Microfisica do Poder

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horríveis maquiavelismos (enquanto os sindicatos não possuíram personalidade jurídica, o poder esforçou−se por introduzir em seu seio elementos que um dia fugiam com o cofre; era impossível aos sindicatos prestar queixa; daí a reação de ódio contra os ladrões, desejo de ser protegido pela lei, etc.) Victor: Sinto−me obrigado a fazer uma correção, para precisar e dialetizar um pouco esse conceito de plebe não proletarizada. A ruptura principal, maior, que o sindicato institui, e que vai ser a causa da sua degenerescência, não é a que existe entre a plebe proletarizada − no sentido de proletariado instalado, instituído − e o lumpenproletariado, quer dizer, em sentido estrito, o proletariado marginalizado, lançado fora do proletariado. A ruptura principal é a que existe entre uma minoria operária e a grande massa operária, quer dizer, a plebe que se proletariza: esta plebe é o operário que vem do campo, não é o vadio, o salteador, o desordeiro. Foucault: Creio não ter tentado mostrar, no que acabo de dizer, que se trata de uma contradição fundamental. Descrevi um certo número de fatores e de efeitos, e tentei mostrar como eles se encadeavam e como o proletariado tinha podido até um certo ponto pactuar com a ideologia moral da burguesia. Victor: Você diz que é um fator entre outros, que não é a contradição principal. Mas todos os seus exemplos, toda a história dos mecanismos que você descreve tendem a valorizar essa contradição. Para você, o primeiro pacto de proletariado com o diabo é de ter aceito os valores "morais" pelos quais a burguesia instaurava a separação entre a plebe não proletarizada e o proletariado, entre os vadios e os trabalhadores honestos. Eu respondo que não. O primeiro pacto com o diabo das associações operárias foi ter colocado como condição de adesão o fato de se pertencer a uma profissão; foi isso que permitiu aos primeiros sindicatos serem corporações que excluíam a massa dos operários não especializados. Foucault: A condição que você lembra é, sem dúvida, a mais fundamental. Mas veja o que ela implica como conseqüência: que se os operários não integrados na profissão não estão presentes em um sindicato, a fortiori também não o estão aqueles que não são proletários. Portanto, uma vez mais, se colocarmos o problema: como tem funcionado o aparelho judiciário e, de uma maneira geral, o sistema penal? Eu respondo: ele sempre funcionou de modo a introduzir contradições no seio do povo. Não quero dizer − isso seria aberrante − que o sistema penal introduziu as contradições fundamentais, mas oponho−me à idéia de o sistema penal ser uma vaga superestrutura. Ele teve um papel constitutivo nas divisões da sociedade atual. Gilles: Pergunto−me se não haverá duas plebes nesta história. Será que se pode verdadeiramente definir a plebe como aqueles que recusam ser operários, com a conseqüência, entre outras, de que a plebe teria o monopólio da violência, e os operários, os proletários no sentido estrito, uma tendência à não violência? Não será isso o resultado de uma visão burguesa do mundo, na medida em que classifica os operários como um corpo organizado dentro do Estado, assim como os camponeses, etc. etc., a plebe seria o resto: o resto sedicioso neste mundo pacificado, organizado, que seria o mundo burguês cuja justiça tem por missão fazer respeitar as fronteiras. Mas a própria plebe poderia perfeitamente ser prisioneira desta visão burguesa das coisas, quer dizer, constituir−se como o outro mundo. E não tenho certeza de que, estando prisioneira desta visão, o seu outro mundo não seja a reduplicação do mundo burguês. Com certeza não completamente por causa das tradições, mas em parte. Além disso, há ainda um outro fenômeno: este mundo burguês, estável, com separações, onde reina a justiça que se conhece, não existe. Será que,


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