Rébus 8

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RÉBUS 8


nada ao redor no centro da noite ouço o sussurro dos átomos que só os gatos alcançam num galho lá fora aqui a gente conversa em silêncio sobre a origem ou destino uma coxa na outra alguns vão dizer que isso não é deus só mais um fruto que cai rosado do alto

esburaco essa paragem escuridão repentina com um furor imparável as palavras ricocheteiam arranco lasca após lasca da pedra avessa ao polimento cada dobra lança um foguete uma farpa bicho arisco ouriço escapa da sombra e roça o silêncio esférico que me protege que me expõe

posso de manhã antes mesmo do café essa palavra me vem assim repentinamente como um pássaro as variações atmosféricas

não estou equilibrada sobre uma esfera gigante entre a lua e o sol não vivo dentro de um corpo com um nome celebrado como se fosse próprio não caminho sobre um naco de terra com mais área submersa do que visível

os crocodilos

não sou um aglomerado de partículas que se movem como um jato d’água

me mostram onde enfiar a mão

uma nuvem de insetos

para conseguir tirar dali uma palavra

um gato que de repente se eriça e salta

nem sempre audível

aquela onda gigante que quase matou a surfista

nem sempre inteira

não estou deitada sobre a cama quando pego sua mão na minha e flutuamos

uma palavra que [talvez] desloque a janela com sorte a paisagem me fará respirar melhor

lá fora ainda é azul quase branco talvez o início talvez o fim de alguma coisa


clico na aba que diz poesia num site de literatura de algum país distante Stankus Solotruk Vidaic Andova Pepelnik nomes irreconhecíveis pitangas maduras um punhado de jabuticabas as únicas frutas não vendidas onde a palavra é moeda corrente ao lado de fotografias 3 X 4 para que a gente possa ver melhor os poetas com seus casacos de couro e pelúcia ternos turbantes rugas na testa atravessando um descampado caminhando em torno de um lago sem olhar para a câmera parecem todos tão calmos e calculados mas cuidado, leitor aqui há desfiladeiros pedras farpadas como as de Minas venha sem armadura traga sorvete de tangerina

sai suco quando espremo o fruto com ou sem cica sai líquido amarelo laranja até vermelho sai da gente viscoso às vezes muito morto e muito vivo

Questões sobre os noticiários se os noticiários comunicarem que a partir de agora todos irão dormir quando tiverem sono chorar quando estiverem tristes

poemas Luiza Leite

comer quando tiverem fome

imagens Tatiana Podlubny

como iremos viver?

série Paralelogramos carimbos de linóleo e desenho sobre papel


A Casa do Medo Leonora Carrington tr. Thais Medeiros

Coisa estranha porque lá fora fazia um sol esplêndido. Descendo as escadas em direção ao outro extremo da estância, observei surpresa como ele conseguia mover-se muito melhor que eu. Os religiosos haviam desaparecido, então saí sem que ninguém me visse. - Às nove, disse o cavalo, passo para te buscar às nove. Avise ao porteiro. Enquanto voltava pensava que devia ter convidado o cavalo para jantar.

Um dia, passeando por certo bairro ao meio dia, me encontro com um cavalo que me para. -Vem, ele disse, tenho coisas que gostaria muito de te mostrar. Apontava com a cabeça para uma rua estreita e sombria.

“Não faz mal,” ele me disse. Comprei alface e batatas. Ao chegar em casa, acendi o fogo para preparar uma comida. Tomei uma taça de chá, pensei como tinha sido o dia e principalmente no cavalo que, apesar de conhecer há tão pouco tempo, já considerava meu amigo. Tenho poucos amigos e me alegra pensar que entre eles há um cavalo. Depois de comer, fumei um cigarrinho e pensei que luxo seria sair, ao invés de ficar falando comigo mesma e me entediando mortalmente com as mesmas histórias intermináveis que conto para mim sem parar. Sou uma pessoa muito chata, apesar da minha enorme inteligência e aparência distinta; ninguém sabe disso melhor que eu. Eu sempre disse que se tivesse tido oportunidade, eu poderia ser o centro da sociedade intelectual. Porém, além da necessidade de falar muito sobre mim, tenho tendência a repetir continuamente as mesmas coisas. Afinal, o que se pode esperar? Sou muito reclusa.

- Não tenho tempo, eu respondi, mas mesmo assim o segui. Chegamos à uma porta na qual ele bateu com seu casco esquerdo. A porta se abriu. Entramos, pensei que ia chegar tarde para comer.

Em meio a essas reflexões, me chamou na porta o meu amigo cavalo, com tanta força, que tive medo que os vizinhos reclamassem.

Havia vários seres com vestimentas religiosas. “Sobe – me disseram – você vai ver o nosso charmoso piso. É todo turquesa e os ladrilhos são unidos com ouro.”

Na escuridão não vi que direção tomamos. Eu corria junto dele agarrando sua crina para me sustentar. Logo notei que à nossa frente e aos lados juntavam cada vez mais cavalos, olhavam fixamente entre si e levavam um punhado de verde na boca. Iam apressados; o ruído dos seus cascos fazia a terra tremer. O frio ficou intenso.

Surpreendida com essa recepção, consenti com a cabeça e fiz um sinal para que o cavalo me mostrasse esse tesouro. As escadas tinham uns degraus muito altos, mas subimos sem dificuldades. - Olha, na realidade não é tão bonito – ele me disse em voz baixa, mas temos que ganhar a vida, não é verdade? De repente o piso turquesa surgiu à nossa frente, ele cobria todo o espaço de uma grande sala vazia. Os ladrilhos estavam perfeitamente unidos com ouro e o azul era deslumbrante. Contemplei educadamente. O cavalo comentou pensativo: - Na verdade, estou entediado com esse trabalho. Só faço por dinheiro... Esse ambiente não tem nada a ver comigo. Eu vou te levar na próxima festa.

Após refletir um pouco, pensei comigo mesma que dava pra ver que esse não era um cavalo comum. Chegada a essa conclusão, me pareceu que eu devia conhecê-lo melhor. - Irei com prazer a sua festa. Começo a achar que vou gostar. - Você é melhor do que os que costumam vir aqui normalmente - respondeu - Sei muito bem distinguir as pessoas ordinárias das que sabem compreender as coisas. Tenho o dom de penetrar imediatamente na alma dos seres humanos. Sorri inquieta. - E quando será a festa? - Essa noite. Use roupa de frio.

- Já vou! – gritei

- Esta festa é comemorada todos os anos – contou o cavalo. - Não parece que se divirtam muito – disse. - Vamos visitar o Castelo da Senhora do Medo. Ela é a dona da casa. O castelo se alçava diante de nós, o cavalo me explicou que era feito de pedras que continham o frio do inverno. - Dentro faz mais frio ainda – disse; e quando entramos no pátio, comprovei que dizia a verdade. Todos os cavalos tremiam e seus dentes batiam como castanholas. Tive a sensação de que haviam convidado todos os cavalos do mundo para essa festa. Cada um tinha os olhos mais arregalados e fixos à frente que o outro, todos com uma espuma congelada ao redor da boca. Eu não me atrevia a falar: estava aterrorizada. Marchando em fila, uns atrás do outros, chegamos a uma grande sala decorada com cogumelos e outros frutos noturnos. Todos os cavalos se sentaram sobre suas patas traseiras com as pernas dianteiras tesas. Olhavam ao redor sem mover a cabeça mostrando o branco dos olhos. Eu estava muito assustada. Na nossa frente, encostada à maneira romana em um imenso triclínio, estava a dona da casa: a Senhora do Medo. Parecia ligeiramente um cavalo, mas era muito mais feia. Sua bata estava cheia de morcegos vivos costurados pelas asas e, pela maneira

