Cemitério dos Aflitos: contos de vida - romance histórico de Thais Matarazzo

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CEMITÉRIO DOS AFLITOS: CONTOS DE VIDAS Thais Matarazzo


Todos os direitos desta publicação estão reservados à autora, que detém os direitos autorais da obra para a Língua Portuguesa. O texto aqui reproduzido é uma obra de autoria e responsabilidade de seu autora e, não representa, necessariamente, a opinião da Editora. Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia autorização por escrito da editora ou da autora. Projeto e editoração gráfica: Equipe Editora Matarazzo. Revisão: Leandro Monteiro - monteiro.lemonoli.leandro2@gmail.com Capa e miolo: ilustrações de Camila Giudice - camilagiudice@gmail.com Fotos: domínio público e de Thais Matarazzo. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) M425v Matarazzo, Thais Cemitério dos Aflitos: contos de vidas / Thais Matarazzo - [ilustração] Camila Giudice. – 1ª. ed. – São Paulo: Matarazzo, 2020. 168 p. il., 16 x 23 cm. ISBN 978-65-86348-13-2 1. Cemitérios - São Paulo (SP) - História. 2. São Paulo (SP) História. 3. Escravos - São Paulo (SP) - Ritos e cerimônias fúnebres. 5. Igrejas - São Paulo (SP). 6. Literatura brasileira Romance. I. Título. CDD 918.161 B869.93

Editora Matarazzo São Paulo – SP Fone: (11) 3991-9506 www.editoramatarazzo.com.br livros@editoramatarazzo.com / www.facebook.com/editoramatarazzosp www.instagram.com/editoramatarazzosp


CEMITร RIO DOS AFLITOS: CONTOS DE VIDAS Romance Histรณrico de

Thais Matarazzo

2020


ESTA OBRA TEM O APOIO CULTURAL DO COLETIVO SÃO PAULO DE LITERATURA EM PROL DA PRESERVAÇÃO DA HISTÓRIA, MEMÓRIA E DO PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL DA NOSSA CIDADE. www. facebook.com/groups/spliteratura www.instagram.com/spliteratura www.coletivoliteratura.blogspot.com/


Sumário Abertura por Renan Wangler............................................................... 6 Apresentação A revelação tridimensional de Thais Matarazzo por Abílio Ferrreira.............................................................................. 8 Introdução.......................................................................................... 11 JOÃO COVEIRO............................................................................... 21 Guilhermina Funileiro....................................................................... 27 Jair, o escrivão..................................................................................... 31 Júlia Espada........................................................................................ 35 Amargura............................................................................................ 43 Modesto Antônio dos Santos............................................................ 48 Meu neto soldado .............................................................................. 57 Cabocla do Pará................................................................................. 61 Dois inocentes.................................................................................... 69 Tava vivo?............................................................................................ 75 Primeiro amor.................................................................................... 80 Os últimos a saberem........................................................................ 88 Letras mortas...................................................................................... 93 No Seminário das Educandas de Nossa Senhora da Glória........ 100 Na Freguesia do Ó............................................................................ 106 Desastre de São João........................................................................ 111 Por uma paixão................................................................................ 113 As Congas......................................................................................... 117 Tonico Ceguinho.............................................................................. 128 No Recolhimento (ou na prisão?).................................................. 131 Joana Benguela................................................................................. 138 Obra concluída................................................................................. 147 Epígrafes............................................................................................ 150 Fontes bibliográficas........................................................................ 161 A autora............................................................................................. 165 A ilustradora..................................................................................... 167


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Abertura Eis diante de vossa mão um livro sobre a história, não a história de alguém distante, mas sim a história de vossa cidade, a cidade de São Paulo e seus arranha-céus construídos sobre corpos pretos, ao passo que passar por ela pise com cuidado e respeito, pois pode estar pisando em cima dos restos mortais dos reais construtores dessa cidade. Dito isso é importante salientar a motivação e a dedicação da autora dessa obra. Thaís não é de hoje que escreve com respeito e humildade sobre histórias e fatos históricos registrados nos arquivos, bibliotecas e museus da cidade sobre a importância e a contribuição cultural dos povos pretos na construção dessa cidade, fatos esquecidos e propositalmente postos a sombra, enterrados no fluxo histórico dessa megalópole. Trabalho esse de tal importância, pois trás a luz através dos registros dos colonizadores que aqui houve povos trazidos a força de África, subjugados escravizados e aqui construíram a base do que vemos ao transitar por essas ruas, tão marcadas por um projeto eugenista e eurocêntrico de clareamento populacional, este que busca apagar os rastros culturais de um povo fundamental para raízes dessa cidade. Tenho certeza que ao longo da sua carreira de escritora, Thaís se deparou com o fato de ser branca e escrever sobre a história do povo preto, pois bem, como uma pessoa branca consciente de seus previlégios até de acesso a informações ditas públicas, embora o racismo aja de forma estrutural dificultando o acesso 6


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do povo preto a sua história, pode agir de forma a reparar esse apagamento histórico, partindo de seu lugar de previlégio? Trazendo a público histórias nascidas de pesquisas sérias e um profundo respeito a esse povo que construiu essa cidade a base de sangue e suor. Renan Wangler Bibliotecário, escritor e poeta Junho/2020.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

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revelação tridimensional de

Thais Matarazzo

A escritora, jornalista e editora Thais Matarazzo tem um projeto literário marcado pelo signo do número três para a cidade de São Paulo. Sua trilogia Memórias reveladas: territórios SP, inaugurada com o recente lançamento do volume de contos ambientado na região central (Sé/Liberdade), contemplará também, nos dois outros títulos que fecharão o ciclo, a Barra Funda e o Bixiga. Já este Cemitério dos Aflitos: contos de vidas é, não por acaso, narrado por três protagonistas: o casal de negros escravizados João Coveiro e d. Lina e o escrivão Jair. Se a intenção da autora é mesmo celebrar a simbologia do tripé, ou do triângulo, não importa. O fato é que tal alegoria é decisiva na formação da identidade paulistana, e exerce poderosa e inescapável influência sobre o nosso imaginário. Impossível não lembrar, por exemplo, a feliz expressão “três cidades em um século”1, com que o arquiteto Benedito Lima de Toledo caracterizou a desvairada voracidade de São Paulo sobre si mesma. E mesmo que essa voracidade venha atacando com uma recorrente epidemia de amnésia as sucessivas gerações de paulistanos, o triângulo histórico – cujos vértices são representados pelos antigos conventos do Carmo, de São 1 São Paulo: três cidades em um século, livro publicado pela editora Duas Cidades em 1981.

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Bento e de São Francisco – insiste em permanecer como narrativa estruturante da cidade, referência indispensável para a sua mais completa tradução. Sabe-se, pois, que o núcleo de São Paulo foi por mais de três séculos um pobre e acanhado vilarejo confinado dentro dos limites desse triângulo, ainda que fosse estratégica, do ponto de vista logístico, a sua localização geográfica de posto avançado no planalto. O pano de fundo das histórias narradas pelos três referidos personagens é o das ainda lentas, mas decisivas, transformações da segunda metade do século XIX. Com a inauguração do Cemitério da Consolação, em 1858, passarão a ser proibidos os sepultamentos nas igrejas. Na década de 1880, a região do extinto Cemitério dos Aflitos dará lugar ao processo de urbanização de uma São Paulo que já não cabe nos limites do triângulo histórico. Consolidadas as grandes plantações de café no interior do estado, instalada a ferrovia que atravessará a Capital rumo ou porto de Santos, abolida a escravidão e proclamada a República, São Paulo mergulhará no movimento de autodevoração descrito por Benedito Lima de Toledo. É também o momento em que a dinâmica demográfica brasileira desconstruirá as crenças do racismo científico e eugênico então vigentes, revelando em todo o país, e em particular nos territórios paulistanos, a resiliência de uma presença negra que também se consolida no espaço urbano. Quem tiver acesso ao já citado Memórias reveladas: territórios SP – Sé/Liberdade, e souber esperar o percurso 9


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completo da trilogia, verá. Por hora, fiquemos com esta experiência preliminar, revelada em três dimensões pela narrativa de Thais Matarazzo. Abilio Ferreira 20 de junho de 2020.

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Introdução

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gênese para a publicação deste livro é antiga. Em 1999 quando iniciei meus trabalhos envolvendo investigações históricas acerca da história do rádio e seus artistas no Brasil, conheci na Biblioteca Mário de Andrade o jornalista e escritor Adauri Alves. Ele puxou conversa e observando o meu empenho em fazer um trabalho sério, então, passou a me dar várias dicas de pesquisas e locais (bibliotecas públicas e particulares, arquivos, cemitérios etc.) aonde eu poderia conseguir materiais primários para a realização do meu objeto de pesquisa. Nas nossas andanças pelo centro da Pauliceia, ele ia me mostrando os endereços ligados à história dos negros desde o período colonial até à atualidade, contava muitas curiosidades que eu desconhecia. Foi então que voltei à minha atenção para o tema. Lembro-me que uma vez ele me levou para conhecer a biblioteca do antigo Banespa, sediada no edífício Altino Arantes à Rua João Brícola. A hemeroteca possuía uma coleção de revistas variadas do período de 1920 a 1960. Eu fiquei encantada! A bibliotecária que trabalhava lá na época (não me recordo do nome, infelizmente) era muito hábil. Havia uma publicação intitulada Memória do Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo, acredito que foi editada nos anos 1980 e 90. As revistas possuíam fotos antigas e ótimas matérias. Durante a nossa pesquisa naquela tarde, vários 11


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exemplares ficaram espalhados pela mesa e o sr. Adauri passou a comentar sobre os endereço da cidade em que os negros se socializavam no período da escravidão. Um deles era no antigo Largo do Rosário, a atual Praça Antônio Prado, perto do “Altino Arantes”. Lá existiu o primeiro templo dedicado à N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos (hoje sediada no Largo do Paissandu). Ali foram sepultados muitos africanos e seus descendentes, escravizados ou libertos. — Thais, aqui no centro muitas igrejas foram demolidas e as pessoas eram sepultadas no interior e na frente das paróquias, elas pertenciam à diversas irmandades católicas. A Praça Antônio Prado está cheia de ossadas de negros. Quando pisar ali, pise devagar em respeito àqueles que construíram essa terra através do trabalho escravo, da exploração dos brancos. E não é só: muitos negros e outras pessoas excluídas socialmente foram sepultadas no “Cemitério dos Aflitos”, na Rua dos Estudantes. Você nunca foi à capela de N. Sra. dos Aflitos? – o sr. Adauri me questionou. Eu respondi que não. Não sabia da existência desse cemitério, a única referência que eu tinha era da lenda do Chaguinhas e da Igreja das Almas na Praça da Liberdade. Naquela tarde, saímos da biblioteca, passamos pela Praça Antônio Prado e ele explanou que houve o alargamentos das ruas do centro com o tempo e que a antiga Igreja do Rosário ocupava o terreno aonde está hoje o prédio da Bovespa. Na verdade, a igreja tinha frente para a Rua XV de Novembro e a lateral dava para o Largo do Rosário. Dali seguimos para a Liberdade. Conheci a capela dos Aflitos e fiquei impressionada, 12


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era uma construção de taipa de pilão de 1779! Fiquei apaixonada e também triste por ver a decadência e a falta de manutenção daquela singela joia arquitetônica da nossa história. No lugar do cemitério o sr. Adauri explicou que haviam construído aqueles prédios todos. — É a memória dos desfavorecidos sepultada! Isso não é bonito de ser contato, por isso, as autoridades responsáveis preferiram enterrar a história e as suas materialidades. – contou o sr. Adauri. Na semana seguinte fomos até o bairro do Ipiranga visitar o Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, instalado na Av. Nazaré, 993. Ao adentrar o prédio temos a sensação de entrarmos no “túnel do tempo”, na sala de atendimento à pesquisa conhecemos o historiador e arquivista Jair Mongelli Jr., mais conhecido como “Jair do Arquivo”. O sr. Adauri Alves pediu para consultar um livro de registro de óbitos da Catedral da Sé de 1850, e assim me mostrou os registros de pessoas escravizadas e livres que foram sepultadas no cemitério dos Aflitos, que na época não tinha essa denominação, era conhecido como “cemitério da Sé”, “cemitério da Santa Casa” ou “cemitério da Glória”. Ali pude visualizar melhor um documento que comprovava o funeral daqueles indivíduos no século XIX. — Quem sabe um dia você não escreva um livro sobre esse cemitério? – sugeriu o sr. Adauri. O assunto encerrou-se ali (mas a semente foi fincada) porque o meu objeto de pesquisa era a história do rádio e seus artistas. Os anos passaram, eu realizei muitas pesquisas, 13


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escrevi vários livros e monografias. Voltei incontáveis vezes ao Arquivo da Cúria para diversas consultas. Sempre gostei muito de conversar com o Jair do Arquivo. Ele está ali há 35 anos e é o grande guardião e conhecedor daquele acervo, na minha opinião (e tenho certeza na de muitos pesquisadores e acadêmicos). Profissional competente, respeitoso e atencioso, o Jair é uma das pessoas mais comprometidas com o seu trabalho que encontrei durante a minha trajetória de investigadora histórica e jornalista. Quem procura o Arquivo da Cúria para pesquisa nunca sai de lá sem encontrar a informação buscada, ou então, com alguma indicação de como proceder para continuidade da pesquisa em outros endereços. Não, o Jair não deixa nenhum consulente “na mão”, como se diz popularmente. E em homenagem ao Jair Mongelli Jr., um dos personagens protagonistas deste livro se chama Jair e é o escrivão do Hospital de Caridade que vai registrar as memórias de vida de diversos personagens que ele conheceu e de outros que ele ouviu através das narrativas de João Coveiro e de d. Lina, o casal de escravizados que trabalharam a vida inteira no referido hospital e também no cemitério. Em 2019 conheci o Renan Wangler, coordenador da Biblioteca Adelpha Figueiredo no bairro do Pari. Ele me foi apresentado pela amiga poetisa e ativista cultural Ana Jalloul (fazemos parte do Coletivo São Paulo de Literatura). O Renan tem um trabalho fantástico na biblioteca, atendendo e acolhendo com toda cortesia e profissionalismo os consulentes e um outro público especial frequentador do espaço: os imigrantes. Lá vão diariamente muitos africanos de diversas 14


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partes do continente. Foi na “Adelpha” durante as edições mensais do Sarau Jardim Poético, idealizado pelo Renan, que pude ter um contato maior com essas pessoas e escutar as suas histórias de vida, superação e de luta pela sobrevivência. Foi uma oportunidade rica e que muito me sensibilizou, me lembrei das conversas e os ensinamentos do sr. Adauri, falecido recentemente; dos africanos que chegaram ao Brasil no século XIX durante o período da escravidão negra e do cemitério e da capela dos Aflitos. Surgiu a possibilidade da criação de um livro! Dar voz aqueles mortos, trazer de volta as suas tristes e duras trajetórias como sinal de resistência e de comprovar as suas contribuições para a construção da história paulista, brasileira. Como investigadora histórica e jornalista, nunca me atrevi a experimentar a ficção. Só produzia textos e livros baseados em rígida pesquisa histórica. Criar histórias, inventar ou fabular não era comigo, apenas registrar as memórias documentadas. Até que fui tocada pelo poder da ficção, deixei de ser somente leitora deste gênero e mergulhei neste outro “braço” da literatura. Isso aconteceu em 2018 depois de realizar uma pesquisa nos Livros de Matrículas dos Expostos - registros das crianças que foram deixadas na Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo de 1825 a 1950. Hoje esses livros estão à disposição dos consulentes no Museu da instituição. Pois bem, após a leitura dos livros fiquei bastante sensibilizada e me veio à mente a ideia de escrever uma obra dedicada à história de algumas crianças a partir de registros reais. Assim nasceram os dois volumes Abandonados na Roda: 15


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destinos (Editora Matarazzo), uma amálgama de pesquisa histórica e ficção, a literatura nos dá a liberdade para essa construção. E os livros ganharam ilustrações belíssimas da minha querida amiga e artista plástica Camila Giudice. Decidi que faria um livro nos moldes do Abandonados na Roda: destinos com os registros dos mortos do extinto cemitério dos Aflitos. Voltei ao Arquivo da Cúria, conversei com o Jair, e realizei as pesquisas necessárias nos livros de óbitos da Catedral da Sé no período de 1821 a 1858 - data do encerramento das atividades da necrópole devido a abertura do Cemitério Municipal da Consolação. Os nomes e as datas de falecimento dos personagens dos contos deste volume são todas reais, todos foram inumados no extinto cemitério dos Aflitos. Esses apontamentos serviram de urdidura para os enredos criados a partir de pesquisa realizada nos livros de óbitos da Catedral da Sé e também nos Livros de Registro de Enfermos (1876 – 1898) pertencentes ao Museu da Santa Casa de São Paulo. Para me informar mais detalhadamente sobre as histórias do Brasil e da escravidão africana no período colonial e imperial, utilizei trabalhos acadêmicos, mapas, livros e outros materiais descritos na seção de bibliografia ao final desta obra. Tenha a certeza, caros leitores e leitoras, que este livro foi feito com todo respeito e profissionalismo. É uma homenagem à memória de todos aqueles que foram sepultados no cemitério dos Aflitos na cidade de São Paulo. Aproveito para agradecer de coração a todos os amigos, profissionais e instituições que me auxiliaram durante as 16


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pesquisas para este livro: Bruna Dourado, Ingrid Ribeiro de Souza e Maria Flor, do Museu da Santa Casa de São Paulo; ao Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo e ao Jair Mongelli Jr.; Adauri Alves (em memória), Camila Giudice ilustradora deste livro, Renan Wangler, ao casal Ana Jalloul e Ricardo Cardoso. Gratidão ao meu pai, Gilberto Cantero, o primeiro leitor dos meus contos e meu melhor crítico. Peço desculpas pela longa apresentação, mas ela se faz necessária para mostrar como surgiu a ideia e a concretização de Cemitério dos Aflitos: contos de vidas. Boa leitura!

Thais Matarazzo São Paulo, 2020.

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Para ajudar o leitor a localizar melhor os espaços citados

ao longo dessa obra, reproduzimos ao lado o detalhe da planta “ História da Cidade de Sao Paulo 1800 - 1874” de Affonso A. Freitas (domínio público). Aparecem circulados e apontados os principais endereços aqui focalizados. Alguns espaços / territórios não existem mais ou tiveram suas denominações alteradas ao longo das décadas. Fonte: Acervo Museu Paulista. https://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:Reprodu%C3%A7%C3%A3o_de_Planta_-_Plan_-_Historia_da_ Cidade_de_Sao_Paulo_(Freitas,_Affonso_A._)_-_1,_Acervo_do_Museu_ Paulista_da_USP.jpg



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João Coveiro Talvez assim Deus queira o meu viver Tão cheio de amargura. P’ra que não ame a vida, e não me aterre A fria sepultura. Maria Firmina dos Reis

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oão Coveiro era paulistano, durante décadas trabalhou no enterramento dos mortos no cemitério dos Aflitos, que no século 19 não tinha esse nome sendo descrito como “cemitério da Glória”, “cemitério da Sé” ou “cemitério da Santa Casa”. Herdou a profissão de sepultureiro do avô e do pai. O avô era africano da Guiné, o pai nasceu na Bahia em um engenho de cana de açúcar da Capitania da Baía de Todos os Santos. Ambos foram vendidos à Irmandade da Santa Casa de Misercórdia de São Paulo por volta de 1790. Trabalhariam como serventes no Hospital de Caridade e na inumação dos cadáveres no “campo santo dos desfavorecidos”, aberto em 1775. Criado para inumar indigentes, pobres, inocentes, escravos, soldados, prostitutas, criminosos e os não-católicos. Antes da criação da necrópole, os defuntos eram enterrados ou abandonados em qualquer lugar, jogados dentro de rios ou deixados insepultos. O cemitério era desprovido de tudo, nem ferramentas para os enterramentos possuía. Era João e um auxiliar, também 21


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escravizado, os responsáveis por levar da Santa Casa pás e outros utensílios para o serviço fúnebre. Também cuidavam da manutenção do cemitério. Fabricavam cruzes toscas de madeiras ou bambus feitas com materiais que achavam pelas ruas e estradas da cidade. João era bom prosista, era sabedor de muitas trajetórias de vidas dos “seus mortos”. Perdeu as contas dos milhares de enterramentos que realizou. Todos que ali jaziam eram pessoas que, muitas vezes, foram sem dizer adeus a ninguém. Por vezes, era o único a dar uma palavra de conforto àqueles que acompanhavam seus fenecidos à cova. Consideravase o “guardião do cemitério”, Nossa Senhora dos Aflitos e São Pedro foram escolhidos como os seus padrinhos no seu batismo na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, tinha convicção que seus protetores não foram escolhidos à toa. João Coveiro presenciou coisas de arrepiar a alma de qualquer ser humano e ficava incrédulo diante da maldade humana. Os sistemas escravocata e colonial português eram cruéis demais, e herdados pelo futuro império. Quantos negros levaram a culpa de crimes que nunca cometeram? Quantos pagaram com suas vidas por erros cometidos por brancos? João não saberia dizer a quantidade, mas presenciou diversos casos. Foi ele quem fez o enterramento dos soldados Chaguinhas e Contindiba em 20 de setembro de 1821. Ambos foram sentenciados e condenados a receber a pena capital, a forca. Apontados como líderes de um insurgimento da tropa do 1º Batalhão de Caçadores que revindicavam melhor 22


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tratamento aos soldados brasileiros em face aos portugueses, e pelo atraso dos seus soldos, tudo aconteceu no quartel da Vila de Santos. O processo todo correu com enorme velocidade, não foi possível aguardar um apelo feito ao princípe regente, d. Pedro. Os supliciados foram enviados à cidade de São Paulo. O acontecido chocou o povo. O morro da Forca foi tomado pelo público, pobres, ricos e escravos, estavam todos ali. Contindiba foi o primeiro a ser morto. Na vez de Chaguinhas, por duas vezes a corda arrebentou e o povo gritou que ele era inocente. Na terceira tentativa o amarraram com uma corda de couro, também ela falhou. “Liberdade! Liberdade!”, suplicavam as pessoas para as autoridades. Não houve o perdão. Chaguinhas caído no chão, já semi morto, foi assassinado a pauladas. E ainda contavam que seus corpos foram esquartejados. Então, os moradores da cidade começaram a acender velas ao pé do morro da Forca. Levantaram um cruzeiro. Chaguinhas foi elevado a mártir e a santo popular, muitos começaram a pedir milagres à sua alma e foram atendidos. Como foi sepultado no cemitério, a romaria de pessoas simples passou a frequentar à capela de Nossa Senhora dos Aflitos para rezarem em devoção a Chaguinhas e às almas foi crescendo ano a ano. Diante de tantas mortes atrozes e miseráveis, o coveiro sensibilizava-se grandemente, mas tinha que ser corajoso e cumpria com dignidade a sua designação. Para cada enterro, rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria. Proferia também, em silêncio, uma oração aprendida com o seu avô, tratava-se de uma prece/saudação para àqueles que iam para a Calunga, o infinito, o mundo dos mortos, dos ancestrais em África. 23


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Contava que era muito importante dar um sepultamento digno para todas as pessoas, embora nem sempre isso acontecesse, para que os espíritos não vagassem por aí atormentados. Dos mortos não tinha medo, gostava de contar que viu muitas assombrações. Todas lhe tinham respeito. Ele era o coveiro e o guardião do cemitério! Quando os enterros de negros livres ou escravos aconteciam à noite, era muito comum o cortejo fúnebre ser convertido em festa pagã - diante das vistas da igreja católica. Era um momento aonde os cativos podiam dançar e cantar ao som de atabaques e outros instrumentos de percussão. Viverem momentos alegres e “de respiro”. João respeitava todos os rituais. Na maioria das vezes nunca havia um padre ou autoridade eclesiástica para acompanhar o defunto, então, deixava seus irmãos de cor à vontade. Permaneceu executando seu trabalho até o encerramento das atividades da nécropole em agosto de 1858, época em que foi aberto o cemitério público da Consolação. Um decreto da Câmara proibia o enterramento de cadáveres dentro de igrejas, como era costume, e no único campo santo da cidade. Foi uma medida higienista. As terras da Consolação ficavam fora do núcleo urbano. João foi convidado a ser transferido para lá trabalhar. Negou-se. A diretoria da Irmandade também achou que era melhor ele continuar com sua esposa d. Lina na lida do hospital. João Coveiro era analfabeto, mas dotado de grandes saberes aprendidos com seu avô, o pai e na escola da vida. Permaneceu toda sua vida a trabalhar como escravo do 24


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Hospital de Caridade da Santa Casa de São Paulo. Com a promulgação da Lei dos Sexagenários, de 28/9/1885, João foi libertado das correntes da horrenda escravidão negra. O sabor da liberdade veio muito tarde, João já estava envelhecido e sem forças. Naquele mesmo ano foi instalado no antigo prédio do Hospital de Caridade (transferido para a Vila Buarque) o Asilo de Mendicidade, criado em parceria com o governo provincial. João e Lina foram os primeiros utentes, lá permaneceram por não terem para onde ir depois da liberdade. O espaço passou a ser administrado pelas irmãs de São José de Chambéry, tendo à frente na administração do asilo a madre Maria Arsênia Berthet. Ela implantou regras de asseios para melhor atender os abrigados. As religiosas francesas foram convidadas a trabalharem na Santa Casa a pedido do provedor barão de Iguape. Iniciaram as suas atividades como enfermeiras, escriturárias, administradoras e cozinheiras do Hospital de Caridade em 1872. Foi casado com Guilhermina Funileiro, africana. Seu apelido era Lina, conhecida por sua grande figura humana e na realização da manutenção da capela de Nossa Senhora dos Aflitos. Habilidosa bordadeira e rendeira, ela fazia lindas toalhas para os altares da humilde capelinha. Era rezadeira, durante décadas puxou o terço da Senhora dos Aflitos nas tardes de domingo.

