Pedagogia da Avaliação e Paulo Freire: Incluir para transformar

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Pedagogia da Avaliação e Paulo Freire: Incluir para transformar Michael Quinn Patton e Vilma Guimarães (editores)

FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO



Pedagogia da Avaliação e Paulo Freire: Incluir para transformar Michael Quinn Patton e Vilma Guimarães (editores)



Pedagogia da Avaliação e Paulo Freire: Incluir para transformar Michael Quinn Patton e Vilma Guimarães (editores)

Rio de Janeiro, 2018


SUMÁRIO Pedagogia da Avaliação e Paulo Freire: Incluir para transformar Michael Quinn Patton e Vilma Guimarães (editores)

FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO

Apresentação Por uma avaliação democrática e transformadora – VILMA GUIMARÃES Duas observações à edição brasileira

Introdução Por que a obra de Paulo Freire é relevante para a Avaliação, hoje? Uma visão geral sobre o livro e seus autores – MICHAEL QUINN PATTON Por que Paulo Freire? • O contexto social e a vida de Freire moldaram suas ideias pedagógicas • Meu encontro com a Pedagogia do Oprimido. Relevância atual de Freire: olhando para a frente Os autores deste livro e o que ele contém Referências

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Parte A: Contemporâneos de Paulo Freire apresentam sua pedagogia 1. O IMPACTO GLOBAL DA PEDAGOGIA DE FREIRE MOACIR GADOTTI Introdução: Uma perspectiva global sobre o impacto pedagógico de Freire Legado: raízes e asas Tornando a educação popular • Educação popular como política pública: Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo • Trabalho coletivo como princípio pedagógico O ensino, de acordo com Paulo Freire: implicações para a avaliação • Lições para avaliadores(as) • Educação e avaliação: questões interconectadas de propósito e qualidade Teoria e método Conclusão: Olhando para o futuro da Educação Transformadora e da Educação Popular no século 21: O trabalho atual do Instituto Paulo Freire Referências

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2. A PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NA EDUCAÇÃO DE RUA: DESCOBRINDO O IMPACTO EM MENINAS E MENINOS EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL THEREZA PENNA FIRME, VATHSALA IYENGAR STONE

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Introdução O contexto • O desafio Os programas alternativos para meninas e meninos de rua A metodologia da avaliação • Avaliadores de rua Coleta de dados, fase I – Criando indicadores de impacto do programa • Questões avaliativas Coleta de dados, fase II – Detectando impactos por meio da observação dos programas • Amostra • Procedimentos • Imersão inicial no programa • Observação direta nos programas • Observação participante • Triangulação Resultados • Os impactos e o perfil dos programas • Uma metodologia sistemática para a avaliação continuada dos programas Discussão e conclusões • O impacto da avaliação nas partes interessadas • Lições aprendidas • O que os avaliadores ensinaram? Quais conhecimentos eles comunicaram? Postscriptum Referências

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Parte B: Princípios pedagógicos de avaliação inspirados em Freire 3. PRINCÍPIOS PEDAGÓGICOS DE AVALIAÇÃO: INTERPRETANDO FREIRE MICHAEL QUINN PATTON Introdução: Uma pedagogia da avaliação focada em princípios O processo freiriano de se engajar em avaliação Princípios freirianos 1. Usar o pensamento avaliativo para abrir, desenvolver e cultivar a consciência crítica (promover conscientização) 2. A consciência está nas comunidades de pessoas e não apenas nos indivíduos 3. A pedagogia da consciência crítica deve ser interativa e dialógica 4. Integrar reflexão e ação 5. Valorizar e integrar o objetivo e o subjetivo 6. Integrar pensamento e emoção 7. A pedagogia da consciência crítica é uma educação cointencional entre os envolvidos, em qualquer papel que estejam 8. A consciência crítica é, ao mesmo tempo, processo e resultado final (outcome), método e resultado intermediário (result), reflexão e ação, analítica e orientada para a mudança 9. Toda pedagogia é política 10. A pedagogia crítica é sempre e fundamentalmente avaliativa Triangulação: confrontando os dez princípios com os capítulos de Gadotti e Penna Firme/Stone Relevância para a avaliação hoje: princípios pedagógicos freirianos conectados a abordagens de avaliação Um quadro de referência holístico para a avaliação Conclusão: Pedagogias da avaliação Referências

4. A PEDAGOGIA EM PROCESSO APLICADA À AVALIAÇÃO: APRENDENDO COM O TRABALHO DE PAULO FREIRE NA GUINÉ-BISSAU THOMAZ K. CHIANCA, CLAUDIUS CECCON Introdução: Paulo Freire e o contexto da Guiné-Bissau O projeto na Guiné-Bissau O primeiro encontro do Idac com a Guiné-Bissau Inteirando-se com o trabalho na Guiné-Bissau Estratégias centrais de Freire Os dez princípios pedagógicos freirianos e a experiência da Guiné-Bissau Potenciais princípios pedagógicos freirianos adicionais, relevantes para a avaliação, que emergiram da experiência na Guiné-Bissau • Possível princípio pedagógico freiriano 11: Experiências não são transplantáveis, elas devem ser reinventadas • Possível princípio pedagógico freiriano 12: Enraíze qualquer esforço pedagógico nos reais interesses e necessidades das pessoas, assim este esforço se tornará mais eficaz Conclusão Referências

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Parte C: Exemplos da atual influência de Freire na avaliação 5. AVALIAÇÃO PEDAGÓGICA TRANSFORMADORA: PRINCÍPIOS FREIRIANOS PRATICADOS EM ESCOLAS PÚBLICAS BRASILEIRAS VILMA GUIMARÃES Introdução: Contexto pessoal Um olhar sobre a avaliação educacional que exclui e sobre sua alternativa • A essência de uma avaliação transformadora • Inspirados por Freire Nova oportunidade Paulo Freire e a Metodologia Telessala A Metodologia Telessala e os princípios freirianos como pedagogia da avaliação • Organização curricular vs Princípio 1. Usar o pensamento avaliativo para abrir, desenvolver e cultivar a consciência crítica (promover conscientização) • Produção e uso de materiais educativos vs Princípio 2. A consciência está nas comunidades de pessoas e não apenas nos indivíduos • Organização de situações de aprendizagem vs Princípios 3, 5 e 6. A pedagogia da consciência crítica deve ser interativa e dialógica; Valorizar e integrar o objetivo e o subjetivo; Integrar pensamento e emoção • Formação de professores(as) vs Princípio 4. Integrar reflexão e ação • Avaliação vs Princípio 10. A pedagogia crítica é sempre e fundamentalmente avaliativa Conclusão: Uma pedagogia da avaliação para a justiça social Referências

6. AVALIAÇÃO EMPODERADORA TRANSFORMATIVA E PEDAGOGIA FREIRIANA: SINTONIA COM UMA TRADIÇÃO EMANCIPATÓRIA DAVID M. FETTERMAN Introdução: Pontos em comum entre a avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana O nicho da avaliação empoderadora • Dois enfoques Teorias que orientam a avaliação empoderadora • Teoria do empoderamento • Autodeterminação • Uso do processo • Construção de capacidades • Uma teoria da ação Princípios de uma prática avaliativa de qualidade Conceitos que apontam como fazer • Ciclos de reflexão e ação • Comunidade de aprendizes • Praticantes reflexivos Despertar entusiasmo: quatro aspectos importantes • Temas geradores • Diálogo • Planejando para o futuro • Monitorando as estratégias O papel do avaliador para o empoderamento: centralidade dos relacionamentos Conclusão Referências

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APRESENTAÇÃO A avaliação não é medo, é coragem; não é autoritária, é participativa; não é imposição, é negociação. Thereza Pennafirme A avaliação deve ser um novo modo de olhar a realidade, indagando, identificando e desenvolvendo o que é melhor para criar um futuro promissor, sem deixar de perceber aspectos negativos que serão resolvidos com a energia das potencialidades ressaltadas primeiramente. Avaliação Externa no Telecurso, Fasc. 1

POR UMA AVALIAÇÃO DEMOCRÁTICA E TRANSFORMADORA Querida leitora, querido leitor, este livro é dedicado a vocês, que utilizam a avaliação para refletir sobre a prática, diagnosticar situações, iluminar o caminho percorrido e aumentar o poder de agir para incluir e transformar.

projetos sociais, educadoras e educadores em escolas, comunidades e movimentos. Todos os envolvidos na construção de um Brasil e um mundo mais justos, pacíficos e sustentáveis estão sendo convidados a desfrutar destas páginas.

Trata-se da reedição, traduzida e ampliada, do número 155, outono de 2017, da revista New Directions for Evaluation: “Novos Rumos para a Avaliação (NRA)” , publicação oficial da Associação Americana de Avaliação (AEA). Com autorização da AEA, a revista chegou ao Brasil e, por intermédio da Fundação Roberto Marinho (FRM), quer atingir agora – além dos avaliadores profissionais, especialistas e pesquisadores – um público mais amplo, composto de gestores/líderes de instituições educacionais e de

O tema do número 155 da NRA – as contribuições de Paulo Freire às reflexões e práticas globais sobre avaliação – nos enche de orgulho. Ele surgiu de uma conversa entre Michael Quinn Patton e um grupo de educadores brasileiros, em 2014, na Fundação Roberto Marinho, como ele próprio relata neste livro. Havíamos convidado Patton a participar de um seminário interno, organizado pelas equipes de avaliação e implementação, no qual foi lançada uma coleção de 12 fascículos, apresentando o resul-

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tado das avaliações externas de projetos da Fundação Roberto Marinho realizados entre 1994 e 2014. O processo envolvera investigadores de Universidades e centros de pesquisa, em diálogo com as equipes da FRM e das Secretarias de Educação. O esforço sistemático e contínuo para determinar o impacto social daqueles projetos e prestar contas dos resultados obtidos foi regido por nossa parceira Thereza Penna Firme, consultora internacional em avaliação, que vem apoiando a Gerência de Educação e Implementação da FRM desde os tempos em que a Metodologia Telessala começou a ser desenvolvida como forma de potencializar a utilização dos materiais do Telecurso, em 1993. A vitalidade, eficácia e capacidade de aperfeiçoamento contínuo desta Metodologia, que vem garantindo a milhões de jovens e adultos em risco de permanecer à margem do sistema educacional o direito a uma educação formal de qualidade, resulta da combinação de vários fatores. Um deles, com certeza, é a forte cultura avaliativa que desenvolvemos na Gerência de Educação e Implementação. Dialógo, horizontalidade, participação e transparência são características tanto da avaliação nas salas de aula, quando da avaliação externa dos diversos projetos por nós desenvolvidos. A preocupação em valorizar igualmente aspectos objetivos e subjetivos, avaliando não apenas o que é quantificável, mas também a dimensão qualitativa

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da experiência, e o foco em desenvolver o pensamento avaliativo, que gera consciência crítica, e impulsiona ações, caracterizam processos avaliativos afinados com os princípios freirianos identificados por Michael Patton. Agradecemos a Patton e à Associação Americana de Educação por nos devolver Paulo Freire, reinterpretado sob a ótica da avaliação . Este livro demonstra, outra vez, que Paulo Freire não nos deixou. Seu pensamento nos acompanha e nos ajuda a transformar em oportunidades de mudança de rumo a grave crise ambiental, econômica, política e ética em que a humanidade se vê mergulhada neste início do século 21. Mais vivo que nunca, Freire inspira, no mundo inteiro, práticas inovadoras em educação formal e não formal, voltadas para a construção de novas realidades nas quais, como dizia, “seja mais fácil amar”. Que este livro possa ser lido, individualmente e em grupos, estimulando a reflexão e a prática de uma avaliação que ensine a “acreditar no poder que têm muitas pessoas pequenas, fazendo muitas pequenas coisas em muitos pequenos lugares, de mudar o mundo”. Fraternalmente, Vilma Guimarães Gerente Geral de Educação e Implementação Fundação Roberto Marinho


DUAS OBSERVAÇÕES À EDIÇÃO BRASILEIRA 1. Tentamos realizar o desejo expresso por Paulo Freire no livro Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido, de 1992, no qual faz a autocrítica do que chama “linguagem machista” por ele empregada ao escrever seus primeiros livros – Educação como prática da liberdade (1967) e Pedagogia do Oprimido (1968). Sempre que possível, em vez de usar as palavras “homem”, “educador”, “avaliador”, “meninos”, nas quais as mulheres, cada vez mais, não se sentem incluídas, optamos por fazer como Freire, que dizia : “Prefiro, às vezes, enfear a frase, explicitando, contudo, minha recusa à linguagem machista.” Diz Freire, desmontando o argumento de que, quando se fala “homem”, a mulher está incluída: “Nenhum homem se sentiria incluído no discurso de nenhum orador ou no texto de nenhum autor que escrevesse: ‘As mulheres estão decididas a mudar o mundo” (Freire, 2011, p. 93). Reconhece a dívida às feministas, que, ao lerem a Pedagogia do Oprimido, escreveram-lhe denunciando exemplos do machismo embutido na língua: “Daquela data até hoje, me refiro sempre a mulher e homem ou seres humanos. (idem). Afirma ainda, na mesma página, que vai solicitar das casas editoras “que superem sua linguagem machista”. Surpreendentemente, enquanto a casa editora americana substituiu todos os men (homens) de Freire, por men and women (homens e mulheres) ou human beings (seres humanos), a editora brasileira continua lançando sucessivas edições da Pedagogia do Oprimido, sem atender ao seu pedido. 2. De novo, seguindo os passos de Freire, criamos um elemento para estimular o diálogo entre a leitora ou leitor e o texto: pequenos boxes, indicados pelo ícone , nos quais oferecemos “traduções” de termos técnicos ou conceitos freirianos, fornecemos informações adicionais sobre personalidades e fatos históricos, ou trazemos trechos de outras obras que poderão enriquecer a compreensão do texto. Equipe Editorial

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INTRODUÇÃO Por que a obra de Paulo Freire é relevante para a Avaliação, hoje? Uma visão geral sobre o livro e seus autores Michael Quinn Patton