que se debatiam, podíamos dizer que não estavam gostando. - Queridos amigos – disse, com lágrimas nos olhos; – durante 365 dias eu fiquei pensando qual seria a melhor maneira de nos agasalharmos nessa noite. O jantar será como o de costume e cada um terá direito a três porções. Independente disso, eu elaborei um novo jogo que considero particularmente original porque dediquei muito tempo o aperfeiçoando. Espero de coração que todos sintam, ao jogar esse jogo, a mesma alegria que eu senti ao inventá-lo. Um silêncio profundo se fez após suas palavras. Logo continuou: - Agora vou explicar todos os detalhes. Eu mesma vou vigiar o jogo, serei o árbitro e decidirei quem será o ganhador. “Vocês deverão contar de trás pra frente de 110 a 5 o mais depressa possível enquanto pensam em seus próprios destinos e choram pelos que se foram antes de vocês. Ao mesmo tempo, terão que marcar com a pata esquerda dianteira o compasso da canção Canto dos barqueiros do Rio Volga, com a pata direita dianteira A Marselhesa, e com as duas patas de trás, A Última Rosa do Verão. Eu tinha planejado alguns detalhes mais, porém resolvi retirá-los para simplificar o jogo. Agora vamos começar. Não se esqueçam que, ainda que eu não possa vigiar toda a sala ao mesmo tempo, o Senhor tudo vê.” Não sei se era o frio terrível que provocava aquele entusiasmo, o fato é que os cavalos começaram a dar patadas no chão com seus cascos como se quisessem descer nas profundezas da terra. Permaneci imóvel esperando não ser vista, mas tinha a incômoda sensação de que ela me via muito bem com seu grande olho (tinha um olho só, ainda que seis vezes maior que um olho normal). Assim se seguiu isso durante 25 minutos, mas…


Os sonhos são como a tradução para uma língua de coisas intraduzíveis de outra; ou como a transposição para linguagem – forçosamente confusa ou complicada – de sentimentos vagos ou complexos, que a redação normal não pode comportar. Fernando Pessoa

(sans titre) Des ciseaux de lumière grattent l’orbite de mes yeux Nettoient les lignes de mon crâne Modèlent en détail Celui des autres (histoire de rentrer en matière) – Plâte, tendons, muscles – Constructions passagères d’un paysage D’un rêve, une rive Moi-même.

(sem título) Tesouras de luz arranham a órbita dos meus olhos limpam as linhas do meu crânio Modelam detalhes dos outros (história de entrar na matéria) - Plata, tendões, Músculos Construções passageiras de uma paisagem De um sonho, um rio de mim-mesmo. Jorge Hernández Piel Divina, Perros habitados por la voces del desierto. tr. Thais Medeiros


David Medalla: Homage to Mira Schendel, n.1, 1966. Elemental art: rice, tea, pepper, salt, earth - in motion...

MMMMMMM… Manifest (a fragment)

David Medalla London, 1965

Mmmmmmm…Mmmedalla! What do you dream of? I dream of the day when I shall create sculptures that breath, perspire, cough, laugh, yawn, smirk, wink, pant, dance, walk, crawl, …and move among people as shadows move among people… Sculptures that will retain a shadow’s secret dimensions without a shadow’s obsequious behaviour. …Sculptures without hope, with waking and sleeping hours…Sculptures that on certain sessions, will migrate en masse to the North Pole. Sculptures with a mirror’s translucency minus the memory of a mirror! Mmmmmmm…Mmmedalla! What do you dream of? I dream of the day when I shall go to the centre of the earth and in the earth’s core place a flowersculpture… Not a lotus, nor a rose, nor a flower of metal, … nor yet a flower of ice and fire. …But a mohole-flower, its petals curied like the crest of a tidal wave approaching the shore…. Mmmmmmm…Mmmedalla! What do you dream of? I dream of a day when, from the capitals of the world, London Paris New York Madrid Rome, I shall release missile-sculptures…to fly – at nine times the speed of sound…to fall – slim as a stork on a square in Peking…bent, crushed – like a soldier’s boot after an explosion – on an airport in Ecuador…in splinters – on the fields of Omaha… A few – to cross interstellar space…accumulating, as they wing along, asteroids, meteorites, magnetic fields, interstellar germs…of a new life…on their way from our galaxy to the Spiral Nebula…Mmmmmmmmmmmmmmmmmmm…

poemas Gab Marcondes


Mi pintura no es para dar seguridad. Signada por cambios y contrastes sucesivos esta en busca de una forma que corresponda al siglo y a cuanto somos como consecuencia de sus transformaciones. Creo en el color como elemento esencial capaz de revelarme esa estructura, este espacio, este tiempo que nos caracterizan. Hemos visto al hombre andar lentamente en el vacio a millares de kilometros por hora. Âż Como aprehender esa dimension? Cada etapa cumplida me lleva a nuevas interrogantes. A veces he captado una brizna de lo inasible. Es mi apoyo. Y la busqueda prosigue interminable.

Alejandro Otero

arte e conceito de erro Claudia Hersz


....as palavras quando vivas nos atingem como um corpo, podemos sentir o calor, o movimento, a inefável presença nos transformando num nível celular. palavras escritas a partir da poesia de Marcelo Ariel no Seminário Novos Povoamentos, PUC-SP set 2016.

Lu Briotto

Alê Souto

Está passando na sua rua o carro da farmácia lápis, guache, papel laminado sobre papel de recicle 35x45 cm coleção do artista

The word accelerated loses its identity and becomes a pattern pregnant with energy. It is pregnant with the energy of its potential meaning should it once again become a word. Liliane Lijn, See Sound as moving lines of light (Poem Machine series)

blue man of every where by Nazli Nour

* are you happy/ blue man/ climbing/ green hills/ over tomorrow’s * dawn/ singing/ clouds floating/ mauve mist avenues/ of air/ * water rainbows/ paving/ no end miles/ across light/ brings stars/ * blossoming fire/ through your eyes/ blue man/ birds will fly/ * through your head/ fountains rising/ falling on spectrum flower * fields/ whirling as pools/ in space/ through/ is transparent/ * white microcosmicbios/ flying small phone/ sending electro * magnetic radiations/ equalling velocity with light/ sing blue * man D1-2/ across us in planet/ waiting forces/ blue man/ * come rain energy -



Em Defesa da Imagem Pobre De Hito Steyerl A imagem pobre é uma cópia em movimento. Sua qualidade é ruim, sua resolução está abaixo do padrão. Conforme ela se acelera, ela se deteriora. Ela é o fantasma de uma imagem, uma visualização, uma miniatura, uma ideia errante, uma imagem itinerante distribuída gratuitamente, espremida através de conexões digitais lentas, comprimida, reproduzida, pirateada, remixada, bem como copiada e colada em outros canais de distribuição. A imagem pobre é um trapo ou um rip, um AVI ou JPEG, um lumpemproletário na sociedade de classes de aparências, classificado e avaliado de acordo com a sua resolução. A imagem pobre já foi carregada, descarregada, compartilhada, reformatada e reeditada. Ela transforma qualidade em acessibilidade, valor expositivo em valor cult, filmes em clipes, contemplação em distração. A imagem é liberada da cúpula1 do cinema e dos arquivos para ser lançada na incerteza digital em detrimento de sua própria substância. A imagem pobre tende à abstração: ela é uma ideia visual no seu próprio devir.

ressuscitadas como imagens pobres. Quer elas queiram, quer não.

2. Ressurreição (como Imagens Pobres)

Obviamente, esta condição não está somente ligada à reestruturação neoliberal da produção de mídia e tecnologia digital; ela também tem a ver com a reestruturação pós-socialista e pós-colonial dos estados-nação, suas culturas e seus arquivos. Enquanto alguns estados-nação são desmontados ou desmoronam, novas culturas e tradições são inventadas e novas histórias são criadas. Isto obviamente também afeta os arquivos de cinema – em muitos casos, uma herança inteira de cópias de filmes deixa de ter o suporte de sua cultura nacional. Como eu observei no caso de um museu de cinema em Sarajevo, o arquivo nacional pode ressucitar sob a forma de uma locadora de vídeo7. Cópias piratas escoam desses arquivos através da privatização desorganizada. Por outro lado, mesmo a Biblioteca Britânica vende seu conteúdo online a preços astronômicos.

