” A gente chegava lá e era uma palmeira. Não tinha coqueiro. Esses de coco-dabaía, não tinha, não. Quando eu vi os coqueiros, o céu cinzento, quando eu vi minha mãe chorando, eu pensei assim: “Me diga uma coisa, por que diabo eu tenho que viver numa terra alheia se nem raízes eu tenho lá?” Eu era solteiro. Vim ganhar cinco vezes menos do que eu ganhava lá. Porque eu vou dizer uma coisa: perdoe quem for paulista, mas eu nunca me adaptei a São Paulo, nunca gostei de São Paulo. Eu gostei de alguns momentos, mas gostar de São Paulo, não. Meu pai foi falar com o Eduardo Campos (radialista, jornalista, escritor cearense, teatrólogo e pesquisador, Manuel Eduardo Pinheiro Campos teve mais de 70 livros publicados), que era o superintendente dos Diários Associados, e disse: “Olhe, não tem um lugar aí pro meu filho?” Não dá nem para transformar, porque eu não entendo de economia, mas eu ganhava 500 mil cruzeiros, ou cruzeiros novos – eu não sei – com tudo, extraordinários também. Porque a gente,

O problema foi a frase dita em francês. Ao ver Sânzio tocando o lado esquerdo do peito, Thiago, que não entende nada da língua de Victor Hugo, traduziu o gesto: “Usava uma flor na lapela”.

Ao fim da pré-entrevista, a equipe de produção se ofereceu para assistir à aula de Literatura Brasileira que Sânzio ministraria em seguida, sobre o Simbolismo de Alphonsus de Guimaraens.

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Ele avisou que nós não deveríamos esperar uma aula convencional, pois a dele tinha um tom “anedótico”. Na aula, Sânzio fazia brincadeiras, contava histórias sobre escritores e lia poemas.

Ele mencionou que uma aluna era da República Tcheca. Ela disse que todos já sabiam, mas Sânzio retrucou: “Essas duas meninas e aquele rapaz não sabem, eles não são daqui. São da polícia”.

toda sexta–feira varava a noite, aí aumentava. Papai falou pro Eduardo Campos: “Dá para arranjar um lugar de revisor pro meu filho?”. Ele disse: “Quanto ele ganha lá no Estadão?”. Papai disse: “500 mil”. E ele: “Aqui nem redator-chefe ganha isso!” (risos). Aí eu vim ganhar 100 mil na Imprensa Universitária. Vim ganhar cinco vezes menos e nunca me arrependi. De jeito nenhum! Ivna – E o que foi exatamente que dificultou essa adaptação em São Paulo? Sânzio – Na verdade, é difícil dizer. Eu tive esses amigos no Estadão, mas, fora isso, eu achei a cidade muito fria, sei lá. Mas fria não é no sentido térmico, não. Claro que é um mito dizer que o paulista é frio, porque houve até gente chorando no dia que eu me despedi. Eu fiz muitos amigos lá. Mas eu quero dizer é que... é difícil a gente dizer. Eu vivia constantemente... Eu vou responder agora, agora chegou a palavra. Eu vivia provisoriamente, eu nunca me senti radicado em São Paulo. Eu sempre estava esperando voltar. Isso é uma coisa psicológica. Eu tinha um amigo, Raimundo Rodrigues da Silva (também revisor), era um velho cearense que trabalhava lá no Estadão, e ele falava assim, de uma maneira muito peculiar (diz tentando imitar o falar impostado do amigo). Quando eu disse a ele que pretendia voltar, ele disse: “Olha, eu não volto pro Ceará porque eu já criei raízes, eu tenho até netos aqui. Mas você, você devia voltar mesmo.” Ele dizia: “Vive-se em toda parte”, ele falava assim, né, “vive-se em toda parte” (arrasta as vogais da sílaba tônica de cada palavra). Eu tinha um amigo chamado José Carlos de Sylos, que era do interior, e, lá pras tantas, coincidiu que ele teve vontade de sair de São Paulo. Veja bem, em 66, São Paulo já estava ficando meio violenta, ele disse: “Eu já estou cansado de São Paulo, eu vou lá pra ‘não sei onde’”, era um interior. Nós tivemos essa afinidade. Toda hora ele estava me chamando para conversar: “Eu acho que vou pra minha terra, e você?”, “Cara, eu vou pra minha também”, e isso me incen-

“Vim (para Fortaleza) ganhar cinco vezes menos (que no Estadão) e nunca me arrependi. De jeito nenhum!”

tivou. Eu vendo esse rapaz paulista querer voltar lá pro interior. Eu fiquei: “Por que eu não volto pra minha terra também?” Thiago – No retorno a Fortaleza, Sânzio, você já veio com essa idéia de estudar a Literatura Cearense. Aí você foi trabalhar na Imprensa Universitária e depois na Casa de José de Alencar, onde conheceu Artur Eduardo Benevides (Eleito “príncipe dos poetas cearenses”, ensaísta e contista com mais de quarenta livros publicados, integrante do grupo)... Sânzio – ...Não, eu já conhecia o Artur. Thiago – Ele nos contou que ele praticamente o obrigou a cursar Letras. Como é isso: você vinha disposto a estudar literatura e não queria cursar Letras? Sânzio – Não, eu vou dizer a verdade para vocês. Eu terminei o ginásio no Agapito dos Santos em 1955. Eu fui embora para São Paulo e não fiz coisa nenhuma mais, não fiz curso. Quando eu voltei de São Paulo, eu só tinha o ginásio (correspondente ao Ensino Fundamental II), eu não tinha clássico nem científico (correspondente ao Ensino Médio). Quando eu chego aqui, eu visitava o Artur, Artur Eduardo Benevides, o Macambira (José Rebouças Macambira, professor do Liceu e das universidades Estadual e Federal do Ceará, integrante da ACL), o Plínio Sá Leitão (Plínio Santiago de Sá Leitão), todos ficavam contentes, mas principalmente o Artur. O Artur insistia comigo, insistia demais. Ele dizia: “Sânzio, você tem que fazer o curso de Letras. Do grupo Clã, só quem não é professor da Universidade é o Braga Montenegro” – que é um dos mais brilhantes, por quê? Porque nunca fez um curso. Aí (o Artur) insistia, insistia, insistia. Resultado: um amigo meu, chamado Raimundo, que eu chamo Raimundinho (hoje em dia é oficial da polícia no Piauí), não sei nem como é o sobrenome dele, me arranjou o programa de um Artigo 99 (espécie de curso supletivo), ou coisa que o valha, e aí eu fui ver as matérias que eu podia fazer (no curso, escolhiam-se oito matérias. Sânzio escolheu Português, Geografia, História, Sociologia, Alemão, Inglês, Literatura e Filosofia). Não queria botar nem Física nem Matemática, não queria negócio de número – e, paradoxalmente, hoje eu dou (aula de) Teoria do Verso, que é cheia de número (risos). Mas o certo é que eu consegui fazer. Em língua estrangeira eu fiz Francês, fiz Alemão, porque eu estava estudando Alemão nesse tempo – se fosse hoje, já não ia colar. Era com Guilherme Müller, que depois foi meu professor de Literatura Francesa na faculdade... Eu digo na faculdade estadual (Uece), mas, na verdade, eu me formei na