Pedagogia é o estudo do ensino. Uma pedagogia da avaliação implica examinar como e o que a avaliação ensina. Não existe uma pedagogia da avaliação única ou monolítica. Incorporada a diferentes abordagens de avaliação encontra-se uma ampla gama de pressupostos, valores, premissas, prioridades e processos de construção de sentido. Aqueles que participam de uma avaliação experimentam princípios pedagógicos às vezes explícitos e, mais frequentemente, implícitos e tácitos. A avaliação convida as partes interessadas (stakeholders) a verem o mundo de certa maneira, a usar uma lente específica para fazer sentido do que está sendo avaliado, a fazer julgamentos baseados em determinados tipos de evidências e valores. Este volume é inspirado e construído a partir da obra de Paulo Freire, especialmente seu clássico Pe-

dagogia do Oprimido (1970). Dentre outros livros de Freire, destaco Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992); Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática pedagógica (1996), Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (2000). As abordagens de avaliação mais influenciadas pela pedagogia freiriana e que compartilham valores, modos de engajamento e resultados desejados freirianos são a avaliação focada na justiça social, a avaliação democrática deliberativa, a avaliação empoderadora, as avaliações feminista, transformadora e crítica de sistemas. O papel real e potencial da avaliação na análise dos efeitos e implicações da desigualdade é uma preocupação central da avaliação na perspectiva da justiça social (House, 1990, 2014; Rosenstein & Syna, 2015; Sirotnik, 1990). Outras

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abordagens de avaliação valorizam, ensinam e perseguem resultados diferentes, ou seja, estão baseadas em outras premissas e princípios pedagógicos. Uma compreensão mais ampla do trabalho de Freire nos lembra de que todas as abordagens de avaliação constituem algum tipo de pedagogia. Toda avaliação ensina alguma coisa. O que é ensinado e como é ensinado varia, mas a avaliação é, inerente e predominantemente, uma interação pedagógica. Freire compreendeu e nos ensinou que todas as interações entre pessoas são pedagógicas: algo sempre está sendo ensinado, transmitido ou propagandeado. Este volume convida você a usar as obras de Freire para refletir sobre a sua pedagogia da avaliação. Ele está organizado em três partes: • Parte A – Contemporâneos de Paulo Freire apresentam sua pedagogia • Parte B – Princípios pedagógicos de avaliação derivados de Freire • Parte C – Exemplos da atual influência de Freire na avaliação

volume de New Directions for Evaluation com o tema “Vozes da Avaliação vindas da América Latina” observou-se que: o conceito de participação foi extraído dos acontecimentos da década de 1970, em resposta a um discurso focado no aumento da produção e da produtividade e na adoção de novas tecnologias. Argumentou-se que as pessoas que vivem na pobreza, incluindo as populações nativas, deveriam ser o foco do desenvolvimento, com valorização de seus conhecimentos. O discurso foi estruturado por pensadores e líderes sociais, como o brasileiro Paulo Freire, cuja abordagem pedagógica ao engajamento comunitário buscava “conscientizar politicamente” os grupos marginalizados e provocar a ação cidadã. Seus pensamentos influenciaram fortemente o ensino e levaram a uma abordagem genuinamente latino-americana de pesquisa-ação realizada ao nível da rua (Kushner & Rotondo, 2012, p. 1). Em uma época em que cresce o abismo entre ricos e pobres, tanto nos países industrializados como globalmente, é esclarecedor considerar a forma como se dá a interseção entre a pedagogia do oprimido e a pedagogia de certas abordagens de avaliação.

Por que Paulo Freire? Quem foi Paulo Freire, quais foram suas contribuições e por que sua pedagogia é relevante para a avaliação hoje? A estratégia de Freire, de considerar o conhecimento como um recurso de poder, tem sido redescoberta no contexto da “sociedade do conhecimento” (Neirotti, 2012, p. 12). Reconhecer e valorizar o pensamento e o trabalho de Paulo Freire em suas aplicações à avaliação é especialmente apropriado, pois o campo da avaliação tornou-se crescentemente internacional em perspectiva e global na prática. O Ano Internacional da Avaliação, em 2015, firmou um marco importante no desenvolvimento e no reconhecimento da avaliação – e o interesse na avaliação dos novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável incrementa o momentum. Muitos só conhecem Freire como alguém que, há muitos anos, contribuiu para o desenvolvimento de um método transformador para ensinar analfabetos na América Latina. Em um

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O contexto social e as experiências de vida de Freire moldaram suas ideias pedagógicas Nascido no Brasil, em 1921, em tempos de crise econômica mundial, Freire experimentou a fome e a pobreza ainda em tenra idade. Ele recorda: “Eu não entendia nada, por causa da minha fome. Eu não era burro. Não era falta de interesse. Minha condição social não permitia que eu tivesse uma educação. A experiência me mostrou a relação entre classe social e conhecimento” (citado em Gadotti, 1994, p. 13). Por ter vivido entre famílias rurais e trabalhadores pobres, ele ganhou uma profunda compreensão de suas vidas e dos efeitos da sociedade e da economia na educação. Freire tornou-se professor de crianças enquanto ainda estava no ensino médio e começou a desenvolver uma abordagem dialógica de educação em que se esforçava para compreender


as expectativas e experiências dos estudantes. E se tornou um ativista, trabalhando por uma educação mais democrática e universal no Brasil. Em 1964, Freire ficou preso por 70 dias, como traidor. Em seguida foi exilado e trabalhou no Chile por cinco anos, no Movimento Cristão Democrático de Reforma Agrária. Em 1967 publicou seu primeiro livro, Educação como Prática da Liberdade, que foi entusiasticamente recebido e lhe valeu a posição de professor visitante em Harvard. Em 1968, enquanto estava no exílio, escreveu seu famoso Pedagogia do Oprimido, publicado em 1970, inicialmente em espanhol e inglês, depois em 17 línguas – e que permaneceu inédito no Brasil até 1974. Freire foi convocado a Genebra em 1970, onde trabalhou por dez anos como consultor educacional especial para o Conselho Mundial de Igrejas. Nessa qualidade, ele viajou por todo o mundo ajudando países a implementar reformas em educação e alfabetização populares. Freire retornou ao Brasil em 1979, depois que a anistia lhe foi concedida. Tornou-se, então, secretário municipal de Educação de São Paulo, trabalhou em universidades e organizações sociais e escreveu até sua morte, em 1997. O trabalho e a vida de Paulo Freire, Ivan Illich, Camilo Torres e Orlando Fals Borja compartilham valores e princípios semelhantes, tendo inspirado a teologia da libertação, a pesquisa-ação participativa (participatory action research, PAR) e perspectivas radicais sobre aprendizagem e educação (Fals-Borda & Rahman, 1991). Freire, além disso, inspirou também “o estabelecimento de uma área inteira da pedagogia crítica, em toda a América do Norte” (Kahn & Kellner, 2007, p. 431). Outro exemplo da duradoura influência de Freire é Reflect, uma abordagem inovadora de aprendizagem de adultos e mudança social que funde suas teorias com metodologias participativas. Foi desenvolvida na década de 1990, por meio de projetos piloto em Bangladesh, Uganda e El Salvador, e atualmente é usada por mais de 500 organizações em mais de 70 países em todo o mundo (http://www.reflect-action.org/).

Meu encontro com a Pedagogia do Oprimido. Relevância atual de Freire: olhando para a frente Li a Pedagogia do Oprimido de Freire pela primeira vez no curso de graduação da Universidade de Wisconsin, Madison, Estados Unidos, em um seminário de Sociologia do Desenvolvimento, no início dos anos 1970. Protestos contra a Guerra do Vietnã dominavam o campus. Eu acabara de voltar de um trabalho com o Peace Corps junto a agricultores de subsistência em Burkina Fasso, na África. Os professores que ensinavam desenvolvimento nunca tinham vivido entre pobres; sua falta de experiência e consequente ignorância eram alienantes. A literatura acadêmica sobre desenvolvimento parecia muito distante das realidades da vida camponesa. Freire era a exceção de destaque. Sua escrita era profundamente enraizada em experiências diretas com as pessoas em situação de pobreza. Para ele, a opressão não era algo abstrato. Era uma experiência vivida. Ao escrever a Pedagogia do Oprimido, Freire elevou os pobres e honrou sua capacidade de transformação. Saltemos para os dias de hoje. Os princípios freirianos, embora tenham sido articulados há quase 50 anos, oferecem e afirmam direções tanto para o futuro do desenvolvimento, como para a avaliação – o nosso tema. Os princípios permanecem atuais e oportunos, e ouso dizer, inéditos – inéditos no sentido de que ainda estão longe de serem realizados, especialmente enquanto um todo integrado. Dada essa premissa, o Capítulo 3, escrito por mim, faz uma revisão da importância e influência das obras de Freire e seu impacto e relevância na avaliação. Tal análise gerou dez princípios pedagógicos, que extraí de escritos de Freire e das contribuições brasileiras a este volume, acrescentando, a cada um deles, uma explicação, na qual mostro sua relevância para uma pedagogia crítica da avaliação.

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Os autores deste livro e o que ele contém A ideia desta publicação surgiu no verão de 2014, quando a Fundação Roberto Marinho acolheu uma apresentação sobre avaliação do desenvolvimento (development evaluation) (Patton, 2011). Seguiu-se uma discussão sobre princípios freirianos. Vilma Guimarães e Thereza Penna Firme, autoras de capítulos deste volume, participaram da conversa e foram as primeiras a imaginar a possibilidade de produzir uma publicação abordando o tema. Thomaz Chianca, outro autor de capítulo presente à conversação, havia liderado a formação da Associação Brasileira de Monitoramento e Avaliação. No final das contas, quatro dos seis capítulos acabaram sendo escritos por estes brasileiros especialmente versados em Freire e ligados a ele. Agora, vamos a uma visão geral sobre o conteúdo deste livro, acompanhada da apresentação de seus autores. Este volume oferece a avaliadoras e avaliadores a oportunidade de conhecer pessoas com experiências e perspectivas que não são facilmente encontradas. Os autores dos próximos capítulos conheceram e trabalharam com Paulo Freire (os brasileiros) ou foram por ele inspirados (os americanos). Eles compartilham aqui suas experiências e insights sobre as implicações da pedagogia freiriana para a avaliação. O que os autores são importa para o que eles têm a dizer e, por isso, quero apresentá-los com mais profundidade do que de costume. Suas reflexões foram escritas especialmente para este volume e nunca antes haviam sido reunidas num mesmo lugar.

Parte A: Contemporâneos de Paulo Freire apresentam sua pedagogia A Parte A contém dois capítulos. O capítulo 1, “O impacto global da pedagogia de Freire”, foi escrito pelo Dr. Moacir Gadotti, professor de Educação da Universidade de São Paulo e diretor do Instituto Paulo Freire, em São Paulo. Estamos profundamente honrados em

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contar com a sua contribuição neste volume. Depois que Freire saiu do exílio e retornou ao Brasil, o Dr. Gadotti tornou-se um de seus colaboradores mais próximos. Trabalharam juntos por mais de 20 anos. Ele foi chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo no período em que Paulo Freire era o secretário. Seu livro Lendo Paulo Freire: sua vida e obra, oferece insights importantes sobre as contribuições de Freire. Neste capítulo, escrito especialmente para Novos Rumos para a Avaliação, o Dr. Gadotti apresenta Freire a uma nova geração de avaliadores – e relembra a nós, que o descobrimos há muito tempo atrás, por que ele continua a ser importante e relevante. Para compor a edição americana desta publicação, seu capítulo foi traduzido para o inglês, com o apoio da Fundação Roberto Marinho, no Rio de Janeiro. Somos profundamente gratos por isso. O capítulo 2, escrito por Thereza Penna Firme e Vathsala Iyengar Stone, é “A pedagogia de Paulo Freire na educação de rua: descobrindo o impacto em meninas e meninos em situação de rua no Brasil”. As autoras apresentam os resultados da avaliação de um programa que trabalhava com crianças sem teto, baseado na pedagogia de Freire. Nascida no Rio de Janeiro, a Dra. Penna Firme é educadora e psicóloga especializada em avaliação, tanto por formação acadêmica quanto pela prática profissional. Graduada em Psicologia Clínica (PUC-Rio), ela obteve o grau de mestre em Psicologia Educacional (Universidade de Wisconsin, 1965) e em Educação (Universidade de Stanford, 1966), bem como o grau de doutora em Educação e Psicologia de Crianças e Jovens (Universidade de Stanford, 1969). A Dra. Penna Firme tem vasta experiência nos níveis básico e superior de ensino no Brasil. Atuou como diretora de programas acadêmicos na PUC-Rio e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aposentando-se como decana da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lecionou em cursos de pós-graduação em Psicologia e Avaliação; realizou pesquisas e orientou dissertações de graduação nas instituições citadas acima. Suas contribuições nacionais e internacionais incluem trabalhos como conferencista, consultora e avaliadora para organizações como a Usaid, Unicef, Unesco, Ministério da Educação de El Salvador, Banco Internacional de


Desenvolvimento, Banco Mundial e Organização Panamericana de Saúde. Com vasta experiência em avaliação de programas para crianças em situação de risco, atualmente a Dra. Penna Firme coordena, no Rio de Janeiro, o Centro de Avaliação da Fundação Cesgranrio e presta consultoria em avaliação para a Fundação Roberto Marinho. A coautora do capítulo 2, Dra. Vathsala I. Stone, é amiga e colega de longa data de Thereza Penna Firme. A Dra. Stone dirige as áreas de pesquisa e avaliação do Centro de Tecnologia Assistiva (CAT) da Universidade de Buffalo, EUA. Ela tem doutorado em Avaliação Educacional e Projetos de Pesquisa, pela Universidade do Estado da Flórida (EUA, 1974). Sua carreira se estende por 40 anos – 17 deles passados no Brasil – durante os quais vem atuando como profissional de avaliação em contextos nacionais e internacionais. Ela ensinou e praticou a avaliação, ofereceu consultorias, conduziu pesquisas e é autora de publicações em Educação e Avaliação. Além de sua experiência com sistemas de educação formal, grande parte de suas pesquisas e consultorias a organizações internacionais centra-se em populações com necessidades especiais – crianças em risco (Unicef), crianças com pouco ou nenhum acesso à educação (Instituto de Pesquisa Espacial, Brasil), comunidades economicamente desfavorecidas (Fundação Roberto Marinho). Nos últimos vinte anos a Dra. Stone trabalhou com equipes multidisciplinares do Centro de Tecnologia Assistiva, envolvidas na tradução de conhecimentos em práticas (Knowledge Translation) e na transferência de tecnologia para pessoas pobres, com deficiência.