3. Privatização e Pirataria O reaparecimento de obras raras de cinema militante, experimental e clássico como imagens pobres, assim como de videoarte, é significativo em outro plano. A situação dessas obras revela muito mais do que o conteúdo ou a aparência das próprias imagens: ela revela também as condições de sua marginalização, a constelação de forças sociais que as levaram a circular online como imagens pobres5. Imagens pobres são pobres porque não lhes é atribuído qualquer valor dentro da sociedade de classes das imagens - sua condição ilícita ou degradada garante sua imunidade a esses critérios. Sua falta de resolução comprova a sua apropriação e deslocamento6.

ESPEL ESPEL

A imagem pobre é uma descendente ilícita e bastarda de quinta geração de uma imagem original. Sua genealogia é duvidosa. Seus nomes de arquivo contêm erros de escrita aleatórios. É comum que ela desafie noções de patrimônio, cultura nacional, ou mesmo autoria. Ela é transmitida como uma isca, um chamariz, um índice, ou como uma lembrança de sua existência visual anterior. Ela zomba das promessas da tecnologia digital. Muitas vezes está tão degradada a ponto de ser considerada apenas um borrão, que é de se duvidar que possa mesmo ser chamada de imagem. Na verdade somente a tecnologia digital poderia produzir uma imagem tão dilapidada como essa. Imagens pobres são os atuais Condenados da Tela, os escombros da produção audiovisual, o lixo que ressurge às margens das economias digitais. Elas evidenciam deslocamentos violentos, transferências e a descontextualização das imagens sua aceleração e circulação dentro dos ciclos viciosos do capitalismo audiovisual. As imagens pobres são arrastadas pelo planeta como mercadorias ou suas efígies, como presentes ou como recompensa. Elas espalham prazer ou ameaças de morte, teorias da conspiração ou contrabando, resistências ou embrutecimentos. Imagens pobres mostram o raro, o óbvio e o inacreditável, se é que ainda nos é possível decifrar isso. 1. Baixas Resoluções

A insistência no filme analógico como o único meio de valor visual ecoou nos discursos sobre cinema, quase independentemente da sua inflexão ideológica. Pouca importância foi dada ao fato de essas economias de produção de alta qualidade cinematográfica terem sido (e ainda serem) firmemente atreladas a sistemas de cultura nacional, a produções capitalistas de estúdio, ao culto a gênios masculinos em sua maioria, e à versão original, sendo portanto conservadoras em sua estrutura. A resolução foi fetichizada como se a sua falta fosse equivalente à castração do autor. O culto da bitola cinematográfica dominou até mesmo a produção de filmes independentes. A imagem rica estabeleceu o seu próprio sistema hierárquico, enquanto as novas tecnologias oferecem cada vez mais possibilidades de degradá-la de forma criativa.

Em um dos filmes de Woody Allen o personagem principal está fora de foco2. Não é um problema técnico, mas algum tipo de doença que se abateu sobre ele: sua imagem é consistentemente turva. Sendo o personagem de Allen um ator, isso se torna um grande problema: ele é incapaz de encontrar trabalho. Sua falta de definição se transforma em um problema material. O foco é identificado como uma posição social, uma posição de conforto e privilégio, enquanto estar fora de foco diminui o seu valor como imagem.

No entanto, a hierarquia contemporânea de imagens não tem como base apenas a nitidez, mas também, e principalmente, a resolução. Basta olhar para qualquer loja de eletrônicos e ver que este sistema, descrito por Harun Farocki em uma notável entrevista de 2007, torna-se imediatamente aparente3. Na sociedade de classe das imagens, o cinema assume o papel de uma loja-conceito. Nessas lojas os produtos de alta qualidade são comercializados em ambientes sofisticados. Os derivados mais acessíveis dessas mesmas imagens circulam como DVDs, transmissões de TV ou online, como imagens pobres.

Mas a insistência nas imagens ricas também teve consequências mais graves. Recentemente, um palestrante em uma conferência sobre o cinemaensaio se recusou a mostrar trechos de uma obra de Humphrey Jennings porque não havia condições adequadas de projeção. Embora houvesse na ocasião um reprodutor de DVD e um projetor de video à sua disposição, ao público restou apenas imaginar como seriam essas imagens.

Neste caso, a invisibilidade da imagem foi mais ou menos voluntária e baseada em premissas estéticas. Mas ela possui um equivalente mais genérico baseado nas consequências de políticas neoliberais. Há vinte ou trinta anos atrás, a reestruturação neoliberal da produção de mídias audiovisuais começou pouco a pouco a ofuscar as imagens não-comerciais, a ponto de o cinema experimental e o cinema-ensaio tornarem-se quase invisíveis. Ao mesmo tempo em que tornou-se extremamente caro manter a circulação destas obras em cinemas, elas foram consideradas marginais demais para serem transmitidas na televisão. Assim, elas lentamente desapareceram não só dos cinemas, mas da esfera pública também. Filmes ensaísticos e experimentais deixaram de ser vistos em sua maioria, com exceção de algumas raras exibições em salas de cinema de museus ou cineclubes, em que eram projetados na resolução original antes de desaparecerem mais uma vez na escuridão do arquivo.

Este desenvolvimento foi naturalmente conectado à radicalização neoliberal do conceito de cultura como mercadoria, à comercialização do cinema, à sua dispersão em salas multiplex, e à marginalização do cinema independente. Ele foi também ligado à reestruturação das indústrias de mídia global e ao estabelecimento de monopólios sobre o audiovisual em determinados países ou territórios. Desta forma, o material visual de resistência ou não-conformista desapareceu da face da terra em um subterrâneo de arquivos alternativos e coleções, sendo mantido vivo apenas por uma rede de organizações e indivíduos comprometidos, que trocavam cópias VHS piratas entre si. Esse material era extremamente raro – fitas passavam de mão em mão, dependendo do boca-a-boca em círculos de amigos e colegas. A partir do momento em que se tornou possível transmitir vídeos online, essa situação começou a mudar radicalmente. Um número crescente de materiais raros reapareceu em plataformas de acesso público, alguns com curadorias especiais (Ubuweb) e outros apenas como uma pilha de coisas (YouTube).

Existem, no momento, pelo menos vinte arquivos de torrents de filmes de Chris Marker disponíveis online. Se você quiser fazer uma retrospectiva, você pode. Mas a economia de imagens pobres é mais do que apenas downloads: você pode guardar os arquivos, vê-los novamente, e até mesmo reeditá-los ou melhorá-los se achar necessário. E os resultados circulam. Arquivos degradados em formato AVI de obras-primas semi-esquecidas são trocados em redes P2P semi-secretas. Vídeos clandestinos de telefones celulares são pirateados para fora dos museus e difundidos no YouTube. DVDs de cópias de exibição de artistas são permutados4. Muitas obras ensaísticas, de avant-garde e de cinema não-comercial foram

Como Kodwo Eshun observou, as imagens pobres circulam, em parte, no vazio deixado por órgãos do cinema estatal que acha que é muito difícil operar com arquivos de 16/35mm ou manter qualquer tipo de infraestrutura de distribuição na era contemporânea. Dentro dessa perspectiva, a imagem pobre revela o declínio e degradação do filme-ensaio, ou ainda de qualquer cinema experimental e não comercial, que em muitos lugares se tornou possível porque a produção da cultura foi considerada uma tarefa do Estado. A privatização da produção de mídia se tornou gradativamente mais importante do que a produção de mídia controlada/patrocinada pelo Estado. Mas, por outro lado a privatização desenfreada de conteúdo intelectual, juntamente com o marketing online e a comoditização, também possibilitam a pirataria e apropriação; dando lugar à circulação de imagens pobres. 4. Cinema Imperfeito

O surgimento de imagens pobres faz lembrar um manifesto clássico do Terceiro Cinema, Por um Cinema Imperfeito, de Juan García Espinosa, escrito em Cuba no final dos anos 608. Espinosa argumenta a favor de um cinema imperfeito porque, em suas palavras, “o cinema perfeito – tecnicamente e artisticamente magistral – é quase sempre um cinema reacionário.” O cinema imperfeito é aquele que se esforça para superar as divisões do trabalho dentro da sociedade de classes. Ele funde arte com a vida e a ciência, dissolvendo a distinção entre consumidor e produtor, público e autor. Ele insiste em sua própria imperfeição, é popular mas não consumista, é engajado sem se tornar burocrático. Em seu manifesto, Espinosa também reflete sobre as promessas das novas mídias. Ele prevê nitidamente que o desenvolvimento da tecnologia de vídeo irá comprometer a posição elitista de cineastas tradicionais e permitir uma espécie de produção de filmes de massa: uma arte do povo. Como a economia de imagens pobres, o cinema imperfeito diminui as distinções entre autor/a e público e cria uma fusão entre a vida e a arte. Acima de tudo, a sua visualidade é decididamente comprometida: turva, amadora e cheia de artefatos.