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federal (UFC), porque (a Uece) era agregada. Não existia a Uece ainda, era Faculdade de Filosofia do Ceará, agregada à UFC. Então esses conselhos do Artur Eduardo pesaram muito. Fui fazer o Artigo 99 e, em 69, eu fiz o vestibular. Inclusive, a língua que eu escolhi foi o Alemão e quase que eu era reprovado, porque foi o padre Jessé (poliglota, professor de Alemão, Francês e Inglês na Estadual) que fez a prova, e fez a prova a lápis, exclusivamente para mim. Eu pensando que ia ser um livro daqueles do Deutsche Sprachlehre für Ausländer (Língua Alemã para Estrangeiros, em alemão), que eu tinha estudado na Cultura Alemã (curso de língua alemã vinculada à UFC), mas não foi nada disso, foi uma prova que ele fez com a palavra “heiraten”. Eu tinha que traduzir o texto, aí toda hora (aparecia no texto) “heiraten”. Eu chamava o professor, padre Jessé: “Professor, como é mesmo aqui a história?”, e ele: “Você traduza!”, e eu sem querer perguntar, né? Até que uma hora lá eu digo: “Padre, como é mesmo?”, aí ele: “Rapaz, essa história é de casamento”. Aí eu digo: “aah, ‘heiraten’ deve ser casar” (risos). Foi como eu me safei. Ainda cometi uma burrice, eu fiquei doente! Você sabe quando você erra uma coisa, sabe que errou e se lembra do correto antes de olhar o livro? É horrível. Era para dizer “logo”, e eu disse “schenell”, sendo que “schenell” é rapidamente. Aí, quando eu me lembrei na escada, era “sofort”. Eu digo: “Pronto, agora eu estou ferrado.” Mas eu passei. Eu digo que fui um aluno cobra, passei arrastado em Alemão. Giselle – Em 73 você já estava dando aula na Universidade. Quem foram os grandes mestres na arte de ser professor na sua vida? Sânzio – Ah... Os grandes mestres para mim, professores, que eu tive? Vixe, agora vocês me botaram numa situação... É o seguinte, lá eu não tive o prazer nem a honra de ser aluno nem do Artur Eduardo, nem do Moreira Campos (um dos mais importantes contistas, cearense de Senador Pompeu). Eu fui aluno do Macambira, professor Rebouças Macambira. Taí, meus professores que me marcaram foram o professor Rebouças Macambira, de Lingüística, professora Aglaeda Facó, de Teoria, professor João Soares Lobo, de Literatura Portuguesa... Sim! Tenho que falar de outros professores também: o Cartaxo (Luís Edgard Cartaxo de Arruda) me marcou muito, Lauro de Oliveira Lima (professores do ginásio)... Acrescente aí, por favor, o professor de Francês Mário Barbosa Cordeiro (lecionava na Uece, membro da Academia Cearense de Língua Portuguesa), primo do Cruz Filho (poeta da Academia Cearense de Letras eleito “príncipe dos poetas

cearenses”). Esse é um professor notável e meu amigo ainda hoje. E o Guilherme Müller, que era Wilhelm Müller, mas aportuguesou o nome. Por aí, acho que foram os professores que mais me marcaram. Isabele – Em que momento o senhor descobriu o gosto por ser professor? Sânzio – Afe! É o seguinte, na verdade – isso é interessante –, quando eu estava terminando o ginásio, havia o Curso de Admissão. O Curso de Admissão, que era o mais difícil, tinha era Português, Matemática, Geografia e História. O Lauro de Oliveira Lima, que todo mundo sabe que é um pedagogo, me escolheu para ser professor do Curso de Admissão (ao Ginásio). Mas você não imagina de que disciplina: História. É porque eu gostava muito de História nesse tempo, eu era um dos alunos mais aplicados do Luís Edgard Cartaxo de Arruda. Então o Lauro de Oliveira Lima me chamou para dar aula de História, História do Brasil, imagine! Aí eu perguntei: “Professor Lauro, eu nunca dei uma aula na minha vida, como é que eu faço?” Ele disse: “O conselho que eu lhe dou é o seguinte: nunca enrole os alunos. No dia em que eles perguntarem coisas que você não souber, diga ‘não sei’ e pronto”. Esse é o ensinamento maior do Lauro para mim. E eu realmente gostei da experiência, mas não tive oportunidade de repetir. Quando eu estava na Casa de José de Alencar, trabalhando nas funções burocráticas, o doutor Artur começou a insistir para eu fazer o curso de Letras. Eu me lembrei do tempo do magistério como professor de História e, realmente, eu não tenho me saído muito mal, não. Veja bem, eu dei aula no Curso de Admissão em 1955 e fui dar aula depois na Universidade. Quando eu me aposentei, eu fui convidado por três colegas: Leite Júnior (professor na UFC), Galileu (professor de Português no colégio Espaço Aberto) e o Eduardo Luz (ensina Te-

“Eu perguntei: “Professor Lauro, eu nunca dei uma aula na minha vida, como é que eu faço?”. Ele disse: “(...) nunca enrole os alunos”

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Sânzio referia-se ao fato de termos falado com vários parentes e amigos. A produção brincava dizendo a Sânzio que sabíamos tudo sobre a vida dele e que estávamos seguindo seus passos.

Na verdade, era Sânzio quem seguia os nossos. Comentamos que havíamos conversado por telefone com o seu amigo Artur Eduardo Benevides e ele disse com naturalidade que já sabia.


Ao entrevistarmos a irmã de Sânzio, Maria Consuelo, ela deixou escapar que havia falado anteriormente por telefone com Rafael – é pelo primeiro nome que ela ainda o chama.