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Guilhermina Funileiro Como era linda, meu Deus! Não tinha da neve a cor, Mas no moreno semblante Brilhavam raios de amor. A cativa, Luiz Gama

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ia Lina era risonha. Antes da chegada das freiras da congregação de Chambéry para trabalharem na administração das repartições hospitalares da Irmandade da Santa Casa, em 1872, era Lina e a enfermeira Júlia Espada quem recepcionavam as crianças que eram deitadas na Roda dos Expostos, instalada em julho de 1825. Com carinho dava os primeiros cuidados, ela não teve filhos, por isso, exercia a sua maternidade com os bebês e as crianças enjeitadas. Junto com o capelão do hospital, visitava diariamente os doentes internados nas enfermarias masculina e feminina, que viviam superlotadas. A cada paciente levava uma palavra de conforto. Acostumou-se a conviver com a morte. No início era terrível olhar para os falecidos, com o tempo aprendeu a lidar com a situação e prepará-los para o enterro e a passagem para a ancestralidade. No pescoço usava um rosário de contas de lágrimas de Nossa Senhora e um colar de contas brancas, uma herança 27


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que trouxe da sua terra, a ele acrescentou um crucifixo de prata ganhado de Júlia. Na cabeça amarrava um lenço à moda africana. Tinha uma orelha mutilada, aconteceu na viagem transatlântica a bordo de um bergantim português: no porão do negreiro, apertado e fétido, os africanos brigavam pela falta de espaço e pelo desespero por não saber o quê aconteceria com as suas vidas. Estava Lina em um canto, perto de outras meninas, quando um homem a atacou e começou a mordê-la. Estava faminto e já não governava a sua razão. Cinco homens correram para ajudá-la, mas ela teve parte da orelha direita arrancada a dentadas. Tinha 12 ou 13 anos. Não gostava de comentar o assunto, causava-lhe dor e tristeza. Lina, cujo o verdadeiro nome era Tafui (traduzindo significa “Glória de Deus”), era conhecida no Brasil como negra da “nação Mina” ou “da Costa da Mina”. Possuía estatura média, olhos pequenos, rosto redondo, era magra e ágil. No peito trazia duas marcas: à esquerda as iniciais de um proprietário feita a ferro e fogo, após o batismo católico e realizado no armázem enquanto esperava ser embarcada no tumbeiro, e à direita uma tatuagem característica da sua tribo, que marcava à sua entrada na vida adulta (ocorrida após a primeira menstruação). Foi embarcada, com mais 400 cativos, no porto da Feitoria da Mina, da atual cidade de Elmina, no Gana, litoral da África Ocidental. Lembrava-se de ver uma grande construção que não sabia nominar (era o castelo e forte de São Jorge), onde bandeiras coloridas flamulavam enquanto o medo coletivo dos africanos irradiavam diante dos maus-tratos e humilhações sofridas. 28


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O desembarque do navio deu-se no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Ela pensou que não iria sobreviver, apesar de todo sofrimento, acreditava ser uma vitória estar viva após experiência tão violenta. Esperança nunca lhe faltou. Passou por um trapiche onde foi obrigada a se exibir encima de uma mesa de madeira, foi examinada por vários potenciais compradores. Como era uma moleca, seu preço era menor. Acabou arrematada por um casal. Depois de aprender algumas palavras em português, foi enviada para a rua, junto com outra escravizada, sua conterrânea, para ser uma “negra de ganho”. Vendia guloseimas no tabuleiro. Conheceu bem as ruas da corte. Entrou em contato com outros africanos. Foi acostumando-se àquela vida de cativa urbana. No começo, durante a sua mobilidade, costumava pintar o seu rosto com tinta branca como fazia na sua tribo, deixando transparecer a sua origem perante os outros africanos. Tal atitude não era bem vista pela sociedade e as autoridades. Foi reprimida, e começou a andar “com a cara limpa” para não apanhar e sofrer castigos piores. Apesar de tantos desgostos e consternações, seu coração continuava limpo. Comentou com a sua companheira de vendas que pressentia que em breve faria uma nova viagem. Seu presságio estava certo, um parente paulista dos seus senhores chegou à corte. Membro da Irmandade da Santa Casa, foi encarregado de adquirir duas africanas jovens para o trabalho de serventes no Hospital de Caridade. O proprietário falou de duas molecas que havia adquirido há dois anos, elas eram “mansas, de boa conduta e trabalhadeiras”, ele poderia 29


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as vender por um preço menor em benefício da Santa Casa de São Paulo, pois era um cristão praticante. “A caridade acima de tudo!” E foi assim que as africanas Guilhermina e Desidéria chegaram a cidade de São Paulo.

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Jair,

o escrivão

“O conhecimento é como um jardim: se não for cultivado, não pode ser colhido.” Provérbio africano

J

air Monteiro Sales gostava de pesquisar e saber das histórias de São Paulo de outrora. Passou a colecionar documentos e memórias. Em 1840 foi trabalhar como escrivão no Hospital de Caridade da Santa Casa. Ele já estava instalado no prédio térreo da Rua da Santa Casa (atual Rua da Glória). Conheceu João Coveiro e d. Lina, e deles escutou muitas coisas interessantes, anotava tudo. Como Jair também havia realizado trabalhos como arquivista para o Bispado de São Paulo, reuniu diversos livros e documentos importantes, dentre eles encontrou um ofício de 27 de junho de 1779, aonde constava a sagração da capela dedicada ao culto de N. Sra. dos Aflitos, a capelinha dos fundos do cemitério. A cerimônia ocorreu das 8h às 15h da referida data, foi durante o terceiro bispado de São Paulo, do Frei Manoel da Ressureição, bispo e provedor da Irmandade da Santa Casa de São Paulo. Comparecem diversas personalidades eclesiásticas e o governador da Capitania de São Paulo, Martins Lobo Saldanha. Em seguida houve um lauto jantar na chácara do cônego arcipreste, morador da rua do cemitério. Em 1790 a cidade já registrava 8518 habitantes. 31



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As pessoas do povo inventavam muitas lendas em torno do cemitério e da capela dos Aflitos. Fantasmas e assombrações povoavam o imaginário popular. Afinal a única necrópole extramuros da cidade era destinada aos defuntos dos marginalizados, ou “aflitos” como eram chamados: pessoas pobres, soldados, escravos, indigentes, suicidas, supliciados, criminosos, não católicos, estrangeiros, prostitutas, doentes, crianças deixadas na Roda dos Expostos, entre outros. E o casal de escravizados conheceu as três sedes do Hospital de Caridade: primeiro funcionou num sobrado no Largo da Misericórdia, ao lado da igreja homônima; depois foi para a sede da chácara dos Ingleses, e por fim estava no novo prédio da Rua da Santa Casa. Assistiram as paulatinas transformações da cidade. João era muito cuidadoso com o cemitério e “os seus mortos”, d. Lina zelava com amor pela capela dos Aflitos. As décadas se passaram, a urbe expandiu, os imigrantes europeus, as fábricas e o progresso foram chegando e dando uma nova paginada em São Paulo. Afinal “o novo sempre vem”. O cemitério foi extinto em 1858, como os largos da Forca e do Pelourinho; o hospital da Santa Casa foi transferido para outro endereço em 1884; veio a Abolição da Escravidão, a República, as casas em estilo colonial foram sendo destruídas para dar ares de melhoria à capital paulista que florescia graças à riqueza do café, o “ouro negro”. João Coveiro morreu. Foi então que Jair decidiu reunir as histórias do cemitério dos Aflitos, dar voz àqueles mortos, mesmo sendo a maior parte das trajetórias de vidas deprimentes e 33


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

doloridas. Ele era sabedor que a realidade cruel sempre choca. Não queria polêmicas, apenas mostrar a verdade dos fatos. Jair tinha anotado tudo o que ouviu de João e o que presenciou nos seus anos de trabalho no Hospital de Caridade. D. Lina ainda vivia no antigo prédio do nosocômio, agora transformado em Asilo de Mendicidade. A capela dos Aflitos continuava firme e ereta, a única lembrança material que foi poupada do antigo cemitério. O terreno foi leiloado pela Mitra Arquidiocesana por um decreto da Câmara em 1885. Retirados os despojos, o terreno foi loteado e vendido. O valor da comercialização foi canalizado para às obras que se realizavam na Sé Catedral. A freguesia da Liberdade passou a contar com deslumbrantes palacetes, as chácaras foram sendo loteadas. As lembranças dos desfavorecidos precisavam ser apagadas. Melhor conservar o que se é belo. Jair sempre acreditou que a capelinha não foi demolida graças à grande procura dos fiéis que nunca abandonaram o templo para rezar e acender velas pelas almas, mesmo após a construção da capela da Irmandade da Santa Cruz dos Enforcados no Largo da Liberdade. — Está decidido, vou fazer o livro! – falou Jair em ritmo de animação.

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Júlia Espada “A esperança é o pilar do mundo.” Provérbio africano

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pesar do sobrenome italiano, Júlia era francesa de nascimento. Seu pai era médico e a mãe enfermeira, profissão abraçada pela filha. A família chegou ao Brasil em 1810, Júlia estava com 36 anos. Era viúva e sem filhos, professava o protestantismo. Durante cinco anos moraram na corte, em seguida, o pai resolver montar uma clínica médica em São Paulo para atender a elite local. Júlia Espada era dotada de um espírito idealista e humanitário, sensibilizava-se com a situação dos pobres e dos escravos. Tinha asco ao tratamento rude, violento e desprezível dados aos negros. Nunca assistiu a uma sessão de tortura num pelourinho, mas escutou diversas narrativas de terror sobre o tema. Havia quem comentasse que os escravizados não sentiam dor ao serem açoitados, pois não tinham alma e não eram gente. Júlia ficava revoltada, sabia que todos eram seres humanos. Os ricos ficavam chocados com as convicções de Júlia, ela foi apontada como uma abolicionista (e era!). Um dia, seus pais receberam uma carta de Paris, precisavam voltar urgentemente à França para resolver um assunto relacionado a uma herança. Júlia não quis viajar, estava 35


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

convicta que sua missão de vida estava no Brasil e ficaria para ajudar os desvalidos. O pai conseguiu uma indicação, Júlia foi admitida para trabalhar no Hospital de Caridade da Santa Casa. Sua religião não foi um empecilho, pois ela não se negava a cuidar dos doentes e tinha longa experiência profissional. Entretanto, ela iria perceber em situações futuras que a fé que seguia a impediria de realizar alguns procedimentos ou trabalhos filantrópicos. O capelão da Santa Casa convenceu-a mudar de crença. Converteu-se ao catolicismo. João Coveiro era seu colega no nosocômio, em diversas situações contou com os préstimos da enfermeira francesa desde os tempos quando o hospital ficava no Largo da Misericórdia. Ela sempre comentava com o médico-diretor, dr. Simão, sobre o problema da superlotação, falta de leitos, carência de remédios e outros instrumentos para o cuidado com os pacientes. Investimentos eram urgentes e necessários (parece que nada mudou, não é mesmo?). — Dona Júlia, a senhora tens toda razão! Tudo faz-se necessário. Esse hospital é uma vergonha! Até para realizar as intervenções cirúrgicas tenho eu que trazer os meus próprios instrumentos e outros materiais. Nunca há verba. Aqui é assim: fazemos a nossa obrigação e depois esperamos que Deus faça a dele para salvar essa pobre gente! – falou o dr. Simão. Teria Júlia feito uma boa escolha ao permanecer em São Paulo? Seu salário não era dos melhores e acabava o gastando na botica para conseguir remédios para tratar “os seus adoentados”. Escrevia às senhoras ricas a pedir auxílio, nem 36


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sempre era atendida. Conheceu os curandeiros africanos e seus métodos de trabalho curativos. Embora fosse uma mulher dada à ciência, diante da precariedade do sistema de saúde na cidade de São Paulo, acabava por aceitar as sugestões e a contribuição dos africanos em vários casos. Eles conheciam o poder de muitas ervas medicinais. O conhecimento ali era compartilhado. Quem passasse pelo Hospital de Caridade recebia os seus cuidados e carinho, aquela gente infeliz a chamava de “mãezinha”. A casa em que morava, herdada do pai, virou um recolhimento, dava abrigo a quem precisasse. As mulheres abastadas tinham horror ao seu trabalho filantrópico e engajamento, outras a admiravam pela coragem, força e modéstia. Quando questionada pelo motivo do seu idealismo, respondia que era uma cristã e seguia os ensinamentos de Jesus Cristo: oração, fé, humildade, perdão, amor, generosidade, caridade e amor ao próximo. Foi a enfermeira Júlia quem ensinou várias práticas a d. Lina no cuidado com diversas doenças. Ela foi sua ajudante durante muitos anos. Em 1825 o Hospital de Caridade mudou-se para a antiga sede da chácara dos Ingleses1, um sobrado colonial; 1 O sobrado serviu de sede ao Hospital de Caridade localizava-se na atual Praça Almeida Júnior, na Liberdade, de acordo com a lei decreto nº. 139 de 1º/04/1931, o logradouro começa na Rua da Glória e termina na Rua Conselheiro Furtado. Antes o espaço era denominado com Largo São Paulo, lá funcionou um Tendal de Carnes e depois o Teatro São Paulo. Tudo foi demolido para a construção da Ligação Leste-Oeste. 37



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velha propriedade de João Rademaker, e lá também residiu a família do militar açoriano João de Castro Canto e Melo, o 1º visconde de Castro, pai da marquesa de Santos. O nosocômio estava localizado em um dos pontos de entrada da cidade em direção ao sul e nas adjacências do Caminho do Mar (atual Rua da Glória). Em uma das janelas do andar térreo do sobrado foi instalada a Roda dos Expostos em 2 de julho de 1825, na administração do provedor Lucas Monteiro de Barros, visconde de Congonhas do Campo. Destinada a receber as crianças enjeitadas, que anteriormente eram abandonadas nas portas das casas de famílias ricas, em lixões, em currais e nas margens dos rios. Existem relatos que apontam que muitos recém-nascidos eram devorados por animais selvagens. Essas crianças eram filhas de prostitutas, escravas, mulheres pobres ou filhos indesejados. Nos primeiros tempos era Júlia e d. Lina que doavam uma centelha de esperança e ternura aos bebês expostos. Eles não permaneciam no Hospital, eram deixados com amas de leite para serem criados até alcançarem a idade de seis ou sete anos, em seguida, eram enviados ao Seminário das Educandas ou dos Educandos, também mantidos pela Irmandade de Misericórdia. Júlia era uma das únicas mulheres brancas que participavam dos cortejos fúnebres dos negros. Entendia que cada um tinha sua maneira de enterrar os seus mortos. Ela interessou-se em aprender não só os idiomas africanos como os indígenas, foi uma estudiosa do tema. De tudo sabia um 39


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

pouco. E eram os indígenas e africanos que lhe explicavam sobre as tradições e costumes das suas tribos e etnias. Antes da entrada do escrivão Jair, em 1840, para o trabalho no Hospital de Caridade, era Júlia quem fazia o registro nos livros dos enfermos, internações, nascimentos e óbitos da instituição. João Coveiro a chamava de “dona santinha”, ela reclamava e não gostava da alcunha carinhosa. Não acreditava em santos, somente na realização do trabalho e no poder da fraternidade. Em sua casa cresceram algumas das crianças expostas na Roda. A bebê Florinda foi uma das meninas, encontrada com o abdômen muito alto, tinha a doença das “lombrigas”2. Florinda foi batizada pelo capelão. Apesar de todo tratamento médico e as simpatias da curandeira Otaviana, a garotinha veio a falecer com um aninho em 8 de março de 1835, sendo sepultada no cemitério. Já Amarílis foi a única das garotas que sobreviveram à idade adulta, foi a companheira inseparável de Júlia. Na porta do hospital aglomeravam-se indigentes e doentes, era impossível acolher a todos pela falta de estrutura. Quantas vezes, os moribundos eram atendidos ali mesmo a céu aberto. Alguns só apareciam para receber comida. Era um caos a vitrine miserável da cidade e seus desgraçados personagens. Em 1840 o hospital foi transferido para a parte alta da chácara dos Ingleses, na esquina do Caminho do Mar com a Travessa dos Estudantes (atual Rua dos Estudantes). O prédio foi projetado pelo engenheiro português Marechal Daniel Pedro 2

Ascaridíase.

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Müller (1785-1841), contava com duas enfermarias, cada uma com 20 leitos, cozinha, refeitório, dispensa, quintal, recepção e outras dependências. Era térreo para facilitar o deslocamento dos enfermos. Esperanças renovaram os corações daqueles que trabalhavam em prol dos mais carentes, mas a falta de recursos continuou a mesma e o número de combalidos crescia notavelmente todos os anos! A vida de lutas pelas melhorias da saúde pública em São Paulo da enfermeira Júlia Espada teve fim em 23 de maio de 1854, ela contava 80 anos. Estava velhinha e sofria muitas dores provocadas pelo reumatismo. Pressentindo o seu fim, pediu a Amarílis para chamar o cura da Matriz da Sé a fim de ministrar os sacramentos e a extrema-unção, conforme a tradição católica. Júlia expressou vontade de ser enterrada no cemitério. A Santa Casa emprestou o caixão para que seu corpo fosse levado da sua casa na Rua das Flores até à capela dos Aflitos. A comitiva fúnebre e ao velório compareceram centenas de pessoas. Autoridades e políticos ficaram com uma “baita dor de cotovelo” pelo carisma da enfermeira. Foi um dos enterramentos mais emocionantes e marcantes da necrópole. À noite, quando o cemitério teve seu portão fechado, alguns negros escravizados e livres pularam o muro para prestarem às suas homenagens à Júlia Espada. Foi um bonito ritual africano. Depositaram sobre a cova tantas flores que aquele pequeno espaço de terra ficou parecendo um jardim. O povo chorou a sua morte. Passados alguns anos do falecimento da enfermeira, um português transmontano e imigrante chegou a São Paulo, era 41


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Batuíra, ganhou esse apelido quando trabalhou como jornaleiro, era hábil e comunicativo. Batuíra foi um dos precursores do Kardecismo no Brasil. Era proprietário de terras na baixada do Glicério, próximo à Rua Lavapés. Ali construiu o seu lar e casinhas de aluguel. Por volta de 1890 ele criou o “Grupo Espírita Verdade e Luz”, e o logradouro onde morava ficou conhecido como a “Rua do Espírita” (atual Rua Espírita). Ele abraçou o espiritismo depois do falecimento do seu segundo filho. Um dia, ao cair da tarde, Batuíra estava na janela da sua casa a ver o Morro do Piolho, de repente avistou o vulto de uma mulher, ela usava um vestido branco, era velha e tinha um coque no alto da cabeça. Ela pediu a ele que orasse pelos mortos do cemitério dos Aflitos. O espírito se identificou como “Júlia dos Aflitos”. O português chegou a conhecer o cemitério antes dele ser loteado e vendido devido à expansão imobiliária do bairro da Liberdade. O médium comentou o acontecido com um outro seguidor do seu grupo. Este revelou que existiu no Hospital de Caridade uma enfermeira chamada Júlia Espada e que era uma boa alma. Batuíra surpreendeu-se com a história toda e chegou à conclusão que a enfermeira era um ser de luz.

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Amargura... Era mui bela e formosa, Era a mais linda pretinha, Da adusta Líbia rainha, E no Brasil pobre escrava! Oh, que saudades que tenho Dos seus mimosos carinhos. Quando c’os tenros filhinhos Ela sorrindo brincava. Minha mãe, Luiz Gama.

J

aneiro de 1821. Mais um negreiro aporta na baía de Guanabara, traz cerca de 180 africanos cativos. São desembarcados em pequenas embarcações no cais do Valongo na “mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Olhares amedrontados, almas atormentadas. Horror, humilhação e medo povoam as vidas dos “pretos novos”, como eram denominados os africanos recém-chegados ao Brasil. Dentre eles estavam uma mãe e dois filhos: Binda, Shamba e Tumango. As crianças tinham, respectivamente, dez e oito anos. Seguindo às normas, foram inspecionados por funcionários da alfândega e os sanitários. Foram conduzidos para um barracão de madeira, uma “casa de engorda”, como estavam debilitados era preciso que passassem alguns dias se alimentando e descansando para que ficassem “apresentáveis” e com “aspecto 43


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

saudável” para serem vendidos. Em seguida, foram conduzidos para um dos mercados de carne humana do Valongo. O cenário era desolador. Um crioulo3 falava aos pretos novos, dava orientações e estava sempre armado comum chicote de couro e um revólver. Intimidava as “mercadorias” contra qualquer desobediência. O chão de terra batido era forrado com palhas e com algumas esteiras. O fedor era incrivelmente desagradável: sem poder ter mobilidade e presos aos ferros, os africanos ali mesmo faziam suas necessidades fisiológicas. O calor infernal do verão, a presença de muitos mosquitos e de um entra e sai de homens a molestarem os cativos, era o inferno na terra. De um lado ficavam as mulheres e meninas, de outro os homens e meninos. As mulheres tinham um pano para tampar “as vergonhas”, os homens ficavam nus. Quando um possível comprador se interessava pelo africano, ele subia em uma mesa e era exposto a todos os olhares e toques, os olhos desses seres humanos escravizados expressava o sentimento de degradação. Naquele momento estava na corte um traficante que adquiria pretos novos, boçais e ladinos para revendêlos na cidade de São Paulo. Fidélis Moraes era dono de um depósito de escravizados no Largo do Piques. Preferia adquirir escravizados jovens e mulheres, depois as revendia pelo dobro do preço em São Paulo. Achava que as mulheres sempre valiam mais pela função reprodutiva e sempre frisava aos seus clientes este detalhe. E as crianças eram mais fáceis de serem 3 Negro nascido na América. Escravizado nascido na casa do senhor. 44


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“adestradas” para o trabalho forçado, além de aprenderem o português rapidamente. Fidélis interessou-se por Binda, Shamba e Tumango. Como não eram batizados, ele tratou de chamar um padre para ministrar o sacramento. Ele perguntou ao traficante se gostaria de escolher os nomes cristãos. Deixou que o sacerdote decidisse, não fazia a menor diferença. Binda, Shamba e Tumango passaram a se chamar Rafaela, Frederico e Gabriel. Juntamente com outros africanos, o trio foi juntado e presos a ferros pelos pés. A viagem seria feita de navio até o porto de Santos. De lá subiriam pela Serra do Mar. Estavam todos em frente à Rua do Ouvidor, Fidélis recontava as suas “mercadorias”. Precisou tirar os ferros para reajustar os pares. Frederico e Gabriel foram contemplados com “a chance”: num minuto de distração Frederico escapuliu. Rafaela olhou aquilo e chamou o menino. Alucinada tentou correr para pegá-lo, ela acabou por tropeçar nas correntes e caiu de cara no chão, quebrou um dente. — Shamba! Shamba! Shamba! O garoto correu veloz, foi derrubando o que estava à sua frente e seu corpo franzino e ligeiro passava por qualquer espaço. Leonício, o feitor de Fidélis, correu atrás, entretanto, não alcançou a sua presa. Transtornado, Fidélis começou a jogar pedras nos africanos e pegando um pedaço de pau, começou a bater em quem acertasse. Os chamava de selvagens, sem almas, desgraçados e todos os impropérios que lhe vieram à mente.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Possuidor de amigos na corte, acabou colocando um anúncio no jornal: “Fugiu ontem da Rua do Ouvidor, um moleque, africano de nação, preto novo, de mais ou menos dez anos, estatura média. Usava uma calça branca de algodão riscado. Tem duas marcas no rosto e os dentes da frente polidos em forma de triângulo. Muito ágil, correu do grupo a que estava integrado. Roga-se a quem o tiver visto ou o pegou, levá-lo à Rua do Cano, nº 70. Será bem recompensado”. Mas que nada! Frederico “evaporou”. Ninguém o encontrou. Rafaela estava tão apavorada pelos últimos acontecimentos em sua vida. Chorava muito, pensou mesmo em tirar a própria vida. Tamanha opressão não podia se aturar. Uma moleca batizada por Laurinda fez amizade com Rafaela. A menina estava assustada e tão frágil fisicamente, estavam na mesma condição. A africana resolveu a proteger na medida do possível. Com os pés machucados, sangue e suor grudados nas peles, e tendo sujo os trapos que trajavam, o grupo de Fidélis chegou a São Paulo. Ele ordenou que os africanos fossem se banhar nas águas do ribeirão Anhangabaú. Era preciso o asseio para serem vendidos. Fidélis resolveu que ficaria com Rafaela, Gabriel e Laurinda. Os daria de presente à sua filha Carolina. Porém, antes os deixou na casa de um conhecido para “amansar” e os “preparar para o trabalho”. Uma vez na mão da sinhazinha Carolina, Gabriel e Laurinda tornaram-se sacos de pancadas. Rafaela, a quem 46


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chamavam pelo apelido de “Binda”, observava tudo e quase nada podia fazer. Temia a violência do senhor para com as crianças escravizadas. A amargura tomou conta do seu coração. Binda não se conformava com a sua condição. A tristeza a consumiu. Não suportando os maus-tratos, acabou por falecer em 30 de julho de 1821, de gastroenterite. Foi enviada ao Hospital de Caridade, instalado num sobrado no Largo da Misericórdia. Sem absorver quase nada da religião católica, recebeu os sacramentos e o seu corpo foi encomendado, teve o sepultamento no cemitério da Santa Casa. Gabriel e Laurinda receberam vestes pretas para colocar em sinal de luto. Acompanharam a rede que conduziu a defunta Binda até a rústica necrópole. As crianças tremiam e choravam tanto que faziam dó as pessoas que tinham sensibilidade pelo tamanho sofrimento e orfandade dos pequenos cativos. — Homessa! Perdi os 40 contos que paguei por essa preta. Não tinha que morrer tão depressa! E ainda por cima o seu pretinho fugiu pelas ruas do Rio de Janeiro. Que baita prejuízo tomei!!! – lastimou Fidélis.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Modesto Antônio

dos

Santos

Que é feito de meu sonho, um sonho puro Feito de rosa e feito de alabastro, Quimera que brilhava, como um astro, Pela noite sem fim do meu futuro? Nunca mais, Auta de Souza