Parte B: Princípios pedagógicos de avaliação inspirados em Freire A Parte B apresenta os princípios de uma pedagogia da avaliação extraídos dos escritos de Paulo Freire e dos capítulos da Parte A. No capítulo 3, eu identifico, explico e documento esses princípios, que inspiraram a avaliação com foco em princípios (principles focused evaluation) (Patton, 2017).

O capítulo 4, “A pedagogia em processo aplicada à avaliação: Aprendendo com o trabalho de Paulo Freire na Guiné-Bissau”, por Thomaz K. Chianca e Claudius Ceccon, examina e testa os princípios, baseando-se no trabalho de Freire na Guiné-Bissau. Thomaz Chianca é um consultor internacional em avaliação, com 20 anos de experiência no Brasil e em outros 24 países. Seu trabalho abrange diferentes áreas de conteúdo, incluindo, entre outras, desenvolvimento da primeira infância e educação, direitos das crianças e dos adolescentes, iniciativas educacionais no contra turno da escola, agenda pelo trabalho digno, redução da pobreza rural, proteção ambiental, cuidado e gestão de rebanhos. Chianca tem um doutorado em avaliação interdisciplinar pela Western Michigan University, mestrado em Saúde Pública pela North Carolina University em Chapel Hill e é graduado como cirurgião-dentista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Chianca é membro fundador da Associação Brasileira de Monitoramento e Avaliação e participou de seu primeiro Conselho Gestor (2015-2017). Claudius Ceccon é diretor executivo do Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP), uma organização social sem fins lucrativos com sede no Rio de Janeiro, que produz materiais educativos audiovisuais e impressos, campanhas de interesse público e organiza cursos de formação para educadores e atores sociais, empoderando e qualificando sua ação como cidadãos para provocar as mudanças necessárias ao aperfeiçoamento da democracia em nossa sociedade. Claudius é arquiteto pela Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro e fez estudos de pós-graduação em Planejamento Urbano na Holanda e na Italia. É muito conhecido como cartunista político. Mas é o seu trabalho com Freire que é de particular relevância para este volume. Eles eram amigos e aliados políticos no exílio e trabalharam juntos na África de 1975 a 1980, participando de uma equipe de apoio ao recém-formado governo na Guiné-Bissau, para planejar e implementar um programa nacional de alfabetização de adultos, assim que o país conquistou sua independência de Portugal.

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Parte C: Exemplos da atual influência de Freire na avaliação A Parte C apresenta dois exemplos da influência atual de Freire. O Capítulo 5, escrito por Vilma Guimarães, intitula-se “Avaliação pedagógica transformadora: princípios freirianos praticados em escolas públicas brasileiras”. Ela é gerente geral de Educação e Implementação da Fundação Roberto Marinho, entidade sem fins lucrativos, que promove a identidade nacional e cultural em todo o Brasil e oferece educação básica através da televisão, e que foi criada em 1977, no Rio de Janeiro, pelo jornalista Roberto Marinho. Vilma nasceu no estado de Pernambuco, a terra natal do educador Paulo Freire. Esteve próxima a Freire geográfica, histórica e profissionalmente, nos primeiros anos da eminente visibilidade dele. Suas vidas se desdobraram por meio da imersão no mesmo movimento político e cultural dos anos 1970. Com Freire, ela aprendeu a ouvir, a valorizar a produção coletiva, a conviver com as diferenças, a conceituar a educação como prática de autonomia e liberdade e a redesenhar as escolas com professores, estudantes, gestores, equipe técnica e comunidade, baseando-se nos princípios pedagógicos freirianos. Falar com Vilma Guimarães é sentir sua paixão pela ideia de construir uma sociedade mais livre, mais humana, mais justa e mais igualitária, aliada à consciência de que a avaliação é essencial para concretizar essa visão. Formada em História, com especialização em Macroplanejamento Educacional, ela tem vasta experiência em gestão de pessoal e de equipes, bem como de produção de programas educacionais. Atuou como professora, como diretora de escola e como gerente do Departamento de Tecnologia Educacional da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. Nesta última posição, conceitualizou, implementou e apoiou a avaliação de projetos educacionais inovadores e de projetos de mobilização da comunidade, abordando alfabetização de adultos, sexualidade, dependência de drogas, sustentabilidade ambiental e empreendedorismo. Ela traz à Pedagogia da Avaliação a perspectiva de quem a pratica.

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No Capítulo 6, “Avaliação empoderadora transformativa e pedagogia freiriana: sintonia com uma tradição emancipatória” , David Fetterman compara a pedagogia freiriana e a avaliação empoderadora. Examina paralelos entre elas, assim iluminando a ambas. Ele já foi presidente da Associação Americana de Avaliação (AEA) e é autor ou editor de 16 livros sobre avaliação, incluindo Avaliação empoderadora: conhecimento e ferramentas para autoavaliação. Influenciado por Freire, ele deu origem à abordagem da avaliação empoderadora, que celebrou seu 21º aniversário em 2015, no encontro da Associa ção Americana de Avaliação.

Referências FALS-BORDA, O.; RAHMAN, M.A. (Eds.) (1991). Action and Knowledge: breaking the monopoly with participatory action research. New York, NY: Apex Press. FREIRE, P. (1970/2000). Pedagogy of the oppressed (Bloomsbury paperback edition). New York, NY: Bloomsbury. FREIRE, P. (2001). Pedagogy of freedom: ethics, democracy, and civic courage. Lantham MD: Rowman & Littlefield. GADOTTI, M. (1994). Reading Paulo Freire: his life and work. Albany, NY: State University of New York Press. HOUSE, E.R. (1990). Methodology and justice. New Directions for Evaluation, 45, 23-36. HOUSE, E.R. (2014) Evaluating: values, biases, and practical wisdom. Charlotte, NC: Information Age Publishing. KAHN, R.; KELLNER, D. (2007). Paulo Freire and Ivan Illich: technology, politics and the reconstruction of education. Policy Futures in Education, 5(4), 431-448. KUSHNER, S.; ROTONDO, M. (2012). Editors’ notes. New Directions for Evaluation, 134, 1-4. NEIROTTI, N. (2012). Evaluation in Latin America: paradigms and practices. New Directions for evaluation, 134,7-16. PATTON, M.Q. (2011) Developmental evaluation: Applying complexity concepts to enhance innovation and use. New York, NY: Guilford Press. PATTON, M.Q. (2012). Essentials of utilization-focused evaluation. Los Angeles. CA: Sage. PATTON, M.Q. (2017). Principles-focused evaluation: the guide. New York, NY: Guilford Press. ROSENSTEIN, B.; SYNA, H.D. (Eds.). (2015). Evaluation and social justice in complex sociopolitical contexts. New Directions for Evaluation, 146, 3-8. SIROTNIK. K.A. (Ed.) (1990). Evaluation and social justice: Issues in public education. New Directions for Evaluation, 43, 23-36.




PARTE

Contemporâneos de Paulo Freire apresentam sua pedagogia



O impacto global da pedagogia de Freire Moacir Gadotti

O

autor deste capítulo foi um dos maiores amigos de Paulo Freire. Trabalharam juntos, e juntos criaram o Instituto que prossegue a obra freiriana. Aqui, Gadotti nos guia pelo universo do pensamento de

Freire, mostrando suas origens, os princípios e premissas da Educação Popular e a extensão planetária de sua influência e impacto. Mostra que, muito além de um método de alfabetização, Freire nos legou conceitos e categorias que alcançam uma vasta extensão do campo educativo, inspirando uma educação

MOACIR GADOTTI foi um dos colaboradores mais próximos de Paulo Freire depois que ele regressou ao Brasil, vindo do exílio: trabalharam juntos por cerca de 20 anos. É professor de Educação na Universidade de São Paulo e diretor do Instituto Paulo Freire, em São Paulo.

democrática e transformadora, que se posiciona, não se omite – e na qual, mais do que compartilhar conhecimento e ideias, compartilha-se o coração.

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Introdução: Uma perspectiva global sobre o impacto pedagógico de Freire Embora Paulo Freire tenha brotado e florescido em um contexto latino-americano, não se deixou limitar por ele. Freire dialogou com outras perspectivas e sua pedagogia adquiriu significado mais amplo, pois a relação oprimido-opressor, que ele abordou, é universal e suas teorias foram enriquecidas pelas mais variadas experiências e práticas, em diversas partes do mundo. Seu pensamento representa uma síntese de diferentes fontes, o que coloca, ao leitor iniciante, o problema de apreendê-lo de forma global (Gadotti, 1994). Ele influenciou muitos pensadores, mas também foi influenciado por outros. Seu pensamento humanista inspirou-se no personalismo, bem como no existencialismo, na fenomenologia e no marxismo . Integrou elementos chave dessas doutrinas filosóficas, sem repeti-las mecâni-

D I CA O pensamento humanista que caracteriza a obra de Paulo Freire coloca no centro de tudo a dignidade e as aspirações do ser humano. Paulo Freire foi influenciado pelas leituras que fez de grandes humanistas dos séculos 19 e 20, dentre eles os que impulsionaram as correntes filosóficas citadas por Gadotti. O movimento do personalismo, do francês Emmanuel Mounier (1905-1950), desenvolvido na época da resistência ao fascismo, valorizava a “pessoa”, em comunidade, na interação com o outro, com direito a não ser tratada como objeto, dotada de liberdade e responsabilidade.

ca ou sectariamente. A associação entre humanismo e marxismo que enriquece seus textos é uma das razões pelas quais ele tem sido e ainda é lido por um público muito numeroso. Mas a pedagogia do diálogo que Freire praticou não era eclética: baseava-se em uma filosofia pluralista. Pluralismo não significa ecletismo ou, como ele costumava dizer, posições “adocicadas”– significa ter um ponto de vista e, baseado nele, dialogar com outros. Sua obra teórica tem inspirado práticas em várias partes do mundo, dos mocambos do Recife às comunidades Burakumins do Japão, passando pelas mais consagradas instituições educacionais do Brasil e de outros países. Tal influência abrange as mais diversas áreas do saber: pedagogia, filosofia, teologia, antropologia, serviço social, ecologia, medicina, psicoterapia, psicologia, museologia, história, jornalismo, artes plásticas, teatro, música, educação física, sociologia, pesquisa participativa, métodos de ensino de ciência e literatura, filologia, ciências políticas, currículo escolar e política de educação para meninos e meninas de rua. Também repercute na avaliação, como é demonstrado nos capítulos da

O existencialismo surgiu em meados do século 19 e tornou-se popular a partir da Segunda Guerra Mundial, em especial devido a Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986). Para o existencialismo, não nascemos com uma essência imutável, que nos acompanha do nascimento à morte. Ao existirmos e fazermos nossas escolhas na vida, definimos nossa essência. Como diz Sartre, o ser humano é tal como se faz a si próprio. A fenomenologia foi desenvolvida pelos alemães Edmund Husserl (1859-1938) e Martin Heidegger (1889-1976) e se baseia na premissa de que a realidade consiste de objetos e eventos (“fenômenos”) tais como são percebidos pela consciência humana. Estuda como desenvolvemos cons-

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ciência daquilo que experimentamos no mundo, não apenas pela percepção sensorial, mas pela imaginação, pensamento, emoção, desejo, vontade e ação. O marxismo, conjunto de concepções elaboradas pelos alemães Karl Marx (18181883) e Friedrich Engels (1820-1895), contém uma crítica radical ao capitalismo, na qual se demonstra que sua principal contradição é a que existe entre o caráter social da produção e o caráter privado da propriedade, o que determina a existência de duas classes com interesses opostos: a dos proprietários dos meios de produção e a dos trabalhadores. O marxismo afirma que estes últimos têm o poder de emancipar a humanidade, criando uma sociedade sem classes e igualitária.


presente publicação, os quais, acredito, irão estimular frutíferos debates sobre o tema. A crescente publicação das obras de Freire, em dezenas de idiomas e a ampliação dos fóruns, cátedras e centros de pesquisa criados para estudar e debater o legado freiriano, bem como a quantidade de trabalhos escritos sobre ele, são indicações da grande vitalidade e da ampla disseminação do pensamento de Paulo Freire. Todos esses elementos, combinados, conferem um caráter universal às suas contribuições pedagógicas. Convivi por 23 anos com Paulo Freire. Ele foi, para mim, uma verdadeira universidade. Neste capítulo, vou tentar resumir alguns aspectos essenciais de sua teoria e práticas, começando com uma visão geral do seu legado e em seguida, examinando detalhadamente suas contribuições ao Paradigma da Educação Popular, com foco em seu trabalho como secretário de Educação na cidade de São Paulo. Depois de considerar sua pedagogia, convidarei a leitora ou o leitor a refletir sobre algumas lições para educadores(as) e avaliadores(as).

Legado: raízes e asas Paulo Freire nos deixou, como legado, raízes ético-políticas para fundamentar nossas práticas; asas, isto é, uma teoria para ir além do seu trabalho; e muitos sonhos, incluindo a utopia de uma sociedade de iguais ou, como ele afirma ao final da Pedagogia do Oprimido: “a criação de um mundo no qual será mais fácil de amar”. Não há dúvida de que Paulo Freire deu uma grande contribuição à educação, à justiça social (Torres, 2014) e à concepção dialética da educação (Gadotti, 1996). Quer aceitemos ou não suas ideias pedagógicas, seu caráter emancipatório e dialético representa um marco decisivo na história do pensamento pedagógico mundial. Deixe-me então destacar alguns elementos duradouros do seu legado antes de me voltar para a explicação de sua pedagogia e de suas implicações para a avaliação.