Na ligação a Maria Consuelo, Sânzio teria dito à irmã mais velha: “Fale dessas coisas que eu faço mesmo... Diga que eu desenhava ruim feito o diabo, fale dos poemas, dos discos...”.

oria da Literatura) para substituir o Galileu no cursinho. Eu nunca passei por colégio (como professor), por Ensino Médio ou segundo grau ou coisa que o valha. E aí me pegaram para cursinho. Eu dava oito vezes a mesma aula. Entre os donos do Espaço Aberto (colégio particular de Fortaleza), estavam pelo menos dois netos do doutor Martins, filho do doutor Murilo (Martins, médico, atual presidente da ACL). Eu nem me lembrava desse parentesco, quando doutor Martins chegou para mim e disse: “Olhe, você está se dando muito bem lá com os meninos”. Digo: “Que meninos?” “Ah, os meus netos. Eles estão gostando muito.” Porque eles saíam perguntando aos alunos se eles estavam gostando das minhas aulas. Como eu disse, eu não quero estar me elogiando, mas o Roberto Arruda, que hoje é professor de Latim e é coordenador do curso de Letras da UFC, ele foi meu aluno. Um dia, ele me fez uma pergunta que, para mim, foi um elogio. Ele disse: “Sânzio, onde foi que você estudou didática?” Eu digo: “Em parte nenhuma. Eu fui o pior aluno dessas disciplinas, ‘não sei quê de segundo grau’. Aquelas que ensinavam didática, eu passava arrastado”. Mas ele achou que eu tinha uma didática muito boa. Eu tenho a impressão, hoje, de que essa didática é uma coisa inata. O Rubens, por exemplo, meu irmão, tinha uma facilidade muito grande de transmitir o conhecimento. Edwirges – Sânzio, e lecionando aqui na Universidade (Federal do Ceará), você sente que o curso de Letras é capaz de despertar nos alunos esse gosto, esse interesse, esse amor pela literatura? Sânzio – Olha, graças a Deus, os alunos das disciplinas que eu dou – claro, há exceções – talvez metade da turma não tome muito conhecimento, ou fique empurrando, ou passe arrastado, mas muitos se interessam muito. Se interessam, e outra coisa: eu tenho tido o prazer de ver depois ex-alunos meus dando aula. Bom, aí mesmo, na Universidade, o Paulo Mosânio foi meu aluno, o (Roberto) Arruda foi meu aluno, há muitos professores aí até destacados que foram

meus alunos. Eu fico muito feliz com isso. Quer dizer, não que eu tenha contribuído com muita coisa, mas eu digo que essa pessoa tem vocação para lecionar. Lucíola – Como aconteceu o primeiro contato teu com o jornal O Pão? Em que momento você primeiro ouviu falar dele? Sânzio – Ah, é o seguinte... Nesse tempo da Academia dos Novos, nos anos 50, havia uns colegas, o (Antônio) Pompeu, o Carvalho Nogueira, que quiseram fundar ou andaram fundando uma imitação da Padaria Espiritual. Eu ouvia falar naquilo, e tal e coisa, mas nunca me interessei muito. Quando eu fui para São Paulo, eu quis me aprofundar no estudo da Literatura Cearense. Eu li o livro de Leonardo Mota (folclorista cearense, escritor e jornalista) sobre a Padaria Espiritual, de 1938, eu tomei conhecimento do jornal. Mas do jornal propriamente dito, eu só tomei conhecimento com a Maria da Conceição Souza, que é a pioneira da Biblioteconomia aqui no Ceará (primeira diretora da Biblioteca Central da Universidade Federal do Ceará, criada em 1957). Ela foi quem ajudou o Dolor Barreira na História da Literatura Cearense. Ela me deu vários exemplares (do jornal O Pão) da segunda fase. Da segunda fase, que da primeira eu nunca vi. E em 1982 eu tive o prazer e a honra de organizar, com a ajuda da Regina Fiúzia (Regina Pamplona Fiúza, bisneta de José Carlos Júnior, padeiro da segunda fase da Padaria Espiritual), uma edição facsimilar do O Pão. Thiago – Ainda falando sobre O Pão e a Padaria Espiritual, eu queria perguntar sobre a sua tese de doutorado. Você defende na tese que o Simbolismo cearense veio direto de Portugal, e não da influência de autores cariocas ou paranaenses. Quais foram as repercussões que aconteceram a partir dessa sua tese? Sânzio – Repercussão do meu trabalho eu só conheço uma: o José Aderaldo Castello (crítico literário), no seu livro Literatura Brasileira: origens e unidades, de 1999, dedica uma página inteira a isso, ele explica meu trabalho e comenta. Mas o meu amigo Massaud Moisés (crítico, ensaísta e especialista em literatura brasileira e portuguesa, autor de diversos livros sobre história da Literatura), esse foi uma graça, porque ele dizia naquele livro O Simbolismo, da (Editora) Cultrix, que o Simbolismo nasceu no Paraná, foi para o Rio, do Rio se irradiou para o resto do País. Depois eu mandei minha tese para ele, naturalmente ele não leu (risos), botou meu livro na bibliografia e continuou dizendo a mesma coisa. Aí eu mandei uma carta para ele: “Massaud, meu amigo, muito obrigado por me citar na bibliografia, mas