“C

aboclo e caipira” eram como definiam Modesto. Nascido no seio de uma família simples, seu nome de batismo combinava com a situação dos

seus pais. Chegou ao mundo em 1804, na Vila de Porto Feliz, às margens do rio Tietê, no interior da Capitania de São Paulo. Seus progenitores, Lino e Isabel tinham mais quatro filhos, “três machos e uma fêmea”, conforme falava-se na época. Modesto era um sujeito introspectivo, baixo, de olhos grandes e atarracado. Quando adolescente trabalhava no roçado da família. Vez ou outra quando havia excedente das hortas, Modesto e Isabel seguiam para a praça matriz de Nossa Senhora Mãe de Deus a fim de vender os produtos e conseguir algumas moedas. Aquela vida miserável incomodava Modesto. Ele desejava algo maior: ter boas roupas e acessórios como os homens da elite que observava circularem na matriz. Ter uma bengala com inscrição era o seu maior desejo, era um símbolo 48


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de nobreza e poder. Pobre Modesto, só tinha mesmo os poderes da imaginação e da cobiça! Certa feita ele conheceu uma moça formosa, ela usava cabelos penteados, maquiada, uma blusa de babados brancos e bem decotada e saia florida. O capiau ficou deslumbrado com aquela visão. Puxou conversa com a mulher e ofereceu laranjas e goiabas, as que precisava vender. A rapariga achou graça, aceitou o presente e o convidou para ir até a “sua casa”, o prostíbulo da vila. Modesto todo animado pôde “experimentar” os serviços prestados no lugar. Enlouqueceu! Ao final, a jovem perguntou se ele tinha dinheiro para pagar pelo “trabalho”. Inexperiente, balançou a cabeça de forma negativa. Ela deixou passar desta vez, mas na próxima que ele viesse “com algum no bolso” e passou logo o seu preço. Modesto jurou que viria prevenido. Ele foi embora para o sítio, perdido em seus pensamentos e anseios. Já em casa, falou aos pais que fora assaltado no caminho. Isabel percebeu que os braços do filho estavam arranhados e acreditou no ataque. Ele só pensava em como conseguir dinheiro para pagar os préstimos da sua Indaiá, eis o nome da sua paixão! O trabalho na roça não oferecia o necessário para as suas despesas. Modesto aproximou-se dos malandros das cercanias. Passou a roubar e cometer outros delitos. Afastou-se da família. Acreditava que tudo o que praticava valia para poder prover presentes para a sua Indaiá. Fez carreira no mundo do crime e foi ganhando rapidamente experiência, fama e dinheiro. Resolveu tirar Indaiá “da vida”. 49


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Mudaram-se para Campanha no interior de Minas Gerais. Modesto passou a administrar vários bordéis e constituiu um bom patrimônio. Para manter o bom funcionamento, era seleto na escolha dos seus “empregados”, pagava muitas propinas para as autoridades. Comprou diversas escravas negras para trabalharem nos seus estabelecimentos. Indaiá agora era uma respeitada sinhá, administrava os assuntos do lar e da sua prole. Sabia que o marido gostava de “testar” todas as mulheres que iriam trabalhar nos bordéis. Não sentia ciúmes até... quando Modesto apaixonou-se por Engrácia, africana da Mina. Era uma mulher de beleza exuberante, tinha um porte de nobreza, talvez fosse alguma princesa na sua terra. Percebendo cada vez menos a presença do consorte no lar e a sua falta de interesses íntimos, Indaiá que era mulher vivida, colocou Modesto contra a parede. Ele admitiu o concubinato e decidiu que podia permanecer com as duas, afinal, “não mandava no coração”. A situação do casal flutuou na incerteza durante alguns meses. Modesto decidiu que iria enviar a esposa e os filhos para São Paulo, com o pretexto de “oferecer melhor estudo à prole”. Passou a dar maior atenção à família e a “se comportar” como Indaiá desejava. Na década de 1840 a capital paulista limitava-se ao pequeno núcleo urbano e ao aglomerado de casas feitas de taipa de pilão, restringido à colina que se elevava entre os vales do Tamanduateí e Anhangabaú.

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Modesto adquiriu um bom sobrado. A parte de baixo destinava-se à cocheira e à cozinha. Encima estavam as alcovas, as salas de visita e as despensas. As cinco janelas tinham vidraças e balcões. As janelas ainda contavam com travessas de madeira cruzadas obliquamente que se erguiam de baixo para cima, possibilitando certa discrição para se olhar para a rua sem ser notado. As paredes dos cômodos no piso superior contavam com pinturas claras e decorações de arabescos. Indaiá amou a transferência e o novo estilo de vida na capital. Deveria ser mais animado do que “nos cafundós das Gerais”. Uma vez instalados na cidade, o casal e os filhos saíram para conhecer o lugar. O burburinho dava-se pela presença dos negros de ganho a mercarem os seus produtos: guloseimas, animais, vassouras, cestos e outros produtos; outros negros concorriam aos chafarizes e bicas para abastecer as residências dos seus senhores. A população de mais ou menos 10 mil almas (no núcleo urbano) dividia-se entre brancos, índios (menor quantidade), pardos, pretos crioulos e africanos. Os outros 12 mil habitantes estavam espalhados pelas dez freguesias suburbanas. As principais edificações eram o Palácio do Governo e o Senado da Câmara – ocupado no rés do chão pela Cadeia -, das grandes janelas de ferros avistavam-se os presos e dali exalava um fétido odor. Nas saídas do burgo estavam os conventos de São Francisco e do Carmo, o da Luz ficava retirado. As igrejas eram várias: da Sé, do Colégio, da Misericórdia, dos Remédios, de São Gonçalo, do Rosário e de Santa Ifigênia, e as capelas eram ainda em números maiores. 51


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

No domingo foram até o Jardim Botânico (atual Parque da Luz), muito bem cuidado, com esculturas, chafariz e um lindo coreto. Por ali estavam o Lazareto, o Convento da Luz e a Casa de Correção. Haviam diversos profissionais liberais como carpinteiros, sapateiros, barbeiros, pintores, pedreiros, ferreiros, alfaiates, ourives entre outros. Alguns estrangeiros vindos da corte abriam seus comércios em São Paulo, eram alemães, ingleses, franceses e até prussianos. Paulatinamente a cidade vai crescendo, pois era um entreposto comercial entre o litoral e interior. Cosme, o rebento mais velho do casal, morava em São Paulo há tempos, veio fazer o curso preparatório para ingressar na Academia de Direito. Eles queriam um filho doutor. Os negócios e maracutaias do pai e o passado da mãe não eram comentados em casa. Quando os filhos perguntavam pelos parentes, respondiam que todos haviam morrido num desastre. A presença da Academia de Direito trouxe animação a São Paulo em 1827. Recebeu estudantes de diversas partes do império, cerca de 1/3 eram provenientes do Rio de Janeiro. As produções culturais e políticas floresceram. A presença dos acadêmicos provocou mudanças em antigos costumes paulistas, eles trouxeram as novidades da vestimenta europeia, as “estudantadas”, o crescimento das orgias, tabernas, livrarias e divertimentos ao ar livre. Indaiá adaptava-se à nova vida, Modesto permaneceu algum tempo na cidade, mais tarde afirmou que precisava voltar ao interior para cuidar dos seus interesses comerciais. 52


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Ela já era uma mulher experiente e pagou a uma vizinha para ficar “de olho” no marido. O casarão da Vila de Campanha permaneceu fechado, apenas Modesto se hospedava lá quando estava no lugarejo. Sobre Engrácia, ela permanecia no bordel. Os anos passaram. Os filhos cresceram, estudaram e os mais velhos se casaram. Cosme resolveu fazer uma visita à sua terra natal e levar a sua esposa para um passeio. Quando chegou a Campanha, dirigiu-se à casa do clã. Encontrou em uma das janelas da frente uma mulher negra, bem vestida, com colares, pulseiras e grandes brincos de pérolas. Seria Engrácia de quem sua mãe tanto falava nos últimos tempos? A africana não conhecia o rapaz. Ele chegou e perguntou pelo sr. Modesto, identificou-se como um sócio de São Paulo. Engrácia o convidou para entrar e aguardar, iria mandar um escravo chamar o patrão. Ele observou a sala de visitas, poucos detalhes haviam mudado. Nervoso, batia com o pé no chão a todo momento. Sua esposa sem entender nada, estava apreensiva para situarse no problema. Engrácia pediu para servir um café e bolo de fubá com goiabada. Fez algumas perguntas sobre os negócios do amásio. Chamou pelos filhos, queria os apresentar, eram quatro. Estupefato, Cosme olhou a escadinha de “mulatinhos” e não queria acreditar! Engrácia fez altos elogios ao companheiro. Falou que ele a tirou do cativeiro e lhe deu uma “vida de rainha”. Embora sofresse muito preconceito na cidade, a posição social e 53


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financeira do marido fazia com que muitas pessoas “calassem a boca e a engolissem”. — Oh, senhora, o senhor Modesto teve um primeiro casamento, pois não? A mulher o mirou de olhos arregalados. Ela rebateu o questionamento afirmando que o amante era viúvo. Sofreu demais nas mãos da primeira consorte, uma meretriz a quem Modesto deu uma grande chance e a “tal” não soube aproveitar. Naquele momento Cosme se enfezou e ficou com as faces rubras. Ele ia levantar-se para fazer uma retaliação à africana quando seu pai adentrou a sala. — Cosme? Tu por aqui? O que te traz a essas bandas, meu filho? — Vim te fazer uma surpresa, senhor meu pai, e eu é quem tive uma surpresa, não é mesmo? — Cos-me, Cos-me... – gaguejou o velho. – Meu filho, vamos com a devida calma. A Engrácia é minha companheira, sabes como é, o homem não pode viver só... Armou-se um forrobodó danado! Engrácia mandou que Cosme e sua esposa saíssem da sua casa. Modesto procedeu igualmente. Imediatamente, o casal regressou a São Paulo e relatou à Indaiá o acontecimento desastroso. Ela revelou toda a verdade ao filho, sem pudor ou ressentimentos. Decidiram entrar com um processo de divórcio e partilha de bens através do Tribunal Eclesiástico. Indaiá revelou todos os “podres” de Modesto desde os tempos de Porto Feliz. O clima esquentou! 54


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Assim que foi notificado, Modesto foi preso e veio em diligência para São Paulo. Engrácia o acompanhou. Todo o seu dinheiro não foi capaz de comprar a sua soltura. Modesto tinha diversos inimigos, contatados com antecedência pela esposa preterida. Choveram acusações. Modesto foi condenado à prisão perpétua e teria que trabalhar como galé (trabalho forçado de um carcerário). A esposa e os filhos transferiram-se para a corte. Engrácia era forra e resolveu partir às escondidas, foi condenada por concubinato. Uma vez liberta das amarras da escravidão não desejava agora viver atrás das grades. Modesto era um canalha e criminoso, que pagasse pelos seus erros sozinho. Completaram-se sete anos que Modesto estava preso. Parecia que tinha envelhecido 30 anos. Sentia-se humilhado, fracassado, injustiçado, irado e cansado do trabalho pesado. — Isto aqui não é uma cadeia e sim uma escola de imoralidade! – falou Modesto. — Óia sô quem diz. O amigo aí é um cínicu. Conheço vassuncê das banda de Minas. — Cala-te, seu preto imundo! Quem pensas que és para dirigir a palavra a minha pessoa? Começaram a brigar. Com uma pedra o outro preso acertou a cabeça de Modesto. Ele caiu desmaiado. Quando o carcereiro correu para apartar a confusão já era tarde. Os guardas colocaram Modesto em uma rede e o levaram até o Hospital de Caridade. Ele morreu poucas horas depois. Modesto Antônio dos Santos, o caipira de Porto Feliz 55


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

que conseguiu fazer fortuna como cafetão em Minas Gerais e “tirar a barriga da miséria”, foi enterrado no cemitério da Sé em 11 de junho de 1854. Ninguém foi chorar na sua cova. Apenas João Coveiro fez uma oração pela alma daquele ser perturbado.

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Meu

neto soldado

Livre! Ser livre da matéria escrava, arrancar os grilhões que nos flagelam e livre penetrar nos Dons que selam a alma e lhe emprestam toda a etérea lava. Livre, Cruz e Souza

D

écada de 1850. Catharina era uma preta liberta, africana de coragem, mãe de grande prole. Ana Vicência e Maria do Espírito Santo foram as únicas filhas que permaneceram em sua companhia. O trio trabalhava como agregado na casa do major Nuno Luiz Bellegaro. Umbelina era filha de Ana Vicência. Tinha 13 anos e trabalhava como aguadeira, comercializava o precioso líquido de porta em porta. Sua prima, Gabriela, de 17 anos, a acompanhava no trabalho. Trajavam turbantes, blusas brancas e saias vermelhas. As meninas eram vaidosas, usavam pulseiras, colares e brincos de miçangas que elas mesma confeccionavam. Ana Vicência era mestiça. Vivia com Evaristo, negro forro. Umbelina tinha a pele mais escura do que a mãe, por isso, era considerada uma “cabra”. Odiava quando a chamavam de “Umbelina cabra”. Na freguesia de Santa Ifigênia as meninas eram muito conhecidas, costumavam cantar um pregão brejeiro:

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Olha a água, A água, freguesa, Água fresquinha da bica, Água boa, com certeza. Olha a água, Água boa, freguesa, Água do chafariz dos padres Água cheia de pureza. Olha a água, Água boa, freguesa, Venha a janela para ver As aguadeiras da beleza. Herdando uma tradição antiga da vestimenta paulista feminina, as mulheres brancas e ricas quase não saiam às ruas, a não ser para irem à igreja ou às festividades religiosas, nessas ocasiões, além de usar seus melhores trajes, as casadas usavam mantilhas pretas e as solteiras, na cor branca. Cobriam quase todo o corpo. As paulistas não acompanhavam as modas europeias. As mulheres pobres também usavam esse acessório em tecidos mais grosseiros, como a baeta. Tia Catharina, como era chamada pelas pessoas, gostava das suas netas, mas o seu maior orgulho era o neto Manoel, filho de Maria do Espírito Santo e irmão de Gabriela. Tinha 30 anos e era soldado do 5º Batalhão de Infantaria. Vez ou outra visitava sua família na casa do major Bellegaro. 58


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A avó o exibia para o resto da criadagem enquanto segurava o seu cachimbo de cabeça de saci. Ali ninguém tinha um parente soldado. Genoveva até virava a cara quando o rapaz chegava. Não aguentava a língua e a soberba de Catharina. Na sua mente soava a desconfiança que Manoel era filho do major, mas nunca ninguém soube. Em 1858 um surto de varíola assolou a cidade e morreram milhares de vítimas. O Hospital de Caridade ficou abarrotado e os doentes ficaram espalhados pela calçada. Dentre os pacientes estava o soldado Manoel. Antes de morrer, se confessou, recebeu todos os sacramentos, em seguida, foi encomendado e sepultado no cemitério. Seus parentes não se conformaram. Agora só era saudade... Catharina caminhava todas às segundas-feiras até à capela dos Aflitos para rezar pela alma do seu neto querido. Um dia ela encontrou com d. Lina e contou a sua história. Ela foi alforriada, assim como as filhas. Todos trabalhavam em serviços domésticos e agora que um neto havia alcançado um “posto de branco”, morreu da maldita “bexiga”. Três meses depois, Catharina teve uma forte diarreia e faleceu. E parece os ventos funestos não pararam de soprar para aquela modesta família: Umbelina e Gabriela também feneceram vitimadas pela varíola; o coração de Maria do Espírito Santo não aguentou. Sobrou apenas Ana Vicência. Passados uns tempos ela começou a demonstrar um comportamento estranho e apático. O major a enviou à Casa de Correção. Ana acabou colocada na rua e passou a vagar pela cidade. Gostava de ficar 59


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com as lavadeiras no Largo do Tanque do Zuniga (atual Largo do Paissandu). Uma tarde, Ana ouviu uma voz a chamar. Um vulto que andava sobre as águas do Zuniga a convidava para ela ir até lá. Ela começou a andar para alcançar a mão do vulto. Entrou no tanque, ajoelhou e inclinou-se para frente. Dormiu em um sonho. Seu cadáver foi encontrado boiando no dia seguinte e levado para o cemitério, onde repousavam todos os seus parentes.

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Cabocla

do

Pará

“O eco da primeira palavra fica sempre no coração.” Provérbio africano

M

aria do Pilar era da província do Pará. Tinha cabelos lisos, pele morena e baixa estatura. Chegou a São Paulo na companhia da família de Luiz Machado, proprietário de uma chácara para os lados do (atual) Cambuci. O acesso dava-se pelo Caminho do Mar e por lá passavam muitos tropeiros e viajantes. A casa que habitavam tinha as paredes caiadas de branco, mas estavam amarelas de velhas. O chão era de tábuas, estava encardido, foi poucas vezes raspado. A varrição era feita apenas uma vez por semana. O piso da cozinha era de terra batida e cheio de buracos, estava sempre enlameado. As “secretas” (espécie de penicos) ficavam do lado de fora do lar, atrás de umas trepadeiras. Duas escravizadas se revezavam no esvaziamento das tinas aonde eram depositados as “imundices” (urinas e excrementos) e outros refugos da casa. Tocar violão e cantar era o que melhor Maria do Pilar sabia fazer, além de tratar da sua sinhá. Gostava de apanhar flores e colocá-las nas tranças do cabelo. — Pilar, Pilar, Pilarrrrrrrrrrrr... - chamava a sua patroa a qualquer momento e exigia ser atendida imediatamente. Não era fácil a vida naquela chácara. 61


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Havia um ótimo pomar e um belo jardim à frente da casa, cuidados pelo negro Castilho. Caprichoso em sua ocupação. As roupas da sua sinhá deviam ser lavadas, passadas e engomadas por Pilar. Uma vez por semana ela acompanhava a escravizada Nita até o rio Tamanduateí para essa atividade. Levavam o sabão feito em casa e cordas, amarravam-nas nas árvores para a secagem, ou então, estendiam as roupas sobre a grama. O trabalho era duro, bater, ensaboar, enxaguar e torcer cada peça. E em meio ao trabalho, as lavadeiras almoçavam, conversavam, brigavam, bebiam, cantavam e dançavam. Depois de secas as roupas, Pilar as dobrava com esmero e as ordenava em um cesto forrado com flores odoríficas. As lavandeiras eram conhecidas por serem briguentas e desbocadas, para manter a ordem e a moral, um guarda sempre passava à cavalo pelas margens do Tamanduateí. Infelizmente nesses pontos também eram comuns acontecerem crimes contra essas mulheres, como estupros e mortes. Maria do Pilar sentia muita dificuldade em carregar as pesadas trouxas até a chácara. De tantas reclamações, Castilho foi encarregado de buscar as trouxas. Ele era um negro alto e robusto. Há tempos Castilho estava de olho em Pilar. Gostou do jeito da caboclinha. Ele até tentou jogar seu charme, contudo a moça não correspondia e o desdenhava. — Já disse a vosmecê que não gosto de negro escravo. Para casar-me prefiro um melhor partido! – esnobava Pilar. Castilho sentia aquelas palavras flecharem o seu coração com o mais puro fel. 62


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O patrão havia adquirido uma propriedade no Caminho para a Mooca. Era preciso limpar o terreno e preparar a base para a construção de uma casa e um pasto para a criação de cavalos, bois e vacas. Castilho e outro escravizado foram designados para o trabalho. Construíram um casebre para dormir na temporada que ficariam lá. Maria do Pilar não saía da sua cabeça. A qualquer desculpa, ele voltava para chácara. Entrava pela porta da cozinha e perguntava à Nita sobre a caboclinha do Pará. — Vassuncê aqui di novo, Castilho? Num é possíver! O sinhô num vai gostá di ti vê aqui. Isqueci a Pilar. Ela num é moça pro seu bico, é prutigida da patroa e vassuncê sabi disso homi di Deus! – dizia Nita. Ele estava disposto a fugir com Pilar, caso ela aceitasse. Ele se esmerava para trazer flores, frutas e o que estivesse ao seu alcance para mimar sua inspiração. Cansada da perseguição, um dia Pilar atirou o conteúdo da “secreta” na cara de Castilho. Ele ficou ali parado, imundo e indignado. A jovem contou à sinhá sobre o ocorrido. Ela deu muita risada e respondeu que Castilho era o seu melhor escravo, “obediente, trabalhador e manso”. Depois daquela “brincadeira”, ele não a aborreceria mais, com toda a certeza, ela ponderou. Ele realmente cessou nas investidas. O tempo passou e o trabalho na outra propriedade ia de vento em popa. O sr. Luiz Machado um dia resolveu levar a sua esposa, Nita e Pilar para conhecerem a nova chácara. Elas foram todas alegres para o passeio. Era a chance que Castilho precisava. 63


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Ficou decidido que seria armada uma barraca para passarem a noite no lugar. Foi feita uma fogueira e pediram para Pilar cantar e tocar modinhas e canções da sua terra. Machado permitiu que seus escravizados tomassem cachaça à vontade. Era dia de festa! À noite enquanto todos dormiam, Castilho pegou Pilar e a levou para o matagal perto do rio. Amarrou um pano em sua boca e a violentou. Foi tão horrível! Ele descontou toda a sua ira pelo desprezo da jovem. Ela sofreu uma hemorragia. Foi deixada ali mesmo. Castilho advertiu que se ela o denunciasse, a mataria. Regressando ao novo sítio, acordou o outro escravizado, seu cúmplice. Começaram a gritar e chamaram o patrão. — O que houve, Castilho? — Num sei, sinhô, ouvi as pisada di arguém. Intraram aqui na chácara. Será qui robaram quarqué coisa? Os homens acenderam duas tochas e começaram a seguir as pisadas. O outro africano ficou para cuidar das mulheres. Um cachorro os seguiu. Encontraram umas telhas quebradas e umas madeiras espalhadas pelo terreiro. Receoso que o meliante estivesse por ali, Machado começou a atirar para o alto. Ninguém mais conseguiu dormir e veio o raiar do dia. Um homem montado no seu cavalo trazia Pilar na garupa. Ela inventou que havia sido raptada à noite e violentada na margem do rio. Sua saia estava toda ensanguentada. Machado mandou que ela fosse levada ao Hospital de Caridade à Rua da Santa Casa. Ela permaneceu internada alguns dias até a hemorragia 64


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cessar. Pilar chorava bastante e sentia dores. D. Lina tentou puxar o assunto. O caso foi levado à justiça. Isso aconteceu em janeiro de 1832. Castilho sentia-se orgulhoso do seu feito, estava vingado. Nunca mais permitiria que uma mulher o humilhasse. Pilar passou a não mais lavar roupas no rio, permaneceu debaixo das vistas da senhora. Tinha pânico quando Castilho se aproximava para lhe entregar uma flor. — Vassuncê é tão bunita, minina Pilar. Põe essa fulô nus cabelo. Balança as trança! – pedia Castilho. Ela esboçava um sorriso e por dentro temia ser atacada novamente. Meses depois seu vestido começou a ficar apertado. Sua senhora achou que ela estava comendo demais e precisava maneirar. As mudanças no seu corpo denunciavam uma gestação. Quando descobriu, Pilar ficou atordoada. Não, não desejava aquele bebê! Nita conhecia uns preparados abortivos. Conseguiu as ervas, e deu à Pilar. Ela tomou, mas o resultado esperado não ocorreu. A criança teve que nascer. Castilho, embora se contivesse, sabia que o filho era seu e estava vaidoso. Os gritos de Pilar ecoavam pela casa. Foi um parto difícil. Nasceu uma menina gorda e mestiça. A mãe nem quis ver o seu rostinho. A senhora aconselhou que Nita a deixasse na Roda dos Expostos naquela noite. Castilho quis entrar na casa para ver o bebê. O sr. Machado não permitiu e o mandou voltar ao trabalho. Naquela noite, Nita, o bebê colocado num cesto, e o patrão montaram em seus cavalos e subiram pelo Caminho 65


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

do Mar. Enquanto Machado segurava uma tocha, Nita desceu do cavalo e foi até à Roda da Santa Casa. Deixou a menina, fechou a porta cilíndrica e tocou o sino. O barulho acordou d. Lina que foi até lá recolher a enjeitada. No dia seguinte, Castilho foi perguntar novamente pela criança. A resposta que recebeu foi de que o bebê nasceu morto com o cordão umbilical enrolado no pescoço. O Sr. Machado tratou de levar o anjinho para ser enterrado no cemitério. Sem pedir licença, Castilho saiu às escondidas e subiu em direção à Rua da Santa Casa. Coincidentemente, naquele momento, estava acontecendo um enterro de anjinho. Ele acreditou que era a sua filha. De joelhos adentrou a capela dos Aflitos e chorando pedia à santa perdão pelo seu erro. Sua filhinha é que pagou por aquele pecado. Machado passava montado em seu cavalo quando flagrou Castilho no portão do cemitério. Quis saber com que ordem ele teria ido até lá. A situação ficou estranha. Ele foi apanhando dali até chegar na chácara. A enfermeira Júlia Espada decidiu adotar a menina. Uma vizinha sua, que não tinha filhos pediu à Júlia para ficar com o bebê. Ela possuía uma boa condição financeira e era viúva. Acabou por criar a menina que foi batizada como Francelina Amélia. A menina cresceu feliz em seu novo lar, aprendeu as primeiras letras, a costurar, a bordar entre outras prendas femininas. Amava música, a mãe contratou uma senhora alemã para lhe ensinar a tocar piano. Tendo um ótimo ouvido, achou um violão em casa e passou a tocá-lo. Francelina era muito esperta. 66


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Dez anos se passaram. A mãe adotiva de Francelina morreu de repente e não deixou testamento. A garota foi confiada à Júlia Espada. Foi triste. Habituada ao conforto e aos mimos da falecida mãe, agora a menina teria que se conformar com a pobreza e dividir a casa com pessoas desconhecidas a quem a enfermeira dava guarita. Seis meses depois, as pernas de Francelina Amélia começaram a inchar demais. A situação só piorou, ela foi internada no Hospital de Caridade e diagnosticada com hidropisia. Acabou por morrer em sete de março de 1843. Maria Pilar continuou a viver com os Machado, assim como Castilho. Uma doença uterina fez com que a mulher padecesse por alguns meses. Uma forte hemorragia fez com que a levassem ao Hospital de Caridade. Foi quando revelou a verdade sobre o estupro ocorrido há dez anos atrás. O escravo africano foi conduzido à Cadeia e sentenciado. Um mês e um dia após a morte da sua filha, Pilar veio a óbito. Foi enterrada no cemitério da Glória. A família compareceu ao velório. Nita conversou com d. Lina. Falou que há dez anos havia deixado na Roda uma menina mestiça e ela usava uma corrente com um medalhão com a imagem de N. Sra. da Conceição, pertencente à Nita, pois julgou ser uma “prova de identificação” caso Pilar se arrependesse do abandono, poderia voltar e resgatar a filha. E justamente Lina é quem retirava as crianças da Roda. Ela lembrou-se do caso porque a menina foi adotada pela vizinha da enfermeira. E o medalhão ela sempre usou no pescoço. Pensava ser um presente de sua mãe adotiva. Com as 67


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informações cruzadas e confirmadas, Nita começou a chorar e não pôde acreditar que a menina Francelina Amélia fora enterrada tão pouco tempo antes de Pilar. — São cousas da vida, Nita! – afirmou tia Lina.