DICA Em seu artigo “A dialética: concepção e método”, no livro Concepção dialética da educação (São Paulo: Cortez/ Autores Associados, 1990), Moacir Gadotti explica que “na Grécia Antiga, a palavra ‘dialética’ expressava um modo específico de argumentar, que consistia em descobrir as contradições contidas no raciocínio do adversário (análise), negando, assim, a validade de sua argumentação e superando-a por outra (síntese)”. Para Gadotti, uma ‘abordagem dialética’ permite compreender que tudo se relaciona (os fenômenos e situações estão ligados entre si e se condicionam mutuamente); que tudo se transforma (natureza, sociedade, indivíduos, conceitos, não estão imóveis, prontos e acabados, e sim em contínuo movimento de transformação); que muitas pequenas mudanças quantitativas acabam provocando um salto qualitativo; que a mudança resulta da contradição, do conflito entre forças de naturezas opostas.

• Uma filosofia educacional e política; um método de investigação, pesquisa e avaliação baseado na antropologia e na teoria do conhecimento. O pensamento de Freire provou ser indispensável não só à formação crítica do educador, mas também à formação de profissionais de outras áreas, incluindo avaliadores. Sua filosofia educacional cruzou as fronteiras das disciplinas, das ciências e das artes, para além da América Latina, criando raízes nos mais diferentes solos. Ele propôs novos instrumentos técnico-metodológicos, que estabeleceram os princípios qualitativos fundantes de procedimentos pedagógicos e de pesquisa científica na área da educação, potencializando a criação de novas epistemologias e de novas filosofias políticas da educação. • Uma pedagogia voltada para a construção de uma sociedade democrática, com justiça social. Freire refletiu, como poucos, sobre a importância das políticas educacionais, criticando a abordagem “bancária” de educação (depositar “fatos” nas mentes dos estudantes). Sua pedagogia continua válida, não só porque precisamos de mais

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democracia, de mais cidadania e justiça social, mas porque as escolas e sistemas educacionais enfrentam hoje grandes e inéditos desafios devido à generalização, na sociedade, das informações e do uso de novas tecnologias. Para encarar esses desafios, a escola precisa tornar-se um organismo vivo e organizador de múltiplos espaços de formação; precisa tornar-se um “círculo de cultura”, como Freire costumava dizer, e ser muito mais gestora do conhecimento social do que provedora de informação. Nesse sentido, Paulo Freire tem muito a contribuir, pois, em toda a sua obra, ele insistiu em metodologias profundamente envolventes e interativas, em formas mutuamente respeitosas de aprendizagem e de ensino, em métodos críticos de ensino e pesquisa, nas relações pessoais – enfim, no diálogo significativo. Na visão de Freire, a radicalização da democracia era uma estratégia indispensável para superar as desigualdades sociais na escola e fora dela. Paulo Freire nos aponta para a educação do século 21 e não para a expansão da educação do século 19. • A utopia de uma “ética universal humana” que se opõe ao pensamento neoliberal. Utopia é uma categoria central no pensamento de Paulo Freire. Por isso, ele se opõe diametralmente à educação neoliberal: o neoliberalismo rejeita os sonhos e a utopia, buscando a padronização (fordismo, toyotismo) da qualidade, da avaliação e da aprendizagem. Na concepção neoliberal, os professores não têm conhecimento científico; seu saber é inútil. Portanto, não precisam ser consultados. Eles só precisam receber receitas de “como fazer”, sem se perguntar por quê. A esfera pública está perdendo a hegemonia do projeto educacional para a esfera privada e transpõe para a educação a ética do mercado. Paulo Freire, em vez disso, fala de uma “ética universal do ser humano” (Freire, 1997, p. 16), opondo-se ao pensamento neoliberal. O pensamento neoliberal abomina os sonhos e a utopia, enquanto o pensamento freiriano é utópico. Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinis-

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mo de sua ideologia fatalista e à sua recusa inflexível ao sonho e à utopia (Freire, 1997, p. 15). • Contribuições ao paradigma da educação popular. A educação não é um processo neutro. A Educação Popular, como toda a educação, pressupõe um projeto de sociedade. O que a caracteriza é sua clara e explícita opção política. Trata-se de uma rica e variada tradição, reconhecida pelo seu caráter emancipatório, alternativo e participativo (Brandão, 1982). Em suas origens estão o anarquismo do proletariado industrial do início do século passado; o socialismo autogestionário; o liberalismo radical europeu; os movimentos populares; as utopias de independência; as teorias da libertação e a pedagogia dialética. O paradigma da educação popular tem marcado a América Latina e embasa inúmeras experiências e projetos inspirados em educadores revolucionários como José Martí (Cuba, 1853-1895), Simón Bolívar (Venezuela, 1783-1830) Simón Rodríguez (Venezuela, 1769-1854), Orlando Fals Borda (Colômbia, 1925-2008) e Paulo Freire (1921-1997). Em contraste com velhas teses de esquerda que não valorizavam a democracia, o pensamento de Freire foi pioneiro na América Latina, ao propor que a revolução não pode ser alcançada sem uma ética que busque a radicalização da democracia. • Lições esclarecedoras para professores(as) e avaliadores(as) enquanto gestores(as) do conhecimento. Considerando que a pedagogia crítica é fundamentalmente avaliativa, as lições de Freire para os educadores também podem ser, potencialmente, lições para os avaliadores, como veremos mais adiante.


Algumas informações sobre o anarquismo e o socialismo autogestionário, dois dos movimentos de caráter emancipatório e participativo citados. A palavra “anarquismo” tem origem na palavra grega anarkhia, que significa “ausência de governo”. No entanto, no anarquismo, “ausência de governo” se refere à ausência de uma autoridade centralizadora de um Estado opressor, que é substituída pela horizontalidade do autogoverno, dividido em conselhos: as pessoas se autodeterminam e tomam decisões de forma comunitária. Anarquia, como filosofia e movimento, não tem nada a ver com bagunça... Está presen-

te na história ocidental a partir do século 19 e foi muito forte na primeira metade do século 20. Chegou ao nosso país com os imigrantes italianos e espanhóis e acabou dando origem ao movimento operário brasileiro: sem eles as grandes greves de 1917 em São Paulo e de 1918 e 1919 no Rio de Janeiro não teriam acontecido. O movimento anarquista quer a abolição do modelo capitalista e sempre valorizou a educação guiada pelos valores da liberdade individual e coletiva, para o desenvolvimento de pensamento crítico; da igualdade econômica, política e social, entre mulheres e homens, brancos e negros; e

Tornando a educação popular Hoje, a educação popular está se reinventando. Seu processo foi enriquecido com novas propostas da educação para a cidadania e os direitos humanos. Permanecendo sempre fiel à leitura das novas circunstâncias do mundo, incorpora as conquistas de novas tecnologias, retomando temas antigos e incluindo outros: migração, diversidade, ludicidade, sustentabilidade e interdisciplinaridade, além de questões de gênero, etnia, idade, desenvolvimento local, emprego e renda. Mas os princípios centrais articulados e defendidos por Freire (ver Tabela 1.1) continuam relevantes, constantemente reinventados por novas práticas sociais e educacionais. Paulo Freire foi um homem da práxis – ao mesmo tempo um pensador e um fazedor (próxima página). Pode-se dizer que ele foi o educador brasileiro que mais abriu portas à educação popular como política pública, ao aceitar, em 1989, tornar-se secretário de Educação de São Paulo, a maior cidade da América do Sul.

DICA da solidariedade, com apoio mútuo e colaboração. O socialismo autogestionário provém da experiência da antiga Iugoslávia [1950] e propõe a organização de cooperativas de produção, organizadas em escala nacional. Defende um modelo de socialismo em que as diversas alavancas do poder, os centros de decisão, de gestão e controle, e os mecanismos produtivos sociais, políticos e ideológicos se encontrem nas mãos dos produtores-cidadãos, organizados livremente e colocando em prática a democracia direta.

TABELA 1.1. Princípios e premissas da educação popular freiriana Princípios

Premissas que apoiam os princípios

1. A utopia como o verdadeiro realismo do educador.

Rejeição ao pensamento fatalista (neoliberal). “O mundo não é. O mundo está sendo”(Freire, 1997, p. 85).

2. Harmonia entre educação formal e não formal.

A escola não é o único espaço educativo.

3. Reconhecimento da legitimidade do conhecimento popular, em tempos de extremo elitismo.

Aprendemos ao lutar.

4. A teoria construída sobre a prática, a fim de transformá-la.

A prática educativa é inerentemente política: toda educação pressupõe um projeto de sociedade.

5. Um método de ensino e pesquisa baseado na leitura da realidade.

Esta pedagogia é comprometida com a cidadania ativa: a educação popular promove a participação política das classes populares, para superar condições sociais opressivas.

6. Educação como prática da liberdade, precondição da vida democrática.

Ética como referência central na busca da radicalização da democracia.

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D ICA Práxis não é apenas “prática”– é a “conversa’ constante entre teoria e prática, proporcionada pela reflexão. Você age, pensa (teoriza) sobre o que fez, e age de novo, de forma diferente, melhor. Essa nova prática vai ser matéria de nova reflexão (gerando novas “teorias” sobre ela), o que provoca novas ações. Um processo que não precisa terminar nunca. Mulheres e homens capazes de práxis são, como diz Fetterman no capítulo 6 deste livro, “praticantes reflexivos”, envolvidos em “ciclos de reflexão e ação”: fases contínuas de análise, tomada de decisão e implementação, com base nos resultados da análise.

Educação popular como política pública: Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo Em suas últimas décadas de vida, Paulo Freire passou por um período de refundação da educação popular. Em agosto de 1985, em entrevista a Rosa Maria Torres, ele sustenta que “a educação popular se delineia como um esforço no sentido da mobilização e organização das classes populares, com vistas à criação de um poder popular” (Torres, 1987, p. 74). Na mesma entrevista, Freire afirma que, para fazer educação popular, não é necessário trabalhar com adultos e que educação popular é um conceito que independe da idade dos educandos: “não se confunde, nem se restringe apenas aos adultos. Eu diria que o que marca, aquilo que define a educação popular, não é a idade dos alunos, mas a opção política, ou seja, a prática política entendida e assumida na prática educativa” (Freire, apud Torres, 1987, p. 86-87). No final da década de 1980 e início dos anos 1990, a escola pública entrou na pauta da educação popular. O Estado deixou de ser encarado como inimigo, como na época das ditaduras latino-americanas. Algumas ONGs tornaram-se parceiras de

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administrações populares e democráticas. O Estado passou a ser visto não como monolítico, mas em constante processo de transformação, como a sociedade. Nesse contexto, Paulo Freire defendia a tese de que a educação popular pode e deve inspirar políticas públicas educacionais (Beisiegel, 2008). Ele queria não apenas democratizar a educação, mas garantir que ela pudesse “ser popular”, isto é, incorporar em suas práticas os princípios emancipatórios da educação popular, como parte de um projeto de sociedade. Em seu trabalho como secretário Municipal de Educação de São Paulo (Freire, 1991), ele demonstrou que a educação popular é um processo que se constrói simultaneamente dentro e fora do Estado.

Trabalho coletivo como princípio pedagógico Quando trabalhei com Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, onde eu era chefe de Gabinete, ele impressionou a todos nós com sua clareza político-pedagógica e ideológica. Sua política educacional era guiada pelos princípios da Educação Popular (Tabela 1.1), que aprendemos a incorporar à prática. Eles representam, em síntese, a defesa da educação pública popular, que vai ao encontro, com qualidade, dos interesses da maioria da população, superando padrões elitistas. O que eu gostaria de enfatizar agora é o seu projeto político-pedagógico: o trabalho coletivo como princípio pedagógico. Para Paulo Freire, a educação é uma prática social que se realiza em espaços que vão além da escola; e como essa prática social ocorre em diferentes espaços, precisamos, cada vez mais, construí-la coletivamente. O princípio do trabalho coletivo é uma forma de se concentrar simultaneamente sobre currículo e sobre gestão. Portanto, ele se traduz, por um lado, na visão interdisciplinar que Freire tem do currículo, das ciências, da cultura e da educação e, por outro lado, em sua defesa intransigente da gestão democrática.


Trabalho coletivo e reorientação curricular: interdisciplinaridade e transdisciplinaridade Na reorientação curricular empreendida por Paulo Freire, o processo de investigação reflexiva envolveu três fases ou momentos articulados: estudo da realidade, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento. O estudo da realidade é guiado pela problematização, baseada na história de vida de educadores, alunos e comunidades, envolvendo visitas, entrevistas, questionários e organização de situações significativas, para chegar aos temas geradores. A organização do conhecimento é realizada por meio da seleção e articulação das áreas do currículo, da sistematização do conhecimento já construído e pelo levantamento de hipóteses, pressuposições, conceitos e teorias. A aplicação do conhecimento envolve o planejamento e implementação do programa, com reconstrução do conhecimento já construído, usando como ferramentas não só livros e materiais pedagógicos, mas também a leitura do mundo tal como ele é experimentado, visando à transformação do educador e do estudante no processo e possibilitando que reflitam juntos sobre o que vai ocorrendo, ou seja, avaliem. Na perspectiva de Paulo Freire, a aplicação do conhecimento pressupõe necessariamente que o estudante demonstre uma compreensão mais profunda da realidade – mas também deve apresentar propostas de mudança e comprometimento com elas. Isso tem a ver com o aprofundamento da compreensão, do conhecimento e da capacidade do estudante de usar o conhecimento já construído para transformar a realidade. Se a aplicação do conhecimento pressupõe a demonstração de compreensão, essa compreensão exige que o conhecimento seja interdisciplinar e transdisciplinar. Entre os anos de 1987 e 1988, Freire participara de um grupo de reflexão, formado por professores de várias áreas da Universidade de Campinas (Unicamp), que discutiu como realizar a interdisciplinaridade não somente em escolas públicas ou privadas, mas também em seu trabalho com co-

munidades populares. No amplo processo de reorientação curricular que Paulo Freire inaugurou em 1989 como secretário Municipal de Educação de São Paulo, ele propôs uma discussão da “interdisciplinaridade via tema gerador”, que foi chamada “Projeto Inter” (O'Cadiz, Torres, & Wong, 1998). O principal objetivo da interdisciplinaridade é experimentar a realidade como um todo – aquela que está na vida diária dos estudantes, dos professores, das pessoas – e que na escola tradicional é compartimentalizada e fragmentada. Articular conhecimento, experiência, escola, comunidade e ambiente é o objetivo da interdisciplinaridade, o que se traduz, na prática, em trabalho coletivo e solidário. A transdisciplinaridade envolve um diálogo que se funde com o próprio processo educativo interdisciplinar. Em uma perspectiva emancipatória, é impossível ensinar e aprender sem diálogo, sem comunicação dialógica. Neste processo, os educadores, sujeitos de suas próprias práticas educativas, são capazes de desenvolver programas e métodos de ensino-aprendizagem e estão aptos a transformar sua escola em uma comunidade. Não existe interdisciplinaridade e transdisciplinaridade sem descentralização do poder. Consequentemente, não pode haver interdisciplinaridade e transdisciplinaridade sem gestão democrática e sem a efetiva autonomia da escola ou comunidade de aprendizagem.