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do jeito que você me citou foi mesmo que nada, porque você continua dizendo a mesma coisa”. Pode parecer até bairrismo, porque eu quero que o Simbolismo do Ceará não tenha nada com o do Rio, mas eu não estou dizendo que ele nasceu por geração espontânea, estou dizendo que veio de Portugal. E outra: na minha tese eu acho que eu demonstro isso claramente. Mário Linhares (poeta cearense, foi membro da Academia Carioca de Letras e da Academia Cearense de Letras), em 1938, no (livro) Poetas Esquecidos, ele já dizia: “Lívio Barreto tinha noção do Simbolismo mesmo sem conhecer nada dessa escola”. Quer dizer, ele (Mário) andou perto; não que (o Lívio) não conhecesse, ele não conheceu a deste País. Sim, e me baseei também principalmente numa frase de Adolfo Caminha nas Cartas Literárias, de 1895, em que ele diz que o único volume do Só (livro simbolista português), de Antônio Nobre, que aparecera misteriosamente na província, passava de mão em mão, era lido e adorado, “era a nossa bíblia, o nosso encanto, o nosso livro amado.” Ora, o Adolfo Caminha só esteve aqui (no Ceará) até 1892, que é o ano da publicação do livro (Só), então não há jeito de se enganar. Logo, foi o próprio Antônio Nobre quem influenciou mesmo os poetas da Padaria Espiritual. E na carta-prefácio que o Antônio Sales escreveu para o (livro) Phantos, do Lopes Filho (autor simbolista, padeiro da primeira fase), que é de 1893, ele diz: “Bem se vê que leste Verlaine, Baudelaire, Mallarmé, Nobre e Eugênio de Castro (poetas europeus), esses apóstolos da estranha escola do Decadismo”. Por que ele não citou Cruz e Sousa, nem Alphonsus de Guimaraens, nem Emiliano Perneta (autores simbolistas brasileiros)? Porque não conhecia. Alinne – Mas essa não foi a única obra do senhor que deu o que falar nacionalmente. Teve uma outra, que foi (o livro) Literatura Cearense, que o senhor escreveu falando de vários poetas, da produção literária até a contemporaneidade... Sânzio – (Interrompendo) Ah, mas aí foi uma burrice minha, foi uma burrice imperdoável! O livro é de 1976, eu vim até 1976. Então, quem eu apenas citei ou nem citei ia para o jornal baixar a lenha em mim (com ênfase). Eu levei tanta descompostura que eu prometi a mim mesmo nunca mais escrever sobre autor contemporâneo – a não ser assim, um livro de amigo, eu botar um prefácio, en passant (em francês, de passagem). Mas uma História da Literatura, negativo. Eu faço como Manuel Bandeira: entre

apanhar e apanhar, eu prefiro apanhar sem prefácio, sem ressalva. Porque na abertura do livro ele (Manuel) explicava, ele explicava (com ênfase) que botava os autores mais significativos, mas todo mundo quer ser significativo. Thiago – E a partir de que obra você apontaria que passou a ser visto como um grande estudioso da literatura? Sânzio – A partir de que obra? Para eu mesmo dizer isso fica meio complicado... Mas aqui no Ceará, a partir desse Literatura Cearense – por ser um livro muito abrangente, um livro muito citado, todo mundo mexe nesse livro – , eu fiquei sendo uma referência, porque o Dolor Barreira só vem até 1918, e eu fui muito além. Depois disso, eu tive o prazer de, por exemplo... Tanto a biografia do Adolfo Caminha (Adolfo Caminha: vida e obra), que eu publiquei em 1997 com segunda edição em 1999, como agora O Parnasianismo na Poesia Brasileira, de 2004, os dois mereceram menção do Wilson Martins (crítico literário, é autor de obras como História da Inteligência Brasileira e A Crítica Literária no Brasil), sendo que o do Parnasianismo mereceu um artigo inteiro do Wilson Martins me fazendo pouquíssimas restrições. Eu fiquei muito feliz. Embora isso seja muito precário: ele publicou no (jornal) O Globo, do Rio de Janeiro, então pouca gente leu por aqui. Diego – No Rio de Janeiro (Sânzio viajou ao Rio em 1976 para fazer Mestrado em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) você tinha uma intensa rotina de atividades. Como você conciliava os estudos com a produção literária e ainda o fato de ter de tomar conta do seu filho Lívio, ainda pequeno? Sânzio – É o seguinte: a minha atividade era estudar, lá (no Rio) eu tinha uma bolsa (de Mestrado) e estava só para estudar. Então, o que eu escrevia era a minha tese. Eu tinha aula quase todo dia, mas não era todo dia. Por exemplo: as aulas do meu orientador, Afrânio (Afrânio Coutinho, crítico literário e ensaísta autor de diversos livros sobre teoria literária), eram à noite. E a orientação do Afrânio era interessante, ele me deu uma

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Depois da aula de Literatura Brasileira a que assistimos, Sânzio nos convidou até o carro para nos presentear com três exemplares de Lanternas Cor de Aurora, livro de haicais publicado em 2004.

Enquanto conversávamos amenidades e recebíamos os exemplares com suas devidas dedicatórias, uma ex-aluna o abordou, bastante efusiva, enchendo Sânzio de elogios.


O interessante é que a menina não sabia que investigávamos a vida de Sânzio. O depoimento, então, foi natural, sincero e apaixonado, de grande valia para o trabalho de produção da entrevista.

Perguntamos a Sânzio sobre o fato de ele ter se aposentado da UFC há tanto tempo – em 1994 – e ainda estar dando aula. Ele justificou: “É que eu ainda não desencarnei”.

orientação notável. Ele disse: “Olhe, a Padaria Espiritual, você esgote o assunto”. Claro que ninguém esgota nada, né, mas eu ia fazer só um capitulozinho, e ele disse: “Não, você escreva o que você puder sobre a Padaria, que você nunca mais vai ter coragem de mexer nisso, aproveite esse momento”. Mas ele quase que não dava muito palpite, não. Ele dizia que quem entendia era eu mesmo, então nossa orientação era... O Mário Camarinha da Silva (filólogo, professor e ensaísta carioca), que era uma espécie de co-orientador, deu mais orientação do que o Afrânio. O Afrânio me deixava muito livre. Eu queria fazer só a dissertação do Mestrado, e fui para lá em 76. Com um ano e meio, nem o Lívio nem a mãe dele, minha primeira mulher, a Margarida, se adaptaram bem ao Rio. Ficaram por lá, mas não se adaptaram. Nós fomos morar num prédio, num edifício, na Rua Barata Ribeiro, entre (as ruas) Ronald de Carvalho e Duvivier. Eu voltei para o Ceará, me pegaram logo para dar aula, mas eu ia escrevendo os capítulos e mandando para o Afrânio Coutinho. E eu tenho muito orgulho de contar isso: eu fiquei mandando os capítulos, e um dia ele me mandou uma carta – que eu brinco que vou botar num quadro –, dizendo assim: “Sânzio, isso não é mais uma dissertação de Mestrado, isso é uma tese de Doutorado. Venha fazer os créditos (do Doutorado)”. Lá vou eu e o Lívio de novo sofrer no Rio de Janeiro. Passou 79 e 80. Voltando para cá (Fortaleza) definitivamente, ele nunca mais quis nem saber do Rio (risos). Lucíola – Sânzio, lá no Rio de Janeiro tinha um grupo que se reunia semanalmente na biblioteca do Plínio Doyle (advogado carioca e amante da Literatura Brasileira, em sua biblioteca havia mais de 25 mil livros), que eram os Sabadoyles. E nesses encon-