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Dois

inocentes

Canta, poeta, a liberdade, - canta. Que fora o mundo sem fanal tão grato... Anjo baixado da celeste altura, Que espanca as trevas deste mundo ingrato. Oh! sim, poeta, liberdade, e glória Toma por timbre, e viverás na história. Maria Firmina dos Reis

C

ristina era uma das vinte crianças da preta Candoca, africana Mina, muito estimada por seu senhor: por aumentar o seu cartel de escravizados consideravelmente. A maior parte dos filhos eram resultados dos relacionamentos com o seu dono. Moravam em um amplo sobrado à Rua do Jogo de bola, travessa da Rua da Cruz Preta (atual R. Quintino Bocaiúva). Quando as crianças alcançavam a puberdade eram vendidas. Candoca não gostava nada daquela situação, mas tinha medo de perder as regalias que tinha naquela casa. Sofria muito a cada partida. Com os últimos filhos, o senhor prometeu que não os comercializaria. Mentiu! Cristina, a “ponta de rama”, foi vendida a um casal de forros, Manoel Rodrigues da Silveira e Francisca Maria da Conceição. Habitavam uma casinha nos baixos da Rua Tabatinguera, no fundo do quintal passava o rio Tamanduateí. 69


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Trabalhar, trabalhar, trabalhar e sobreviver: era a dura realidade de Cristina. Não saia na rua, passava muito tempo de cócoras a lavar roupas para Francisca e outras freguesas que ela arranjava. Engomava e cozinhava também. Manoel foi até o Juiz de Órfãos e requereu para a sua tutoria duas africanas livres. Embora “livres”, seriam submetidas à labuta forçada. Pela Lei Feijó de 7/11/1831, que proibia o tráfico de escravos trazidos para as terras brasileiras (a famosa lei para “inglês ver”), se fosse provado que o africano tivesse entrado no país após aquela data, com a ajuda de um advogado e de testemunhas, o africano seria encaminhado para a proteção do Estado, e ficaria à disposição para trabalhar e receber um salário. Em seguida, deveria provar o período de trabalho de 14 anos em casas ou comércios particulares, para assim conseguir emancipar-se (livrar-se do poder pátrio) e aí sim, viver livremente... Mas teria que continuar enfrentando o racismo, a discriminação e as faltas de oportunidades. Ele conseguiu levar duas mulheres, Constança e Joana. Elas passaram a trabalhar na condição de “alugadas” para chacareiros no Campo Redondo (atual bairro dos Campos Elíseos). Desejoso de um homem forte, Manoel conseguiu levar Alexandrino, um moçambicano. Manoel era bissexual. Obrigaria Alexandrino a manter relações com ele a troco de algumas regalias e dinheiro. Tudo deveria ser feito no mais absoluto segredo, caso contrário, eles poderiam ser acusados de sodomia pelo Tribunal Eclesiástico. O africano aceitou. Propôs ainda outro negócio: por Alexandrino ser um homem viril poderia ganhar dinheiro 70


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como “reprodutor”. Manoel o alugaria para outros senhores escravocratas para tal finalidade. A cada criança nascida, eles receberiam um valor, que seria repartido entre Manoel e Alexandrino. O negócio parecia vantajoso... e foi! Cristina apaixonou-se por Alexandrino. Não o achava bonito, ele tinha escarificações no rosto e no peito, porém, o seu “porte atlético” (como diríamos hoje) e o seu charme o transformava num deus de ébano!!! O senhor fez vistas grossas ao romance dos dois, embora sentisse ciúmes de Alexandrino. Mas Cristina geraria mais um escravo, ela era uma escravizada. Em menos de um ano, em abril de 1842, Vidal veio ao mundo. Um bebê robusto, nasceu com mais de quatro quilos. Sua dona também teve um menino na mesma ocasião, Jesuíno, nasceu mirradinho e fraquinho. Em primeiro lugar deveria Cristina amamentar Jesuíno, depois que ele estivesse satisfeito, poderia dar de mamar a Vidal. Francisca começou a notar que o seu neném não engordava, chorava demais, enquanto Vidal crescia saudável. Cristina não seguia às ordens da senhora. Pouco ligava para Jesuíno, o que importava era o seu filho. Francisca ameaçou tirar o filho caso ela não amamentasse direito Jesuíno. Cristina andava irrequieta e atrevida. A maternidade a fez mais forte e corajosa, só pensava em uma forma de poder fugir. Uma manhã, Francisca ordenou que Cristina fosse passar o dia e realizar trabalhos domésticos na casa de uma amiga à Rua da Boa Morte. Era preciso deixar Vidal, ele atrapalharia nos serviços. A escravizada pediu para Alexandrino “ficar de olho” na criança. 71


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Às escondidas, a pedido da patroa, Alexandrino pegou o seu filhinho e o deitou na Roda dos Expostos, na Santa Casa. Recebeu uma boa recompensa pela execução do serviço. À noite, ao chegar à casa, Cristina foi procurar pelo filho e... nada! Diante de Francisca caiu de joelhos, a olhava com olhos de fúria. Queria saber de Vidal! Seu desespero materno a fez levantar e revidar o silêncio de Francisca. Ela ameaçou avançar para bater na mulher. De chicote nas mãos, a senhora começou a chicotear a escravizada, sem dó e nem piedade. Manoel chegou e encontrou Cristina jogada no chão, toda ensanguentada. Humilhada e machucada, Manoel a levou até o quartinho onde dormia e fechou a porta com um cadeado. Voltou e foi inquirir a esposa sobre o acontecido. Ela revelou a verdade. O consorte ficou louco, como ela mandou para a Roda um bebê escravizado? — Que sandice, esposa! Olha o prejuízo! Eles discutiram durante um longo tempo. Francisca não era boba, ameaçou denunciar as “suas atitudes depravadas para com o Alexandrino”. Manoel engoliu seco a acusação. Não se falaria mais no assunto. Cristina mal conseguindo se mexer na sua esteira, lembrou-se de como sua mãe sofria ao ver cada filho ser levado pelo próprio pai para ser vendida. Ela passou por isso. Seu Vidal era a única alegria da sua desgraçada vida. Alexandrino foi mandado cuidar das feridas de Cristina com sal, vinagre, limão e pimenta. Ela perguntou se ele sabia de alguma coisa. Alexandrino era um túmulo e disfarçava muito bem. Pediu a ela para esquecer Vidal, eles poderiam fazer outros filhos 72


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juntos. Não, ela não queria! O garotinho foi confiado à uma ama de leite contratada pela Irmandade da Santa Casa. Ele faleceu aos nove meses de morte natural. Foi encomendado e sepultado no cemitério em 19 de janeiro de 1843. O desejo de vingança não saía da mente de Cristina. Ela precisou de paciência. Livrar-se de Jesuíno era a sua meta, mas era preciso cautela. Ela continuou o amamentando e o tratando bem. Quando nasceu os seus dentinhos, ele passou a comer papinhas. Francisca nesse intervalo estava grávida novamente, teve uma menina, a quem dava toda atenção e carinho. Seu sonho era ter uma garotinha. Em abril de 1844 Jesuíno completou dois aninhos. Começou a ter constantes diarreias. Sua ama oferecia comida estragada ao menino. Ele chorava, quase não falava. Francisca acreditou que era caprichos do primogênito, ciúmes da irmãzinha. Chegou mesmo a experimentar a comida que Cristina oferecia ao garotinho. Estava tudo certo. A escravizada sugeriu (cinicamente) que levasse Jesuíno a uma benzedeira, podia estar com quebranto. Jesuíno só piorou, seu abdômen ficou inchado. Um médico o consultou e diagnosticou que ele estava com “lombrigas”, como era conhecida popularmente a Ascaridíase. Ele veio a óbito em 17 de julho de 1844, foi encomendado e sepultado na igreja de N. Sra. do Rosário. Seus pais estavam arrasados. Francisca revelou que nunca experimentara dor tão grande como aquela. Cristina a consolava o tempo todo.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

“Agora sim, a justiça estava feita!”, pensou Cristina. D. Francisca sentiu na pele o que é a perda de um filho. Ela não experimentou nenhum remorso. Tempos depois, sua mãe, a preta Candoca conseguiu ser alforriada pelo seu proprietário, ele já estava doente, viúvo e velho. Ela pediu para que ele comprasse Cristina, sabia do seu paradeiro. E assim foi. De volta à casa de sua infância, Cristina foi bem recebida. Agora sua mãe era a dona do lugar. Ela contou sobre o sequestro e desaparecimento do filho. D. Candoca falou sobre a possibilidade da Roda. Elas dirigiram-se até à Santa Casa. O escrivão Jair verificou que em outubro de 1843 um bebê foi deixado na Roda, ele possuía as características descritas por Cristina, era robusto, mestiço e era portador de seis dedos em cada uma das mãozinhas (polidactilia). Jair informou que o menino tinha sido levado pela ama de leite até o Hospital de Caridade, acabou por falecer de morte natural. Que duro golpe para a esperançosa Cristina! Tempos depois, ela encontrou-se com Constança e Joana, as africanas livres tuteladas por Manoel, elas conseguiram a ajuda de um advogado, recém-formado na Academia de Direito, e denunciaram as condições vividas nas mãos do déspota. Durante o dia vinham à cidade para a realização de pequenos trabalhos, à noite eram obrigadas a se recolherem à Casa de Correção, perto do Jardim Botânico (atual Parque da Luz). Cristina as convidou para irem trabalhar em casa de sua mãe, dando guarida e apoio às suas antigas colegas de “infortúnios manoelinos”.

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Tava

vivo?

Canta, canta Coleirinho, Canta, canta, o mal quebranta; Canta, afoga mágoa tanta Nessa voz de dor partida; Chora, escravo, na gaiola Terna esposa, o teu filhinho, Que, sem pai, no agreste ninho Lá ficou sem ti, sem vida. Coleirinho, Luiz Gama

E

m 1850 a Lei Eusébio de Queirós foi promulgada e proibia o tráfico de escravos, a lei foi elaborada no Segundo Reinado pelo político Eusébio de Queirós Coutinho da Câmara (1812 – 1868). A partir desta data a marinha inglesa realizava forte guarda nas faixas costeiras brasileira e africana. A repressão foi pesada. Muitos tumbeiros foram aprendidos e os africanos eram resgatados e levados de volta ao seu continente. Tornou-se cada vez mais difícil conseguir escravos africanos, e o seu valor aumentou consideravelmente. Mesmo assim, traficantes portugueses e brasileiros tentavam driblar a legislação vigente e conseguiam contrabandear africanos e desembarcá-los em pontos isolados de difícil acesso. Infelizmente, em dezembro de 1850, Pedro foi um dos africanos que teve a infelicidade de chegar numa praia 75


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de Ubatuba, na província de São Paulo, juntamente com mais duzentos negros, provenientes do porto de Benguela, em Angola. O bergantim que o trouxe conseguiu enganar a vigilância britânica nas águas do Atlântico sul. O desembarque ocorreu em barquinhos menores no período noturno. Os cativos foram escondidos em um barracão. A carga já estava toda negociada, arrematados por um cafeicultor de Taubaté. Ele reclamou muito do preço pago por cada “peça”, mas era aquilo ou nada. Durante a viagem, um dos africanos mostrava-se apavorado demais, os feitores pensaram tratar-se de um maluco. Na verdade, ele tinha medo de ser devorado por um branco, como comentavam em sua tribo. Dizia aos colegas de infortúnio que seriam engordados e depois jogados em grandes tachos para serem cozidos e depois servidos aos homens brancos. Para chegarem a Taubaté, subiram a serra pelo antigo braço do Caminho do Ouro da Estrada Real, construído a partir de antigas trilhas indígenas. Necessário seria pousar antes de chegarem ao destino. À noite, os cativos foram acomodados em um barracão ao lado de uma pedreira. O africano tido como “louco”, havia perdido a razão, começou a bater sua cabeça contra a parede de pedra. Uma pancada mais forte fez seu crânio se estraçalhar e seus miolos voaram encima dos outros. Um feitor ao ver a cena de terror que se instalou entre os negros, pegou o revólver e atirou para cima. Todos se calaram. Um mestiço conseguiu se comunicar com os pobres infelizes e os aquietar. Chegados à fazenda, logo começou o penoso trabalho. 76


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O latifundiário precisou ir à capital para acertar umas contas. Levou em sua companhia dez homens jovens com intensão de vendê-los para fazer algum dinheiro. Como eram boçais, tudo era mais exigente. O aprendizado era absorvido por meio da violência. Em São Paulo o fazendeiro encontrou-se com um antigo inimigo. Ao saber que o adversário estava envolvido em negócio ilegal, não titubeou e formulou uma denúncia oficial. A autoridade competente foi até à residência do fazendeiro taubateano à Rua São Bento. Eles conversaram e o caso foi canalizado para as mãos de um juiz. O proprietário rural ficou em maus lençóis e precisou entregar os seus dez bens móveis (os escravos) ao Juíz de Órfãos. Pedro e os outros africanos foram conduzidos à Casa de Correção. Uma espécie de recolhimento de africanos livres. Não era uma cadeia, pois as pessoas ali internadas não eram criminosas, mas o tratamento recebido não era diferente. O provedor da Irmandade da Santa Casa havia solicitado ao presidente da província, Vicente Pires da Mota, o envio de alguns africanos livres para o trabalho de serventia no Hospital de Caridade. Pedro foi um dos escolhidos. A direção da Irmandade o designou para trabalhar com João Coveiro. Ao saber do que se tratava o seu trabalho, Pedro não queria aceitar, tinha pavor de defuntos. Não sabia como encarar a morte. Com linguagem gestual e balbuciando algumas palavras em português, explicou a João que na sua aldeia às exéquias eram feitas com grandes festas e comilança. Era o momento da travessia do defunto para o mundo dos ancestrais, e essa 77


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ocasião era muito comemorada. Inclusive, costumava-se não enterrar a cabeça do finado, ela ficava para fora da terra e assim ele podia assistir à festa. João ficou um tanto confuso, mas era sabedor que os africanos tinham costumes e tradições diferentes das cristãs. Precisando obedecer às ordens para cumprir os anos de trabalhos necessários para alcançar a sua emancipação junto ao império, Pedro começou a auxiliar João nos sepultamentos. E nas primeiras inumações, deixava a cabeça dos mortos para fora, seguindo os seus conhecimentos. João ficava muito aborrecido, já havia explicado mil vezes que aquilo estava errado: naquele cemitério o procedimento de enterro era outro! Mesmo contrariado, Pedro trabalhou por três meses no cemitério. João é que tomava o cuidado de colocar os corpos de cabeça virada para à capela, deitados de lado e com as mãos em posição de oração. O jovem estava desiludido com o seu destino! Comentou que preferia ter ficado na fazenda e trabalhar com o café. Ele não havia sido batizado, fora sequestrado e contrabandeado em Benguela. Comentou com João. Ele ficou de conversar com um diretor da Irmandade para que o capelão do hospital realizasse o sacramento. Pois só assim, teria sua alma salva caso morresse, de acordo com os mandamentos da igreja católica. Dias depois, Pedro sentiu uma forte dor de cabeça enquanto roçava o mato alto nos fundos do cemitério. Caiu desmaiado. João pediu socorro e o levaram até o hospital. Ainda estava vivo. O médico concluiu que o jovem africano havia sofrido um ataque cerebral. Ninguém quis acreditar! O 78


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capelão ministrou o batismo ao doente em perigo, em seguida, foi a vez da extrema-unção. O corpo de Pedro ficou rígido. Foi declarado o seu óbito. O defunto foi encomendado e enrolado em um lençol branco e conduzido ao cemitério em 12 de março de 1851, tinha o jovem mais ou menos uns 20 anos. Tia Lina disse que havia o visto se mexer. Pedro estava vivo, apenas inconsciente. O médico disse que a mulher estava “a ver coisas demais”. O enterro aconteceu. Naquela noite, Lina não dormiu. Sonhou o tempo todo com Pedro, ele pedia ajuda, sentia-se sufocado. Implorou para que João fosse até o cemitério e desenterrasse o corpo. Não seria possível, ele poderia ser gravemente punido. — Faça à noite, ninguém vai desconfiá, eu levo a tocha para alumiá a cova. — Óia Lina só vô fazê purque ocê tá mi azucrinano dimais das conta. O pressentimento de Lina estava afinado, ao abrir a cova rasa, o corpo de Pedro estava virado de barriga para cima. João caiu sentado. — Intão ele tava vivu quanu foi interrado? — Ocê num tá vendo, tava sim! — Nossa Sinhora dus Aflito, valei-mi. – disse João ao jogar terra de volta à cova. Não se aguentou e foi comentar o caso com o médico. Este explicou que Pedro deve ter tido um “ataque histérico” (ainda não era designado como catalepsia). O doutor disse que nas próximas vezes era preciso ter mais cautela. — Tamém recomendo isso ao sinhô, seu dotô! – respondeu João Coveiro. 79


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Primeiro

amor

Meus amores são lindos, cor da noite Recamada de estrelas rutilantes; Tão formosa crioula, ou Tétis negra Tem por olhos dois astros cintilantes. Meus amores, Luiz Gama

J

osé Ricardo da Cunha foi um filho muito desejado por seus pais. Sua chegada trouxe alegria ao lar. Sua mãe, d. Januária Maria, tinha dois filhos mais velhos, foram criados longe de si. Sua mãe, d. Feliciana de Barros acreditava que a filha por ser jovem demais não “daria conta do recado” de cuidar dos bebês, e os levou para o seu lar. Januária queria muito ter uma menina, para ser sua companheira e ensiná-la a fazer penteados, contar histórias, ser vaidosa escolher bons perfumes e aprender a fazer belos bordados... Seu marido, o advogado Miguel da Cunha, preferia outro varão. Dr. Miguel era um profissional de proa na província de São Paulo. Atuou como lente na Academia de Direito. Os rebentos mais velhos, João Carlos e Pedro Augusto, já tinham 13 e 12 anos. Visitavam os pais apenas uma vez por semana. O vínculo afetivo era distante. Com o novo bebê seria diferente. Após o nascimento de José Ricardo, Miguel presenteou a esposa com a escravizada Irene. Ela tinha uma filha recém80


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nascida, chamava-se Lourença. Januária Maria e Irene se entenderam muito bem, e os senhores foram padrinhos de batismo de Lourença. As duas crianças cresceram juntas e eram parceiras nas brincadeiras. Frequentavam à missa dominical. Irene era uma mulher submissa aos donos. Achava que sua situação de escravizada era mais “leve” que de outros negros que conhecia. Seu maior medo era ser enviada para trabalhar em alguma fazenda. Sua figura calada quase passava desapercebida no sobrado dos Cunha, na Rua do Rosário. Uma manhã, ao acordar, Irene sentiu uma forte dor de cabeça, o peito parecia que ia estourar. Lourença despertou e começou a gritar por socorro. D. Januária correu para acudir, no entanto, Irene estava morta. Foi o coração. O pequeno José Ricardo sentiu a morte da ama, só não mais do que Lourença que estava órfã. A abraçou ternamente e desejou as condolências. Januária também lastimou aquela perda, pois Irene era o seu apoio, aquela que sempre trazia-lhe uma boa palavra ou conselho. Elevava a autoestima da patroa. A senhora sentia-se preterida pela mãe desde pequena. O seu casamento foi arranjado, no princípio não gostava do marido, em seguida, acostumou-se à sua presença. Por deferência aos serviços prestados à família, Irene recebeu um sepultamento digno no túmulo do clã na Matriz da Sé. Lourença tão perdida ficou, só chorava, tinha somente sete anos de idade. A madrinha mandou fazer um vestido preto para a menina. Ela passou a ser uma mucama, como a mãe. Apesar das diferenças sociais, a garotinha continuou 81


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amiga de José Ricardo, que passaria pela mesma dor da orfandade três anos mais tarde. D. Januária Maria foi acometida pela tuberculose. O dr. Miguel da Cunha viajava bastante, resolveu então enviar José Ricardo para ser criado pela avó d. Feliciana. Lourença o acompanhou. No testamento de Januária, ela foi deixada ao filho caçula. A anciã não era nada simpática. Vivia a fazer elogios superlativos aos netos mais velhos e menosprezava José Ricardo, o achava mimado e preguiçoso. José Carlos e Pedro Augusto afirmavam que o mano era sentimental demais, um maricas... Precisava aprender “certas lições de homem”. — Parece que o José só sabe viver debaixo das saias das criadas e da vovó. Se pudesse grudaria em Lourença! – zombou João. — Cala-te! – gritou José Ricardo. — João, vamos mostrar a esse fedelho que ele não precisa grudar nas saias femininas e sim levantá-las! – disse Pedro e soltou uma forte gargalhada. – Já tem 12 anos e precisa “praticar”... — Praticar o quê? – perguntou José Ricardo já curioso. Os irmãos disseram que naquela noite ele iria descobrir. Eles saíram, após a ceia, e rumaram para a Rua das Flores. Em uma casinha, que pertencia à avó, eles costumavam levar as escravizadas da casa para a divertida e sempre desejada cópula carnal. Eles gostavam de “praticar”! Combinaram com a negra Quintiliana que José Ricardo estaria presente ao encontro. Ele ficaria sentado numa cadeira, 82


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quietinho, para assistir a “aula”. “Já estava na hora de aprender algo de bom na vida”, diziam os irmãos. O “professor” seria João, Pedro ficaria em casa para distrair d. Feliciana. Naquela noite, José Ricardo assistiu o irmão arrancar o cabeção e a saia de Quintiliana, a jogar na capa e a ter volúpia total. De olhos arregalados, José sentiu-se ouriçado. Teve sua primeira ereção. Queria fazer “aquilo” com Quintiliana também. — Nada disso. Vosmecê aprendeu como se faz? Agora vá procurar uma mulher. Procure por Lourença, ela é de sua propriedade e obrigada a fazer o que desejares, meu irmão! José Ricardo correu afoito para casa. Foi direto ao quartinho de Lourença. Bateu na porta e se identificou. Ela estava recolhida com uma camisola branca. José a acariciou de uma maneira diferente. Suspendeu a vestimenta e a deixou-a nua. Ela ficou assustada com aquela ousadia. Ele a beijou. Forçou a relação. — Vosmecê é minha, Lourença. Deves fazer o que eu pedir! Ela consentiu calada. Prazer não houve, somente dor para a menina. José sentiu um grande orgulho! Agora era homem de verdade! Ordenou que ela não poderia nada dizer à d. Feliciana. Era um segredo, caso contrário, ele mandaria cortar a sua língua. Terminada a cópula carnal, ele correu para contar aos irmãos. Lourença ficou sentada em sua cama, apalpando o seu corpo e sem saber direito o que tinha acontecido, era apenas uma criança! 83


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No dia seguinte se levantou, serviu a mesa de café junto com Úrsula. Em seguida, subiu para arrumar o quarto de José Ricardo. Acanhada, ela entrou e ele indagou se ela tinha gostado da “brincadeira”. Ela não respondeu. — Lourença, hoje à noite te procurarei de novo! E assim, os dois jovens foram descobrindo as suas sexualidades juntos. Ele tornou-se carinhoso e os dois se apaixonaram. D. Feliciana de Barros não demorou a perceber a mudança de atitudes do neto. Ele estava muito assanhado e cheio de liberdades com Lourença. Vômitos, náuseas e desmaios a escravizada passou a ter. A velha ficou desconfiada. O crescer dos seios e da barriga denunciavam prenhidão. — Que orgulho, mano. Como és esperto, tu aprendestes rápido a ser um homem! – articulou Pedro. — O que dizes, Pedro? — Ora, ora, vais ser papai! — O quê? O quê? — Vais me dizer que não sabia que as “brincadeiras” fazem bebês? — Não. Não. Não, Pedro. Não pode ser! — Pode sim. Já, já, vosmecê será pai de um “mulatinho”. Atordoado, ouviu dos irmãos que eles eram pais das crianças escravizadas da casa. — Nunca percebestes que os bebês tem a pele mais clara? Os manos lhe explicaram que ele não precisava se 84