Trabalho coletivo e gestão democrática Uma ação pedagógica que se realize por meio de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade requer a construção de escolas/comunidades de aprendizagem participativas e com poder de decisão, a fim de que possam investigar o social. Por esta razão, tornava-se necessária a reforma administrativa da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que funcionava em uma lógica hierárquica, para torná-la capaz de incorporar um projeto educacional democrático e emancipatório. Dis-

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se Freire: “Quando fui secretário de Educação da cidade de São Paulo, obviamente comprometido com fazer uma administração que, em coerência com o nosso sonho político, com a nossa utopia, levava a sério, como devia, a questão da participação popular no futuro da escola, meus companheiros de equipe e eu tivemos de começar pelo começo mesmo. Quer dizer, começamos por fazer uma reforma administrativa para que a Secretaria de Educação trabalhasse de forma diferente” (Freire, 1993, p. 74). A gestão democrática, como defendida por Paulo Freire, é fundamental. Sem ela, não há construção do conhecimento em uma perspectiva emancipatória. Pode-se dizer que participação e autonomia constituem a própria natureza da prática educativa. A participação é uma pré-condição para a aprendizagem – ela influencia diretamente a aprendizagem.

O ensino, de acordo com Paulo Freire: implicações para a avaliação A formação dos professores foi uma preocupação constante de Paulo Freire, manifestada em suas numerosas obras. Em Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar, ele reafirmou a necessária profissionalização do ensino, contra a desvalorização desta profissão (ver Freire, 1992). Em um diálogo com o educador norte-americano Ira Shor, registrado em Medo e ousadia: o cotidiano do professor (Freire & Shor, 1987), Freire analisou a dialética entre utopia e cotidiano, entre sonho e realidade, que impregna o ensino/aprendizagem. Neste livro, os autores afirmam que a educação para a libertação é um estímulo para as pessoas se mobilizarem, organizarem e “empoderarem”. Aprender é ousar, é superar o medo.

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Lições para avaliadores(as) Que ensinamentos Paulo Freire deixou a nós, educadores(as) e, por inferência, avaliadores(as)? As lições identificadas até aqui e apresentadas a seguir aplicam-se tanto à educação quanto à avaliação, pois, como este volume vem afirmando, ambas são, intrinsecamente, práticas pedagógicas. Isso significa que todos os aspectos da educação e da avaliação são portadores de mensagens e ensinam, explícita ou implicitamente, por meio do processo ou do conteúdo, em estilo ou substância, nas interações ou no formato, por meio da imposição ou da colaboração. Essas lições estão longe de esgotar o que a pedagogia de Paulo Freire oferece, mas devem ser consideradas em seu caráter ilustrativo e gerador. LIÇÃO 1 Razão e emoção estão interligadas. Freire costumava falar sobre uma ética inseparável da estética, especialmente em seu último livro (Freire, 1997). No ensino, ser e saber são indissociáveis. Nossa tradição clássica de educação evita conectar emoções e razão. Paulo Freire, em contraste, falou de uma “razão encharcada de emoção.” Ele insistia muito neste ponto. A educação responde pela criação da liberdade de cada ser consciente, sensível, responsável, em que razão e emoção estão em equilíbrio e interação constante. No mundo da vida, o conhecimento simbólico e o conhecimento perceptivo interagem constantemente. O conhecimento é produzido pelos seres humanos, seres de racionalidade e afeto. Nenhuma dessas duas características é superior à outra. É sempre um sujeito que constrói categorias de pensamento, por meio de suas experiências com o outro, em um determinado contexto, em um dado momento. Nessa construção, o aspecto afetivo está sempre presente. A onipotência da razão gera uma escola burocrática e racionalista, incapaz de compreender o mundo da vida e o ser humano na sua totalidade. É uma escola dogmática e adormecida, não um organismo vivo. É preciso compreender os processos cognitivos como processos vitais, na medida em que intelecto e sensibilidade são in-


separáveis. O conhecimento é uma construção social e não mera “aquisição” ou “assimilação” de algo preexistente ao indivíduo que conhece. Antes de conhecer, o indivíduo “se interessa por”, “tem curiosidade por”... – é o que Freire chamava “curiosidade epistemológica” (1997, p. 165). Essa curiosidade é o que impulsiona o indivíduo a apropriar-se daquilo que a humanidade já produziu historicamente. LIÇÃO 2 O conhecimento é emancipatório. Nesta concepção, o conhecimento tem uma função emancipatória: possibilita saber pensar de forma independente, ser um criador, um sujeito com autonomia; aprender, a fim de se autodeterminar e ser seu próprio mestre. A palavra “emancipar” vem de ex-manus ou de ex-mancipum. Ex indica a ideia de “saída” ou “retirada” e manus, “mão”, simboliza o poder. Emancipar, então, seria “retirar a mão que aprisiona”, “libertar, abrir mão de poderes”, “colocar fora de tutela”. Ex-manus (mão-fora) quer dizer “colocar fora do alcance da mão.” Emancipar-se é afirmar a quem nos oprime: “Tire suas mãos de mim!” LIÇÃO 3 Não há ensino sem aprendizagem, nem aprendizagem sem ensino. Para Paulo Freire, mais importante do que saber como ensinar é saber como o aluno aprende. Freire criou um método de conhecimento e não exatamente um método de ensino. Por isso, já nos seus primeiros escritos, inventou o neologismo “dodiscência” (1997, p. 31), docência+discência, para designar a relação dialógica entre o ato de ensinar e o ato de aprender – “não há ensino sem aprendizagem” (1997, p. 23); “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (1997, p. 25) – um não é o objeto do outro. Por isso, substituiu as “aulas “ pelos “círculos de cultura”. LIÇÃO 4 A pedagogia envolve tanto ser, quanto saber. O que a professora ou o professor precisa saber, para ensinar? Muitas coisas. No entanto, a questão mais importante é: o que ela ou ele deve ser, para ensinar? Quem estuda só aprende quando deseja aprender, quando sente prazer no que

está aprendendo. Elas e eles querem saber, mas nem sempre querem saber o que lhes está sendo ensinado. Estudantes precisam ser autores, rebeldes e criadores. E para isso, os(a) aprendizes, que também ensinam, têm de ser respeitados em suas experiências culturais e em seus ritmos próprios de aprendizagem. LIÇÃO 5 Uma pedagogia significativa faz sentido na vida diária. O que significa educar, na perspectiva emancipatória de Freire? Educar e se educar é sempre impregnar de sentido o que fazemos em nossas vidas cotidianas. É compreender, para transformar o mundo e a si mesmo. É compartilhar o mundo: mais do que compartilhar conhecimento e ideias, é compartilhar o coração. Em uma sociedade violenta como a nossa, precisamos educar para a compreensão, para a ternura, para a compaixão e a solidariedade. Educar é também desestabilizar, questionar, suspeitar, lutar, tomar partido, estar presente no mundo. Educar é posicionar-se, não se omitir. Educar é transformar. Não é repetir, de forma subserviente, o que foi feito no passado, escolhendo a segurança da conformidade, por lealdade à tradição; ou, ao contrário, bater de frente com a ordem estabelecida e correr o risco da aventura; nem querer que o passado configure todo o futuro, ou depender do passado para construir algo novo. Essas abordagens são abstrações. O poder transformador da educação é realizado ao se fundamentar naquilo que a transformação significa para a vida no dia a dia. LIÇÃO 6 A interdisciplinaridade é essencial porque é fiel à natureza do mundo. Paulo Freire entendia a interdisciplinaridade, a conexão entre disciplinas e áreas do conhecimento, como condição prévia para a criação de significados e um passo para alcançar a transdisciplinaridade, na busca da totalidade. É uma atitude e um método, indispensável ao pesquisador e ao educador. Também é uma dimensão essencial de tudo que existe. A interdisciplinaridade deve estar na prática de ensino e de pesquisa, porque está aí, no complexo tecido da realidade.

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DICA

Fique sabendo A palavra holística foi criada a partir do termo holos, que em grego significa “todo” ou “inteiro”. O adjetivo holístico qualifica o que busca o entendimento dos fenômenos na sua totalidade e globalidade.

L IÇÃO 7 A transdisciplinaridade busca uma compreensão holística – sintetiza e compartilha, não divide. A transdisciplinaridade busca compreender, mais do que acumular conhecimento; quer incluir, agregar, compartilhar, e não dividir. Assim, Paulo Freire juntou a atitude interdisciplinar à atitude transdisciplinar, porque encontrou em ambas a essência do trabalho coletivo – convívio, transversalidade e diálogo. E não é possível ensinar e aprender sem diálogo, sem comunicação dialógica. LIÇÃO 8 Desigualdades educacionais produzem desigualdades sociais. É verdade que as desigualdades sociais produzem desigualdades educacionais. Também é verdade que as desigualdades educacionais produzidas por uma educação tecnocrática irão causar desigualdades sociais, pois os que fracassam ou abandonam a escola serão prejudicados social e economicamente. O princípio da gestão democrática é essencial para eliminar a iniquidade na educação. Ele não se limita à educação básica: refere-se a todos os níveis e tipos de educação. A gestão democrática deve ser coerente com uma noção democrática e emancipatória da educação: não deve ser entendida apenas como uma prática participativa, mas como uma radicalização da democracia, como uma estratégia para superar o autoritarismo, o patrimonialismo, o individualismo e as desigualdades sociais.

Educação e avaliação: questões interconectadas de propósito e qualidade Nós nos importamos com a qualidade da educação – e devemos nos importar – mas primeiro precisa-

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mos saber de que tipo de qualidade e de educação estamos falando. A discussão da qualidade do ensino e da avaliação requer uma discussão dos propósitos da educação e da avaliação. A avaliação tem sido um dos temas mais debatidos na educação contemporânea. Nunca antes os instrumentos de avaliação foram tão aperfeiçoados. Chegamos muito perto da perfeição. Mas não chegamos a discutir com a mesma profundidade o que estamos avaliando, por que estamos avaliando, “para quem” ou “contra quem” o fazemos, como diria Freire. A fim de compreender o significado da avaliação, precisamos perceber o significado da educação e da aprendizagem. A educação, na ideologia neoliberal, é considerada um serviço, uma mercadoria e não um direito. Sua referência é o mercado, não a cidadania. Seus projetos são predominantemente orientados para a aquisição de equipamentos e materiais pedagógicos. Não são projetos educacionais, no sentido estrito. Esta ideologia não se questiona sobre a finalidade da educação, uma questão que tem sido omitida intencionalmente, pois seu projeto de sociedade não é inclusivo e justo, mas pressupõe a dominação de uns poucos sobre os 99%. É o domínio dos meios sobre os fins. Como afirmei anteriormente, neste contexto, professor/a e estudante (ou líder de projeto e participantes), não são produtores de conhecimento, mas distribuidores e consumidores de informações pré-fabricadas. Tradicionalmente, a avaliação é algo feito para aqueles que estão aprendendo, não com eles. Essa concepção de ensino e avaliação não responde às necessidades de uma sociedade de redes e movimentos, uma sociedade de múltiplas oportunidades de aprendizagem, na qual é essencial aprender e pensar de forma independente, saber como se comunicar, como pesquisar, como fazer as coisas, ser capaz de usar o pensamento lógico, aprender a trabalhar colaborativamente, fazer sínteses e elaborações teóricas, saber como organizar o próprio trabalho, ter autodisciplina, ser um sujeito na construção do conhecimento, ser aberto a novos conhecimen-


tos, conhecer as fontes de informação – em suma, saber como articular o conhecimento científico com a prática de diferentes tipos de conhecimento. A educação freiriana está alinhada a outro projeto de sociedade, em que não há lugar para opressores e oprimidos e sim para cidadãos com direitos iguais, vivendo juntos em uma forma radical de democracia. Professor(a) e estudante, líder de projeto e membros da equipe, avaliadores(as) e pessoas sendo avaliadas, são produtores e gestores de um conhecimento que será usado para transformar a realidade. Os princípios e premissas da educação popular (Tabela 1.1) são também os fundamentos da avaliação dialógica colaborativa – uma avaliação feita com (e não apenas para) aqueles que estão aprendendo, baseada no trabalho coletivo e na gestão democrática, inspirados por princípios pedagógicos freirianos. Uma vez que tanto a educação quanto a avaliação envolvem investigação reflexiva, suas três fases ou momentos articulados propostos por Freire (estudo da realidade, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento) podem ser utilizados na realização de avaliações, que, da mesma forma, devem ser interdisciplinares e transdisciplinares na teoria e na prática.