WALLACE MASUKO RÉBUS 8 RIO ESPEJO ESPEJO AD

Obviamente, uma imagem de alta resolução tem aspecto mais brilhante e impressionante, mais mimético e mágico, mais assustador e sedutor do que uma imagem pobre. Ela é mais rica, por assim dizer. Agora até mesmo os formatos caseiros estão cada vez mais adaptados aos gostos dos cineastas e estetas, que insistem na película de 35mm como uma garantia da visualidade pura.

De certa forma, a economia de imagens pobres corresponde à descrição do cinema imperfeito, enquanto a descrição do cinema perfeito representa


LHO LHO

O DE JANEIRO NOVEMBRO 2016 DOLFO BERNAL



SEÑAL: REFLEJOS Adolfo Bernal, 1994, interferências na paisagem com espelhos entre os cerros El Volador e Nutibara em Medellín. Ação na qual sinais luminosos do reflexo do sol em espelhos eram projetados de um cerro a outro por 30 pessoas divididas em dois grupos que assim se comunicaram durante a manhã e a tarde do dia do solstício de verão daquele ano.


ESPEL ESPEL

WALLACE MASUKO RÉBUS 8 RIO ESPEJO ESPEJO AD


a ideia de cinema como uma loja-conceito. Mas o cinema imperfeito real e contemporâneo é ainda muito mais ambivalente e afetivo do que Espinosa tinha previsto. Por um lado, a economia de imagens pobres, com a sua possibilidade imediata de distribuição mundial e sua ética de remixagem e apropriação, permite, como nunca antes, a participação de um grupo muito maior de produtores. Mas isso não significa que essas oportunidades sejam utilizadas apenas para fins progressistas. O discurso de ódio, o spam e outras formas de lixo também se transmitem através de conexões digitais. Além disso, o mercado de comunicação digital se tornou um dos mais disputados – uma área que há tempos está sujeita a constante acumulação primitiva e a tentativas de privatização (em certa medida, bem sucedidas) em massa.

5. Companheiro, qual é a sua ligação visual hoje? Ao mesmo tempo, uma reversão paradoxal acontece. A circulação de imagens pobres cria um circuito que satisfaz às ambições originais de uma militância e (em parte) do cinema ensaístico e experimental – de criar uma economia alternativa de imagens, um cinema imperfeito que exista tanto dentro como fora e sob fluxos de mídias comerciais. Na era do compartilhamento de arquivos, mesmo os conteúdos marginalizados circulam novamente reconectando públicos dispersos em todo o mundo. A imagem pobre constrói, assim, redes globais anônimas ao mesmo tempo em que cria uma história compartilhada. Ela constrói alianças à medida em que é transferida, provoca traduções ou mal-entendidos, e cria novos públicos e debates. Ao perder sua substância visual, ela recupera um pouco da sua potência política e cria uma nova aura em torno de si. Esta aura não é mais baseada na permanência do “original”, mas na transitoriedade da cópia. Já não está ancorada numa esfera pública clássica, mediada e suportada pela estrutura nacional ou corporativa, e sim flutua na superfície de bases de dados temporárias e duvidosas14. Ao se afastar das cúpula do cinema, a imagem pobre é lançada em novas e efêmeras telas que são costuradas a partir dos desejos de espectadores dispersos.

perdendo até mesmo seus títulos e créditos ao longo do caminho. Agora muitas dessas obras estão de volta – como imagens pobres, eu reconheço. É possível argumentar que elas não são a coisa em si, mas nesse caso – alguém, por favor – me mostre o que é essa tal coisa em si. A imagem pobre não é mais sobre a coisa em si – o original originário – e sim sobre suas próprias condições reais de existência: circulação em massa, dispersão digital, temporalidades fragmentadas e flexíveis. Ela é sobre rebeldia e apropriação assim como sobre conformismo e exploração. Em suma: ela é sobre a realidade.

LHO LHO As redes nas quais as imagens pobres circulam constituem, assim, tanto uma plataforma para um novo e frágil interesse comum, como um campo de batalha para agendas comerciais e nacionais. Elas contêm material experimental e artístico, mas também uma incrível quantidade de pornografia e paranoia. Ao mesmo tempo em que o território das imagens pobres permite o acesso a imagens marginalizadas, ele também é permeado pelas técnicas de comoditização mais avançadas. Ao mesmo tempo em que ele permite a participação ativa de usuários na criação e distribuição de conteúdo, ele também os incorpora à produção. Os usuários se tornam editores, críticos, tradutores, e (co-) autores das imagens pobres.

Imagens pobres são, portanto, imagens populares – imagens que podem ser feitas e vistas por muitos. Elas expressam todas as contradições da multidão contemporânea: o seu oportunismo, narcisismo, desejo de autonomia e criação, sua incapacidade de se concentrar ou de se decidir, a sua prontidão permanente à transgressão e, simultaneamente, à submissão9. Em geral, as imagens pobres apresentam uma foto instantânea da condição afetiva da multidão, sua neurose, paranoia e medo, bem como o seu desejo de intensidade, diversão e distração. A condição das imagens reflete não só a existência de inúmeras transferências e reformatações, mas também das inúmeras pessoas que se importaram suficientemente com elas a ponto de convertê-las diversas vezes, criar legendas, reeditá-las, ou disponibilizá-las online.

Nesse contexto, talvez o valor da imagem tenha que ser redefinido, ou mais precisamente, uma nova perspectiva deve ser criada. Além da resolução e do valor de troca, é possível imaginar outra forma de valor definida pela velocidade, intensidade e propagação. Imagens pobres são pobres porque são extremamente comprimidas e viajam rapidamente. Elas perdem matéria e ganham velocidade. Mas elas também expressam uma condição de desmaterialização, compartilhada não só com o legado da arte conceitual, mas acima de tudo com os modos contemporâneos da produção semiótica10. A virada semiótica do Capital, conforme descrita por Félix Guattari11, aposta na criação e disseminação de pacotes de dados compactados e flexíveis que podem ser integrados em combinações e sequências constantemente atualizadas12.

Este achatamento do conteúdo visual – o conceito de devir das imagens, as insere numa grande virada informacional e em economias de conhecimento que arrancam as imagens e suas legendas do seu contexto, lançando-as no turbilhão da desterritorialização capitalista permanente13. A história da arte conceitual descreve essa desmaterialização do objeto de arte a princípio como um movimento de resistência contra o valor de fetiche da visibilidade. No entanto, o objeto de arte desmaterializado acaba sendo perfeitamente adequado à semiótica do capital e, assim, à virada conceitual do capitalismo. De certa forma, a imagem pobre está sujeita a uma tensão semelhante. Por um lado, ela opera contra o valor de fetiche da alta resolução. Por outro, este é precisamente o motivo pelo qual ela acaba sendo perfeitamente integrada a um capitalismo informacional, que se alimenta de limiares de atenção comprimidos, de impressão ao invés de imersão, de intensidade ao invés de contemplação, de pré-visualizações ao invés de projeções de filmes.

A circulação de imagens pobres, cria, assim, “ligações visuais”, como Dziga Vertov uma vez as chamou. Esta “ligação visual” foi, de acordo com Vertov, supostamente criada para conectar os trabalhadores do mundo entre si. Ele imaginou uma espécie de linguagem adâmica comunista e visual que não só pudesse informar ou entreter, mas também organizar seus espectadores. Num certo sentido, o seu sonho se tornou realidade, ainda que sob o domínio de um capitalismo global de informação, cujos públicos estão ligados entre si quase que fisicamente através de sentimentos mútuos de excitação, sintonia afetiva, e ansiedade.

