A experiência do cinema - Ismael Xavier

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recem já no seu texto, levando-o à conclusão de que o cinema instala um regime particular de consciência - a "situação cinema" - fenômeno de fronteira entre a vigília e o sono, afinado ao "sonhar acordado" (estes são temas de Metz), cuja função básica é oferecer um prazer compensatório, um "alívio imaginativo" que leve o espectador para longe dos problemas de todo dia. Neste particular, é interessante pensar a comparação não só com Metz, mas também com Munsterberg, para quem a "participação afetiva" não excluía um uso alerta das capacidades do espectador. Por outro lado, o que tem este "fenômeno de fronteira" a ver com a "embriaguez" surrealista? O próprio lamento de figuras como André Breton e Luís Buííuel deixa claro que a "situação cinema", tal como se tem configurado, é uma "traição" às promessas do veículo, marcada que está por uma incursão "administrada" no imaginário, instância de devaneio controlado e calculado dentro do que é próprio à indústria cultural. Longe de liberatório, e é o próprio Mauerhofer quem já observa isto, o devaneio cinematográfico tende a funcionar como um mecanismo de adaptação ao quadro de realidade vigente. Nas formulações mais recentes, o refinamento na caracterização deste regime especial de consciência que define a "situação cinema" está articulado a diferentes posturas valorativas. Num extremo, posso citar o exemplo de Félix Guattari que, no artigo "O divã do pobre" (Communications n.o 23), desfere um ataque contundente ao espetáculo cinematográfico, no que acoplpanha a postura radical de Baudry (1970) e outros lacanianos, com a fundamental diferença de que sua crítica se estende à própria psicanálise. Se em seu artigo ele define uma posição de recusa do cinema dominante, a expressão "divã do pobre" já traz a marca do seu pensamento crítico, onde cinema e psicanálise são duas faces da mesma moeda conservadora, alienante, que canaliza o desejo na direção do acomodamento necessário à ordem social capitalista. Os dois divãs, o do pobre e o do rico, trazem a mesma carga negativa, uma vez que estão comprometidos com as formas de representação dominantes, instalando-se dentro da linguagem que é preciso combater, compactuando com a "edipização" que marca a entrada do sujeito na ordem das trocas simbólicas e materiais da sociedade tal como está estruturada. Menos empenhadas na explicitação de uma recusa e de um ataque, temos as reflexões onde o tom da análise não esconde as confissões de amor pelo cinema

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(mesmo o que está aí). Os densos ensaios de Metz, ou mesmo o pequeno artigo aqui incluído, são exemplos do que caracterizei como "vontade de explicar um fascínio pessoal pelo cinema clássico". Frente a este fascínio, há também a "via perversa" que nos confessa Roland Barthes em seu comentário sobre os seus sentimentos de espectador. Falando na primeira pessoa, como bem o soube fazer, Barthes, em "Ao sair do cinema" (Communications n.o 23), evita colocar o cinema num tribunal. Reivindica, expõe, uma modalidade de experiência que lhe é própria, uma estratégia de deslocamento que lhe oferece uma curtição oblíqua da imagem, durante e depois da projeção. Reitera, deste modo, um gosto pela experiência nas fronteiras do cinema, manifesto em sua preferência pelas fotos de cena do lado de fora, ao lado da bilheteria - gosto confessado em "O terceiro sentido" (Cahiers du Cinéma, 1970) - e relacionado talvez com o. seu interesse sempre maior em escrever sobre fotografia. De qualquer modo, reconhecidas estas nuanças e soluções de compromisso engenhosas, a tendência geral hoje é a de se colocar a "situação cinema" na berlinda e, inegavelmente, coadjuvada pela militância dos redatores dos Cahiers du Cinéma no período 1969/1975 - Comolli, Bonitzer, Narboni, Oudart, é a reflexão de Jean-Louis Baudry que constitui o elemento central do processo.

"OS EFEITOS IDEOLÓGICOS DO APARELHO DE BASE" Jean-Louis Baudry (1970) A "participação afetiva", o jogo das identificações, a constituição do espectador como "sujeito" a partir da instância do olhar são motivos centrais na análise de Baudry. E o modo como ele a conduziu teve um poder redefinidor na discussão das relações entre imagem e ideologia. Na sua formulação, antes de considerar alguns estratagemas particulares ao discurso cinematográfico dominante, ele pensa a questão da ideologia a partir de um exame mais detido do "aparelho de base" que engendra o cinema: o sistema integrado câmera/imagem/montagem/projetor/sala escura. Seu artigo parte de uma consideração ampla sobre a falsa neutralidade dos aparelhos

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