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preocupar com a situação. As crianças seriam criadas por suas mães e aos homens não cabia nenhuma responsabilidade. A avó era sabedora daquela conjuntura, mas o assunto não era comentado no ambiente familiar. Ele não se conformou. Era sensível e desejava assumir a sua responsabilidade. Seria pai! Poderia estar em pé de igualdade com o seu progenitor. Já era um homenzinho. Passou a preocupar-se com Lourença e a tratá-la com mimos. Gostava de acariciar a sua barriga e discutiam qual seria o nome do nenê. D. Feliciana mandou chamar o genro. Explicou o que se passava. Decidiram que assim que o bebê nascesse, ele e a mãe seriam vendidos. Fariam tudo escondido para não alarmar José Ricardo. O parto foi prematuro devido a pouco idade de Lourença, 13 anos. Ela sentiu as primeiras dores pela manhã, à tarde começou a se contorcer. A parteira Damiana foi chamada. A criança não nascia. Estava virada, era preciso a ajuda de um médico. D. Feliciana negou-se a chamar. José Ricardo permaneceu ao lado da parturiente, agoniado resolveu tomar uma atitude e saiu em disparada a buscar o dr. Agostinho Américo, seu vizinho. Lourença continuava a se esforçar, o médico conseguiu fazer a criança nascer com o uso de fórceps. Que sofrimento terrível experimentou a jovem mãe. Ela deu à luz a um menino, a criança viveu apenas algumas horas. Um padre foi chamado para realizar o batizado às pressas. Segurando o filho o tempo todo, Lourença não se conformava: após tantos esforços o 85


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fruto do seu amor haveria de morrer na noite de 21 de junho de 1848. Ao saber do nascimento, o dr. Cunha correu para o sobrado da sogra. Com o falecimento de José, cuidou para que ele fosse enterrado no cemitério. Não admitia que o nenê fosse seu neto, era sim o resultado de um desvario infanto-juvenil do filho caçula e o caso precisava ser abafado. José Ricardo consolava Lourença. Ela teve febre à noite toda. Dormia e acordava em delírios. O dr. Américo revelou que a garota estava com febre puerperal, corria risco de vida. Lourença acompanharia o seu filho à cova no dia seguinte. A família não queria que José Ricardo acompanhasse o enterramento, mas ele bateu o pé e foi. Ainda encomendou uma série de missas pelas almas de seu filho e da sua amada. As pessoas presentes ao sepultamento se emocionaram ao saber da história. José Ricardo foi até a capela de N. Sra. dos Aflitos e ficou bastante tempo ajoelhado a rezar. Preocupados com o estado emocional do garoto, d. Feliciana afirmou que uma outra escrava poderia fazêlo esquecer do ocorrido. O pai achou melhor levá-lo para uma viagem. Respirar novos ares e espairecer seria o melhor remédio. Posto na corte, José passou a morar com o pai. Nunca esqueceu o seu primeiro amor e nem o seu filho. Resolveu que seria médico, para salvar a vida das pessoas e daqueles que mais necessitassem dos seus préstimos. Passados cerca de 20 anos, José Ricardo retornou a São Paulo. A avó já havia morrido e somente o mano Pedro ainda 86


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estava estabelecido na cidade. João morava na Europa. Ele ficou hospedado no seu antigo quarto... Quantas lembranças e dores vieram à mente! Primeiro esteve na Matriz da Sé para rezar por sua mãe. Depois, seguiu a pé pela Rua da Santa Casa até o cemitério. O encontrou desativado e com o ervaçal crescendo no terreno. A capelinha ainda estava ali. Ele foi até lá e fez suas orações à N. Sra. dos Aflitos. João Coveiro ao descer pela Travessa dos Estudantes, notou que um homem branco, loiro e bem vestido estava na capela. Curioso, pois o humilde templo era procurado majoritariamente pelos pobres, escravizados, forros e excluídos sociais, foi até lá. José Ricardo estava emocionado. João lembrou-se do caso e tentou falar palavras de conforto. Então, o médico contou que havia se casado no Rio de Janeiro e tinha uma filha, a quem deu o nome de Lourença, o seu primeiro amor.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Os

últimos a saberem... Teus olhos cheios de ardores Aninham rosas nas faces... Que seria dessas flores, Responde, se não chorasse? Boêmias, Auta de Souza

—J

á não posso escutar essa modinha novamente! Nego Firmino, tu não sabes lá tocar outra coisa que Madalena Theresa? – disse uns dos estudantes da Academia de Direito que frequentava a taberna Afogamágoa. Abraçado ao seu violão, Nego Firmino desatava a chorar quando alguém pedia para ele não tocar a tal música. — Vassuncê num sabe como dói um coração partido!!! – reclamava. Firmino era escravizado de José Rodrigues de Souza, um português imigrante, mais conhecido como Zé Batista. Proprietário de uma animada taberna frequentada por estudantes e soldados na Rua da Esperança.4 Funcionava na frente de uma casa térrea, com três portas de madeira. Dois barris decoravam a entrada dando às boas-vindas etílicas aos prezados fregueses. 4

Hoje desaparecida, ficava na região da Sé. 88


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— Olha meu amigo, não aguento esse chororô do Zé e do Firmino. Desde que as suas esposas os abandonaram parecem que os homens não têm viço para correr atrás de outras saias! – comentou um estudante com o seu colega. — Cá entre nós, esses dois são o que podemos denominar de “cornos eternos”, pois o amigo veja só: há quantos anos as mulheres já partiram? — Parece que “todos”, pois eu mesmo não as conheci. — Eles estão é a perder tempo! Pobres homens... – concluiu o colega. Madalena e Theresa eram os nomes das esposas de Zé Batista e Nego Firmino, respectivamente. Elas trabalhavam atendendo o balcão do estabelecimento, muita gente passava por ali, principalmente vindo de fora, como os tropeiros. Cansadas daquela vida de aturar bêbados, fumo, boemia, e outras mais chateações, resolveram partir ambas com dois forasteiros. Foi numa noite de lua cheia que a fuga aconteceu. Manoel Rodrigues de Souza era soldado. Homem calmo e correto. Falava sempre ao irmão para mudar de ramo. A taberna estava sempre a causar confusão em suas vidas. Até a mulher o tinha abandonado. E toda vez que algo grave acontecia, lá ia Manoel resolver a bronca com o seu superior. Passou cada “abacaxi” por causa do irmão! Desde a fuga das esposas, Zé Batista e Nego Firmino tornaram-se amigos de “copos”, bebiam para “afogar as mágoas”, que danadas nunca morriam, só cresciam. Ambos eram eternos apaixonados, não tinham vergonha de expor os seus sentimentos. Amavam as suas esposas! 89


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Manoel e os acadêmicos tentaram em vão arranjar outras “opções”, mas eles não aceitavam. Parece que todo aquele sofrimento fazia o Firmino cantar mais bonito com o seu vozeirão. Ele cantava e tocava violão, enquanto o Zé tocava guitarra portuguesa. As canções românticas eram todas bemvindas. E o público apreciava. O que não aguentavam mais era quando o Nego Firmino punha-se a cantar a modinha Madalena Theresa, de sua autoria. Madalena, Madalena Volta, volta arrependida Te recebo, oh morena, Amor da minha vida Theresa, Therezinha, Sem vanssucê vivo tão só De minha alma tenha peninha Do meu coração tenha dó... E seguia a cantilena melosa. E os habitues se fartavam de rir já em alto grau etílico, zombando de dois corações partidos! — Já falei ao Zé para parar com isso. As “galhadas” dos dois já são famosas nesta São Paulo. Daqui a pouco vira matéria da Academia! – comentou o soldado Manoel com um tropeiro. E o coitado do Manoel era quem recolhia o irmão e o Firmino quando os encontrava caídos pelas ruas. — Quantas vergonhas me fazem passar, homessa! 90


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Certa tarde, na Cadeia, Manoel foi chamado pelo capitão. Ele deu um recado intimidador: se caso encontrasse o mano embriagado caído pelas vias públicas, o levaria preso e ainda receberia um processo. — Oh, senhor capitão, não faças nenhum mal ao Zé. Ele anda muito triste. Sabes lá como são os assuntos do coração! Ele nunca mais causará perturbações, eu dou a minha palavra. Nesta vida somos só nós dois e Jesus por nós! O militar deixou o seu posto e voltou para sua casa na Rua da Esperança. Sentia uma forte dor no peito. Já era noite quando se aproximou e escutou um barulho de batidas de batuque! Vinham da taberna. Ele empurrou as portas, estavam fechadas. — Mas o Zé perdeu o juizinho? Batuques são proibidos. É hoje que ele vai preso de vez! – e sentia cada vez mais falta de ar. — Zé, ô Zé... Abras as portas, meu irmão! E nada. Manoel começou jogar pedras da rua, o barulho cessou. Zé Batista abriu a fresta e viu o irmão. Ele estava sem camisa e casaco, descabelado e de joelhos. — Manoel! Manoel! O que tu tens? Manoel! As pessoas começaram a sair da taberna. Correram todos para socorrer o soldado. Conseguiram uma padiola e rumaram para o Hospital de Caridade. Sem médico àquela hora da noite, Manoel faleceu. O Zé e o Firmino se entreolharam e perguntaram:

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— E agora quem cuidará de nós? E começaram a prantear. Foi preciso esperar o dia amanhecer, pois um doutor precisava atestar a causa da morte e um padre necessitava encomendar o defunto-soldado. O enterro de Manoel aconteceu no começo de 1858 no cemitério da Santa Casa. Muitas pessoas vieram dar o último adeus. A situação era triste e ao mesmo tempo engraçada, Zé Batista e Nego Firmino tornaram-se duas figuras populares na cidade. Não faziam mal a ninguém. João Coveiro depois do sepultamento chegou perto de Zé Batista e perguntou-lhe: — Ô seu portugueis, purqui é qui o sinhô tá sempre a chorá? Si é purcausa di muié é bão pará. — O Seu João, sabes lá o que é? É que não me conformo que fui o último a saber da partida da minha Madalena... Uma traição dessa dói demais! Ô seu João, faz o favor de abrir essa cova e me enterrar também. Até o Manoel me deixou... — Pelu amô di Jesuis Cristo, issu num é atitudi di homi! Pra que fui preguntá??? – falou João Coveiro.

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Letras

mortas

“Já estava cansada de viver às margens da vida.” Carolina Maria de Jesus

F

rancisco Bernardo era um português pobre que vivia em São Paulo com mais alguns familiares. Trabalhava como funcionário da Santa Casa de Misericórdia, uma espécie de “faz tudo”. Morador da freguesia do Brás, conheceu no caminho “de casa para o trabalho, do trabalho para casa”, Anna Irinha, filha de crioulos alforriados. Era uma moça faceira. Começaram a namorar e se casaram depois de dois anos. Tiveram apenas uma filha, nascida e batizada em 1797, chamava-se Maria da Luz, nome escolhido porque herdou os olhos azuis do pai. A menina cresceu, tinha estatura média, cabelos cacheados (cachos graúdos) e castanhos. Sua mãe os arranjava em penteados, como os da sua patroa. No alto do coque colocava uma flor para embelezar ainda mais a filhota amada. Maria da Luz foi alfabetizada por uma vizinha, foi uma alegria para os pais. A primeira “letrada” da família. Depressa aprendeu a juntar as sílabas e lia tudo o que caísse nas suas mãos. Embora ficasse um pouco distante, Anna Irinha gostava de assistir semanalmente às missas na igreja do Rosário. Também apreciava as festas e procissões realizadas pela Irmandade dos Homens Pretos. Quase sempre havia batuques, 93


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ao ouvir o ritmo bem marcado por atabaques, tambores e outros instrumentos, Anna sentia toda sua ancestralidade vir à flor da pele. Punha-se a bailar alegremente e requebrava a valer. Já o fazia desde solteira, depois de casada só tinha “liberdade” quando o marido não estava presente. Maria da Luz aprendeu a dançar com a mãe. Quando a garota estava para completar 18 anos, seu pai lhe arranjou um casamento. O candidato era português, primo em segundo grau de Maria da Luz. Acontece que ela estava enrabichada por Felipe Congo, um africano liberto. Ele trabalhava em uma chácara no Brás. Homem habilidoso para a agricultura. Seus pais ao saberem, repreenderam-na severamente. Divergências aconteceram à beça, Maria da Luz ficou tão sensível que acabou se entregando a Felipe. O resultado foi uma gravidez-surpresa. Ao descobrir a “desonra” da filha, Francisco Bernardo quis matar o africano. Os vizinhos o impediram de cometer uma barbárie. Foram procurar o pároco do Rosário. Este aconselhou o casamento. Ter uma filha mãe solteira seria pior perante à sociedade. Francisco consentiu. O casal passou a morar em um quartinho na chácara aonde Felipe trabalhava. Ao apresentar a esposa, ele disse a proprietária, d. Sinharinha, que Maria da Luz sabia ler e escrever. — Não preciso de uma letrada. Preciso é de uma rapariga para trabalhar na terra, nos afazeres da casa. Empregado bom é aquele de “letras mortas”. Ouvistes, Felipe? – falou a senhora a olhar altiva para Maria da Luz, de pele parda, para ela uma negra, que logo remetia, na sua mentalidade, à exploração do trabalho. 94


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— Oh, d. Sinharinha, eu sou livre. Aprendi a ler e a escrever com d. Joana Ribeiro, a senhora a conhece. É nossa vizinha. Posso ter melhores préstimos do que labutar no roçado. — Chega! Como ousas me desdizer? Já disse a vosmecê que é isso ou rua! — A sinhá queira perdoá a Maria, ela tá amalucada. Ela aceita sim, dô minha palavra di honra. – disse Felipe e encerrou a conversa. Felipe apertou forte o braço da esposa e a levou para um canto. Pediu que ela nunca mais afrontasse a senhora. Ela ficou revoltada, não era escrava de ninguém. Precisou engolir o orgulho, necessitava trabalhar para sua subsistência e do bebê que viria por aí. O consorte sugeriu que quando a criança nascesse, deveria ser batizada por d. Sinharinha, uma madrinha que poderia oferecer proteção à criancinha. A esposa protestou de maneira negativa. — Nunca! – exclamou. — Mi diz uma cousa: quem manda aqui é o galo ou a galinha? – provocou Felipe. Maria da Luz queria avançar no seu pescoço. Contou até dez, respirou fundo e saiu para espairecer. Sua vontade era regressar à casa paterna, mas ela não seria aceita. Que fado! Finalmente ela deu à luz a uma menina, bonita como a mãe e de olhos azuis. Com oito dias de nascida, o bebê foi batizado por d. Sinharinha e o seu esposo, o capitão João Fragoso de Mello. Ganhou o nome da madrinha, Sebastiana. 95


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Felipe desejava ter outros filhos, a esposa não engravidava mais de jeito nenhum. Ter um varão tornou-se uma obsessão. Os anos passaram e angustiado, culpava a mulher pela falta de sorte de não ter um “filho macho”. Ele também trabalhava como carapina, uma tarde após cortar algumas madeiras para a feitura de cadeiras, ele pegou um pote de pregos e espetou o dedo em um que estava enferrujado. Aquele homem alto, robusto e cheio de saúde acabou morrendo de tétano. Foi enterrado no cemitério da Glória. Maria da Luz ficou desenganada, o que faria da vida sem Felipe? Para onde iria? Sua patroa a detestava. Ficou acertado que ela e sua filha poderiam servir como criadas da casa. Sem outra solução momentânea, para não ir para a rua, Maria aceitou. Era difícil a convivência naquela residência. A arrogância daquela mulher era de causar embrulhos no estômago. Ela falava: “— Pardinha faz isso. Negrinha faça aquilo...”, em geral eram os serviços mais sórdidos a serem realizados. A revolta crescia no coração de Maria da Luz. A situação só melhorou quando ela aceitou ser amásia do patrão. O velho metia-lhe nojo, mas ele prometeu algumas regalias para Maria e sua filha. Ele as retirou da chácara e as instalou num quartinho no Beco do Sapo perto do Hospital Militar, no Acu. Ela descobriria uma nova gravidez, ficou surpresa. “Um filho do velho?”. Sim, ela deu à luz a um menino. O rebento que tanto Felipe ambicionava... Mesma aspiração do capitão que só teve filhas com a cônjuge. Ele não teve dúvidas, tirou o filho dos braços da amante e o levou para à sua casa. D. Sinharinha precisou aceitar na marra a imposição do marido. 96


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Diante de tantas infelicidades, ela escreveu para o pai um bilhete. Pedia de joelhos perdão por todos os desgostos que lhe dera. Queria voltar à sua casa por misericórdia. Ele não mandou resposta. Continuou a viver às custas do capitão. Sempre que possível ia até o cemitério da Glória chorar na cova do finado. Acendia velas e dirigia-se à capela para pedir a São Francisco das Chagas para a salvar daquele martírio. Sebastiana falou à mãe que estava de namoricos com um português sapateiro. Ele não se importava com a situação em que a futura sogra vivia. O casamento aconteceu, o mancebo recebeu uma carta dos pais, pedindo para ele regressar à “santa terrinha”. E lá foi o casal para a cidade de Braga. Foi então que Maria da Luz resolveu por um fim ao seu relacionamento com Mello. Como era alfabetizada, resolveu pedir emprego como auxiliar na sacristia da igreja do Rosário. Contou ao vigário toda a sua desdita. Revelou que frequentava aquela paróquia com sua mãe desde que era pequenina. O sacerdote era mestiço como Maria da Luz, foi sensível à sua narrativa. Sabia o quanto doía sofrer preconceito. Ele propôs que além de trabalhar para a paróquia, Maria poderia lecionar para os meninos pobres da redondeza que frequentavam as aulas de catequese. Ela amou a ideia! Ficava muito feliz quando as crianças aprendiam a ler e a escrever. Durante décadas, Maria da Luz foi a mestra, mesmo que informal, daquelas crianças desprovidas. Trocou muitas cartas com a filha, ela tentou convencer a mãe a ir para Portugal, porém, ela preferiu continuar em São Paulo e seguir 97


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sua missão de ser multiplicadora do conhecimento. Ao completar 60 anos, sentiu a saúde minar. As pernas começaram a inchar demais. Maria precisou ser internada no Hospital de Caridade. Recebeu a visita de vários dos seus alunos. Conversou longamente com d. Lina, contou toda a sua história. Ao final, concluiu que a instrução recebida na infância e depois repassada para as crianças não foram “letras mortas”, e sim “letras vivas”! — A palavra têm poder, d. Lina! D. Sinharinha julgou que meu conhecimento de nada valeria nesta vida. Por ser pobre e mestiça, tive minha pessoa inferiorizada. Mas provei o contrário! — A senhora tem razão. O mundo é tão injustu... — Sabe de uma coisa: quero ser enterrada junto ao meu Felipe. Lá no cemitério dos aflitos. Na manhã chuvosa de 17 de maio de 1853, Maria da Luz veio a óbito. Foi encomendada pelo capelão e inumada no cemitério. Sua filha nunca soube da sua morte, ponderou que algo grave tivesse acontecido quando a troca de correspondências cessou. Quanto ao filho, que herdou os olhos azuis da mãe, cresceu sem saber da sua origem. Só mais tarde, quando era adulto, ouviu de uma das suas irmãs que ele era “filho de uma rameira, amante do pai”. Demorou para ele descobrir quem era a sua mãe biológica, foi juntando as peças do quebra-cabeça até chegar ao Hospital de Caridade. Foi d. Lina que contou o que sabia, narrada da conversa derradeira por Maria da Luz. 98


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O cemitério já estava com ares de abandono. João Coveiro ajudou a localizar a cova da mãe. O rapaz chorou muito, nada mais podia ser feito.

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No Seminário das Educandas de Nossa Senhora da Glória Geme na min’halma, A alma do Congo, Do Níger da Guiné, De toda África enfim A alma da América A alma Universal Quem tá gemendo Negro ou carro de Boi? Quem tá gemendo?, Solano Trindade

O

seminário funcionou primeiramente na sede do hospital da Santa Casa, na chácara dos Ingleses. Posteriormente foi transferido para o antigo prédio do Hospital Militar, na Ladeira do Acu (atual Avenida São João, onde encontra-se o prédio dos Correios), perto do Beco do Sapo. Foi criado pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo para servir de recolhimento e ministrar a educação primária, prendas domésticas e profissionais gratuitamente às órfãs de pais militares, ou as que fossem indicadas pelo governo, Irmandade, e famílias ricas. Escravos e africanos livres eram os principais trabalhadores no Seminário das Educandas, coordenado por 100


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um diretor. Como eram serventes, ficavam encarregados por todas as limpezas e serviços pesados do lugar. Margarida Mina entrou no Brasil após a Lei Eusébio de Queirós de 1851, conseguiu provar o fato com a ajuda de um estudante da Academia de Direito perante ao Juiz de Órfãos. Tutelada pelo Estado, teria que cumprir 14 anos de trabalhos remunerados para alcançar a sua emancipação (seria uma maneira de escravidão disfarçada?). Acabou enviada para trabalhar no Seminário das Educandas, ralaria como cozinheira e lavadeira, para essa última tarefa teria que dirigirse ao Rio Tamanduateí com uma grande trouxa de roupas na cabeça pelo menos duas vezes por semana. Aos domingos e dias santos as ruas da cidade ficavam cheias de escravizados, negros e mestiços forros, era o momento de estreitar os laços de amizades. Com imensas saudades da sua terra, Margarida uniu-se à Irmandade do Rosário dos Homens Pretos. Chegou a fazer parte da Congada. Gostava de dançar e cantar, possuía boa voz. Porque aquela manifestação era uma resistência e tradição dos africanos. Era uma marca da ancestralidade em terras brasileiras. Sabia que os brancos tinham horror às festas dos negros e aos cortejos fúnebres ditos como “sinistros”. Foi em um domingo depois de um folguedo no Largo do Rosário que ela aproximou-se sentimentalmente de Zeferino Moçambique, africano livre, responsável pelo abastecimento de água no Seminário das Educandas. Diariamente, Zeferino fazia quantas viagens fossem necessárias para buscar o valioso líquido pelos chafarizes e bicas da cidade, muitas vezes, o 101


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

abastecimento era irregular e ele precisava peregrinar por aí para conseguir água. No recolhimento moravam quase cem meninas e adolescentes. Nos dias de folga, realizava o mesmo trabalho para outras famílias e ganhava uns trocados. Tudo seguia bem, apesar da fadigosa lida. Margarida Mina quando sentia que estavam abusando da sua boa vontade, realizava os trabalhos com mais vagar e brigava por seus direitos. Em meados de 1855 um homem chamado Claudino foi trabalhar no Seminário das Educandas. Já havia morado em diversas cidades brasileiras. Apresentou um bom currículo em serviços administrativos. Fazia boa figura. Foi então que começaram a surgir os primeiros casos de estupros das utentes do recolhimento. Uma investigação foi iniciada. Os primeiros a serem apontados foram os africanos, incluindo Zeferino Moçambique. Os crimes permaneceram abafados pelos membros da Irmandade. Seria um escândalo sem tamanho se viesse à tona. Patrícia era uma das internas, ela não andava. Nasceu com essa deficiência. Foi vítima do tarado. Apareceu grávida. Ao nascer, a criança era branca. E no caso das outras adolescentes os nenês também eram de pele alva. Concluiu-se, portanto, que não poderiam ser os africanos os responsáveis pelas deflorações. As meninas andavam tão apavoradas que algumas fugiram. Patrícia sentia-se tão envergonhada por ser mãe solteira que uma tarde conseguiu apoiar o seu corpo no parapeito da janela do sobrado e jogou-se do primeiro andar. 102


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Bateu a cabeça numa pedra. A morte foi instantânea. Dizem que os seus olhos saltaram para fora do globo ocular. Foi um horror! As vítimas foram interrogadas, o diretor desejava saber o nome do predador. Elas não revelavam, nem sob ameaças. Claudino além de pervertido, era torturador e prometia se vingar. A menina Amelinha, de 12 anos, em uma manhã apareceu morta em circunstâncias muito estranhas. As garotas sabiam que era Claudino. O desgraçado disfarçava muito bem, dispôs-se até a procurar o criminoso pelas redondezas e fazer ronda no prédio. O pervertido passou a agredir as africanas livres. Margarida Mina foi a primeira. Fazia de “gato e sapato” a indefesa mulher. Ela o precisava satisfazer sexualmente e realizar as suas fantasias. Margarida um dia falou para ele que preferia morrer a ter que ser sua escrava sexual. Ela não queria mais sair para ir lavar roupas, pois era naquelas horas que o delinquente atacava. Quando ela engravidou, não sabia se o pai era Zeferino ou o monstro do Claudino. Protegeria o filho como uma leoa, com a sua própria vida. Criou coragem e denunciou o depravado agressor. Então, as outras moças também revelaram a verdade. Claudino foi detido, a gravidade dos seus atos o poderia levar a ser condenado à morte pela forca. Na cadeia precisou ficar isolado dos outros presos: prometeram o linchar. O homem

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ficou uma fera, jurava vingança a todos que o prenderam, principalmente à Margarida Mina. Ela vivia angustiada, tinha muito medo de Claudino. Zeferino prometeu a proteger. Em fevereiro de 1857, já no final da gestação, ela soube que Claudino havia fugido da prisão. Por ordem do diretor, Margarida não iria mais sair de dentro do Seminário até o algoz ser preso novamente. Foi mandado um destacamento vigiar a entrada do Seminário 24 horas por dia. Estava Margarida na cozinha do recolhimento a preparar o almoço das meninas, quando viu um vulto pela janela. Assustada saiu para verificar e atrás da mangueira avistou Claudino. Sua reação foi sair correndo, passou veloz pela portaria e foi em direção ao ribeirão Anhangabaú. Margarida gritava, tropeçava e caia. Sentiu a bolsa estourar. Claudino vinha em seu encalço. Num zigue-zague, ela saiu perto do cemitério. O portão estava aberto e ela correu em direção à capela. Lá estavam d. Lina e a mestiça Raulina. Margarida gritava desesperada para que fechassem a porta depressa, um tarado estava a seguindo. As mulheres trancaram a porta. Margarida sangrava muito, acabou dando à luz a uma menina dentro da capela. D. Lina pegou a criança e a enrolou na toalha que ornamentava o altar de N. Sra. dos Aflitos. — Ilana! Ilana! Ilana! É o seu nome. – sussurava Margarida a agonizar. Era o nome de uma antiga interna do Seminário, ela contou à Margarida que o seu nome era de origem grega e significava “reluzente”, “pessoa brilhante”. 104


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Achou tão bonito que queria assim batizar o seu bebê se fosse do sexo feminino. Sem poderem sair, notaram que alguém espiava pelo buraco da fechadura e tentava abrir a porta. Claudino conseguiu. Com os seus olhos de diabo, arrancou a recém-nascida dos braços de d. Lina. Teve a certeza que a filha era sua porque era mestiça. Margarida tentava gritar, não tinha forças. Morreu ali mesmo. Que triste fim! O criminoso fugiu com a filha nos braços. Desapareceu. As autoridades policiais vieram até o cemitério e tomaram as devidas providências. Nos jornais da cidade e em outras localidades foi mandado colocar um aviso sobre o perigoso tarado e bandido. Três meses passados, uma menina foi deixada na Roda dos Expostos numa madrugada. D. Lina a recolheu. Não sabia, mas era a filha de Margarida. Deu o nome de Marculina a criança que foi batizada no dia seguinte. Estava bastante debilitada, foi levada ao Hospital de Caridade. Morreu um mês depois em 30 de junho de 1857, foi encomendada e sepultada no cemitério, na ala dos anjos. Claudino foi descoberto tempos depois na vila de Jacareí. Foi decidido que deveria ser conduzido à capital. Ele confessou todos os seus delitos e que havia deixado a filha na Roda dos Expostos. Foi somente assim que João Coveiro e Lina ficaram a saber que Marculina era a filha de Margarida. Acabou morto antes de ser sentenciado. Zeferino Moçambique conseguiu entrar na cadeia e com a ajuda de outros presos, assassinaram Claudino a facadas. 105


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Na Freguesia

do

Ó

Os crus dissabores que eu sofro são tantos, São tantos os prantos, que vivo a chorar, É tanta a agonia, tão lenta e sentida, Que rouba-me a vida, sem nunca acabar. Maria Firmina dos Reis

D

ona Gertrudes Maria da Silva descendia do bandeirante Manuel Preto, e disso tinha muito orgulho. Era proprietária de uma boa chácara denominada “América” na distante Freguesia do Ó, terras do além Tietê. Era benemérita da igreja de Nossa Senhora da Expectação do Ó (construída em 1796), santa de devoção de seu mais famoso antepassado. Para dar conta do trabalho agrícola da sua propriedade, d. Gertrudes possuía 25 escravizados. Fazia questão que todos os cativos se unissem em matrimônio, “pois o concubinato é um pecado mortal!”, acreditava a senhora. Estimulava e escolhia os pares. Francisco era um crioulo nascido e criado na “América”, portanto, “cria da casa”. Ao completar 18 anos, d. Gertrudes entendeu que era o momento de uni-lo à uma negra adquirida recentemente, Joaquina Maria da Luz, africana da Guiné (vinda do porto de Cacheu, pertencente à atual Guiné-Bissau).