Teoria e método Uma das características mais importantes do trabalho de Paulo Freire é sua coerência entre teoria e método, teoria e prática, conteúdo e forma. Estes elementos são inseparáveis, como inseparáveis são os atos de ensinar e aprender. Essa coerência é também estabelecida porque sua teoria do conhecimento baseia-se, como já vimos, na antropologia . É dessa estreita ligação que surgem as principais categorias e conceitos que articulam seu pensar, tais como: oprimido, práxis, curiosidade, diálogo, utopia, autonomia, politicidade, criticidade, conectividade, conscientização, emancipação, inédito viável, círculo de cultura, dodicência e futuridade, para citar apenas alguns. Para Paulo Freire, a questão do método é tão fundamental no ato educativo, quanto no ato avaliativo: ao usarmos determinado método, que não é neutro, nós

DICA Teoria do Conhecimento é a área da filosofia que investiga o que é o conhecimento, até que ponto é possível conhecer algo, em que se baseia o conhecimento, quais as suas origens e o seu valor. Antropologia é o estudo do ser humano como entidade biológica (origens, evolução, desenvolvimento físico, fisiologia, características raciais), social (organização social e política, regras de parentesco, instituições sociais...) e cultural (sistemas simbólicos, crenças, religião, comportamento, condições de existência dos grupos humanos pré-históricos e/ou desaparecidos).

o fazemos com base em uma escolha ética, política e pedagógica. Neste sentido, o método escolhido já carrega em sua história uma teoria que o fundamenta e determinados princípios. Em uma concepção “tradicional” de educação e currículo, o principal método de ensino é a transmissão de conhecimento pelo professor, aos alunos, já criticada por Paulo Freire desde os anos 1960, como “bancária”. Etimologicamente, “método” significa o “caminho” que o professor seguirá para alcançar determinado propósito – que, na educação tradicional é manter os estudantes como meros discípulos, os professores como instrutores, a escola como instituição que transmite conhecimentos historicamente acumulados e a avaliação como estratégia de controle. Apontando em outro rumo estão as pedagogias emancipatórias, como a Pedagogia do Oprimido, ou da Esperança, criada por Paulo Freire, propondo métodos participativos e democráticos, nos quais estudantes e professores estão no centro do processo de ensino-aprendizagem e a avaliação é uma forma de se desenvolver autonomia e pensamento crítico. Decorrem deste conceito de educação, por exemplo, os métodos da “pesquisa participativa” e da “avaliação participativa”, em que todos os envolvidos no processo de aprendizagem, pesquisam e avaliam em conjunto, ensinando e aprendendo ao fazê-lo, porque, ao contrário dos métodos tradicionais de ensino e avaliação, considera-se que as pessoas são as donas de seu próprio processo de aprendizagem.

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Tanto em seus discursos como em seus escritos, Paulo Freire era muito rigoroso nas explanações e na forma com que, ao falar e escrever, organizava seus conceitos e categorias. Sua análise e expressão eram rigorosamente científicas, seguindo os passos de um dos seus mestres, Álvaro Vieira Pinto (1969). Quando bem estruturada, uma teoria expressa-se em conceitos e categorias que, de alguma forma, sustentam um texto ou discurso inteiros, e no caso de Paulo Freire, uma obra inteira. Descobrir esses conceitos e categorizá-los nos dá uma ideia mais geral de como eles se organizam em um todo orgânico. É muito importante trabalhar com os conceitos, se queremos realmente compreender o pensamento de um autor. Por isso, atrevo-me a concluir este capítulo com um quadro sinótico, no qual estabeleço uma comparação entre a antropologia, a teoria do conhecimento, a pedagogia e o método de Freire (Tabela 1.2). É um convite à leitora ou ao leitor para que substitua as palavras “educação e educar” por “avaliação e avaliar” na Tabela e reflita sobre as implicações da pedagogia freiriana para a avaliação.

Conclusão: Olhando para o futuro da Educação Transformadora e da Educação Popular no século 21. O trabalho atual do Instituto Paulo Freire Quando Paulo Freire deixou a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1991, ele ficou mais livre para se dedicar a um novo desafio: a criação de um Instituto que reunisse pessoas e instituições que, impulsionadas pelos mesmos sonhos de uma educação humanizadora, pudessem aprofundar suas reflexões, melhorar suas práticas e se fortalecer na luta pela construção de um outro mundo possível. O Instituto Paulo Freire (IPF) foi fundado em meio à agitação política subsequente aos eventos

TABELA 1.2. Comparação entre a antropologia, a teoria do conhecimento, a pedagogia e o método de Freire Antropologia

Teoria do Conhecimento

Pedagogia

Método

1. Ser humano: ser-no-mundo, do mundo; um ser curioso, programado para aprender

Ler o mundo (estudo da realidade); todos podem aprender e ensinar (legitimação do conhecimento popular); curiosidade

Pedagogia é um guia para a construção do sonho; ler o mundo precede a leitura de palavras; utopia e vida cotidiana

Pesquisa temática: realidade como ponto de partida; teorizar a prática; universo vocabular: palavras geradoras e temas

2. Ser inacabado (necessita aprender), incompleto (precisa do outro), inconcluso (precisa de sentido)

Compartilhar a leitura do mundo (critério de verdade/validade); conhecimento como ato gnosiológico, histórico, lógico e dialógico

Educação como ato dialógico, rigoroso, intuitivo, imaginativo, afetivo; planejamento participativo, gestão democrática, pesquisa participante, politicidade e conectividade

Tematização (trabalho coletivo): educador/a e estudante codificam e descodificam os temas da pesquisa; crescente consciencialização do mundo da experiência; transformação do contexto experimentado; práxis transformadora

3. Ser da práxis: social (agir comunicativo) e produtivo (trabalho, cultura); ética como referência central para a vida e para a construção democrática

Reconstruir o mundo enquanto ele é lido e compartilhado: aplicação de conhecimento; ciência aberta às necessidades populares

Educar é ler o mundo para poder transformá-lo; impregnar de sentido cada ato da vida diária; educação como prática da liberdade

Problematização: substituir a visão ingênua por uma visão crítica do mundo; transformação do contexto de vida; práxis transformadora

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que levaram à queda do muro de Berlim e ao fim do império soviético. Foi um momento decisivo para os militantes de esquerda, em todo o mundo. De certa forma, era como se tivéssemos perdido o chão, perdido nosso paradigma. Perguntaram a Paulo Freire, naquela época, se ele achava que era o “fim do socialismo”. Ele respondeu que não era o fim do socialismo, mas o fim de uma certa face do socialismo. E acrescentou que, assim, seria mais fácil defender um socialismo democrático, o socialismo com liberdade. No contexto de uma crise paradigmática global, o recém-nascido Instituto Paulo Freire reafirmou e fortaleceu a noção de que o paradigma dos oprimidos não tem nada a ver com o paradigma socialista autoritário. Freire iria acompanhar de perto as atividades do Instituto, apesar de sua agenda sempre lotada. De 1991 até sua morte prematura em 1997, ele supervisionou todos os projetos do IPF. Continuar o trabalho de Freire não significa repeti-lo, e sim reinventá-lo. Como ele disse uma vez: “a única maneira que alguém tem de aplicar à sua situação qualquer das proposições que fiz é exatamente refazer-me, quer dizer, não me seguir. Para seguir-me, o fundamental é não me seguir!” (Freire & Faundez, 1985, p. 41). Esta é a aspiração do IPF. A utopia que move esta instituição é educar para transformar, para criar a cidadania planetária, a “planetarização” (Antunes, 2002), combatendo a injustiça social causada pela globalização capitalista, à luz de uma nova cultura política, inspirada no legado freiriano. Convidamos os avaliadores a se juntarem a nós e a nos ajudar a construir realidades mais justas e sustentáveis. (Mais sobre nós em: www.paulofreire.org)

BRANDÃO, C.R. (1982). O que é Educação Popular. São Paulo: Brasiliense. FREIRE, P.; FAUNDEZ, R. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. São Paulo: Paz e Terra. FREIRE, P.; SHOR, I. (1987). Medo e ousadia: o cotidiano professor. São Paulo: Paz e Terra. FREIRE, P. (1991). Educação na cidade. São Paulo: Cortez. FREIRE, P. (1992). Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’Água. FREIRE, P. (1993). Política e educação. São Paulo: Cortez. FREIRE, P. (1997). Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. FREIRE, P. (2000). Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp. GADOTTI, M. (Ed.) (1996). Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire. GADOTTI, M. (1994). Reading Paulo Freire: his life and work. Albany: SUNY Press. GADOTTI, M. (1996). Pedagogy of praxis: a dialectical philosophy of education. Albany: SUNY Press. GADOTTI, M. (2007). Educar para um outro mundo possível: o Fórum Social Mundial como espaço de aprendizagem de uma nova cultura política e como processo transformador da sociedade civil planetária. São Paulo: Ed. Brasil. GADOTTI, M. (2009). Educação para a sustentabilidade: uma contribuição para a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Instituto Paulo Freire. GUTIÉRREZ, F.; PRADO, C. (1989). Ecopedagogia e cidadania planetária. São Paulo: Instituto Paulo Freire/Cortez. P. O’CADIZ, M.D.P.; TORRES, C.R.; LINDQUIST WONG, P. (1998). Education and democracy: Paulo Freire, social movements and e educational reform in São Paulo. Boulder, CO: Westview Press. PADILHA, P. R. (2004). Currículo intertranscultural: novos itinerários para a educação. São Paulo: Instituto Paulo Freire/ Cortez. PINI, F.R.O.; MORAES, C.V. (Eds.). (2011). Educação, participação política e Direitos Humanos. São Paulo: Instituto Paulo Freire. PINTO, A.V. (1969). Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ROMÃO, J.E. (2000). Dialética da diferença: o projeto da Escola Cidadã frente ao projeto pedagógico neoliberal. São Paulo: Cortez.

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TORRES, R.M. (Ed.). (1987). Educação Popular: um encontro com Paulo Freire. São Paulo: Loyola.

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A pedagogia de Paulo Freire na educação de rua:

Descobrindo o impacto em meninas e meninos em situação de rua1 no Brasil Thereza Penna Firme, Vathsala Iyengar Stone

E

m meados da década de 1980, surgiram em todo o país centenas de programas socioeducativos independentes para meninos e meninas que viviam nas ruas. A visão e a preocupação de Paulo Freire em rela-

ção a um processo educacional adequado que considerasse a identidade cultural dessas crianças e desses jovens, bem como sua autoconfiança, eram fundamentais na concepção e no desenvolvimento de muitos desses programas. Como essa abordagem funcionava de fato? Qual seria o impacto das atividades destes programas na vida das crianças? Teriam provocado mudanças em habilidades, atitudes e valores? O Unicef propôs um estudo pioneiro que proporcionasse uma base metodológica para futuras avaliações mais abrangentes. Este capítulo mostra como a pedagogia de Paulo Freire influenciou tanto as intervenções como a avaliação. 1  Informação atualizada sobre a multiplicação de programas para meninos de rua do Brasil foi oferecida por Cesare de Florio La Rocca, ex-membro oficial do Unicef e diretor há mais de 25 anos do Projeto AXÉ para crianças e jovens em circunstâncias especialmente difíceis, Salvador, Bahia. Informação sobre a estrutura atual dos programas de meninos de rua foi oferecida por Antônio Carlos Gomes da Costa, educador e consultor para programas socioeducacionais no Brasil.

THEREZA PENNA FIRME, é educadora e psicóloga, especializada em avaliação tanto pela formação acadêmica como pela experiência profissional; ensinou por muito tempo nos níveis fundamental, médio e superior no Brasil e atualmente é coordenadora do Centro de Avaliação da Fundação Cesgranrio e consultora em Avaliação na Fundação Roberto Marinho. VATHSALA I. STONE, com 40 anos de experiência como avaliadora profissional no contexto nacional e no internacional, incluindo 17 anos passados no Brasil, atualmente dirige pesquisa e avaliação no Centro de Tecnologia Assistiva da Universidade de Buffalo, Nova York, EUA.

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Introdução

O contexto

Este capítulo ilustra um caminho viável e efetivo para conduzir uma autêntica e confiável avaliação de alternativas inovadoras de atendimento a meninos de rua no Brasil baseada na pedagogia de Paulo Freire. Freire (2000, 2005, 2013) inspirou o trabalho social dos “educadores de rua” nesses programas alternativos de atendimento (Swift, 1991). A estratégia de avaliação que descobria o impacto desses programas nos meninos e meninas de rua compartilhou uma base comum com o contexto dos programas: os princípios éticos da interação humana fundamentada nas ideias emancipatórias de Paulo Freire.

O estudo foi conduzido em 1986-1987 (Penna Firme, Tijiboy e Stone, 1987-1991). O Brasil enfrentava uma grande instabilidade econômica após rápida industrialização. E o governo vivia justamente a transição de um regime militar para a democracia. Com 41% de famílias vivendo abaixo da linha de pobreza, mais de 16 milhões de crianças cresciam em meio à pobreza, principalmente concentrada nas favelas que, rapidamente, surgiam ao redor das cidades com a chegada de migrantes rurais. A crise de crianças e adolescentes desprotegidos se desenvolveu nesse processo (Swift, 1990). Cenas de crianças oprimidas e desamparadas desesperadamente gritavam por socorro.

O foco deste capítulo não é a violência social no Brasil, expressa no rosto triste dos meninos de rua, nem as agressões que eles sofrem por abusos, crimes, drogas e outras formas de crueldade; é o esforço que se tem feito para levar essas crianças e esses jovens da crise para a esperança (Swift, 1990; Unicef/MPAS, s.d). Na época deste estudo, centenas de programas independentes para meninos de rua emergiram em todo o Brasil. A visão e a preocupação de Paulo Freire em relação a um processo educacional adequado que considerasse a identidade cultural dessas crianças e desses jovens bem como sua autoestima (Freire, 2000) eram fundamentais na concepção e no desenvolvimento de muitas dessas corajosas e, algumas vezes, arriscadas experiências socioeducacionais. Apesar das boas intenções desses programas, a avaliação para detectar seu impacto positivo vinha sendo negligenciada até que o Unicef encomendou esta investigação. O estudo viria propiciar também uma base metodológica que servisse a futuras e mais abrangentes avaliações dessa natureza.