“Ele me mandou uma carta (...) dizendo assim: “Sânzio, isso não é mais uma dissertação de Mestrado, isso é uma tese de Doutorado.”

tros estavam presentes grandes nomes da Literatura Brasileira, como Drummond (poeta, cronista e contista mineiro, autor de A rosa do povo, Alguma poesia e Sentimento do mundo), Pedro Nava (memorialista premiado e ilustrador, fez parte do grupo de edição de A Revista, primeira publicação do movimento modernista mineiro)... Como você começou a freqüentar (o Sabadoyle)? Sânzio – Foi o seguinte: o Plínio Doyle era amigo do Braga Montenegro (contista cearense, integrante do Grupo Clã). Quando eu trabalhava na Casa de José de Alencar, o Plínio Doyle veio a Fortaleza, me conheceu e ficamos nos correspondendo. Quando eu fui para o Rio de Janeiro, eu tinha o telefone dele, telefonei: “Ah, mas você tem que vir ao Sabadoyle!” E eu fui, fiquei indo. Da primeira vez em que eu fui ao Sabadoyle, o Pedro Nava disse: “Ah, mas deixa eu dar um abraço nesse cearense!” Porque o Pedro Nava era filho de José Nava, cearense (e escritor da segunda fase da Padaria Espiritual). E José Nava era irmão de dona Alice, mulher do Antônio Sales, que ele (Pedro Nava) chamava tio Sales. Ele (Pedro) me convidou logo para ir ao apartamento dele. Eu fiz muita pesquisa lá, encontrei inclusive duas cartas do Adolfo Caminha (escritor cearense autor de A Normalista, fez parte da primeira fase da Padaria Espiritual) uma de amizade e outra rompendo com a Padaria (Espiritual), e nunca ninguém tinha transcrito (as cartas, ambas dirigidas a Antônio Sales) em canto nenhum, Pedro Nava foi quem me arranjou esse material, tinha muita coisa importante lá. E outras pessoas do Sabadoyle... O Drummond, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade contava muita história do Américo Facó (poeta e jornalista cearense), que foi colega dele de repartição. Um dia, peguei uns poemas que eu tinha pesquisado aqui em Fortaleza da fase parnasiana do Américo Facó, que ele renegou completamente; ele publicou depois Poesia Perdida, já nos anos 50, uma poesia moderna, meio clássica, hermética. E eu fiz um artigo e saí puxando os poemas que eu tirei do Jornal do Ceará (fundado em 1904 por Valdemiro Cavalcante, que tinha sido da Padaria Espiritual). Pois bem, no Jornal do Ceará foi que eu encontrei esses poemas parnasianos do Américo Facó, era quase tudo desconhecido e eu copiei muita coisa. Mostrei ao Drummond o artigo, e ele achou muito interessante, aí eu perguntei a ele: “Mestre, o senhor acha justo, já que o poeta renegou essa fase parnasiana dele, é justo que eu desenterre isso e publique?” E ele, com aquele jeito dele, disse assim (imitando

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Drummond): “Defunto não tem direito a nada” (risos). E o que é mais curioso desse Sabadoyle é que o Plínio achou – ele sabia que eu estava lá de passagem, eu estava fazendo um curso –, mas ele achou que eu tinha que ser um sabadoyliano de verdade, botou até meu retrato na parede, tinha um retrato meu lá. E há dois livros sobre o Sabadoyle em que eu sou citado como um componente do grupo. Síria – Você acha que você seria quem você é hoje se você não tivesse convivido com tantos escritores importantes? Sânzio – É difícil dizer isso, muito difícil... Mas eu tenho a impressão de que eu me enriqueci muito com a convivência com esse pessoal. Inclusive eu só citei aqui de passagem um nome muito importante na minha vida, que é o Braga Montenegro. Braga Montenegro foi um dos meus grandes amigos, padrinho do meu único filho, o Lívio... O Braga Montenegro me incentivou muito, prefaciou um livro meu, Poesia de Todo Tempo. Aliás, esse livro, de 1970, quando eu publiquei, eu coloquei na dedicatória: para Artur Eduardo Benevides, Braga Montenegro e Fran Martins. Fran Martins foi outro que me incentivou muito. Aliás, vocês não me perguntaram, não, mas eu vou dizer: a minha entrada na Academia Cearense de Letras... Quando morreu o Sidney Neto, em 72, o Cláudio (Martins, irmão de Antônio Martins Filho) me telefonou (imita voz grave): “Sânzio, agora é você”. Porque o Cláudio era assim: ele era vice-presidente da Academia, não era nem o presidente, o presidente era o Eduardo Campos, mas ele era muito autoritário. E ele: “Sânzio, agora quem entra é você”. “Rapaz, que é isso...” “Não, você tem que entrar”. Aí eu saí pedindo voto, que é praxe e tudo mais. E o Cláudio me revelou uma coisa que eu não sabia: foi o Fran Martins quem se lembrou do meu nome para ser da Academia quando o Sidney morreu, o que não era merecido, porque eu tinha apenas uns opusculozinhos, um livro e dois ou três opúsculos, quase nada. Aí eu escolhi, naturalmente, o Fran para me receber (na solenidade de posse). Depois que o Fran morreu, o doutor Martins, Antônio Martins Filho, pediu para eu organizar o Pireu, Ida e Volta, (livro) de crônicas do Fran, e na abertura eu revelo uma coisa que eu descobri depois: a única pessoa que o Fran Martins recebeu fui eu. Ele nunca tinha recebido ninguém. Porque tem uns que... O Artur recebeu bem umas 50 pessoas (risos). O Fran só recebeu a mim, como eu só recebi ao Dimas Macedo (poeta e professor da Faculdade de Direito

