Um Antropologo em Marte

Page 148

mastro alto — acho que os sentiu como ingredientes para a fórmula de uma casa ―americana". Assim, o Matisse e a minha casa foram criados, e representados, em diversas versões. Em ambos os casos, ele apreendeu o estilo de imediato, e seus desenhos posteriores foram improvisações dentro desse estilo. Após todos esses testes, eu continuava perplexo. Stephen parecia ao mesmo tempo tão deficiente e tão dotado; estariam suas deficiências e seus talentos totalmente separados ou, num nível mais profundo, integralmente relacionados? Haveria qualidades, como a literal idade e a concretude autistas, que pudessem ser talentos em certos contextos e deficiências em outros? Os testes também me deixaram com um sentimento de inquietação, como se tivesse passado dias reduzindo Stephen a deficiências e talentos, sem poder vê-lo como um ser humano, como um todo. Acabara de ler o livro de Uta Frith Autism: explaining the enigma, e lhe escrevi: ―Amanhã, vou com Stephen para a Rússia. Vi um pouco de suas estranhas habilidades e deficiências — agora falta vê-lo como uma mente e uma pessoa. Talvez o consiga passando uma semana ao lado dele‖. Com isso em mente, portanto, embarquei com Stephen para a Rússia. Fiquei impressionado com sua profunda concentração enquanto esperávamos por nosso vôo no aeroporto de Gatwick. Estava sentado, fascinado pela revista Classic Cars. Olhava para as imagens com uma atenção extraordinária — passou mais de vinte minutos sem levantar a cabeça da revista. Por vezes, chegava mais perto para inspecionar um detalhe — o que via, eu pensei, ficaria para sempre gravado em seu córtex. Vez por outra, dava uma risada repentina. O que, nesse exercício abstrato, excitava seu divertimento? No avião, Stephen mergulhou num desenho de Balmoral, após ficar estudando um cartãopostal do castelo. Estava desligado das conversas a sua volta, das magníficas paisagens do continente e dos mares a seus pés. No aeroporto de Moscou, Stephen, muito quieto, ficou observando os carros — táxis amarelos e Zils pretos com placas que começavam por MK. Um cheiro horrível de gasolina não refinada pairava sobre o aeroporto. Stephen inspirou e torceu o nariz; é extremamente sensível a cheiros. No caminho para a cidade, às duas da manhã, vimos bétulas altas e prateadas ao longo da estrada e uma lua imensa e baixa. Mesmo Stephen, até então aparentemente desligado do que o cercava, olhou encantado para a vasta paisagem sob a luz da lua, com o nariz esmagado contra a janela fria do ônibus. Na manhã seguinte, enquanto caminhávamos pela praça Vermelha, Stephen se mostrou intensamente curioso, tirando fotos, perscrutando prédios, impressionado pela novidade. Outras pessoas viravam-se para olhá-lo na rua — aparentemente, negros eram raros em Moscou. Encontrou um lugar de onde queria desenhar a torre Spassky e fez Margaret armar seu banquinho exatamente ali. Não ali ou acolá, mas aqui — passivo em tantos aspectos, agora detinha inteiramente o comando. No meio da praça Vermelha, ele era uma figura pequenina, com um chapéu de pele e luvas de lã azul-marinho. Dúzias de turistas pululavam por todo lado sob o sol brilhante de maio; muitos davam uma espiada no desenho de Stephen. Ele os ignorava, ou não tinha consciência deles, e prosseguia desenhando impassível. Cantarolava para si mesmo enquanto desenhava, segurando a caneta, como lhe era característico, de forma desajeitada e infantil, entre o dedo médio e o anular. A certa altura, irrompeu em sacolejos e risadas — mas isso, acabou se revelando, era por causa de uma cena de Rain Man (―Não se atreva a dirigir!‖, ele disse) que ficava martelando sua cabeça. Margaret sentou-se a seu lado enquanto desenhava, encorajando-o — ―Ótimo! Que menino de talento!‖ —‗ aconselhando-o sobre questões estéticas e detalhes arquitetônicos. Por sugestão dela, por exemplo, Stephen examinou


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.