Ortodoxia - G. K. Chesterton

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começou com esta discussão. A atitude cristã para com o mártir e o suicida não era o que com grande freqüência se afirma nos ensinamentos morais modernos. Não era uma questão de grau. Não que se devesse traçar uma linha nalgum ponto, com o autoassassino exaltado caindo dentro dela e o auto-assassino acabrunhado logo fora dela. O sentimento cristão evidentemente não era apenas de que o suicida estava levando o martírio longe demais. O sentimento cristão era veementemente em favor de um e furiosamente contra o outro. Esses dois fatos que pareciam tão iguais ocupavam extremos opostos de céu e inferno. Este homem jogava fora a sua vida; ele era tão bom que seus ossos secos podiam curar cidades durante a peste. Aquele homem jogava fora a sua vida; ele era tão mau que seus ossos poluiriam os de seus irmãos. Não estou dizendo que a fúria estava certa; mas por que era tão violenta? Foi aqui que pela primeira vez percebi que os meus pés peregrinos pisavam numa trilha batida. O cristianismo também sentira essa oposição entre o mártir e o suicida. Será que talvez a sentira pela mesma razão? Será que o cristianismo sentira o que eu sentia, mas não sabia (e não sabe) expressar — essa necessidade primeiro de uma lealdade às coisas, e depois de uma devastadora reforma delas? Em seguida eu me lembrei de que realmente a acusação contra o cristianismo era a de que ele combinava essas duas coisas que eu loucamente tentava combinar, ü cristianismo foi acusado de ser, ao mesmo tempo, otimista demais sobre o universo, e pessimista demais acerca do mundo. A coincidência de repente me faz ficar paralisado. Surgiu na controvérsia moderna o hábito imbecil de dizer que tal e tal crença pode ser sustentada numa época, mas não em outra. Alguns dogmas, dizem, eram críveis na século XII, mas não no século XX. Alguém poderia igualmente dizer que determinada filosofia pode ser abraçada na segunda-feira, mas não se pode acreditar nela na terça. Alguém poderia também falar que determinada visão de mundo é adequada às três e meia, mas não às quatro e meia. Aquilo em que um homem pode acreditar depende de sua filosofia, não do relógio ou do século. Quem acredita numa lei natural inalterável não pode acreditar em nenhum milagre em nenhuma época.


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