Mas há também a circulação e produção de imagens pobres a partir de câmeras de telefones celulares, computadores domésticos e formas não convencionais de distribuição. Suas conexões ópticas – edições de vídeo coletivas, compartilhamento de arquivos, ou circuitos de distribuição – revelam conexões instáveis e coincidentes entre produtores de todo mundo, que simultaneamente formam audiências dispersas. A circulação de imagens pobres alimenta tanto as linhas de montagem da mídia capitalista como as economias audiovisuais alternativas. Além de muita confusão e assombro, essa circulação também pode criar rupturas de pensamento e afeto. A circulação de imagens pobres inicia, assim, mais um capítulo na genealogia histórica de circuitos de informação não-conformista: as “ligações visuais” de Vertov, as pedagogias do proletariado internacionalista que Peter Weiss descreveu em A Estética da Resistência, os circuitos do Terceiro Cinema e Tri-continentalismo, e o cinema e pensamento não-alinhados. A imagem pobre – por mais ambivalente que seja o seu status – toma, assim, o seu lugar na genealogia de panfletos fotocopiados, filmes do Cine-trem e de Agitprop, revistas de filmes underground e outros materiais da contracultura, que com frequência utilizam materiais pobres como estética. Além disso, ela atualiza muitas das ideias históricas associadas a estes circuitos, como, entre outras, a noção de “ligação visual” de Vertov. Imagine que alguém do passado usando uma boina te perguntasse: “Companheiro, qual é a sua ligação visual hoje?” Você poderia responder: é essa conexão com o presente. 6. Agora!

O DE JANEIRO NOVEMBRO 2016 DOLFO BERNAL A imagem pobre é uma reencarnação de muitas ex-obras-primas do cinema e da videoarte. Ela foi expulsa do paraíso protegido que o cinema parece ter sido um dia15. Depois de terem sido expulsas da arena da cultura nacional, protegida e muitas vezes protecionista, e excluídas da circulação comercial, estas obras se tornaram viajantes numa terra de ninguém digital, mudando constantemente a sua resolução e formato, velocidade e mídia, muitas vezes

In Defense of the Poor Image, de Hito Steyerl. Texto publicado no E-flux Journal #10, 2009. tr. por Maya Inbar e Thais Medeiros. Hito Steyerl é cineasta, autora e artista. 1 N.d.T. No original “vaults”. 2 Deconstruindo Harry, de Woody Allen (1997). 3 Conversa entre Harun Farocki e Alexander Horwath, “Wer Gemälde wirklich sehen will, geht ja schließlich auch ins Museum,” Frankfurter Allgemeine Zeitung, 2007. 4 O excelente texto de Sven Lütticken’s: “Viewing Copies: On the Mobility of Moving Images,” em e-flux journal, n. 8 (2009), chamou minha atenção para esse aspecto das imagens pobres. 5 Agradeço a Kodwo Eshun por me mostrar isso. 6 É claro que em alguns casos, as imagens com baixa resolução também aparecem em espaços tradicionais de mídia (principalmente de notícias), onde são associados com urgência, imediatismo, e catástrofe - e são extremamente valiosos. Ver Hito Steyerl, “Documentary Uncertainty,” A Prior 15 (2007). 7 Hito Steyerl, “Politics of the Archive: Translations in Film,” Transversal (2008) 8 Julio García Espinosa, “For an Imperfect Cinema,” 
tr. Julianne Burton, Jump Cut, n. 20 (1979). 9 Ver Paolo Virno, A Grammar of the Multitude: For an Analysis of Contemporary Forms of Life (Cambridge, MA: MIT Press, 2004). 10 Ver Alex Alberro, Conceptual Art and the Politics of Publicity (Cambridge, MA: MIT Press, 2003). 11 Ver Félix Guattari, “Capital as the Integral of Power Formations,” em Soft Subversions (New York: Semiotext(e), 1996). 12 Todos estes desenvolvimentos são discutidos com detalhes no excelente texto de Simon Sheikh, “Objects of Study or Commodification of Knowledge? Remarks on Artistic Research,” Art & Research 2, no. 2 (2009). 13 Ver também Alan Sekula, “Reading an Archive: Photography between Labour and Capital,” em Visual Culture: The Reader, ed. Stuart Hall e Jessica Evans (London/NY: Routledge 1999). 14 Dziga Vertov, “Kinopravda and Radiopravda,” em Kino-Eye: The Writings of Dziga Vertov, ed. Annette Michelson (Berkeley: University of California Press, 1995). 15 Pelo menos a partir da perspectiva da ilusão nostálgica.

Maya Inbar A grande loja (still de video) Video SD, cor, som. 2008 2’50” Um trecho do filme “a Grande Loja” dos Irmãos Marx é exportado e reimportado ao programa de edição de vídeo vinte vezes – o último arquivo possui as cores tão borradas que as imagens se tornam difíceis de discernir, formando padrões abstratos. A cena, originalmente em preto-e-branco, recebe uma coloração esverdeada por conta da distorção de cores. Os vinte trechos são reeditados de acordo com a sequencia original, de forma que a cena se torne progressivamente distorcida.


TXT Tradução A Img Pobre


Experimentar o experimental: onde a pureza é um miSto Michelle Sommer

A matriz das exposições contemporâneas brasileiras é a experimentação. Nos anos 50 a história das exposições é a história do nascimento das instituições culturais nacionais: MASP (1947), MAM-SP (1948), MAM-RJ (1948), Fundação Bienal de São Paulo (1951), MAC-USP (1963). Os museus nascem e já são confrontados com a potência do experimental que emerge nas proposições artísticas e expositivas nos anos 60 e 70. Experimentar o experimental é um aforismo de Hélio Oiticica, em 1974. “Não quero fazer história. Não me interessam talentos estou farto de querer achar o novo no vestido de novo. (...) O potencial experimental gerado no Brasil é o único anticolonial não-culturalista nos escombros híbridos da “arte brasileira”. O experimental não tem fronteiras para si mesmo é a metacrítica da “produção de obras” dos artistas de produção” . O experimental envolve risco, indeterminação, é ação oxigenadora de linguagem contemporânea e, se é experimental, escapa à definição. Se nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós, como afirmou Oswald de Andrade no seu Manifesto Antropofágico (1928), não seria no experimental que iríamos racionalizar, definindo-o aqui. A matriz experimental das exposições contemporâneas brasileiras escapa à catequização do cubo branco: sua consolidação significou também a sua imediata devoração. O cubo branco não foi domesticador das práticas artísticas, mas potência: o nosso dentro é o fora, como proclamou Lygia Clark já no início dos anos 60. O nosso cubo branco é a flexível fita de Moebius, onde as relações entre dentroefora da exposição são de continuidade e fusão, que transborda do corpo e invade o espaço. Em 12 de agosto de 1965, na abertura da exposição Opinião 65 no MAM-RJ, Hélio Oiticica é proibido de desfilar nas dependências do museu com os passistas da Mangueira vestindo os parangolés. Revoltado, ele realiza o desfile dos parangolés no jardim e é aplaudido por artistas, jornalistas, críticos e público presente. Arte ambiental por excelência, organicidade que liga um espaço à outro, em continuidade, obra ambiente que indistingue dentroefora no seu espaço circunstancial de ocorrência: parangolé veste o espaço, qualquer espaço. Para a história das exposições no Brasil, a obra pode ser lida como símbolo unificador da “fusão das duas coisas”. Aqui, a definição dos cânones expositivos contemporâneos passa pela expressão eureca proclamada por Hélio Oiticica, em 1966: “ O museu é o mundo”! A experimentação consciente no contexto expositivo daqui dá-se com Tropicália, na exposição Nova Objetividade Brasileira (1967) realizada no MAM-RJ. É a emergência do supra-sensorial expositivo, insubmisso aos modelos expositivos pré-estabelecidos, “contra todos os importadores de consciência enlatada”, dizia Oswald, na “definitiva derrubada da cultura universalista sobre nós”, dizia Hélio. A pureza é um mito, lê-se em Tropicália. A (nossa) pureza expositiva é um miSto dentroefora. A Unidade Experimental do MAM-RJ é criada em 1969 e está capitaneada por Cildo Meireles, Frederico Morais, Guilherme Vaz e Luiz Alphonsus. É nesse contexto, no início dos anos 70, que o espaço do museu é expandido para toda a orla, ocupando o Aterro do Flamengo, nos últimos domingos de cada mês, com as ações do “Domingos da Criação”. Em São Paulo, a década de 70 foi a era das experimentações na prática curatorial com as ações de Walter Zanini (1925-2013) no MAC-USP. É na JAC - Jovem Arte Contemporânea, em 1971, que ocorreu a primeira apresentação de produções Parangolé (1965) / Projeto Hélio Oiticica