CENÁRIO 1  Apesar da ameaça de chuva, do frio intenso e da hora tardia, quase noite, meninos e meninas de 7 a 17 anos de idade se agrupam perto da fonte na praça, no centro agitado e ruidoso da grande cidade. “Eduardo Henrique” também está lá, com sua mãe de 14 anos, apesar de faltarem ainda duas semanas para nascer – afinal de contas ele já conhece a praça desde que foi concebido. Eles falam de muitas coisas, aparentemente soltas e superficiais, mas profundamente sérias no seu significado: Onde dormir hoje? Que comer? Como soltar o namorado da “grávida” que foi preso ontem e corre perigo de não estar ali quando a criança nascer? E onde vai nascer? Quem é o novo policial daquele ponto? Alguém disse que ele é legal! É preciso ajudar a mulher que chegou ali procurando pela filha que fugiu de casa. Quem sabe onde ela está? E a carteira de trabalho?... E a conversa vai longe... Matando o frio e a fome com “a cola” – uma cena que se repete, intercalada, porém, de novidades como o convite dirigido, por um homem transeunte, à menina de 13 anos, para trabalhar em cenas de sexo explícito. C E N Á R I O 2   Pelas ruas da cidade grande, meninos e meninas de comunidades sumamente pobres brincam e correm soltas, cruzando atalhos e praças, sem escola, na tentativa de sobreviver, expostos aos riscos da rua. À noite, essa gente pequena volta para casa com frio e fome – mas há sempre alguém que os espera, ainda que seja apenas para cobrar sua contribuição para o sustento da família.

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O desafio Nos anos 1980, aproximadamente sete milhões de crianças e adolescentes passavam a maior parte de sua vida na rua, trabalhando muitas horas para sustentar seus pais pobres ou para se defenderem. Eles eram ou “crianças de rua” (Cenário 1), pois na rua realmente dormiam, tendo fugido de famílias desintegradas ou pobres para escaparem de abuso, abandono e negligência, ou “crianças na rua” (Cenário 2) passando ali muitas horas trabalhando para ajudar sua família pobre (Espert e Myers, 1988). Ambos os tipos de criança estavam expostos aos perigos da rua, frequentemente perseguidos pela polícia e exploradas por adultos abusadores e criminosos, particularmente por meio de drogas e relações sexuais. Tal como Myers (1988) descreveu em seu prefácio do relatório de avaliação dos autores, as crianças “viviam em um ambiente de extrema marginalização social na qual seu desenvolvimento físico, emocional e intelectual era seriamente comprometido” (Penna Firme et al., 1987). O momento era também de um paradigma de mudança e esperança. A longo prazo, recuperar essas crianças vai além delas – envolve famílias, autoridades públicas e a sociedade em geral – e atenção às necessidades dos meninos de rua não é somente uma questão de desenvolvimento econômico, mas sim – e muito – uma questão de vontade política. Entretanto, tentativas anteriores do governo para institucionalizar meninos e meninas de rua, viam esse menino como social e culturalmente uma pessoa “carente”. Essa abordagem falhou redondamente e, eventualmente, provocou o surgimento de uma abordagem democrática, na qual o menino não é mais considerado um indivíduo “carente”, mas sim um sujeito de sua própria história. Muitas pessoas preocupadas e vários grupos de comunidades, incluindo o Estado, a Igreja e Organizações não Governamentais (ONGs) responderam com ações alternativas de atendimento. Seus esforços de fato lançavam sementes de mudança social (Swift, 1990). Uma abordagem estruturalmente crítica e ampla, em sintonia com ideias e preocupações de

Freire, emergiu para superar o ciclo perverso de institucionalização, deportação e encarceramento para promover e defender os direitos humanos e a cidadania das crianças (Unicef/MPAS, s.d). Em 1982, o Unicef e o Governo Brasileiro realizaram o projeto “Programas de alternativas de atendimento para meninos de rua” para promover aprendizagem participativa a partir da experiência de comunidade e utilizar o conhecimento coletivo para trabalhar mais efetivamente com meninos de rua. O projeto de fato teve um papel catalisador para o crescimento de um movimento popular. Discussões sobre crianças desprotegidas provocaram forte mobilização para o trabalho com elas e o aparecimento de líderes firmemente vinculados à comunidade de base (Swift, 1990). O novo projeto necessitou de dados sistemáticos e objetivos para o contínuo monitoramento de seus resultados. Os programas alternativos estavam demasiadamente ocupados e consumidos com as necessidades dos meninos e meninas de rua em muitos aspectos, para poderem dedicar tempo à organização e ao registro formal de suas intenções de ações. Uma preocupação urgente do Unicef era saber até que ponto os programas cumpriam a promessa com a qual se comprometiam. Em outras palavras, de que modo realmente estavam os programas beneficiando os meninos que eles atendiam? Qual o seu impacto? O que estava acontecendo com as crianças no fim da linha? A tarefa do estudo aqui descrito foi a de investigar e responder a esta preocupação. Uma equipe de três avaliadores que incluem as duas autoras deste capítulo e seu colega Juan Antonio Tijiboy (falecido) conduziu o estudo.

A pedagogia de Paulo Freire na educação de rua: Descobrindo o impacto em meninas e meninos em situação de rua no Brasil

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Os programas alternativos para meninas e meninos em situação de rua Como eram os programas alternativos de meninos e meninas de rua? Em que eram diferentes dos fracassados programas governamentais? A essência dos programas alternativos estava nas ações do “educador de rua”, um conceito através do qual os programas punham em prática a pedagogia de Paulo Freire. Além da formação acadêmica, o educador de rua necessitava aprender o modo de abordar, compreender, respeitar e ajudar o(a) menino(a) de rua como um sujeito participante e ativo e jamais como objeto de um processo que iria assegurar à criança e ao adolescente um futuro como membro integrado à sociedade. Tomar emprestado o olhar de Paulo Freire para ver esses meninos, meninas e jovens significava ser sensível às suas graves condições de vida e ir além, para descobrir sua personalidade, injustamente distorcida pelos adultos ao seu redor e, paradoxalmente, por aqueles designados para protegê-los. Foi precisamente nesse ponto que Paulo Freire inspirou os programas para um processo educativo transformador, voltado para a mudança. O educador de rua atuou no lado oposto ao do opressor, com autenticidade, verdade e coerência, respeitando meninos e meninas de rua como indivíduos, com seus próprios valores e expectativas. Esta foi, de fato, uma abordagem sumamente paciente para não invadir gravemente a merecida privacidade de meninos e meninas, o que significava ouvi-los, captando seus sentimentos, gestos, emoções e preocupações. Significou também, como alertou Freire, que o educador não poderia perder sua individualidade ou autoridade, mas, juntamente com os meninos, deveria encontrar a resposta sobre serem eles ou elas pessoas no mundo (Unicef, 1987). Decisões emergiram desse encontro. O diálogo e o pensamento crítico eram parte importante desse momento, com ênfase colocada na construção do conhecimento com base na realidade ou na “leitura do mundo”, como diria Paulo Freire. Tal como um educador de rua colocou, em vez de um programa governamental

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em que o educador se considera o dono do conhecimento, um programa alternativo em que o educador de rua troca o conhecimento com as crianças (Swift, 1990). Em suma, tudo isso requeria uma capacidade dos programas de trabalhar dentro do conceito freiriano de utopia (Freire, 1992, 2014), no sentido de inspirar e levar a criança do desespero à esperança. Como referido por Swift, os programas de meninos e meninas de rua tinham um estilo de gestão democrática, levando em conta o baixo custo e sendo hábeis em mobilizar as comunidades locais para mudanças em que, saindo do assistencialismo, passassem ao atendimento das necessidades imediatas de meninos e meninas de rua. Embora os programas compartilhassem uma ampla preocupação pela situação dos meninos, eles se diferenciavam bastante entre si, em sua filosofia, seus objetivos e suas atividades. As ações do dia a dia dos educadores de rua consistia em resolver emergências em vez de predefinir as necessidades de meninos e meninas. O atendimento variava desde a oferta de alimentação, abrigo e primeiros socorros a dar atenção, cuidado e conselho, bem como desenvolver habilidades que os ajudassem a aprender a ganhar o seu sustento. Nenhum programa poderia oferecer todos os serviços com a mesma intensidade e seus métodos eram ditados pelas próprias crianças que eles atendiam. Tipicamente, todos os programas iniciavam contato com o(a) menino(a) necessitado(a) utilizando uma vasta gama de abordagens criativas para ganharem sua confiança. Esse período de “namoro” era necessariamente longo, sobretudo para os programas de atendimento a meninos e meninas da rua, se comparados àqueles dirigidos a meninos e meninas na rua. Esse procedimento facilitaria atrair o(a) menino(a) e envolvê-lo(a) nas atividades do programa; inicialmente estas seriam refeições, oportunidades de geração de renda, conversas sobre seus problemas pessoais ou cuidado de ferimentos e problemas de saúde. De acordo com os interesses e o potencial das crianças e adolescentes e utilizando os recursos disponíveis, muitos programas foram envolvendo meninos e meninas em cooperativas, artesanato e vendas, bem como cursos e estágios de aprendizagem. Cada programa era, portanto, único. Coletivamente,


os programas eram multidimensionais em propósitos e métodos. E seus métodos educativos sempre preservavam a liberdade das crianças e adolescentes, deixando-os livres para tomarem suas próprias decisões. Diálogo e pensamento crítico caracterizavam os métodos.

A metodologia da avaliação Discussões preliminares com o pessoal responsável do Unicef e do Projeto tornaram os desafios do planejamento (design) do estudo bastante claro. A falta de informação sobre os objetivos que unificavam os programas, tão diversos mas, ao mesmo tempo tão comprometidos com a causa do membro de rua, foi uma grande limitação de planejamento, com pouca orientação sobre quais impactos buscar (efeitos esperados e não esperados). Falta de registros organizados sobre ações e resultados era outro entrave. No sentido convencional, nem as variáveis dependentes, nem as independentes podiam ser totalmente identificadas e descritas. O estudo seria uma tentativa pioneira para explorar e descrever uma visão unificada daquelas centenas de programas. Era um desafio captar dados emocionais ou politicamente sensíveis dos interessados – sem assustar as meninas e os meninos de rua como se fôssemos outros agressores e sem intimidar as equipes dirigentes e os coordenadores dos programas que, normalmente, viam avaliação como um instrumental técnico para prestação de contas a organismos superiores, em vez de um instrumento de aprendizagem para o monitoramento de um programa. A situação clamava por métodos e medidas não reativos e não obstaculizantes (Webb, Campbell e Sechrest, 1966), que seriam menos ameaçadores que instrumentos claramente avaliativos e convencionais como questionários de múltiplas respostas. A avaliação naturalística–responsiva (Guba e Lincoln, 1985) era a que melhor se adequava para desvelar as realidades dos programas de meninos e meninas de rua porque: a) a ênfase está na descoberta da verdade, e não na verificação da verdade; b) per-

mite que o planejamento emerja da experiência, em vez de trabalhar a partir de um plano preestabelecido; e c) reconhece o valor da riqueza de dados qualitativos captados por meio da observação participante. Frequentemente o instrumento é o próprio observador, ou seja, o instrumento humano (Stake, 1975). Assim, os instrumentos escolhidos, por excelência, foram os três avaliadores. Eles observariam programas selecionados seguindo um determinado esquema de atuação no qual eles deveriam interagir com: a) os meninos de rua que observariam; b) os informantes-chave tais como coordenadores e educadores de rua dos programas, bem como com membros da comunidade que tivessem conhecimento de primeira mão sobre o que estava acontecendo no entorno dos meninos e meninas de rua; e c) quaisquer documentos ou registros disponíveis para consulta, incluindo jornais.

Avaliadores de rua Os avaliadores logo perceberam que os seus encontros com participantes do programa e os dos educadores de rua com as crianças eram semelhantes – incluindo a necessidade de um “namoro” inicial com os meninos e meninas de rua, no sentido de estabelecer uma boa relação e estimular respostas autênticas. Em verdade, os princípios de Paulo Freire que guiavam as interações e o diálogo dos educadores de rua com os meninos e meninas de rua foram igualmente válidos para as interações dos avaliadores com eles. Assim, com esse ônus atribuído aos avaliadores, eles proclamaram: “Avaliadores de rua! É isto o que seremos!” E assim foi. A equipe de avaliação tinha encontrado uma base comum com os programas de meninos de rua e começou a ganhar relevância contextual. Na qualidade de instrumentos humanos, eles atuariam coletiva e individualmente, como observadores participantes nos programas selecionados, utilizando várias técnicas não obstaculizantes (como exemplificadas na próxima seção), frequentemente improvisadas na hora. Eles deveriam estar atentos para quaisquer observações não participantes necessárias

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tais como, observar o ambiente do programa, registrando incidentes críticos ou consultando documentos. Essas informações seriam utilizadas para cruzar dados. Tudo isso assegurava que respostas extraídas num ambiente sensível eram de fato autênticas e relevantes. Mais ainda, rigor (credibilidade) tinha que ser garantido por um constante cruzamento de dados através da triangulação (Guba e Lincoln, 1985, p. 106-107). Cada avaliador extrairia dados de pelo menos dois diferentes métodos ou fontes e os confrontariam uns com os outros. Posteriormente, esses dados seriam triangulados entre os próprios avaliadores como um passo seguinte. A intenção era de injetar subjetividade iluminada no processo avaliativo, em sintonia com o princípio de Paulo Freire de valorizar e integrar o objetivo e o subjetivo.