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Francisco gostou de Joaquina, mas a recíproca não foi verdadeira. O casamento aconteceu no oratório particular de d. Gertrudes, em 1819. Anualmente, porque a viagem era complexa, d. Gertrudes e alguns dos seus escravizados seguiam viagem até a Matriz da Sé. Era preciso atravessar o Tietê e as matas que davam acesso ao núcleo central urbano. Ela seguia viagem na sua liteira carregada por quatro escravizados. No ano de 1819 foi a vez de Joaquina acompanhá-la. Elas permaneceriam uma semana hospedadas em casa de uma parente sua, moradora da Rua de São Gonçalo. Joaquina ficou à disposição de sua senhora. Precisava ir buscar água no chafariz de São Gonçalo (na atual Praça João Mendes). Em contato com outros escravizados, conheceu Luiz Guiné. Foi paixão à primeira vista. E aquela cena se repetiu durante aquela semana. Ao ser questionada pela dona pela razão da demora em voltar do chafariz, respondia que existiam filas e as negras faziam muita confusão. Sendo ela de fora, a jogavam para o fim da fila. Tudo lorota! Pensou em fugir com Luiz, contudo, a vida de fujão não era fácil. Era perigoso ser capturado e aí sim a situação pioraria para o escravizado, como a de outro cativo da chácara “América”: Jonjoca, apanhou tanto e teve uma orelha arrancada pelo capitão do mato a pedido de d. Gertrudes. Chegou a hora de regressar à Freguesia do Ó. Joaquina passou a ter asco do marido. Só pensava em Luiz Guiné. Francisco a tentava agradar de todo jeito. Forçava as relações sexuais. Joaquina não correspondia e passou a provocá-lo. 107


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Falou com a senhora que desejava a separação. A anciã a olhou com severidade e questionou aquela decisão. Alegou que Francisco a maltratava e dizia impropérios. Estava roubando aguardente e se embriagando. D. Gertrudes ficou desconfiada, entretanto, conhecia Francisco e ele sempre teve um bom comportamento. Mandou chamar o escravo para ouvir à sua versão. Ele negou tudo, revelou que Joaquina não estava querendo cumprir com os seus deveres conjugais. A velha deduziu que ela poderia ter um amante. Mandou investigar. Não achou nenhum sinal. Chegou 1820. O casal seguia aos “trancos e barrancos”. Nova viagem até o centro seria feita. Joaquina acompanharia a sua senhora. Francisco não a queria deixar ir. Implorou à d. Gertrudes que não a levasse, esta respondeu que ela iria sim e seria muito bem vigiada. Joaquina ganharia as ruas novamente ao ter que buscar água para a patroa e fazer compras. Voltou a encontrar Luiz Guiné. Cansada e cheia de esperanças resolveu escapulir. Às escondidas pegou um cordão de ouro da sua proprietária, escondeu-o dentro da ânfora. O casal tomou o Caminho da Mooca, correram muito. Ao desconfiar da fuga da escravizada, d. Gertrudes avisou um dos seus capangas e mandou que fosse à sua caça. Os dois escravizados andaram durante muitos dias embrenhados nas matas. Alcançaram as terras do atual bairro do Ipiranga. Um caboclo deu guarida aos dois. Joaquina entregou-lhe o cordão de d. Gertrudes. Ficaram ali acoitados. O caboclo conversou com um conhecido que escoltou Luiz e 108


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Joaquina para um rancho pros lados do Jabaquara, ali estariam seguros. Com imensa raiva e sentindo-se lesada, d. Gertrudes entrou com um processo no Tribunal Eclesiástico com a acusação de fuga e separação ilícita de Joaquina. Ela representava o autor do pedido, o seu escravo Francisco. As testemunhas eram pessoas que habitavam sua chácara e três escravos antigos. Todos alegaram que além de adúltera, Joaquina Maria da Luz era feiticeira e não cumpria os preceitos da igreja. A devassa arrastou-se por meses. Foi expedida uma ordem para que Joaquina e o seu amante fossem recolhidos à cadeia caso fossem capturados. Luiz Guiné não adaptou-se à vida no rancho, queria voltar para a cidade. Ninguém sabia que ele era o amante de Joaquina. A deixaria lá, inventaria uma desculpa e nunca mais voltaria. Ela acabou descobrindo o plano. Quis voltar com a sua paixão. Era um perigo! Na viagem de volta descobriram-se doentes. Haviam contraído varíola. Caminharam o quanto puderam, alcançaram a freguesia do Brás. Foi um homem forro que ao vê-los caídos próximos a uma chácara, providenciou que fossem transportados até o Hospital de Caridade. Um médico os examinou e constatou que eram “bexiguentos” e os mandou para o Hospital dos Lázaros, no Guaré (atual bairro da Luz). Os dois acabaram-se identificando ao conversar com d. Lina e o cirurgião-mór, a polícia foi acionada. A parente de d. Gertrudes disse que nem de longe queria saber de uma “bexiguenta” por perto. De qualquer maneira, mandou um dos seus escravizados 109


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avisar a prima na distante Freguesia do Ó. No Lazareto, junto aos morféticos, pelas faltas de higiene e assistência permanentes do lugar, Luiz e Joaquina acabaram falecendo. Os cadáveres envoltos em esteiras foram enviados para serem sepultados no cemitério da Glória em 15 de fevereiro de 1821. Ela tinha 20 anos e ele 27. Quando d. Gertrudes chegou ao núcleo central, foi informada por sua prima que um guarda trouxe a notícia do falecimento de Joaquina. Francisco acompanhava a sua senhora. Ficou incrédulo, a malvada tinha falecido? Pediu licença e foi chorar escondido de todos. Saiu para a rua e perguntou a uma transeunte como chegava ao tal cemitério. Ele foi até lá e encontrou João Coveiro, ele o levou até a cova da falecida. Francisco se ajoelhou e abriu o berreiro. — Joaquina ocê num valia nada, mas sô apaixunado por ocê. Nunca mais vô querê sabe di outra muié. João observou a cena, balançou a cabeça e saiu.

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Desastre

de

São João

“Nunca se esquecem as lições aprendidas na dor.” Provérbio africano

A

s festas religiosas eram uma das principais diversões e atividades sociais dos paulistanos no século 19. Nos folguedos de São João é tradição o uso de fogos de artifícios. Alegria para uns e tristeza para outros. O uso de fogos sempre causou mortes por acidentes. As crianças gostavam de soltar foguetes e bombinhas, principalmente os garotos. Na noite de 20 de junho de 1855, no Largo da Sé, comemorou-se o São João animadamente. O largo ficou iluminado com lampiões e tochas. O sr. Passos Goulart, comerciante destacado, era devoto do santo. Comprava rojões, foguetes e bombinhas para serem lançados após a missa e a procissão. O seu filho Adolfo tinha nove anos e implorou ao pai para dar-lhe um foguete. Adolfo tinha como pajem o moleque Damião, seu escravo. Ele sabia do perigo dos fogos de artifício e avisou o sr. Passos sobre o caso acontecido com o negro Totonho um ano antes, perdeu uma das mãos por motivo de queimadura. O senhor não deu ouvidos e ordenou que ele cuidasse de Adolfo “com os dois olhos bem abertos”.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Uma banda animava o Largo da Sé, alguns dançavam, outros proseavam e a criançada aprontava traquinagens. As negras dos tabuleiros vendiam guloseimas e levavam recados para os namorados. Adolfo queria soltar o foguete sozinho, afastou-se um instante da companhia de Damião, este ao perceber a ausência do amo, correu à sua procura. Minutos depois aconteceu um terrível acidente: ao manusear erroneamente o foguete, ele estourou e explodiu, o corpo do menino pegou fogo, a morte foi quase instantânea! O folguedo cessou. Damião sabia que era o seu sinhozinho. Seus pais tão abalados ficaram que pensaram que iam amalucar. Uma pessoa da família achou que aquela morte foi desgraçada demais, o corpo de Adolfo ficou cheio de queimaduras, irreconhecível. Mesmo sendo um menino inocente, o pai pediu para que os seus restos mortais fossem levados até o cemitério e inumado na ala dos anjos. João Coveiro já acostumado a ver as atrocidades que a morte causava, não se conformava com o óbito de Adolfo. Ele jurava que em diversas ocasiões viu a alma do menino a correr pelo cemitério a pedir ajuda. Adolfo tornou-se uma lenda da São Paulo de outrora.

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Por

uma paixão

Se Deus transforma em sua lei tão pura A dor das almas que o Ideal tortura Na demência feliz de pobres loucos... Súplica, Auta de Souza

F

ortunata foi ama de leite e criadeira de Felicíssimo Floriano, filho de um clã paulista abastado, filho varão de Belíssima do Espírito Santo e de Felipe Floriano. Habitavam a maior parte do ano uma ampla chácara na freguesia da Penha de França. Também possuíam um sobrado na freguesia da Sé. O garotinho cresceu entre brincadeiras e carinhos dos pais. Era mimado e caprichoso ao máximo. Tratava mal toda a gente, dizia-se superior e mais inteligente. Com Fortunata ele media as suas atitudes, ela impunha respeito. Era uma mulher dura, trazia no peito a eterna tristeza de ter o seu bebê retirado dos seus braços e ser vendido. Felicíssimo tinha o hábito de começar uma coisa e nunca terminar. A preguiça tomava conta do seu ser, sempre tinha alguém para mandar que trabalhasse para si. Fortunata chamava o amo para à realidade, ele precisava usar o “tutano”. Ele respondia que era rico e nasceu para mandar, os que tinham juízo o obedeciam, senão... chibata!

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Tinha o péssimo hábito de quando não fizessem o que desejava, prometia se matar. A mãe ficava desesperada diante do teatro do rebento. Ele deveria ter-se dedicado à carreira de ator. Na adolescência o pai o enviou para Europa a fim de estudar e tornar-se um mancebo intelectual. A “sua escola” tiveram por disciplinas obrigatórias a boemia e os bordéis de luxo. Um dia precisou voltar ao Brasil. Ganhou uma pomposa recepção dos seus pais. A mãe enviou convites para os estudantes da Academia de Direito, membros das melhores famílias paulistas, e componentes do clero. Queria exibir o filho refinado e estudado no velho continente! Para fazer bela figura, Felicíssimo concordou em se portar bem. Ele voltou pior do que fora. Os pais guardaram o resultado da decepção para si. Continuavam a falar muito bem do rebento. Às escondidas, o mancebo começou a passar temporadas sozinho no sobrado da Sé. Levava Fortunata em sua companhia, para o servir. Ele andava envolvido com Olga, uma atriz russa de pele alva, cabelos loiros e cumpridos, e grandes olhos azuis. Atuava numa companhia francesa que estava em cartaz na Casa de Ópera no Largo do Palácio (atual Pátio do Colégio). Aquele relacionamento ultrapassou todos os limites. Fortunata avisou à patroa. Felicíssimo queria casar com Olga e lhe dar uma vida de rainha. Estava planejando roubar os pais. Ela não queria deixar a sua amada carreira de lado, mas... para casar bem, que mal tem? 114


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Felipe foi sozinho procurar o filho, sendo intransigente, não cedeu às suas ameaças. Advertiu que o internaria como louco num hospício na corte. Felicíssimo fez um grande alarde! — Vou matar-me! Tirar minha rica vida! O senhor não pode me impedir de viver com a mulher da minha vida! – gritava o jovem. Tanto Felicíssimo chamou pela morte que ela veio ao seu encontro: uma tarde estava a caminhar com Olga em frente ao teatro e foi abordado por um homem negro que o atingiu com golpes de capoeira. Trazia uma faca na cintura e “furou o bucho” do sujeito. Olga gritava desesperada, tinha o vestido estampado com o sangue do amásio. Felicíssimo não resistiu aos ferimentos e morreu ali mesmo. O causador da morte do moço branco foi encontrado e identificado uns dias depois, era Antônio Mestiço e estava acoitado num casebre perto da ponte do Lorena. Ele contou ao capitão, na Cadeia, que Felicíssimo contratou os seus serviços para que ele desse cabo do dono da companhia, era amante de Olga. Ele negou-se a realizar o serviço porque não era matador. Felicíssimo então mandou um capanga surrá-lo. Antônio pensou que fosse morrer. Recuperada a saúde, jurou matar Felicíssimo. Lavou a sua honra! Antônio Mestiço foi sentenciado à pena de morte. Pouco antes da sua execução, revelou a um soldado que ele era filho da escravizada Fortunata e do sr. Felipe Floriano. Havia sido vendido bebê e o seu dono contou a verdade sobre à sua ascendência. No dia em que foi procurado por Felicíssimo, ele se preparava para ir com o seu senhor para conversar com 115


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Fortunata. Queria abraçar a sua mãe. Não deu tempo! O soldado contou o caso ao seu superior. Fortunata foi mandada vir à Cadeia. Declarada a verdade, pôde passar algumas horas em companhia de Antônio. A pobre mulher lamentava à sua sorte e a do filho. Sentenciado a morte por enforcamento, a sentença cumpriu-se no Largo da Forca. Os Florianos foram assistir a barbárie. Ambicionavam ver a “justiça” pelo assassinato do filho querido. Naquele momento, Felipe soube que Antônio Mestiço era também seu filho. O homem manteve-se firme. Conforme de praxe, o corpo foi levado em uma padiola direto para o cemitério. João já abria aberto a cova e esperava para terminar o serviço sendo observado pelos soldados armados. Fortunata tão desesperada ficou que deu cabo da própria vida. Seu cadáver foi enviado às pressas para ser enterrado também no cemitério. Os registros das duas mortes não constam no livro de óbitos da matriz da Sé, era proibido registrar os falecimentos por suicídios e de pessoas condenadas pela justiça civil à pena de morte.

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As Congas “Quem inventou a fome são os que comem.” Carolina Maria de Jesus

H

elena Conga morava com sua filha Maria Conga num quarto da Rua do Comércio (atual Álvares Penteado), local aonde habitavam os africanos livres. Ambas vieram para o Brasil mais ou menos em 1797, pertenciam a um grupo da etnia Congo, viviam próximos à margem do rio Congo. Helena junto com outras mulheres seguiam às tradições africanas, executavam as tarefas da alimentação e circulação dos gêneros de primeira necessidade, vocação que continuará a exercer no Brasil. A aldeia em que moravam sofreu uma razia: cerca de mil pessoas foram sequestradas, alguns morreram e a maioria foi colocada nos ferros. Helena só permaneceu viva com a filha porque seu bebê estava junto ao seu corpo, preso por um pano. Após a violenta e sofrida travessia marítima, desembarcaram no porto de Santos, na Capitania de São Paulo. Alguns feitores já esperavam pela carga humana. Demorou alguns dias para o desembarque, para inspeção da saúde dos africanos, pagamentos de impostos à alfândega, entre outras burocracias. Pouco tempo foi o de descanso após extenuante viagem para outra viagem: agora seguiriam a pé pelo sinuoso 117


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

e perigoso Caminho do Mar ou Calçada do Lorena. Um certo barão havia adquirido um lote de africanos para trabalhar na sua fazenda no interior da capitania. O grupo de cativos, cerca de 100 pessoas, seguiram viagem em comboio atrás de um grupo de tropeiros e sua tropa de mulas. Como o percurso era longo, à noite arranchavam nos pousos ou vilas. Ao chegarem a São Paulo, os escravizados e o grupo que os conduzia iriam mudar de rumo, deixaram os tropeiros. O tal barão estava na cidade e examinou algumas das suas “mercadorias”: apertou a barriga para detectar doenças ou dores -, os braços, os dentes, as pernas; e ainda nas mulheres verificou os traseiros e os seios. O senhor concluiu que dez das africanas, que portavam bebês, estavam magras, eram altas demais e “lisas”, sem nádegas abundantes, e, portanto, não seriam “boas parideiras”. Resolveu vendê-las ali perto, no mercado do Largo dos Piques, por onde passava o riacho Anhangabaú. Comercializou as dez “peças”, como eram denominados os escravizados, por um preço menor. Helena e Maria foram arrematadas por uma família de gente remediada, junto com mais duas africanas. Consideradas boçais, recém-chegadas e nada compreendendo da língua portuguesa, o seu novo dono, homem rude e maldoso, logo fez estalar o chicote para que “fosse compreendido” de maneira mais rápida. Seu nome era Cesário Pinheirinho. Coube a sua esposa Maria Clara “engodar” as “peças” e, a seguir, ensinar os serviços às escravas. Pinheirinho foi avisado que as mulheres já haviam sido batizadas antes de 118


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embarcar para o Brasil, no porto de Cabinda, em Angola. Eram designadas como da “nação Conga”, passaram a ser chamadas de Helena e Maria Conga. Helena contava 21 anos, aprendeu a cozinhar as receitas da terra, lavar, engomar, e ainda amamentava o filho da senhora, esta achou que pelos seios pequenos da africana, ela não produziria leite suficiente para amamentar duas crianças. — Olha lá negra, primeiro tu amamentas o meu filho e depois dá o leite à sua pretinha! – advertiu Maria Clara. Assustada com os berros e as possíveis chicotadas que poderia receber caso não obedecesse, Helena tornou-se servil a fim de proteger a filha pequena. Não demorou para que Cesário arrumasse um tabuleiro para colocá-la, assim como as outras duas africanas que adquiriu, para trabalharem como negras de ganho. Saiam com seus tabuleiros a apregoar guloseimas caseiras pelas ruas estreitas e empoeiradas de São Paulo. Uma tarde Helena foi parada por um guarda, ele quis saber da sua licença para ser vendedora. A mulher não entendeu patavinas e ele tomou o seu tabuleiro. Ela revidou e começou a brigar com a autoridade. Foi parar na cadeia. Na cela encontrou com Iara, uma lavadeira e sua conterrânea, ela falava quicongo, o idioma de Helena. Após rápida conversa, chamou o carcereiro e falou do que se tratava. Imediatamente Pinheirinho foi mandado comparecer à chefia. Ele se fez de matuto e explicou que não era sabedor de precisar de licença do Senado da Câmara para que suas escravas mercassem pelas ruas. Teve ainda que pagar uma multa, só depois teve devolvidos o tabuleiro e Helena. Os 119


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doces, os guardas trataram de “traçar”. A africana conga mostrou ser boa vendedora, criou um pregão misturando palavras em português e em quicongo para chamar a atenção da freguesia. Cesário ficou muito feliz com esse empenho. A pequena Maria acompanhava a mãe, ela amarrava a menina ao seu corpo e o tabuleiro levava na cabeça. Em uma tarde ensolarada, Maria parou no chafariz da Misericórdia para beber água. Ali era o ponto de encontro de escravizados e forros. Conheceu o Domingos, africano do Congo, acabaram se gostando. Conversa vai, chamego vem, decidiram que falariam com os seus donos, queriam se unir em matrimônio, quem sabe assim ficariam juntos sob o mesmo teto. O proprietário de Domingos, morador da freguesia de Santa Ifigênia, aceitou o pedido, e Cesário também. Ele pensou que essa união poderia lhe gerar rendimentos, ou seja, mais escravos. Eles se casaram na igreja de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos, mas cada um ficou morando com o seu senhor. Helena nunca abandonou os seus costumes e tradições. Possuía o dom da vidência. Costumava colocar água em uma bacia branca e jogava lá dentro pedras e zimbos, conchas africanas. Realizava algumas rezas em seu idioma nativo e procedia à leitura. Dificilmente falhava. No pescoço usava um colar de contas azuis, lindíssimo, acreditava que ele lhe trazia proteção. Já a filha Maria usava um colar de contas brancas.