Tropicália (1967) / Projeto Hélio Oiticica

artísticas ligadas à arte conceitual. Na abertura da exposição foram distribuídos catálogos em sacolas de papel que continham folhas soltas, nas quais se encontravam imagens e listas de nomes das obras participantes da mostra, texto de apresentação feito por Zanini e folhetos que tratavam das demais atividades programadas para o período de duração da exposição. Na parte externa da sacola lia-se-se: “consumo de uma situação artística”. Em 1972, ocorre “Acontecimentos”, no MAC-USP. Nessa ocasião, Nelson Leirner propôs Cinética do Cotidiano, que formava uma espécie de caixa suspensa a alguns centímetros do chão. Ali, com a participação ativa do público que invadia o espaço expositivo institucional, o publico deitava-se embaixo da estrutura. O objeto emitia música eletrônica e, em seu interior, efeitos óticos eram criados através dos vários reflexos de luzes coloridas projetados por espelhos e óculos escuros eram oferecidos para potencializar efeitos. “Acontecimentos” foi iniciado com as luzes da sala expositiva apagadas – à pedido de Leirner – e somente foram acesas quando a obra começou a funcionar. Na sequência das ações de Zanini frente ao MAC-USP, estão as exposições Prospectiva 74 (1974) e Poéticas Visuais (1977), que se voltam à produção experimental emergente, como a arte-postal e a videoarte. A matriz da curatorial nacional é experimental e tem como premissas a noção de rede como princípio operativo, o espaço expositivo como lugar de criação e apresentação, o incentivo à atividade dos artistas no interior da instituição e, sobretudo, a interdisciplinaridade nas práticas artísticas. Com Zanini, o espaço museal – espaço expositivo não foi estático, mas operacional e ativo. Nos estudos expositivos brasileiros, é o próprio Oswald de Andrade a apropriação

Arquivo MAM-RJ

de um “manifesto do “des-”: desvespucianizar, descolombizar, descabralizar, descatequizar, dessublimar, desontologizar”. Ao menos aqui podemos ser menos Revolução Francesa e mais Revolução Caraíba para a morte e vida das hipóteses.

tentativa de encontrar no outro, em espelho. Na carta, Lygia revela uma grande angústia pelo fato de não poder encontrar a si mesma através desta fusão com o outro, pela indiferenciação que se estabelece. http://www.cbp.org.br/rev3105.htm 4 Oiticica, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1986, p. 79.

1 O texto de Hélio Oiticica “Experimentar o experimental”, foi publicado na Revista Navilouca, em 1974 http://bit.ly/2eKl4tw

5 Oiticica, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1986, p. 107.

2 A ideia “O dentro é o fora” (1963) está presente, além da obra de mesmo nome, em outras proposições de Lygia Clark do mesmo período: “O antes é o depois” (1963), “Trepantes” (1964) e as “obras moles” (1964).

6 Frederico Morais, ao convidar uma série de artistas para realizar diversas manifestações, questionava academicismos sobre a arte brasileira e lançava uma crítica ao espaço expositivo e seu uso. Entrevista com Frederico Morais concedida à Marília Andrés Ribeiro. Em: Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.336-351, jan./jun. 2013.

3 Esse termo é empregado por Lygia Clark em carta escrita à Hélio Oiticica em 22/10/1970. Até essa fase, Lygia viveu intensamente a dualidade dentro e fora e, nos fragmentos de uma carta, lê-se sobre o apagamento que o sujeito sofre na

7 Viveiros de Castro (2016, p. 5). “Antrofagia. Palimpsesto Selvagem”, de Beatriz Azevedo e prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, Cosac & Naify, São Paulo, 2016.

Arquivo MAM-RJ


Experiment the experimental: where purity is a mix Michelle Sommer tr. Mark Philipp The matrix of contemporary Brazilian exhibitions is experimentation. The story of exhibitions in the 1950s is the story of the birth of Brazil’s national cultural institutions: MASP (1947), MAM-SP (1948), MAM-RJ (1948), Bienal de São Paulo Foundation (1951), MAC-USP (1963). The museums were founded and were immediately confronted with the power of the experimental which emerged in the artistic and expository propositions in the 60s and 70s. Experiment the experimental is one of Hélio Oiticica’s aphorisms from 1974. “I don’t want to make history. I’m not interested in talents I am sick of trying to find the new in the new dress again. (...) The experimental potential generated in Brazil is the only anticolonial non-culturalist one in the hybrid rubble of “Brazilian art”. The experimental has no boundaries for itself, it is the metacritique of the “production of works” by artists of production” . The experimental involves risk, indetermination, it is the oxygenation of contemporary language and, if it is experimental, it escapes definition. If we never admit the birth of logic among us, as Oswald de Andrade stated in his Manifesto Antropofágico [Cannibalist Manifesto, 1928], it would not be in the experimental that we would rationalize, defining it here. The experimental matrix of Brazilian contemporary exhibitions escapes the catechization of the white cube: its consolidation also meant its immediate devouring. The white cube was not the domesticator of artistic practices, but a driving force: our inside is the outside, as Lygia Clark stated at the beginning of the 60s . Our white cube is the flexible Möbius strip, where relationships inside and outside the exhibition are continuous and one of fusion, which overflows from the body and invades space. On 12 August 1965, at the opening of the Opinião 65 exhibition at the MAM-RJ, Hélio Oiticica was prohibited from parading on the museum’s premises with Mangueira dancers wearing his parangolés. Disgusted, he moved the parade of parangolés to the garden and was applauded by artists, journalists, critics and the audience present. Environmental art par excellence, an organicity that connects one space to another, in continuity, an environmental work that does not distinguish between the insideandoutside in its circumstantial space of occurrence: the parangolé dresses the space, any space. The work can be seen as a unifying symbol in the history of exhibitions in Brazil, “the fusion of two things”. Here, the definition of the canons of contemporary exhibitions pass through the Eureca moment proclaimed by Hélio Oiticica in 1966: “The museum is the world”! Tropicália undertook conscious experimentation in the context of the Nova Objetividade Brasileira [New Brazilian Objectivity] exhibition held at MAM-RJ in 1967. It was the emergence of a supra-sensorial expositive method, not submissive to the preestablished expository models, “against all of the importers of canned consciousness”, Oswald said, in the “definitive toppling of the universalist culture over us” , said Hélio. In Tropicália we read that purity is a myth. That (our) expository purity is mixed insideandoutside. The Unidade Experimental [Experimental Unit] of MAM-RJ was created in 1969 and led by Cildo Meireles, Frederico Morais, Guilherme Vaz and Luiz Alphonsus. It is in this context, at the beginning of the 70s, that the space of the Museum was increased, occupying the Aterro do Flamengo park on the last Sunday of each month, with the actions of the “Domingos da Criação” [Sundays of Creation]

The 70s were an era of experimentation in curatorial practice in São Paulo with the actions of Walter Zanini (1925-2013) at MAC-USP. And at the 5th JAC - Jovem Arte Contemporânea [Young Contemporary Art], in 1971, where the first presentations of artistic production linked to conceptual art were shown. At the opening of the exhibition, catalogues were distributed in paper bags containing loose pages, on which there were images and lists of the names of the works participating in the show, a text by Zanini and booklets that dealt with other activities planned during the exhibition. On the outside of the bag the following was written: “consumption of an artistic situation”. In 1972 “Acontecimentos” [Happenings] took place at MAC-USP. On this occasion, Nelson Leirner proposed the Cinética do Cotidiano [Daily Kinetics], which created a kind of box suspended a few centimetres from the ground. There, with the active participation of the public who invaded the institutional exhibition space, the public would lie below the structure. The object emitted electronic music, and optical effects were created in its interior through the various reflections of colored lights projected by mirrors and sunglasses were offered to participants to enhance its effects. At the request of Leirner “Acontecimentos” was started up with the lights in the exhibition space turned off, the lights were only turned on when the work started to function. After the actions of Zanini in front of the MAC-USP, came the exhibitions Prospectiva 74 (1974) and Poéticas Visuais (1977), which turned to emerging experimental production such as postcard art and video art. The national curatorial matrix is experimental and has the notion of the network as its prime operating principle, with its main premises being: the exhibition space as a place of creation and presentation, the incentivisation of the activity of artists within the institution and, above all, the interdisciplinarity in artistic practices. With Zanini, the museum - exhibition space was not static, but active and operational. In the study of Brazilian exhibitions, it is Oswald de Andrade who is the appropriation of a “manifesto of “de-”: devespucianize, decolombize, decabralize, decatholicize, desublimize, deontologize”. At least here we can be less French Revolution and more Caraíba Revolution, for the life and death of hypotheses.