da Universidade Federal do Ceará) e espero não receber ninguém mais. Edwirges – Sânzio, além da literatura, você também admira outra bela-arte, que é a música. E aos 18 anos você compôs uma valsa chamada Cinzas do Passado, que acabou se tornando sua primeira e única. Por que não deu continuidade? Sânzio – Aí é um mistério. Como dizia o Mário de Andrade, em alguns poetas jovens a poesia é uma brotoeja, que nasce e desaparece. Essa (valsa) aí foi só uma brotoeja mesmo. Essa valsa (Cinzas do Passado) realmente foi até comentada na época, pelo pessoal que entendia de música, porque eu não sabia (quando compôs) o que diabo era menor nem maior, tom menor nem tom maior. Eu não sabia, eu não tinha noção de nada. Agora, o que é mais curioso dessa valsa é que o Fernando Hugo, que é um cantor aqui do Ceará – cantava com a gente quando eu tocava com Pedro Ventura (violonista), e tudo –, canta parecido com o Sílvio Caldas (famoso cantor e compositor das décadas de 30 e 40) e ele gravou (a valsa) numa fita. Eu não sei se o Christiano Câmara (pesquisador e colecionador cearense, possui grande acervo sobre música, discos de cera e de vinil) ainda se lembra disso, mas eu dei uma fita – fita ou CD, sei lá –, e ele estava ouvindo essa valsa cantada pelo Fernando Hugo. A Douvina, mulher do Christiano Câmara, foi e disse assim: “Ô meu bem, que valsa tão bonita é essa que o Sílvio Caldas tá cantando?” Ele me contou isso e eu disse para o Fernando Hugo: “Fernando Hugo, um elogio para mim e para você: para mim porque achou a valsa bonita, e para você porque está cantando como o Sílvio Caldas”, que foi um grande cantor. Diego – Sânzio, depois dessa valsa que você acabou de citar, você aprendeu a tocar instrumentos de corda, inclusive você participava de um programa na Rádio Universitária, que era o Noites de Serenata. Por que você deixou de tocar? Você tocava no programa, como é que era? Sânzio – Não, é o seguinte: ao longo da minha vida eu tenho tocado, assim: eu toco e depois paro, depois... Olhe, em 59 – essa

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A entrevista estava marcada para o dia 5 de junho de 2008. No dia 4, Sânzio liga para o celular de Thiago, que, naquele momento, passava de ônibus em frente a casa de dona Consuelo.

Sânzio ligava para avisar que a entrevista não poderia ser realizada no dia seguinte, porque ele estava com virose. Outra data foi então acertada: 10 de junho, uma quinta-feira, às 15h.


Meia hora antes da entrevista, todos já estavam na sala, e o nervosismo começava a mostrar seus primeiros sinais. Às 14h40, Lucíola se vira para Thiago e sentencia: “Hora de ir buscar o Sânzio”.

Conforme havíamos combinado, passaríamos na sala onde Sânzio estaria dando aula para levá-lo até o bloco de Comunicação Social. Quando chegamos, alguns alunos ainda conversavam com ele.

valsa aí é anterior a 59, porque em 59 que eu comecei a aprender a tocar violão – lá em São Paulo eu tocava, assim brincando e tudo mais, mas nunca me aperfeiçoei. Quando eu voltei (para Fortaleza), aí eu fui... Estudar é um modo de dizer, eu estudava com o Miranda Golignac (professor de violão), ele queria que eu fosse solista, queria que eu estudasse música, mas eu só queria de ouvido mesmo. Depois eu fui aprender acompanhamento com o Expedito, Expedito Francisco dos Santos (violonista), que já morreu. Eu parei, foi quando veio meu primeiro casamento, eu me afastei. Na época do programa do Nelson Augusto (Noites de Serenata) era um grupo: Pedro Ventura, Saraiva, eu, e havia uns cantores, havia o cavaquinho do Guedes, do Pardal, e o pandeiro do Afrodísio Pamplona, que já morreu. Depois, eu me afastei. Quando eu me afasto, pronto, eu paro de tocar, os dedos ficam duros... Sim, porque tem um problema interessante na minha vida: toda vida eu moro num lugar que não tem ninguém que bata nem numa lata, quanto mais tocar instrumento. É incrível essa coincidência, porque se eu tivesse algum amigo que tocasse bandolim e que morasse na outra rua, eu podia até voltar a tocar. No tempo da minha mãe, ela cantava e eu acompanhava, cantava aquelas músicas com muita modulação (mudança de tonalidade na música), eu gostava muito de acompanhar, mas... Edwirges – Sânzio, seu pai praticamente nunca freqüentou a escola, e ele é considerado um dos nossos grandes poetas. E você mesmo costuma dizer que ele teve a felicidade de não saber o que era sujeito ou predicado. Aí eu te pergunto: até que ponto o embasamento teórico, a cadeira da escola, ajuda ou inibe um artista? Sânzio – Bom, “até que ponto” é meio difícil, mas eu posso dar um depoimento meu mesmo: eu fazia versos com muito mais facilidade antes de eu estudar versificação. Depois que eu estudei versificação a ponto de ser professor, acabou, eu faço poemas com muito mais dificuldade.

“Eu fazia versos com muito mais facilidade antes de eu estudar versificação.”

Agora, o que aconteceu com ele é que o meu pai leu muito. Ele mesmo conta, num livro de memórias (Fortaleza Descalça), que o Abraão de Carvalho tinha uma biblioteca, e ele lia muito. Ele conviveu com pessoas como Clóvis Monteiro, grande filólogo, então ele tinha quase professores ao lado dele (refere-se ao fato de que a companhia de professores fez as vezes de escola para o pai Otacílio). Tanto que um tempo ele fez um soneto que terminava dizendo assim: “Que eu seja desgraçado e sejas tu feliz,/ que outro te faça o bem que nunca me fizeste/ e que não faças nunca o mal que te não fiz”. Esse “te não fiz” é uma apossínclise (tipo de inversão), uma construção muito requintada. E o Clóvis Monteiro, que era poeta e um grande filólogo, e que era muito ensimesmado, chegou e disse: “Otacílio, você sabe que você é analfabeto diante de mim”. Papai disse: “Eu sei”. “Mas eu vou morrer e não faço um verso desses” (risos). Ele (Otacílio) ficou todo orgulhoso. Na verdade, meu pai freqüentou escola quando era menino, bem pequenininho, mas ele dizia que tinha umas alpercatas, e aí ele botava uma pena de caneta – de escrever no tinteiro, uma pena pontuda – ele enfiava a pena no pé e ficava cutucando o calcanhar do menino da frente. O menino reclamou para a professora, e ela escreveu no quadro: “Otacílio ...” e o resto papai não sabia, porque ele não sabia ler, só sabia o nome dele. Ele perguntou para um colega: “O que é que tá escrito ali?” E o colega: “Otacílio vai ser preso na latrina”. Papai pulou a janela e nunca mais quis saber de escola! (risos) Gustavo – Você fala que na atualidade não tem produzido tantos sonetos como antigamente. Você credita essa questão somente ao fato de ter adquirido esse conhecimento técnico? Sânzio – Olha, eu diria que isso aí contribuiu, mas na verdade há um pouco de falta de incentivo ou preguiça. Porque eu vou confessar uma coisa aqui que vai parecer que eu vou me desdizer, mas eu vou dizer apenas a verdade: uma vez ou outra, a gente forçando, sai alguma coisa. O Virgílio Maia, que é poeta, meu amigo, tinha um jornalzinho chamado O Pão, em homenagem ao O Pão da Padaria (Espiritual), e eu colaborava. Quando foi um dia, ele arranjou uma gravura de um navio a crayon (carvão) desenhado por um judeu prisioneiro de Auschwitz (campo de concentração nazista localizado numa região que hoje faz parte da Polônia). Ele pediu para várias pessoas fazerem um poema sobre aquilo. Eu fiz um soneto dizendo que o judeu estava preso, imaginando todo o povo judeu dentro daquele navio. E