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Já assimilada à cultura do Brasil Colônia, Cesário começou a explorar Helena como “adivinha”. Ela não aceitava, mas a qualquer negativa o chicote estalava. Do seu relacionamento com Domingos teve três filhos, dois meninos e uma garotinha. Tempos depois, o dono de Domingos resolveu mudar-se para outra paragem. Ele nem teve tempo de avisar Helena, foi pego de surpresa. Dos produtos caseiros, Helena passou a comercializar – a mando do senhor – produtos que não podiam ser vendidos por negros de ganho para não prejudicar os donos de armazéns. Era o mercado informal, clandestino, em ação. Ela deveria chegar próximo dos grupos de tropeiros que pousavam na cidade e oferecer sal, toucinho, café pilado, queijo, óleo e carne. Se aceitassem, ela traria as mercadorias. O negócio foi próspero por uns tempos. Uma noite, Cesário e Helena foram pegos, com a ajuda de um burro iriam realizar uma boa venda. Foram presos. Na cadeia, Cesário colocou a culpa na escravizada: foi ela que o intuiu a fazer aquele acordo ilícito. Por incrível que pareça, ele foi liberado e ela sentenciada. Iria levar 25 chicotadas no Largo do Pelourinho (atual Largo 7 de Setembro), e ficaria detida por duas semanas. Cesário lamentou o tempo de prisão, seria prejudicado nos ganhos do mês. Helena ficou revoltada, mesmo não sendo considerada um ser humano e não possuir alma pela sociedade escravocrata, ela tinha sim, era um ser humano e tinha sentimentos. Arquitetou uma fuga, seria no dia das chibatadas. Outros dois negros também seriam punidos por seus delitos. Seriam conduzidos com as mãos e pés amarrados por cordas 121


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

até o Pelourinho. Combinaram de tentarem se soltar, caso conseguissem, atingiriam os soldados com golpes de capoeira. No dia marcado, os homens e Helena saíram nus da cadeia para o horrendo espetáculo público. Uma multidão os aguardava, muitos senhores obrigavam os seus escravizados a comparecerem para que a cena de violência servisse de “lição”. Os africanos conseguiram se libertar, conforme combinado. Em meio àquela confusão Helena olhou para frente e viu os seus filhos junto a Cesário. Ela parou, seu coração de mãe a fez voltar atrás na decisão. Os guardas, já irados, a arrastaram pelos cabelos e a prenderam no pelourinho, enquanto os outros dois conseguiram fugir e se embrenharam pelas bandas do Bexiga. O som da chibata logo foi ouvido. O sangue das costas de Helena jorrava para todos os lados. Ela gritava. Os filhos também. Pedia clemência, socorro! Ao fim das 25 chibatadas, o capitão decidiu que ela precisava receber mais 50, as que seriam aplicadas nos dois “negros fujões”. Cesário correu e pediu a autoridade que poupasse a vida de sua escrava, ela era o seu patrimônio e ele não poderia sair lesado. O pedido foi deferido. Ao soltarem as mãos de Helena, ela caiu no chão de costas e desmaiada. As marcas daquela truculência ficariam em forma de cicatrizes para sempre marcadas no seu corpo. Na cadeia, uma negra cuidou de fazer curativos com sal e mentruz para a cicatrização. Passadas duas semanas, Cesário foi resgatá-la. Aconselhada pela amiga que cuidou das suas chagas, não bateu de frente com o seu senhor. Ela conseguiria 122


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vingar-se de outra forma. Ciente que poderia ser vitimado por um despique, pediu para que os guardas colocassem algemas nos pés e nas mãos da africana. Horrorizada com o que assistiu e passou, a pequena Maria com dez anos era quem substituiu a mãe na venda do tabuleiro. Ao vê-la chegar em casa, correu para abraçá-la. Foi o carinho e a ternura dos filhos que salvaram a alma de Helena naquele instante. No seu pensamento só desejava encontrar Domingos para juntos poderem fugir daquele martírio. Mandou que Maria pegasse sua bacia, pedras e zimbos, resolveu saber do seu destino. A resposta foi que uma mulher apareceria para ajudar. Dias depois, enquanto estava na rua vendendo quitutes, d. Rosalina, sua freguesa, lhe fez uma proposta: poderia tentar comprá-la e aos seus quatro filhos, e mais, conceder as sonhadas cartas de alforria. Helena foi aos céus. Mas como seria aquilo possível? Rosalina explicou que ela trabalharia para pagar pela sua liberdade, a senhora lhe concederia uma hora de folga por dia e todos os domingos para que ela pudesse labutar para si, e ainda poderia contar com o apoio e o trabalho dos filhos pequenos. Rosalina foi falar com Maria Clara, ela queria mesmo se livrar da negra Helena. Já não dava lucro como antes. Não foi difícil convencer o marido. Transação realizada. Helena e os rebentos foram morar com Rosalina numa casinha perto da Ponte do Lorena. Ela não havia dito que estava grávida de Cesário, ele a violentou 123


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algumas vezes depois que saiu da cadeia. Alegava que o corpo da africana lhe pertencia e ele fazia o que “lhe desse na telha”. Ela não queria aquele bebê. Neste ínterim, seus dois filhos menores foram brincar com outros meninos no córrego do Bexiga, acabaram se afogando. A mãe ficou chocada. Amava os seus filhos e dois morrerem de uma vez era demais para o seu sofrido coração. As crianças foram enviadas para serem inumadas no cemitério da Glória. Para se vingar da dor, conversou com uma amiga curandeira e pediu um preparado para provocar o aborto do filho do ex-amo. Depois de beber o chá, Helena teve um aborto violento. Chegou mesmo a pensar que o seu ventre tinha saído junto com o feto. O sangramento foi demasiado. Rosalina com medo de perder a “peça” do seu investimento, mandou chamar um médico. Foi por pouco que Helena escapou de morrer. Toda aquela dor só fez fortalecer a sua coragem e certeza de conseguir comprar a sua carta de alforria e das filhas. Uma força interior a fez trabalhar como nunca. Maria a auxiliava. Vendiam doces, lavavam e engomavam, carregavam lenha, buscavam água, iam jogar dejetos nos rios. Foi um sufoco! Para ter um respaldo espiritual, foi buscar consolação na reza dos terços de N. Sra. da Aflição comandado por d. Lina, que conheceu quando do enterramento dos seus dois meninos. Só conseguiu juntar a quantia necessária para comprar as três cartas de liberdade depois de sete anos! Helena chorou muito quando conseguiu o tão almejado sonho. Rosalina não queria se desfazer de Maria, pediu para a mãe deixá-la em sua companhia. Iria pagar um salário mensal. 124


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Nunca que Helena se apartaria da garota, companheira da sua vida. Conhecidas em toda a cidade por serem “pau para toda obra”, elas prosseguiram trabalhando. Helena fazia consultas através de sua bacia para seus irmãos negros, não cobrava nada. Maria era bonita, chamava a atenção por sua beleza. Apaixonou-se por um homem. Às escondidas da mãe, envolveu-se num romance. Ele era branco e casado. Sua mãe pressentiu algo e consultou a bacia. Colocou a filha contra a parede e a fez ver o perigo que corria. Ela insistiu que o amava e ele prometeu que daria uma casa à família. Freitinhas, como era chamado na intimidade, cumpriu o prometido. Adquiriu dois cômodos na Rua do Comércio e presenteou Maria por “seus estimados favores”. Entregou o documento de posse à amásia. Como o que é bom dura pouco, Freitinhas logo deixou Maria, sua esposa o queria acusar de concubinato com uma negra ao Tribunal Eclesiástico do Bispado de São Paulo. Maria ficou muito triste! Juntas, mãe e filha seguiram em frente, superando problemas e pesarosas lembranças. Num domingo, Helena conheceu Constantino, um mestiço forro. Ele tinha passado a frequentar o terço dos Aflitos, e era irmão do Rosário. Ele passou a cortejá-la, mas ela não queria saber de homem nenhum. Consultou a bacia: valeria a pena, ela já velha, viver um novo amor? A resposta foi positiva.

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Constantino foi morar com a família, passou a colaborar no sustento da casa. Ele foi aquele amparo que a sofrida Helena mereceu no fim da sua existência. Após tantos anos de trabalho e luta, Maria estava tuberculosa. Foi enviada ao Hospital de Caridade. Não resistiu e morreu aos 60 anos, em 17 de janeiro de 1856, sendo sepultada no cemitério. Helena perdeu o chão, não era possível, ela com 80 anos, ter enterrado a sua terceira filha? Foi demais, Maria era sua filha preferida, ela perdeu a razão. Constantino continuou cuidando de sua amada companheira. A outra filha havia se casado e morava muito distante, estava com uma grande prole, nada podia fazer para ajudar. A pedido do cura da igreja do Rosário, alguns irmãos foram designados a buscarem uma doação na cidade de Sorocaba. Constantino foi um dos escolhidos e talvez gastaria dez dias entre a viagem de ida e volta. Pediu para um vizinho olhar por Helena, que não estava nada bem de saúde. O irmão ia à casinha de Helena todos os dias para levar água e comida. Na tarde do dia de São João de 1856 haveria festança no Largo do Rosário, com queima de foguetes e procissão, ele não podia perder! Resolveu ir ver Helena mais cedo, a encontrou deitada em uma esteira, seu corpo estava roxo e inchado. Ela havia sofrido um ataque do coração. Ele saiu gritando por ajuda. Outros dois irmãos pegaram uma rede e a transportaram até o Hospital de Caridade. Ela veio a óbito no caminho. Não chegou a adentrar o nosocômio. Um 126


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médico constatou a sua morte e mandou que levassem para o cemitério. João Coveiro apressou-se a pegar enxada, pá e um pilão, pediu ajuda a Chico preto. Jair, o escrivão, quis saber mais detalhes sobre a velha africana. O irmão do Rosário não sobre informar. — Achu qui o marido dela devi di vortá amanhã pelas minha conta, seu Jair. — Está bem. Que Deus tenha pena da alma dessa pobre sofredora. Amém!!! — Amém!!! – respondeu o irmão. Enquanto os primeiros rojões eram soltos no céu da cidade em homenagem a São João, o coveiro jogava terra na cova de Helena Conga. — Pelo menus ela murreu di veiz. Qui Deus, Nzambi, leva a arma dela prum bão lugá! – falou d. Lina com o terço numa mão e uma vela na outra.

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Tonico Ceguinho “O coração de um homem e o fundo do mar são insondáveis.” Provérbio africano

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le vivia como andarilho. Pouso certo não tinha, nem queria. Na cidade todos o estimavam, não fazia mal a ninguém. Só andava a esmolar. Carregava dois bornais, um contendo um pandeiro e uma gaita, e no outro guardava objetos pessoais. Tonico Ceguinho era o apelido de Antônio Soares, natural da Capitania de Pernambuco, era deficiente visual de nascença. Veio muito pequeno com os pais para São Paulo, e com apenas seis anos ficou órfão. Passou a morar na rua e viver na companhia de figuras populares. Várias famílias ofereceram ao menino proteção e guarida, ele nunca aceitou. Decidido, agradecia a oferta e partia. Para ganhar uns trocados improvisava versos e tocava pandeiro. Os conteúdos das quadras variavam de acordo com o mote pedido. Dizia Tonico que presenciou a chegada d. Pedro à cidade como príncipe regente e o viu sair como imperador do Brasil em setembro de 1822! “Depois ele levou para a corte uma senhora bela, que não era santa, nem donzela...”, o menino cantava ao fazer referência à marquesa de Santos.

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— Dúvido, vosmecê é cego, não pode enxergar! – lhe diziam. — “Sou devoto de Santa Luzia / Deu ela luz aos olhos meus / naquele momento de prefulgia / As amarras o Brasil deu adeus.” – respondida pondo um ponto final no questionamento. Galhofas à parte, o garoto alcançava sucesso. O povo lhe dava moedas, que ele pedia para colocar em uma bolsinha de couro. Não tinha medo de ser roubado, embora cego os seus outros sentidos eram bem apurados e tinha por companheiro um cachorro vira-lata que estava sempre alerta, o Toucinho. Os monges franciscanos o quiseram adotar, quer dizer, o acolher para que o menino prestasse serviço aos religiosos, em troca teria casa e comida. Acostumado à liberdade das ruas, Tonico negou-se a aceitar. “Dou-me com os loucos e com os sãos / Só não quero ordens e nem patrão”, respondia. Também servia de garoto de recados. Sempre discretíssimo, levava mensagens de criminosos da cadeia a quem precisar, de escravizados para outros escravizados, das prostitutas para os seus mancebos, de namoradas e namorados, etc. etc. De todos recebia algum pagamento: em dinheiro, em comida ou pouso por uma ou duas noites. Tonico Ceguinho teve seus pais enterrados no cemitério da Glória, quando sentia muitas saudades ia até lá para rezar por suas almas na capelinha. João Coveiro e d. Lina o quiseram adotar, mas ele preteriu o pedido. “Ando só neste mundo / com saudades dos meus pais / tenho por companheiro o Toucinho / e assim está bom demais”.

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Nos dias de procissão gostava de se juntar ao cortejo, tirava o pandeiro do bornal e tocava com gracejo. Aos santos cantava loas e era muito aplaudido. Tinha fé em Nossa Senhora e em Nosso Senhor Jesus Cristo. Com os negros aprendeu cantigas, danças e certas rezas para fechar o corpo contra qualquer perigo. Apreciava os doces das quituteiras, e com a preta Justina trocou beijinhos e chamegos. Um dia encontraram Tonico arrastando-se pelas paredes do Recolhimento de Santa Teresa, suas pernas e pés estavam enormemente inchados e ele foi conduzido ao Hospital de Caridade. Seu cachorro, velhinho, caminhava e mancava. O jovem estava com hidropisia. O médico o tentou salvar, porém, era tarde demais. Toucinho esperou pelo seu dono na porta do hospital, João Coveiro com pena do animal o levou para o seu quartinho e deixou-o escondido. Tonico Ceguinho, dos recados, dos versos e das brincadeiras, faleceu aos 18 anos. Antes de “partir dessa para uma melhor” pediu a João que queria ser enterrado com o seu cachorro. O coveiro disse que nunca tinha visto um negócio daquele, entretanto, prometeu ver o que conseguia. Foi ao seu quartinho e o cachorro havia falecido também. Com muitos cuidados, procedeu às inumações dos dois amiguinhos. Poucos ficaram sabendo deste fato, ocorrido em 13 de agosto de 1834.

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No Recolhimento (ou na prisão?) Fugir à mágoa terrena E ao sonho, que faz sofrer, Deixar o mundo sem pena Será morrer? Fio pardido, Auta de Souza

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té outubro de 1834 o africano Paulo prestou serviços ao Recolhimento de Santa Teresa, em São Paulo. O local ocupava uma ampla área5: possuía diversas celas, corredores, claustros, uma capela e um quintal. Embora a rotina fosse rigorosa e com muitas atividades religiosas, pois havia freiras no comando da instituição, o recolhimento não era um convento. As utentes vestiam hábitos, mas não professavam votos. Paulo não dormia no recolhimento, seguia para lá quase todos os dias. Ele pertencia ao dr. Ignácio José de Araújo, irmão de uma das mulheres internadas no retiro. Vindo muito pequenino para o Brasil, Paulo quase não guardava lembranças da sua terra. Viveu sempre na companhia da família Araújo. Pouco depois da sua chegada, Violante, uma

5 O Recolhimento de Santa Teresa abrangia o perímetro delimitado pelas atuais ruas: Santa Teresa, Irmã Simpliciana, Roberto Simonsen e Wenceslau Brás, na região da Sé.

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das irmãs do sr. Araújo, fugiu com um homem, um parente distante que foi passar uma temporada em sua casa. Ele a seduziu e o houve a cópula carnal. Não conformado com o desaparecimento da garota de 16 anos, seu pai saiu à sua caça. A encontrou e a trouxe de volta. Entrou com um processo no Tribunal Eclesiástico contra o raptor, exigindo a reparação de danos. Aberta à devassa, o réu não aceitou casar com a vítima. Foi decidido, então, que ele pagaria uma indenização pecuniária e cumpriria degredo de cinco anos em Angola. A pobre Violante ficou sem escolha, tornou-se “a vergonha do clã”. Foi internada no Recolhimento de Santa Teresa. Para ajudar nos trabalhos do lugar, foi acompanhada de uma escravizada. Paulo foi designado para fazer as compras do asilo, levar e trazer recados, buscar água entre outros trabalhos externos que lhe ofereceriam mobilidade pela cidade. Violante nunca mais sairia da clausura, ordens paternas, repassada por herança ao filho mais velho. Preço caro Violante pagou por uma paixão juvenil! De menino, Paulo fez-se moço. Por influência do ambiente do Recolhimento tornou-se um verdadeiro “papa hóstia”. Aprendeu a ler e a escrever, era estimado pelas mulheres recolhidas. Ele também tinha amizade com João Coveiro. Uma triste missão Paulo praticava: quando apareciam mulheres grávidas, ele tinha que levar os bebês até à Roda dos Expostos. Ouviu de diversas moças que aquele lugar não era um recolhimento e

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sim uma prisão! Não, as mulheres não podiam decidir sobre as suas vidas. Ele ajudou diversas a fugir. Havia meninas e senhoras casadas que às vezes eram internadas por motivo de viagem ou longa ausência dos consortes ou pais. Não possuíam parentes ou pessoas de confiança por perto. E nenhum ambiente era mais seguro do que o religioso! – eis o pensamento da época. Para viver no recolhimento, as internas precisavam saber ler, escrever, e pagar um dote, uma espécie de matrícula, além das mensalidades de hospedagem. Em 1818 apareceu por lá um tropeiro remediado, ele tinha uma filha menor, de mais ou menos 14 anos, chamada Bárbara da Conceição. Órfã de mãe, o genitor queria a deixar recolhida para que pudesse aprimorar os seus estudos com as freiras. Ele pagou o equivalente a dois meses de internato. Bárbara era espevitada e foi duro adaptar-se àquela vida rígida e sem graça. Levantava-se às 4h30, rezava tantos ofícios religiosos que dizia que se tantas orações valessem alguma coisa, o mundo estaria salvo de “todos os pecados!”. E dá-lhe penitência todos os dias. Ela desejava se divertir. Era bonita, tinha pele morena e cabelos fartamente cacheados. Seus olhos eram verdes, duas esmeraldas. Interessou-se por Paulo, confessou que não era donzela, já havia namorado com um primo. A carne é fraca e... aconteceu! Foi tudo tão rápido e coroado de êxitos que a gravidez logo se anunciou. Paulo seria papai. A madre superiora não a queria deixar viver lá, seria um péssimo exemplo para as outras. O pai da rapariga prometeu 133


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uma boa soma em dinheiro à instituição. Bárbara permaneceu em uma cela isolada das outras meninas durante toda gestação. A escravizada Yolanda foi quem a ajudou no parto após ouvir os seus gritos de socorro. Bárbara nunca revelou a paternidade do bebê. Paulo também nunca se manifestou. — Quero que a minha filha se chame Escolástica, como a minha finada mãe. Pelas Chagas de Cristo, Yolanda, mande esse recado a quem ficar com a minha menina! – pediu Bárbara. O próprio Paulo foi encarregado de levar a criança à Roda, mas não o fez. Deixou o bebê na porta do capitão João Franco da Rocha. Já tinha acertado com uma mestiça que aceitou criar a garotinha, ele pagaria mensalidades com os trabalhos extras que fazia nas horas de folga. A menina foi batizada na igreja dos Remédios, tendo Paulo como padrinho, constando ser filha de pais incógnitos. No recolhimento havia uma horta e um pomar. No jardim do adro uma linda coleção de roseiras de todas as cores traziam vida e alegria para o lugar. As amarelas eram as mais bonitas e as preferidas de Bárbara. Um dia ao cuidar das rosas, viu uma borboleta de asas amarelas, o inseto a seguiu por onde andava. De repente, um arrepio tomou conta da sua alma. A sineta tocou e ela foi almoçar, depois de regresso ao trabalho no jardim encontrou a borboleta morta na terra. Algumas horas depois soube, através de Paulo, que Escolástica tinha falecido. Ela pulou no africano e o abraçou. Ele a afastou. Bárbara o achou tão frio e cínico. Daquele dia em diante, não se conversaram mais. 134


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Escolástica foi sepultada na ala dos anjos do cemitério da Santa Casa. Na sua cova, Paulo colocou uma linda coroa com as rosas amarelas do jardim do recolhimento. Benedita, uma garotinha muito graciosa, alta para a sua idade, magra e de um sorriso encantador foi enviada para trabalhar no asilo. Seria criada de Beatriz, uma mulher de mais ou menos 30 anos, taciturna e de poucas amizades. Benedita tinha sete anos. Não demorou para que Beatriz demonstrasse atitudes maternas com a criança. Parece que Benê trouxe luz a sua solitária vida. Dona de voz potente e cristalina, a menina era colocada para cantar nos coros das missas. Ela pernoitava com Beatriz em sua cela. Um dia a menina quis tomar banho de chuva, o fez escondido. Acabou ganhando uma gripe. Como não foi tratada, evoluiu para uma pneumonia. A garota veio a falecer em 20 de junho de 1834. Beatriz enlouqueceu. Queria ser enterrada junto com a filha. Foi quando revelou a verdade a todos. A menina foi sepultada na igreja de São Gonçalo, tinha apenas nove anos. Beatriz tirou o hábito e pegou no seu baú um antigo vestido, disse que acompanharia o cortejo fúnebre. Decidida e cheia de coragem o fez. Seus pais apareceram no Recolhimento e ela exigiu que o enterro de Benê tivesse toda a pompa. Teve o pedido atendido. Antes de chegar à igreja, dispersou do cortejo e fugiu. Paulo sensibilizado com o caso, ajudou Beatriz a deixar a “prisão de Santa Teresa”. Outro episódio acontecido lá deu-se com Ana Maria dos Anjos. Filha do soldado Serafim dos Anjos. Eles moravam em um sítio na freguesia de Pinheiros. Serafim descobriu a 135


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gravidez da filha. Encontrou em uma caixinha de madeira as cartas que ela trocou com o namorado. Ele não quis acreditar. O caso foi levado ao Tribunal Eclesiástico. A autoridade religiosa depois de ouvir o réu, a vítima e as testemunhas, declarou que o acusado deveria arcar com as suas responsabilidades, seduziu uma menor e as provas eram as epístolas. Foi o caos. Ao final da devassa surgiram outras denúncias sobre o indiciado. Possuidor de boa fortuna, acabou condenado a pagar perpetuamente os gastos de Ana Maria no Recolhimento de Santa Teresa. Ela foi internada prestes a dar à luz. As freiras não permitiram nem que ela olhasse o rostinho do bebê. Sentia-se humilhada e depressiva. Seu pai, a quem tanto amava, nunca a vinha visitar e ela sentia imensas saudades da vida no sítio... Bom, sentia também... falta do padre! Ana Maria ajudava nos serviços da cozinha e na horta; preferia fazer doces, as guloseimas eram vendidas pelas negras a fim de amealhar renda para o Recolhimento. Sua filha foi levada à Roda dos Expostos, acabou permanecendo com d. Lina e João Coveiro. Escolheram o nome de Emília, a chamavam de “nossa fia branca”. Por duas vezes, Paulo pegou o bebê e colocou em uma cesta e a levou até o Recolhimento e Ana Maria pode ver a filha, claro, às escondidas. Emília era muito frágil e faleceu aos três meses de idade em, abril de 1843. Sete meses mais tarde, em janeiro de 1844, o soldado Serafim dos Anjos, da 7ª. Companhia do 4º. Batalhão dos Fuzileiros, faleceu no Hospital de Caridade, aos 44 anos, vítima de varíola. A sua viúva, mãe de Ana Maria, solicitou as 136


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autoridades competentes à devolução da filha. Foi assim que Ana pôde voltar à freguesia de Pinheiros e... foi viver com o padre, que deixou a batina. Para começar nova vida longe da “má língua do povo”, transferiram-se para a província de Santa Catarina. Sobre o africano Paulo, ele faleceu de “bexigas” em 10 de outubro de 1834, recebeu todos os sacramentos, penitência e extrema-unção. Seu corpo seguiu do Hospital de Caridade direto para o cemitério. Como era bastante conhecido por sempre circular pelas ruas, os seus irmãos de cor compareceram ao seu velório na capela dos Aflitos. Na hora do enterro, cantaram, batendo as mãos e dançavam. Era mais um africano que fazia a travessia para a Calunga. E dentre tantos causos sobre “as moças do Recolhimento de Santa Teresa” que Jair ouviu de João Coveiro e outros que presenciou, escolheu os acima citados para compor mais um capítulo do seu livro de memórias de São Paulo antiga e as histórias do povo.