1 Hélio Oiticica’s text “Experiment the experimental”, was published in Navilouca Magazine, in 1974. http://bit.ly/2eKl4tw 2 The idea of “The inside is the outside” (1963), aside from in the work of the same name, is also present in other Lygia Clark works in the same period: “O antes é o depois” (1963), “Trepantes” (1964) and the “obras moles” (1964). 3 This phrase is used by Lygia Clark in a letter she wrote to Hélio Oiticica on 22/10/1970. Until this phase, Lygia Clark lived intensely in the duality of inside and outside. In fragments of the letter we can read about the deletion that the subject suffers in the attempt to find him or herself in the other, in the mirror. In the letter Lygia reveals a great anguish due to not being able to find herself through this fusion with the other, through the lack of differentiation which establishes itself. http://www.cbp.org.br/rev3105.htm 4 Oiticica, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1986, p. 79. 5 Oiticica, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1986, p. 107. 6 Frederico Morais, when inviting a number of artists to perform various manifestations questioned academicisms on Brazilian art and critiqued exhibition space and its use. Interview with Frederico Morais by Marília Andrés Ribeiro. In: Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.336-351, jan./ jun. 2013. 7 Viveiros de Castro (2016, p. 5). “Antrofagia. Palimpsesto Selvagem”, by Beatriz Azevedo and preface by Eduardo Viveiros de Castro, Cosac & Naify, São Paulo, 2016.

“Vi uma obra de Lygia Clark pela primeira vez no ano passado em Londres. Foi em setembro, quando Paul Keeler - que organizava então o primeiro Festival Signals de Arte Moderna da América Latina, - acabava de chegar de Paris, onde reuniu a maior parte das obras que iriam participar da exposição. Paul me pediu para ajudá-lo a descarregar as cinquenta peças entre esculturas e pinturas da sua van, uma Bedford, no endereço 92 Cornwall Gardens SW7. (...) Além dos Oteros, todos inesquecíveis e de tirar o fôlego, Paul Keeler trouxe também excelentes trabalhos de Camargo, Soto, Cruz-Diez, Da Costa, Alberto Cuzman, Rossini Perez e Takis (este último, é claro, não é sul-americano, mas grego; Takis foi um dos sete artistas convidados, incluindo eu, que participaram dessa exposição). Dentre as esculturas, duas eram construções de metal dobradas por uma artista brasileira que até então eu não conhecia. O nome dela, eu saberia mais tarde, era Lygia Clark. Ao retirar uma de suas esculturas da van, uma das partes escapou acidentalmente das minhas mãos. Para meu espanto, a escultura, ao invés de cair completamente no chão como eu esperava, começou a desdobrar-se no ar. A escultura desdobrou-se tão rapidamente que, como num passe de mágica, ela deixou de ser uma peça bidimensional plana para se transformar em uma construção espacial na forma de um pássaro abstrato. Talvez por reter essa imagem inicial de um pássaro em vôo, sempre que vejo uma obra de Lygia Clark penso não só em asas, como também nos primeiros planadores e aeroplanos construídos pelos pioneiros da aviação. Lygia Clark, claro, é uma artista cinética, no sentido de que as suas esculturas se movem; ou melhor, o espectador movimenta as peças criando uma série de variações sutis e complexas a partir de construções em borracha, metal ou plástico. Suas esculturas, ao contrário da arte mecanizada, não dependem de uma sequência temporal rígida; elas são construções num espaço em que o tempo está momentaneamente retido. O movimento está potencialmente implícito; e tal como numa pauta musical que encanta a mente, a próxima fase é sugerida e ansiosamente aguardada.”

Lygia Clark: uma apreciação David Medalla Signals, Fev/Mar 1965. tr. Thais Medeiros


Senhas para Takis

‘Let there be a scientific explanation of magnetism, the poetry of art requires that Knowledge’s assurance be suspended while anxiety awakens our sensitivity to dream-like qualities of objects.’ Takis’s Magnetic Nowhere – Nicolas Calas (Manhattan, November 1961)

como pêndulo transverso às coisas do mundo, eu canal em travessia pulsátil magnetizado, em mim animal eólico espírito imantado, cavalo interpenetração dos íons do diálogo com o espaço, aedo imerso no radar de um universo vibrátil sou nós o corso cadenciado pelas partículas intensas da festa da luz, vivo nós a turba pulverizada pelas frequências do som e pela eletrognose da cor, cosmos a um átomo da vibração maior, pulso pluridimensional – a tensa arquitetura do maravilhamento é que no feixe das carnes a arte esculpe o gozo precursor: viver a energia de um esplêndido vazio em fúria Rosane Carneiro

Sol e silêncio. Decomponho o tempo em luz e o não som em paradeiro. Daqui para dentro (rito poético) o avesso do eu segue rumo ao universo.

Magnetic Word-Music for Takis’s Sculptures

Sun and silence. I decompose time in light and the non-sound in whereabouts. Drawing inward (poetic rite) the inverse of I makes its way to the universe.

I am that I am that I happen. I am a resultant – a coincidence of magnetic fields that am I. Am is my Here. That is I there. What am I here for? I am here to go. When the magnetic fields shift there is no Here. I am gone. I do not think. I am thought – not by a thinker who would, too, be thought. I am thought in action. My magnetic fields shift for my thought is an action and I go. I am gone. I am out.

Brion Gysin

Da plaquete Drone poema de Rosane Carneiro tr. de Virna Teixeira (Carnaval Press, 2015)


Ocah Branca ou Cabocla d’Água é um ser “Prova de que até meios insuficientes - infantis mesmo podem servir à salvação: Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos. As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista. E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.” Fragmento de O Silêncio das Sereias, Franz Kafka tr. Modesto Carone

O projeto À deriva começou com o trabalho “A ponte”, realizado na praia do Canto na Bienal de Búzios, em 2013. A instalação era composta de dois barcos de pesca ligados por uma corda, um barco com árvores frutíferas plantadas na terra, e o outro com água potável em um recipiente. “A ponte” era um continente flutuante de sobrevivência. Em 2014, o projeto foi apresentado em Salvador durante a Bienal da Bahia. Na instalação “Oasis”, duas embarcações ficaram dois meses “à deriva”,

contemporâneo reinventado a partir do Caboclo d’água, um ser mítico defensor do Rio São Francisco. A Cabocla é uma sereia mutante metade mulher, metade pássaro ou metade peixe, defensora das águas, dos rios e das baías, que assombram os pescadores e navegantes com seu canto, com a voz que tenta se expressar através do grito ou, melhor ainda, agora com o silêncio absoluto.