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até que não saiu um soneto tão ruim assim, porque eu pus no meu livro (Cantos da Antevéspera). Quer dizer, um poema feito por encomenda. Aliás, é a tal história: se eu entendesse de sair forçando, talvez até saísse – não sei se prestava! Mas eu não gosto de forçar, nesse ponto eu acredito muito nisso, na predisposição. Eu só escrevo quando tenho idéia de escrever; se não, eu não sou capaz de ficar... E outra mais: eu acho que já escrevi tanto que já está bom de parar. Lucíola – Sânzio, quando o seu amigo Carvalho Nogueira faleceu, em 2001, você escreveu um artigo para o Diário do Nordeste (jornal cearense fundado em 1981 pelo empresário Edson Queiroz) dizendo que, quando recebeu essa notícia, sentiu algo como se lhe arrancassem um pedaço da juventude. E, falando do seu passado, você sempre se refere a pessoas que já faleceram, pessoas próximas, amigos... Ao longo do tempo, como você aprendeu a lidar com grandes perdas? Sânzio – (Emocionado) Olha... Como eu já disse, eu tenho 70 anos. Nessa idade, a pessoa tem que aprender a lidar com as perdas, e eu já venho lidando há muito tempo. Quando eu era ainda bem jovem, eu... Uma coisa curiosa: eu sempre tive propensão a ter amigos mais velhos do que eu. Inclusive perto lá de casa tinha uns pedreiros, pintores de parede... Havia uma coisa nas paredes antigas que se chamava rodapé, era de (cor) roxo-terra. E para fazer esse rodapé, tinha que ser uma coisa bem reta. Pegava um fio de barbante, sujava no pó do roxo-terra e batia, aí formava aquela listra. Alguém tinha que vir com o pincel, com uma mão muito firme e pintar, para dali pintar o resto. Havia dois pedreiros, eram o Chico do Caroço e o Nicim, toda vez que eles iam pintar uma casa, chegava a hora de fazer o rodapé: “Cadê o Rafael pra fazer o rodapé?” Eles me chamavam, eu fazia a listrinha do rodapé e eles faziam o resto (risos). Então, eles eram bem mais velhos que eu. Cada um que ia morrendo era uma perda pra mim. Tinha um deles chamado Onofre, por sinal irmão da minha primeira namorada, ela tinha 25 anos e eu 14 (todos riem). O Onofre era um camarada muito valente, um rapaz até bonitão, valente, moreno. Um dia tomou veneno e morreu. Suicidou-se. Isso eu tinha quantos anos...? Quando ele se suicidou eu tinha uns 16, 17 anos. Então é isso, ao longo do tempo a gente vai vendo pessoas morrendo. Sem falar parentes, né? Tia Maria, irmã de papai, quando morreu eu era menino... Meu pai e minha mãe, eu já era adulto. Amigo, amigo assim mesmo, mais de perto, eu nem me lembro qual foi o primeiro que

eu perdi, não. Agora o Carvalho Nogueira, realmente... Apesar de eu falar com ele mais só por telefone ultimamente. A gente vai deixando de se encontrar. Mas foi um baque. E o Ribamar Lopes morreu agora, ano passado, eu acho, no meio da rua, caiu morto no meio da rua. Agora mesmo (na semana anterior à entrevista) morreu José Alcides Pinto (poeta, contista e romancista cearense, autor de Os Verdes Abutres da Colina), atropelado... Síria – Você se refere o tempo todo a pessoas do passado e a coisas e costumes antigos. Inclusive você não usa computador, você prefere máquina de escrever. Eu queria saber se você se considera um homem do passado. Sânzio – (Risos) Olha, pensando bem, quando eu dou aula ou quando eu estou aqui com vocês dizendo essas graças, eu até que não me acho muito do passado, não. Mas realmente eu sou muito preso às raízes. Porque, por exemplo, alguém já me disse: “Não, mas hoje não dá mais para escrever sem o computador...” Eu digo: peraí... Eu já escrevi 23 livros, todos escritos à máquina – de certo tempo para cá eu escrevo primeiro a mão e depois passo para a máquina – o que me custa mandar digitar por alguém, por que eu tenho que digitar? Então, se eu vivi até hoje sem computador, por que eu sou obrigado a ficar com o computador? Não é que eu queira ser velho, não. Talita – Sânzio, depois de 35 anos de magistério, você vai deixar as salas de aula da UFC... Sânzio – (Interrompendo) Trinta e cinco, é? Talita – É... (risos de todos) Lucíola – De 1973 até hoje dá 35 anos. Sânzio – Só que aí tem uns interregnos pelo meio, uns dois anos que eu não dei aula. Mas tudo bem. Talita – Inclusive a sua esposa nos contou que um grupo de 500 alunos da Letras fez um abaixo-assinado para que você não deixasse de lecionar... Sânzio – (Interrompendo) Quem contou? Talita – A Fernanda. Do que você mais

“Eu até que não me acho muito do passado, não. Mas realmente eu sou muito preso às raízes.”

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No caminho até o local, Sânzio se mostrou preocupado por não ter trazido anotações. “Não tem problema. A entrevista é sobre você! E não invente de falar dos outros!”, sentenciou Alinne.

Ao fim da entrevista, Sânzio percebeu que o celular de Ivna estava no chão. Apesar de insistir para que ele não se incomodasse, ele só sossegou quando o entregou nas mãos da aluna. Um gentleman!


No dia seguinte à entrevista, Sânzio ligou para destacar que o abaixo-assinado feito pelos alunos foi levado ao então reitor da UFC, Ícaro Moreira, falecido em 17 de abril, que admirou a iniciativa.