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Joana Benguela Passai, passai, desfeitas em tormentos, em lágrimas, em prantos, em lamentos em ais, em luto, em convulsões, em dores… Dilacerações, Cruz e Souza

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uando Joana veio ao mundo num dia de 1767, sua mãe recebeu a notícia da morte de sua avó, por isso colocou na bebê o nome de Kusumwa, na língua ovimbundo significa “tristeza”. Joana era filha de Salustiana, mulher escravizada, trabalhava em Benguela, na colônia portuguesa de Angola, na casa de um traficante e latifundiário, seu nome era Narciso da Graça Caldeira. Aliás, Joana era uma das suas filhas. O rico senhor além dos filhos nascidos do casamento com a esposa portuguesa, teve outras dezenas com as criadas da casa e das suas propriedades espalhadas pelo sertão angolano. Alguns aristocratas da terra costumavam alforriar os filhos naturais na época do batismo. Caldeira não o fazia. Preferia esperar completarem 18 anos ou quando resolvessem se casar. Ele fazia alianças através dos matrimônios, com chefes tribais, comerciantes e militares estabelecidos em Benguela, assim constituía laços parentais e de negócios (legais e ilícitos). Na bela residência de Narciso, Joana cresceu com os seus irmãos. Ao completar sete anos de idade passou a ser babá de um meio-irmão. 138


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A senhora da casa, d. Carmem, sabia dos casos do marido. Fazia vistas grossas. Ela era a “rainha” da cidade, possuía as melhores joias, vestidos, sapatos e tudo o que o dinheiro podia lhe ofertar. Também fazia questão que as suas mucamas se trajassem muito bem, até mesmo usavam sapatos para se diferenciarem das outras escravizadas. Pura ostentação! Quando Joana completou 15 anos, o pai pensou em casá-la, mas d. Carmem palpitou que ela deveria acompanhar as filhas Elisa e Vitória a Portugal. As meninas seriam enviadas para aperfeiçoarem os seus estudos e aprenderem regras de etiqueta na metrópole, potencializando as chances de realizarem excelentes bodas. A senhora Gilda Maria, irmã de Narciso, morava em Lagos, no Algarve, sul de Portugal. Ela aceitou educar as sobrinhas. Recomendou ao irmão que não esquecesse de enviar escravas para os tratos e necessidades das “queridas sobrinhas”. Além de Joana, também seguiram viagem as suas irmãs (de pai e mãe), Leonor e Manoela, com 17 e 18 anos, respectivamente. Narciso concedeu as três as cartas de alforrias com a condicional que elas nunca deveriam se apartar de Elisa e Vitória. Salustiana pertencia a uma tribo da etnia Ovimbundo, era natural de Caconda (atual província de Huíla), mas viveu a maior parte da vida em Benguela. Aprendeu com os mais velhos a eficiência de chás e determinadas ervas para curar doenças, realizava benzeduras. Embora na casa do senhoramante apenas a religião católica fosse professada, quando as crianças adoeciam (e lá elas eram “às dúzias”), era Salustiana 139


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que precisava benzer e fazer remédios naturais para curar as moléstias comuns em crianças. Nem sempre existia um médico na cidade à disposição. Ao chegar à data de partida das meninas, Salustiana comentou com outra escravizada que tinha o pressentimento que nunca mais veria Joana e que ela teria um destino triste, fazendo jus ao seu nome africano, Kusumwa. Nunca mais saiu da mente de Joana uma passagem deprimente: na hora que rumavam para o embarque no porto de Benguela, na Praia Morena, elas passaram de charrete em frente ao grande armazém depositário de negros sequestrados pelo interior de Angola para serem vendidos como escravos. Os gritos de desespero e de dor eram chocantes. Ela tapou os ouvidos. Viu uma multidão de conterrâneos serem batizados em coletivo em frente à igreja de Nossa Senhora de Pópulo. Ela fez o sinal da cruz e agradeceu a Deus por não ser um deles. A viagem de navio até Lagos foi demorada e cheia de aventuras. Pensaram que a embarcação nunca chegaria ao destino. A tia Gilda Maria recebeu as cinco garotas com muita alegria, era viúva e não tinha filhos. Joana entregou a ela as três cartas de alforrias e um bilhete, aonde Narciso aconselhava que a irmã tratasse de dar instrução primária às “filhas bastardas”, e as continuasse vestindo decentemente, pois “estavam acostumadas a terem vestes e tratamentos diferenciados dos outros negros”. Joana, Leonor e Manoela consideravam-se cristãs convictas. Sabiam falar o ovimbundu, aprendido com a mãe, entretanto orgulhavam-se de falar o português. Usavam 140


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sapatos e vestidos à europeia. A ninguém revelavam os seus nomes africanos, apenas os cristãos de batismo. Afinal desde o nascimento foram expostas à cultura do colonialismo português. Durante três anos permaneceram em Lagos. Mensalmente visitavam a ermida de N. Sra. dos Aflitos e São Pedro. Joana achava lindo o brasão com as chaves de São Pedro que ficava no frontispício do pequeno templo. Como eram todas bem-comportadas, a tia sempre escrevia nas cartas para o irmão: “tuas filhas pretas têm as almas e os corações mais brancos que já vi”. Gilda Maria morava em Lagos devido ao seu casamento. Recebeu também como herança do marido uma bela quinta em Lisboa, na zona de Benfica. Resolveu que como as sobrinhas já estavam crescidas, todos se mudariam para a capital. Em Lisboa, Joana pôde ver muitas mulheres africanas e escravizadas nascidas no Brasil, que vendiam uma grande variedade de produtos, conhecidas como as “vendedeiras”, também existiam as aguadeiras e as calhandeiras – que depois veio a saber que eram as escravizadas responsáveis por levar os detritos das casas urbanas e jogar os dejetos no rio Tejo. Elas carregavam à cabeça as pesadas e malcheirosas calhandras. Os serviços desprezíveis sempre sobravam para os escravizados. Já os homens eram mais atuantes no descarregamento de mercadorias das embarcações que aportavam no Tejo, na zona da Ribeira. Mestiça e forra, Joana considerava-se uma lusodescendente e muito diferente “daquelas negras escravas”, 141


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como dizia. Nunca ela foi enviada para buscar água em bicas e chafarizes. Quando Elisa e Vitória completaram 14 e 15 anos, a tia conseguiu arranjar bons pretendentes. Com a aquiescência do irmão, os casamentos se realizaram em 1790. Portugal tinha por governante D. Maria I, rainha de Portugal e Algarves. O ciclo do ouro da colônia brasileira estava no fim, porém, o comércio do tráfico de escravos africanos continuava altamente lucrativo. E nesta perspectiva, Narciso fez sociedade com dois comerciantes portugueses estabelecidos em Salvador, na Capitania da Bahia. Eles haviam conhecido Leonor e Manoela em Lisboa, manifestaram interesse no casamento. Narciso não pestanejou e “fechou o negócio”. Lá foram as duas raparigas para o Brasil. Joana permaneceria na companhia de Elisa, que era muito jovem. Servi-la-ia como governanta. Era uma ordem paterna. Narciso e Carmem realizaram uma rápida viagem a Lisboa para o casamento das suas filhas. Joana pensou que sua mãe também viria. Depois foi informada que Salustiana fora enviada à Bahia para viver com Leonor e Manoela. Joana ficou muito triste. Prestes a completar 23 anos, Joana ganhou um marido: era Elasbão, mestiço forro e brasileiro. Tido por “intelectual”, foi trabalhar como bibliotecário na casa de Elisa e seu marido, dr. Apolo. É verdade que Joana preferia um homem branco, mas estava apaixonada por Elasbão e ele “dava para o gasto”. Tiveram cinco filhos, sobreviveram apenas Narciso, Narcisa e Salustiana. 142


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Viver em Lisboa era o ideal para Joana. Por sua influência, Narciso foi estudar para ser padre, e Narcisa ingressou no convento de Santa Teresa de Jesus em Carnide, uma zona retirada de Lisboa. Só conseguiu ser aceita por intermédio da tia Gilda Maria que lhe comprou o enxoval e pagou o dote, necessário para a admissão. Restou Salustiana, ela só ficou em casa porque não andava, vivia presa a uma cadeira de rodas. Na infância estava um dia a brincar com os primos quando acabou caindo de uma escadaria. Sua mãe lamentou o incidente o resto da vida. Já não bastava ser mestiça e sofrer preconceitos, agora com uma filha deficiente considerava o “seu fado” mais infeliz. Sonhadora e esnobe, uma vez foi até a Igreja da Graça, onde havia um altar de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos acompanhada por quatro estatuetas representando São Elasbão, São Benedito, Santo Antônio de Noto (ou de Categeró) e Santa Efigênia. Na porta do templo havia alguns negros da Irmandade de N. Sra. do Rosário a pedirem esmolas para a festa da padroeira. Joana abriu a bolsa e ofertou uma boa soma. Um dos irmãos observou que ela adentrou a igreja e foi rezar para os santos brancos. Na saída, ele a abordou e perguntou porque não rezou para “os santos negros”. Ela ficou tão indignada, respondeu que rezava para o santo que quisesse, e empurrou o homem de baixa estatura, todos ficaram observando a cena. Em 1810 o seu cunhado, dr. Apolo, foi convidado a ir trabalhar no Brasil. Portugal e outros países da Europa atravessavam uma grave crise econômica, social e política, devido às invasões napoleônicas. A família Real Portuguesa já se encontrava na colônia brasileira desde 1808. Embora 143


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

contrariada, Joana teve que acompanhar o marido, a família do cunhado e a tia Gilda Maria. Uma vez no Brasil, estabeleceram-se na corte. Joana considerou poder visitar as irmãs e a mãe na Bahia. A menina Salustiana, com 12 anos, amou o Brasil. Considerava o Rio a cidade mais linda do mundo, com sua topografia e a baía de Guanabara. A tia Gilda adaptou-se muito bem. Elasbão estava feliz em regressar à sua terra. Joana detestou tudo! Achou que a cidade lembrava Benguela, com tantos negros a andarem pelas ruas e fazendo alaridos! O calor era infernal e a quantidade de insetos era de morte. Dois anos depois, Elasbão veio a falecer devido à febre amarela, seguido da tia Gilda Maria. Salustiana passou muito mal após comer um doce vendido por uma negra do tabuleiro, provavelmente sofreu uma infecção intestinal e também veio a óbito. Joana ficou assustada pelas três mortes seguidas. Apegou-se ainda mais à religião. Fez uma promessa a São Pedro: esmolaria pelas ruas do centro junto com os outros irmãos para amealhar dinheiro para a festa do padroeiro. E o faria descalça. Foi a primeira vez que saiu na rua sem sapatos, estava acompanhada de duas escravizadas da casa. Andaram bastante, ao voltar para casa Joana tinha muitas bolhas nas solas dos pés. Em pensamento blasfemou. O dr. Apolo foi transferido para trabalhar no Hospital de Caridade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. A família partiu novamente. Foi então que Joana quase enfartou ao conhecer a pacata e pequena cidade. Foram morar em uma chácara no Guaré (futuro bairro da Luz), perto do Jardim 144


Thais Matarazzo

Botânico. Não muito distante estava instalado o Lazareto. Nem Elisa e nem Joana apreciaram as redondezas, as reclamações foram tamanhas que o dr. Apolo conseguiu alugar um sobrado espaçoso à Rua do Ouvidor (atual Rua Senador Feijó). Joana ouviu dizer que havia na cidade um cemitério destinado aos desvalidos e lá havia uma capela dedicada à N. Sra. dos Aflitos. Ela era devota daquela santa desde os tempos em que viveu em Lagos. Curiosa quis ir ao local. Foi acompanhada por um casal de escravizados. Todos estranharam, pois ela iria pisar em uma zona marginalizada da empoeirada São Paulo. Dentro de si, ela tinha um antigo desejo que nunca conseguiu realizar: queria muito ir à Bahia para ver a mãe e as irmãs. Foi pedir esse milagre para a Senhora dos Aflitos. Conheceu d. Lina e soube dos terços rezados aos domingos na capela. Joana passou a frequentá-lo. Os anos foram passando e seus outros parentes também morreram. A viagem a Salvador nunca foi realizada, pois ela cuidou do cunhado, da irmã e dos sobrinhos moribundos. O patrimônio da família foi gasto com as doenças prolongadas, enterros pomposos e os custos cotidianos que não eram poucos pelo alto estilo que vivenciavam. Até os bens móveis os escravos - precisaram ser vendidos. Aos 83 anos, em 1850, Joana estava sozinha e falida. As irmãs haviam mudado para Ouro Preto, na província de Minas Gerais, e nunca mais responderam as missivas da mana. Quem a socorreu foi d. Lina e João Coveiro, com a licença da Irmandade de Misericórdia, ela passou a morar com o casal num quartinho nos fundos do hospital. Joana teve que engolir 145


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

o seu orgulho, era aquilo ou nada. Como sabia ler e escrever, muitas vezes auxiliava o escrivão Jair a redigir os bilhetes para o cura da Sé quando algum paciente morria. Junto com Lina e a enfermeira Júlia Espada, visitava os acamados para levar uma palavra de alívio. Nunca pensou que viveria tanto: 90 anos! Das epístolas enviadas aos filhos em Portugal, nunca recebeu resposta. Narciso e Narcisa andavam pela África em viagens missionárias. Narcisa acabou morrendo de uma febre contraída em Moçambique. Narciso só iria receber as cartas quando regressou a Lisboa e ao convento. Pediu licença ao superior e explicou que precisava ir ao Brasil urgentemente para acudir a sua mãe, sozinha, velha e pobre. Quando Narciso finalmente conseguiu chegar a São Paulo, no Natal de 1857, soube que Joana Benguela, como era conhecida, havia falecido no dia primeiro daquele mês. Foi sepultada no cemitério, sendo confessada, ungida e recebeu todos os sacramentos... E foi enterrada de sapatos, conforme pediu à d. Lina.

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Obra Concluída

T

erminado de escrever o volume, Jair ainda pensou que poderia reunir mais histórias, mas o livro tem o espaço físico limitado. Talvez, se o título despertasse o interesse do público, poderia fazer um segundo tomo. Era preciso fazer uma revisão e consultar d. Lina no Asilo de Mendicidade, à Rua da Glória. Ele precisou fazer diversas visitas e ler os manuscritos. A velhinha escutou com paciência e foi corrigindo o que se fazia necessário. Jair poderia jurar que viu algumas vezes o vulto de João Coveiro em pé, apoiando as mãos por detrás da poltrona aonde d. Lina estava sentada. Nestes momentos sacudia a cabeça. “Deve ser coisa da minha imaginação”, pensava. Sua pele ficava arrepiada. D. Lina ressentia-se de não ter mais forças e condições de saúde para continuar a conservação da capela dos Aflitos e para dar continuidade ao Terço dos Aflitos aos domingos. Há tempos já havia cessado esta atividade religiosa, ela mal conseguia andar. Foi criado em 1857 a Irmandade de N. Sra. dos Aflitos para a manutenção do pequeno templo. Não durou muito por motivos financeiros. Em 1883 a Mitra Diocesana entregou as chaves e a responsabilidade da gerência aos membros da família Bourroul.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Embora de construção modesta, a capela contava com inúmeras obras de artes religiosas como as esculturas de santos, altares e retábulos do século XVIII. São Paulo estava muito diferente. Tudo transformado. Sem os registros dessas memórias populares e apenas transmitido pela oralidade, elas correriam o risco de se perderem para sempre. Pertenciam apenas às recordações de quem as vivenciou. D. Lina ficou contente em saber que seu nome e do seu finado consorte figurariam num livro. Para ela algo inimaginável. “Coisas dos pretos e dos pobres nunca interessaram a ninguém”, comentou com Jair. Ansioso para o compêndio de narrativas ser publicado, Jair apressou-se em ir à tipografia e fazer o negócio acontecer. Demoraria alguns meses para os exemplares ficarem prontos. O primeiro seria de d. Lina, mesmo analfabeta, ela precisava guardar a obra da qual fez parte e ajudou a construir. Um dia, ao cair da tarde, um moleque de recados foi enviado à casa de Jair à Rua do Hipódromo, no Brás. Chegou esbaforido, bateu na porta e avisou que era urgente, o bilhete veio do asilo. Surpreso, Jair tirou o papelzinho do envelope e leu que d. Lina havia falecido naquela manhã, aos 95 anos. Ele ficou muito triste, o livro ainda não chegara da gráfica. No final da tarde de 19 de julho de 1894, Jair foi até o cemitério municipal da Consolação para acompanhar o velório e o sepultamento da sua amiga na quadra geral dos adultos. O lançamento do livro Cemitério dos Aflitos: contos de vidas aconteceu no final de 1894 e foi um sucesso. Amarílis, a filha adotiva da enfermeira Júlia Espada, compareceu e 148


Thais Matarazzo

emocionou-se com as narrativas redigidas por Jair com tanta riqueza de detalhes. As ilustrações ficaram fiéis às narrativas, arte produzida pela jovem Camila, artista plástica talentosa, filha de Jair.

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Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Epígrafes “O machado esquece, mas a árvore recorda.” Provérbio africano

F

oram usados como epígrafes para os contos deste livro provérbios africanos (localizadas na internet), trechos de poemas e citações dos seguintes poetas e escritores negros: - Auta de Souza, poetisa potiguar. Macaíba, 12 de setembro de 1876 - Natal, 7 de fevereiro de 1901. - Carolina Maria de Jesus, poetisa e escritora mineira. Sacramento, 14 de março de 1914 - São Paulo, SP, 13 de fevereiro de 1977. - Cruz e Souza, poeta catarinense. Nossa Senhora do Desterro, 24 de novembro de 1861 - Curral Novo, MG, 19 de março de 1898. - Luiz Gama, rábula, orador, jornalista, escritor e o Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil. Salvador, BA, 21 de junho de 1830 - São Paulo, SP, 24 de agosto de 1882. - Maria Firmina dos Reis, escritora e poetisa maranhense. São Luís, Maranhão, 11 de março de 1822 - Guimarães, MA, 11 de novembro de 1917. - Solano Trindade, poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante pernambucano. Recife, 24 de julho de 1908 - Rio de Janeiro, RJ, 19 de fevereiro de 1974. 150


Planta da cidade de SĂŁo Paulo 1810


Planta da cidade de SĂŁo Paulo 1841


Planta da cidade de São Paulo 1841 com detalhe para a região da Liberdade e do Cemitério dos Aflitos


Capela dos Aflitos em janeiro de 2020 Foto: Thais Matarazzo


Capela dos Aflitos em janeiro de 2020 Foto: Thais Matarazzo


Altar mor - Capela dos Aflitos Foto: Thais Matarazzo


Altar de SĂŁo ElasbĂŁo - Capela dos Aflitos Foto: Thais Matarazzo


Antigo prédio do Hospital de Caridade da Santa Casa, inaugurado em 1840, na Rua da Santa Casa, depois Rua da Glória, esquina com a Rua dos Estudantes. A partir de 1885 serviu como sede do “Asylo de Mendicidade”, ali permaneceu até 1911. Fotos: domínio público


Estátuas de santas doutoras da igreja católica, peças do século 19 e que pertenceram à decoração da Capela dos Aflitos. Atualmente encontram-se em exposição no Museu de Arte Sacra de São Paulo. Foto: Thais Matarazzo


São Francisco das Chagas, século 17, pertenceu à Capela de Nossa Senhora dos Aflitos. Atualmente encontra-se em exposição no Museu de Arte Sacra de São Paulo. Foto: Thais Matarazzo


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Fontes

bibliográficas

1.Fontes manuscritas - Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Livros de óbitos da Catedral de Nossa Senhora da Assunção da Sé, de 1820 a 1858. Processos esponsais, divórcios e de crimes do século XIX. - Museu da Santa Casa de São Paulo. Livros de Matrículas dos Enfermos de 1876 a 1900. 2. Referências Bens Culturais Arquitetônicos no município e na região metropolitana de São Paulo. São Paulo, (SNM) Secretaria dos Negócios Metropolitanos, (SEMPLA) Secretaria Municipal de Planejamento, (EMPLASA) Empresa Metropolitana de Planejamento, 1984. Bertin, Enidelce. Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas, 2004. Carneiro, Glauco. O poder da Misericórdia: a Irmandade da Santa Casa na história social e política da cidade de São Paulo (1560 / 1985). São Paulo: (?), v. I e II. Debret, Jean Baptiste. O Brasil de Debret. Belo Horizonte: Vila Rica, 1993. Graham, Maria. Viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972. 161


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Hill, Pascoe Grenfell. Cinquentas dias a bordo de um navio negreiro. Trad. Marisa Murrau. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. Macedo, Sérgio D. T. Crônica do Negro no Brasil. Record: Rio de Janeiro, 1974. Machado, M.H.P.T. Sendo cativo nas ruas: a escravidão urbana na cidade de São Paulo. In: PORTA, P. História da cidade de São Paulo. Vol.2. São Paulo: Paz e Terra, 2004. Matarazzo, Thais. Abandonados na Roda: destinos. São Paulo: Matarazzo, 2018. _________, Thais. Abandonados na Roda: destinos – vol. II. São Paulo: Matarazzo, 2019. Müller, Daniel Pedro. Ensaio dum Quadro Estatístico da Província de São Paulo, Tip. Costa Silveira, São Paulo, 1838, cf. reedição literal impressa na. Secção de obras de “O Estado de São Paulo”, 1923. Rugendas, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989. Saint-Hilaire, Auguste de. Viagem à Província de São Paulo. São Paulo: Livraria Martins, 1940. Silva, Júlio José Medeiros. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. Soares, Mariza de C. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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Thais Matarazzo

3. Periódicos Amaral, Antônio Barreto do. Cemitério dos Aflitos – A Capela dos Aflitos. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. LXXIII, 1977, p. 22-28. Bertin, Enidelce. Sociabilidade negra na São Paulo do século XIX. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v. 23, n.1, jan./jun./2010, pp. 115-132. Dias, Maria Odila da. Nas fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de ganho. Estudos Econômicos, São Paulo, n. 15, pp. 84-109. Machado, Helena P. T. Sendo cativo nas ruas da cidade de São Paulo. História da Cidade de São Paulo. Paula Porta, org. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 59-99. 4. Teses acadêmicas Bertin, E. Os meia-cara. Africanos livres em São Paulo no séc. XIX. (Tese de Doutorado). São Paulo, FFLCH-USP, 2006. Camargo, Luis Soares de. Sepultamentos na cidade de São Paulo: 1800 - 1858. Dissertação defendida no Programa de PósGraduados em História da Pontifícia Universidade Católica, 1995. _________. Viver e morrer em São Paulo: a vida, as doenças e a morte na cidade do século XIX. Tese defendida no Programa de Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica, 2007. Mattos, Regina Augusto de. De cassange, mina, benguela a Gentio da Guiné. Grupos étnicos e formação de identidades africana na cidade de São Paulo (1800 – 1850). Mestrado 163


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

defendido para o Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. 5. Mapas Planta da Imperial Cidade de São Paulo, levantada em 1810 pelo capitão de engenheiros Rufino J. Felizardo e Costa, e. copiada em 1841 com todas as alterações - Mapa da Cidade de São Paulo e seus subúrbios (1843?), feito por ordem do Esmo. Sr. Presidente, o Marechal de Campo Manuel c.a. Fonseca Lima e Silva, pelo Engenheiro Civil C. A. Bresser. 6. Documentários Youtube A ROTA DO ESCRAVO - A Alma da Resistência. Produzido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), traduzido e dublado pelo Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio). 2013. Disponível em www.youtube.com/ watch?v=HbreAbZhN4Q&t=588s. Acesso em 25 setembro 2019. HERANÇAS da Escravidão - Repórter Brasil. Produção da TV Brasil EBC. 2013. Disponível em www.youtube.com/ watch?v=FLzyt6fsYKc. Acesso em 25 setembro 2019.

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Thais Matarazzo

A

autora

Thais Matarazzo: 38 anos, é paulistana, moradora do bairro da Freguesia do Ó, Zona Norte de São Paulo, trabalha como jornalista, escritora, pesquisadora cultural e palestrante. É autora de 30 livros, publicados no Brasil e em Portugal, entre títulos de crônicas, contos, memórias e sobre história do rádio e da música popular brasileira. Proprietária da Editora Matarazzo, fundada em 19 de março de 2015, atualmente com mais de 175 livros publicados, concedeu oportunidades e revelou dezenas de novos escritores. É editora da revista Escritores brasileiros contemporâneos, voltada para literatura e as artes independentes. Em abril de 2020 publicou novos livros de sua autoria no formato e-book: os romances históricos A Mulher do Alcácer, Memórias Reveladas: territórios SP, Cemitério dos Aflitos: contos de vida e Presságios da Estrela; o livro infantil Gabriela, semeadora de encantos poéticos; e o livro de contos Os temperos de Florência; além de duas antologias, Poesias Noturnas e Folhetins, com participação de escritores e poetas independentes. Em fevereiro de 2020, o jornalista Ignácio de Loyola Brandão destacou, em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo, o livro “Giro Noturno: fragmentos das noites paulistanas”, que Thais Matarazzo publicou em 2017. A obra revisita as boates da cidade nos anos 1950 e 60, inspirada nas publicações do comendador Egas Muniz, o “confidente da noite”, conforme afirmou Brandão. 165


Cemitério dos Aflitos: contos de vidas

Apaixonada por literatura, poesia, história e música desde a infância, Thais passou a se dedicar a investigações históricas a partir do seu interesse pelo universo musical. Em 1999, empreendeu intensa pesquisa em materiais primários de época nas bibliotecas e arquivos públicos de São Paulo e Rio de Janeiro, e realizou dezenas de entrevistas com artistas da era de “ouro” do rádio. O resultado deste trabalho foi publicado nos seus primeiros livros. Aos 18 anos, escreveu seus primeiros poemas, quando era estudante da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Naquela instituição, no Centro Acadêmico Horário Lane, iniciou sua atividade jornalística ao participar como repórter do jornal “O Picareta”, em 2001. Foi quando conheceu a escritora Tatiana Belinky, personalidade importante, que a incentivou a ingressar no “mundo das letras” sem receio. Outros estimuladores foram o poeta Paulo Bomfim, o jornalista Adauri Alves, e seus pais, Maria Matarazzo e Gilberto Cantero. Acredita que o livro é uma chave que abre portas: a edição do seu quinto volume, “O Fado no Brasil: artistas e memórias”, a levou para além-mar, em outubro de 2013, quando foi convidada a participar do “Congresso da Mulher Migrante”, evento internacional, que contou com representantes de todo o mundo, patrocinado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Foi um marco importante na carreira de Thais Matarazzo. Organizou, em 2017, o projeto internacional “Cá entre nós: Brasil & Portugal”, pela editora Matarazzo, que contemplou escritores e poetas brasileiros, portugueses e angolanos em três livros, com lançamentos nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Lisboa e Porto. 166


Thais Matarazzo

É membro correspondente da Academia Taubateana de Letras, ATL. É membro fundadora do Coletivo São Paulo de Literatura, junto com Ana Jalloul, Gilberto Cantero e Ricardo Cardoso. O Coletivo realiza trabalhos sociais, literários e culturais nas ruas, periferias, entidades, bibliotecas públicas e em múltiplos equipamentos de cultura. Estreou como ficcionista em 2018, sendo que os dois volumes da obra “Abandonados na Roda: destinos”, com ilustrações Camila Giudice, são títulos que foram ao encontro da sensibilidade do público leitor: trata-se de um amálgama de ficção com pesquisa histórica, a partir dos “Livros de Matrículas dos Expostos”, pertencentes ao Museu da Santa Casa de São Paulo. A escritora idealizou, organizou e promoveu ciclos de conferências, palestras, concursos poéticos, saraus, lançamentos de livros, e participou de dezenas de bienais, festas e feiras literárias e outras atividades artísticas em todo o País e em Portugal.

A

ilustradora

Camila Giudice é paulistana, pintora, se dedica aos estudos das artes clássicas desde 1991 com grandes mestres nacionais e internacionais. Leciona pintura e possui obras em acervos de renomadas instituições. Participa das antologias da Editora Matarazzo com textos e ilustrações. Site: bit.ly/giudice _art Contato: camilagiudice@gmail.com 167


www.editoramatarazzo.blogspot.com livros@editoramatarazzo.com Tel.: (11) 3991-9506


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Articles inside

A ilustradora

1min
pages 167-168

A autora

2min
pages 165-166

Fontes bibliográficas

3min
pages 161-164

Obra concluída

2min
pages 147-149

Joana Benguela

10min
pages 138-146

Tonico Ceguinho

3min
pages 128-130

No Recolhimento (ou na prisão?

8min
pages 131-137

As Congas

13min
pages 117-127

Por uma paixão

4min
pages 113-116

Desastre de São João

1min
pages 111-112

Na Freguesia do Ó

5min
pages 106-110

Letras mortas

7min
pages 93-99

No Seminário das Educandas de Nossa Senhora da Glória

6min
pages 100-105

Tava vivo?

6min
pages 75-79

Primeiro amor

9min
pages 80-87

Os últimos a saberem

5min
pages 88-92

Dois inocentes

7min
pages 69-74

Cabocla do Pará

8min
pages 61-68

Guilhermina Funileiro

3min
pages 27-30

Jair, o escrivão

3min
pages 31-34

Amargura

5min
pages 43-47

Meu neto soldado

3min
pages 57-60

Modesto Antônio dos Santos

9min
pages 48-56

Júlia Espada

8min
pages 35-42

Introdução

8min
pages 11-20

JOÃO COVEIRO

5min
pages 21-26
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