É considerada uma musicista extraordinária, chegando mesmo a virar e afundar embarcações que atrai para os rochedos. Para esconjurá-la, os marujos fazem esculpir, àproa de seus barcos, figuras assustadoras chamadas carrancas. Outros lançam fumo e flores nas águas para acalmá-la, entre outros agrados. Também são cravadas facas no fundo de canoas, por haver a crença de que o aço afugenta manifestações de seres sobrenaturais. A Ocah Branca é uma sereia que sofre mutações constantes para se adaptar como “o ser” que sobrevive se camuflando na natureza. A voz da sereia é o desejo do Outro que vem em busca do sujeito e o perde ao utilizar seu próprio “tropismo” de gozo: “desejo de não desejar”, como afirma Piera Aulagnier. Quando Kafka emudece as sereias, “não se poderia escapar desse silêncio absoluto que procura traços do que não foi criado em cada um de nós”, sendo assim, a Ocah se desliga do grupo voando para outros continentes em busca de defender outras causas em prol da natureza. A voz é guardada em um recipiente de vidro como um objeto que ela leva junto com outros pertences. E para afugentar os predadores,

em frente ao Museu do MAM. Nos barcos foram plantadas palmeiras, coqueiros, pitangueiras e outras espécies do nordeste brasileiro. Essas esculturas flutuantes eram os habitats do “ser” que procurava sua identidade e sua forma no mundo. A partir da residência em Haarlem, na Holanda, em outubro de 2014, o projeto À deriva ganhou novas formas, resgatando parte da cultura circundante do local escolhido, defendendo causas ambientalistas, e

o silêncio era sua arma. O enunciado não era sonoro mas visual, deixando seus rastros quando se camuflava em outros animais. Na sua passagem realizava oferendas, deixando os objetos das oferendas como forma de manifesto em defesa ao meio ambiente. Os homens a descrevem como sendo um ser feminino de manto dourado peludo, como a crina de um cavalo, com cabelos vermelhos. Veste uma máscara com uma tromba longa, tem pele macia e escorregadia, como a de uma sereia sem escamas que se transforma em um pássaro para voar a fim de que pudesse procurar qualquer lugar para habitar. Apesar de seu tipo físico, a Cabocla consegue se locomover rapidamente e só pode ser vista quando vem a terra para contemplar as águas e a natureza, realizando oferendas com os materiais encontrados nos rios e nas florestas. Pode viver fora da água, mas somente com seu manto e sua máscara, nunca se afasta das margens dos rios, é protetora do meio ambiente circundante. Alimenta-se de peixes e de outros petiscos dos quais a lama é farta; caramujos, muçuns, répteis, e de ervas. Aprecia o fumo em cordas para mascar. Quando não gosta dos males causados pelo homem na natureza, ela afugenta os peixes para longe da rede e dos anzóis e os pássaros para longe dos rios, protegendo-os da poluição e dos homens. Há relatos de que ela também pode aparecer sob a forma de outros animais, como a jibóia, o lagarto, a capivara, a onça-pintada, e o lobo-Guará; e, dependendo da região, ela se camufla como um ser camaleônico, que transmuta na natureza para não ser vista.

usando uma figura feminina como manifestante de suas ações, dando-lhe o nome de Lola. Lola realizava oferendas nos arredores das Ruínas de Brederode, como rito de passagem, utilizando materiais locais da natureza para propagar seu manifesto, desenvolvendo diversos objetos: amuletos, cubas de barro, objetos de lã e chás medicinais de ervas e raízes.

Textos & objetos por Alessandra Vaghi


Projeto Ă deriva, Alessandra Vaghi


EDITORIAL Esta edição da Rébus apresenta o diálogo entre artistas e poetas contemporâneos e as publicações Signals Newsbulletin, editadas por Paul Keeler e David Medalla, em Londres, nos anos 1964-66. Esses ‘boletins’, em formato de tablóide, traziam a cada número matérias sobre arte e poesia de diversos lugares do mundo, além de dar destaque aos artistas participantes de exposições individuais ou coletivas realizadas na galeria Signals, cujo diretor era também o Paul Keeler. Chama atenção, ao folhear essas edições, a quantidade de poemas publicados na língua original: francês, espanhol, português, grego, e a quantidade de traduções de escritos de arquitetos, cientistas, pensadores. Os críticos Guy Brett e Jean Clay faziam parte do círculo editorial e foram, assim como David Medalla, muito importantes para a divulgação da arte brasileira fora do Brasil - especialmente nos anos 60. Guy Brett, por exemplo, chegou a publicar nesse jornal com o pseudônimo de Gerald Turner um artigo sobre Sérgio Camargo (ed. 5, 1964). Lygia Clark e Sergio Camargo foram os primeiros artistas brasileros a ter destaque na publicação, mas Hélio Oiticica, Mira Schendel e tantos outros também tiveram artigos dedicados as suas obras. É interessante observar que ainda hoje o conteúdo desses jornais segue sendo uma surpresa e uma referência. Por isso, além do diálogo ‘a-temporal’ entre artistas e poetas contemporâneos, algumas edições da Signals foram digitalizadas por mim, com o apoio do scanner xamânico do Wallace Masuko, e estarão disponíveis no site da Rébus.

Para o leitor Enquanto você lê, um urso branco mija distraidamente, tingindo a neve de açafrão, e enquanto você lê, muitos deuses descansam sobre os cipós: olhos de obsidiana observam as gerações de folhas, e enquanto você lê o mar está virando suas páginas escuras, virando suas páginas escuras

To the reader

Schwa World Operations Manual, Bill Barker

Colaboraram nessa edição: Alê Souto Alessandra Vaghi Claudia Hersz Gab Marcondes Lu Briotto Luiza Leite

“This is the first number of Signalz, the monthly news bulletin of the Centre for Advanced Creative Study. Signalz will contain news items on the activities of the Centre, documentation and critical studies on the Centre’s artists, as well as original writings by the artists themselves. From time to time Signalz shall also publish pamphlets and books of experiemental prose and poetry. (…) We hope to provide a forum for all those believe passionately in the corelation of the arts and Art’s imaginative integration with technology, science, architecture and our entire environment. We believe that such integration can only be accomplished by most rigorous means: by the exercise of the highest aesthetic standarts, and when society gives to the artist its avaiable materials, its support, - and complete freedom in the pursuit of his (the artist’s) art.”

Mark Philipp

Editorial - Signalz, Vol. 1 N. 1, 1964

Os poemas de Alejandro Otero, Brion Gysin, Naum Gabo e Nazli Nour, a arte de David Medalla (pág 20) e Takis (pág 21) foram retirados das Signals Newsbulletin.

A propósito do conteúdo das Signals, um tema notoriamente importante era o espaço. Publicaram não só poemas sobre a emergência de se pensar o espaço, como manifestos, depoimentos (de astronautas!), artigos sobre obras cinéticas, ópticas, magnéticas, eletrônicas, experimentais e até um fragmento da Poética do Espaço, do Gaston Bachelard. Assim, o convite para colaboração na Rébus se estendeu a novos espaços, não limitados aos (amplíssimos) conteúdos da Signals. Portanto, para além do diálogo entre essa e aquelas publicações, quis que o material aqui publicado atravessasse pensamentos e linguagens, ideias e dispersões. Muito obrigada a todos os colaboradores. Distraídos, Venceremos.

Maya Inbar Michelle Sommer Rosane Carneiro Tatiana Podlubny Virna Teixeira Wallace Masuko

Rébus 8 Concepção, projeto editorial e traduções: Thais Medeiros Design gráfico: Icaro dos Santos Revisão: Vanise Medeiros Special Thanks: David Medalla and Hito Steyerl

Desenhos por Icaro dos Santos (pág. 19) e Thais Medeiros (pág. 4 e 5). “The image of man is like the spectrum of a sunbeam, hiding its presence with its rays, yet ever ready to unfold its full radiance the moment we open the prism of ourselves for him to pass through our gates.” Naum Gabo Dedicada a Marcela Maria ‘Mc Xuparina’ <3 Rio de Janeiro, novembro 2016 @rebuspress

As you read, a white bear leisurely pees, dyeing the snow saffron, and as you read, many gods lie among lianas: eyes of obsidian are watching the generations of leaves, and as you read the sea is turning its dark pages, turning its dark pages. Denise Levertov tr. Luiza Leite


Chuvinha de Asteróides Arde no nada a filha que não tenho. Os animais que se vão. Os vegetais que nascem. A botânica e a zoologia constantes. As leis do universo. OGLE-TR-56 a cinco mil anos luz da terra. O ouro dos acontecimentos. Sol de jaguar. ¿Pai, não vês que ardo?, me pergunta a menina entre as ovelhas do meu sonho. Pedro Damián Bautista, tr. Thais Medeiros


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