Na pós-produção, procuramos Sânzio para tirar algumas dúvidas da entrevista: ele disse frases em francês, alemão e o nome de muitas pessoas que não estão nos livros – nem no Google!

vai sentir falta desse período em que você esteve na UFC? Sânzio – Olha, eu vou dizer uma coisa para vocês: eu, de vez em quando, talvez até para me preparar ou para enganar a mim mesmo, eu digo que estou doido para que chegue o fim do ano, para eu me livrar... Eu fico pensando só nas coisas ruins, como corrigir prova, ver lista de presença, aquelas contas que eu acho chato... Mas na verdade eu acho que vou sentir muito, viu? Eu acho que vou sentir profundamente. Porque nesses intervalos (depois da aposentadoria, em 1994, Sânzio passou alguns anos sem dar aula antes de voltar como professor visitante) eu sentia, eu ficava assim, imagine agora. Eu estou sentindo, naturalmente – deve ser por causa da minha idade –, um carinho muito maior dos alunos, é uma zoada onde eu chego. E outra coisa: alunos que eu não sei nem quem é me cumprimentando (risos)! Toda hora, e todo mundo querendo ser meu aluno. É, fazem uma propaganda danada. Agora não, porque eu pedi ao (Roberto) Arruda (coordenador do curso de Letras da UFC) que controlasse, mas no semestre passado eu tive uma turma de 64 alunos. Nem cabia na sala. Quando era dia de prova – porque não vem todo dia todo mundo –, mas quando era dia de prova, eu tinha que pedir a um rapaz bolsista para ele ficar tomando conta da outra metade da turma em outra sala. Gustavo – Sânzio, qual é o seu maior prazer em dar aula? Sânzio – Rapaz... (pausa) É difícil dizer, mas um dos maiores prazeres que eu sinto é quando eu vejo que o que estou dizendo é alguma coisa original, entende? Por exemplo, eu chegar e dizer que Machado de Assis teve uma fase romântica e outra realista, isso está em todos os livros, todo mundo sabe disso. Mas eu ensinar, por exemplo, coisas de Teoria do Verso, que pouca gente conhece, ou então sobre Literatura Cearense... Eu fico feliz em apresentar um autor bom, Joaquim de Sousa. Joaquim de Sousa é um poeta cearense que nasceu em 1855 e suicidou-se no Rio de Janeiro em 1876, com 21 anos de

idade. É um poeta que dizia assim: “Não foi meu coração que dispersou-se/ No deserto perdido peregrino/ Foi a sina fatal que consumou-se/ Eu nasci já maldito do destino”. Um poeta desses não é pouca coisa! Então, eu gosto quando eu vejo os alunos escreverem sobre isso e gostarem disso. E quando eu vejo um ex-aluno meu, como Miguel Leocádio Araújo – que não é mais, mas já foi professor substituto (da UFC) – dando aula, falando de Joaquim de Sousa... Então, essas coisas assim que eu apresento como sendo mais ou menos originais, eu gosto de ver a repercussão, eu tenho muito prazer em apresentar. Sim, e o prazer que eu tenho de ver que os alunos sentem que o poeta vale a pena. Porque ficar desencavando coisas só porque o poeta é desconhecido não vale a pena, né? Nesse caso do Joaquim de Sousa é porque é um poeta realmente de efeito. Lucíola – Em um poema seu chamado Ânsia, do livro Cantos da Longa Ausência, você diz assim: “Ânsia de ter o inatingível! Ânsia/ de atravessar, num passo, essa distância que me separa da almejada meta/ que busca, há muito, o meu ideal de poeta!”, isso em 1966. Tantos anos depois, qual é hoje a maior ânsia de Sânzio de Azevedo? Sânzio – (Risos) Hoje vocês estão com cada pergunta... (risos) Minha ânsia hoje é (pausa)... Sossegar... (pausa) Minha ânsia agora seria eu conseguir publicar um resumo que eu tenho da Padaria Espiritual, um ensaio que eu tenho sobre o Rodolfo Teófilo (fez parte da segunda fase da Padaria Espiritual, foi da Academia Cearense de Letras e farmacêutico sanitarista) e eu acho que só. Eu não tenho mais do que isso. Doutor Martins Filho chegou para mim pouco antes de morrer e disse assim: “Sânzio, você é um historiador, um historiador da Literatura, você tem que entrar no Instituto (do Ceará, sociedade de caráter científico, com ênfase nos estudos de História, Geografia e Antropologia)”. Aí eu fui sincero: “Doutor Martins, se eu entrar no Instituto vai ser mais uma entidade para eu não freqüentar” (risos). Porque eu sou da Academia (Cearense de Letras), gosto muito da Academia, estou à disposição da Academia, fiz a antologia da Academia no centenário, faço parte da comissão da Revista, sempre que precisam de mim eu estou a postos, faço até conferência; mas dia de sessão – hoje mesmo está havendo uma sessão – eu não piso lá, e sessão solene eu só vou muito raramente. Então, eu não iria ao Instituto do Ceará. E isso que eu disse foi muito sincero, mas eu não disse tudo. O resto que eu poderia dizer, mas talvez até ele não gostasse, é que eu já tive vontade de entrar no Instituto do

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Ceará. Porque quando eu entrei em 73 na Academia Cearense de Letras, o Instituto do Ceará parece que convidava – não era a pessoa se candidatando não, eles convidavam – e eu tinha vontade de ser chamado, que eu já tinha publicado uns livrinhos de história literária etc e tal. Mas com o tempo, com a idade, hoje Deus me livre e guarde! Não, não tenho mais. Passou o tempo. Mas a outra coisa que eu não disse é que eu já tinha tido vontade, hoje não tenho mais. Thiago – A gente agradece pela entrevista...

Sobre ter falado alemão, Lucíola tentou resolver pedindo para que Alan Santiago, um amigo que estudava aquele idioma, traduzisse a frase. Em troca, ele ganharia uma janela na revista. Valeu, Alan!

(Todos aplaudem) Sânzio – Mas vocês pesquisaram, não foi? Descobriram até um artigo sobre o Carvalho Nogueira... Ave Maria, do arco-da-velha...

Conversando na sala de Sânzio, um alarme de carro soava: “Esse é o barulho da imbecilidade do mundo moderno: nunca vi um alarme disparar quando o carro está realmente sendo roubado!”, disse.

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