Coleta de dados, fase I – Criando indicadores de impacto do programa Os avaliadores decidiram identificar os indicadores de impacto por meio da observação livre, em campo, do comportamento dos meninos e meninas de rua em vez de extraí-los da teoria. Essa abordagem era ao mesmo tempo apropriada e factível dentro de um delineamento naturalístico consistente com a pedagogia de Paulo Freire. Através do projeto de atendimento alternativo os avaliadores conseguiram livre acesso a encontros com meninos e meninas de rua em um Congresso Nacional de Meninos de Rua em Brasília, em maio de 1986, que reuniu cerca de 400 representantes desses meninos de todas as regiões do Brasil (Comissão Nacional para o Movimento de Meninos e Meninas de Rua). Como amigos convidados dos educadores de rua, os avaliadores facilmente se tornavam observadores participantes nos eventos do encontro e ganhavam a confiança dos meninos e meninas de rua participantes, misturando-se livremente com eles durante atividades e pausas. Em conversas informais, eles estimulavam as crianças a falarem, a contarem histórias e a comentarem sobre o programa, bem como sobre outros meninos e meninas de rua. Entendendo impacto como “mudança de comportamento”, os avaliadores se concentravam em obter “pistas” sobre quais ideias e comportamentos poderiam indicar possíveis mudanças induzidas pelo programa. Suas interações eram sempre destinadas a obter respostas a cinco questões: 1. 2. 3. 4.

Em qual programa você está? (nome e local) Em que o programa fez você mudar? O que no programa fez você mudar nesse sentido? O que pretende fazer daqui para a frente quando crescer? 5. Que mensagem você daria a meninos e meninas que não estão num programa como você? As respostas eram anotadas (discretamente), tanto quanto possível, pelos avaliadores. Normalmente, cada avaliador trabalhava sozinho, mas algumas vezes trabalhavam em pares, de tal modo que um pudesse ob-

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servar a entrevista colocando-se à parte e anotando comportamentos não verbais. Algumas vezes, uma ou duas crianças mais animadas se ofereciam para serem gravadas em áudio. Anotações eram feitas à distância e o comportamento dos meninos e meninas de rua era observado no seu hábitat natural. Por exemplo, eles organizavam suas próprias atividades da hora do almoço sem qualquer supervisão dos adultos e se alinhavam em fila quando necessário, o que indicava capacidade de organização, independência e respeito pelo outro. Espontaneamente eles limpavam o lugar depois dos encontros sem ninguém dizer nada, o que indicava responsabilidade social. Os avaliadores triangulavam suas observações, independentemente, em várias oportunidades, durante o dia, chegando, em conjunto, a conclusões sobre quais indicadores emergiam das pistas. As mudanças que pareciam ter ocorrido eram principalmente referentes a desenvolvimento psicossocial e incluíam atitudes, valores e habilidades. A análise dessas percepções gerou uma primeira listagem de 40 indicadores de impacto. A equipe de avaliação percebeu, então, certa disposição natural na distribuição desses indicadores, com agrupamentos em quatro categorias: habilidades sociais, habilidades para o trabalho, crescimento pessoal e valores morais. Os indicadores assim categorizados formaram um banco inicial de indicadores que seriam a base para identificar o impacto na Fase II – observação sistemática dos programas selecionados. O banco de indicadores era deliberadamente deixado em aberto para incluir qualquer indicador novo, possivelmente, detectado durante a observação dos programas. Com base nos resultados da Fase I, as seguintes Questões Avaliativas foram elaboradas para guiar a observação dos programas no sentido de detectar impactos.

Questões avaliativas Questão geral: Qual o impacto dos programas alternativos em meninos e meninas de rua? Questão específica: Que mudanças estão ocorrendo em habilidades sociais, habilidades para o trabalho, crescimento individual e valores morais dos meninos de rua como resultado de sua experiência no programa?

Coleta de dados, fase II – Detectando impactos por meio da observação dos programas Amostra Onze programas de meninos de rua de todo o Brasil foram selecionados para o estudo; os programas foram escolhidos de modo a refletirem diversidade regional, filosófica, organizacional e metodológica. Os responsáveis ofereceram voluntariamente seus programas para participarem da avaliação e estes variavam em experiência ou seja, o mais antigo operava havia 15 anos, o mais novo, havia dois anos. Os programas atendiam às necessidades tanto dos meninos e meninas de rua que viviam na rua como dos meninos e meninas na rua, que nela trabalhavam para sobreviver.

Procedimentos Os avaliadores visitaram cada um dos 11 programas, viajando para o local como equipe e passavam pelo menos dois dias em intensa observação sistemática e, algumas vezes, permaneciam por mais um terceiro dia. Traziam consigo o banco de indicadores em mãos, tendo feito uma lista de checagem (cheklist) na qual registravam as observações correspondentes. Entretanto, nem todos os indicadores no banco eram relevantes para um ou outro programa. Assim, a primeira providência era identificar aqueles indicadores que pareciam estar relacionados ao programa em observação. Desse modo, com indicadores específicos na lista, evidências de impacto seriam agrupadas em relação a cada indicador. Nesse sentido, o primeiro dia era reservado a uma “imersão” no programa para adquirir um sentido global dele através de uma livre observação, deixando de lado vieses pessoais e vendo o programa com novo olhar. As pistas de possíveis impactos permitiriam aos

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avaliadores identificarem e selecionarem, do banco de indicadores, aqueles indicadores que eram relevantes para o programa em questão. O segundo dia era então dedicado a observações mais diretas, com foco nos indicadores identificados. O esquema de observação era mais estruturado e o propósito era determinar se os impactos sugeridos na imersão se apresentavam como mudanças que realmente ocorriam nos meninos de rua, como resultado de sua experiência no programa. O processo nos dois dias era naturalístico e incluía contínua triangulação dos dados, como detalhado a seguir.

Imersão inicial no programa Tal como nas observações feitas na Fase I, avaliadores coletaram múltiplas pistas sobre possíveis impactos – falando com os meninos e informantes – chave (educadores de rua e membros da comunidade que chegavam) e fazendo livre observação de incidentes críticos (ocorrências marcantes ou não usuais) e atividades. Eles sentiram a totalidade do programa, seus desafios, histórias, objetivos e frustações. Por meio de diálogos, observações, jogos, dramatização e livre observação dos meninos de rua e dos comentários dos educadores de rua, bem como dos responsáveis pelo programa, surgiram muitas pistas de possíveis impactos de cada programa específico. A seguir são apresentados alguns exemplos. Uma extensa lista pode ser encontrada no relatório completo do estudo (Penna Firme et al., 1987).

“Em nossa cooperativa, nós ganhamos mais e gastamos menos.” (indicador relevante – uso adequado de renda)

Incidentes críticos Um menino de mais ou menos 13 anos de idade chega ao programa local trazendo uma menina da mesma idade, que ele havia recrutado na rua para se juntar ao seu grupo de trabalho. (consideração pelo outro) Dois meninos encarregados da oficina de serigrafia no programa surpreenderam os avaliadores oferecendo-lhes o seu cartão de visita (impresso por eles) com informações sobre seu negócio particular de serigrafia, localizado na vizinhança. Eles garantiram serviço rápido e eficiente. (iniciativa para o trabalho)

Observação de comportamento no seu ambiente natural Meninos se encontram numa assembleia para estabelecer regras para a casa e as mantêm em um cartaz pendurado na parede. (indicador relevante – participação democrática) Um menino, chamado pelos outros como “professor”, assume voluntariamente o papel, orientando os novatos que chegam ao programa. (indicador relevante – solidariedade com aqueles de sua classe)

A palavra dos meninos e meninas em situação de rua

Comentários espontâneos de educadores de rua e responsáveis por meninos e meninas de rua no programa

“Nós não precisamos fugir daqui porque aqui nós somos livres.” (indicador relevante – apreciação do programa)

“Os meninos costumavam ser muito violentos quando jogavam ou brincavam; agora são mais pacíficos.” (um indicador de crescimento pessoal)

“Nós resolvemos o problema no diálogo e não na luta.” (indicador relevante – resolução de problema sem violência)

“Eles já tinham qualidades de liderança quando aqui entraram, mas aqui eles aprenderam a usá-la construtivamente.” (um indicador de habilidade social)

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“Os meninos mais velhos não querem mais ser engraxates e estão perguntando sobre melhores trabalhos.” (um indicador de habilidade para o trabalho) “Ações destrutivas diminuíram consideravelmente.” (um indicador de crescimento individual)

Antes de iniciar um projeto, é preciso diagnosticar como as pessoas estão entrando nele. Com base nesse diagnóstico, constrói-se uma linha de base, que possibilita, ao final do projeto, avaliar que mudanças ocorreram, comparando o ponto de partida com o ponto de chegada, o previsto e o realizado.

DICA

“Os meninos estão preocupados com a situação dos companheiros que são infratores.” (um indicador de valores morais) No final do dia os avaliadores triangulavam suas avaliações e identificavam os indicadores mais relevantes para o programa em questão. Isso resultava numa versão de comum acordo sobre o programa e seus objetivos, com a seleção dos indicadores apropriados retirados do banco preliminar. Resultava, também, numa versão mais refinada do banco de indicadores, acrescentando-se os novos indicadores emergentes no processo.

Observação direta nos programas Dois grandes desafios ainda tinham que ser enfrentados antes de uma observação focalizada. Diferentemente da imersão, os avaliadores buscaram evidências para determinar se os impactos sugeridos durante a imersão eram de fato efeito dos programas. O primeiro desafio era avaliar, de certo modo, o grau ou a intensidade do impacto, registrando as evidências comportamentais em relação a cada indicador na folha de registro. A maioria dos indicadores era de natureza psicossocial, referindo-se a desenvolvimento de valores e atitudes e, portanto, menos suscetíveis a medidas concretas. Os avaliadores decidiram usar a taxonomia de Bloom para o domínio afetivo (Krathwohl, Bloom e Masia, 1964) e escolheram seus dois estágios mais observáveis como critérios de pontuação. São eles “valorização” e “caracterização” – o terceiro e o quinto estágios, respectivamente. Esperava-se, por exemplo, que uma criança no estágio de valorização manifestasse adoção de um valor mesmo temporariamente (honestidade em vender seus produtos). Este caso seria registrado como “alguns sinais” (AS) do impacto

em relação àquele específico indicador. Outra criança poderia estar no quinto estágio, mantendo-se com um valor mais permanente como um hábito e tornando-se caracterizada por ele (por exemplo, a criança defende honestidade e leva outros a serem honestos). Este caso seria registrado como “impacto Marcante”(M). Dependendo do estágio em que a maioria das crianças parecia estar, o programa era considerado como tendo um impacto de AS ou M em relação a cada indicador. Quando nenhuma evidência era encontrada, registrava-se “não evidente”. Um segundo grande desafio foi obter evidência de impacto ou mudanças pré-pós apesar da falta de linha de base. Os avaliadores estavam conscientes dessa dificuldade durante as interações com os meninos de rua e informantes-chave, dentro e fora do programa. Assim, eles formulavam seus questionamentos em termos de “mudanças”, perguntando: “Como você era (ou seus amigos) antes de vir para o programa?” “Em que você era diferente?” Isso também pode ser chamado pensamento espontâneo. Aqui são apresentados dois exemplos. EXEMPLO 1 Chovia a cântaros lá fora e o prédio da Catedral Metropolitana no Rio abrigava, num pequeno espaço, uma audiência cativa dos meninos de rua daquele programa. Um pequeno grupo começou a conversar com um dos avaliadores. Subitamente, outro menino começou a se comunicar por mímica. Elogiando o menino pelo seu talento, o avaliador o encorajou a fazer um teatro, dramatizando como eram os seus amigos antes, durante e depois de participarem do programa – em três atos. Inspirado na mímica, outro menino se ofereceu, espontaneamente, para fazer a interpretação oral do significado da

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mímica. Juntos e sem se darem conta, os dois revelaram mudanças (e talvez mesmo o impacto do programa) conforme sua percepção. Um segundo avaliador, discretamente, fez anotações do que o menino dizia, bem como de gestos não verbais e das reações dos outros meninos em volta. O terceiro avaliador caminhou em volta dos meninos observando-os de diferentes ângulos e triangulando posteriormente as informações com os outros dois avaliadores. EX EMP LO 2 Durante as conversas com os meninos de rua, numa praça, onde habitualmente eles ficavam, um dos avaliadores entregou a dois meninos uns fantoches para que eles contassem a história de vida deles, com os bonecos que eles mesmos escolhessem. Assim, eles eram estimulados a assumir vários papéis como mãe, pai, menino, menina, policial ou dirigentes dos programas. Esse procedimento despertou ricas manifestações dos problemas dos meninos de rua e das soluções dos programas. Revelou também mudanças e comparações entre os meninos daquela praça que estavam em programas de atendimento e aqueles que não estavam.

Observação participante Muitos métodos e técnicas de observação surgiram naturalmente, à medida que os avaliadores interagiam livremente no papel de observadores participantes. Eles acolhiam oportunidades de participar em representações, de coordenar uma discussão em grupo ou ainda ensinar como fazer contas a pedido de alguns meninos. Nesses casos, as anotações eram feitas ao final. Situações naturais como essas desencadearam outras oportunidades para observação não obstaculizante, tais como: 1. Em atividades de desenho e pintura, nos momentos livres dos programas, era possível observar surpreendentes traços pessoais, como entusiasmo e habilidade de concentração por longos períodos de tempo. Suavidade na composição e no colorido, sem traços de personalidade marcada pela violência, era evidente. Havia também evidências de sensibilidade e liderança, combi-

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nadas com insegurança, necessidade de afeto e traços de ansiedade e timidez. 2. Observação de atividades ou situações gerais, nas quais foi possível captar a dinâmica das relações dos meninos de rua entre eles mesmos e com os responsáveis do programa, revelou afetividade, redução de violência, pensamento crítico e aspirações. 3. Histórias de vida contadas pelos meninos e meninas evidenciavam mudanças resultantes da participação no programa, por meio de uma visão retrospectiva deles mesmos. 4. Conversas informais quando os meninos de rua falavam livre e espontaneamente sobre o programa eram oportunidades para os avaliadores destacarem certos temas em função dos indicadores. 5. Visitas a lugares especiais para os meninos e as meninas, tais como uma cooperativa, uma oficina de artesanato ou um evento do programa revelaram aptidões e atitudes com relação ao trabalho, incluindo a habilidade de organização e administração de sua cooperativa, bem como a cooperação espontânea para preservar o local, compartilhando tão pequeno espaço, sem conflito. Além disso, os meninos e as meninas de rua demonstraram pensamento crítico e habilidade social discutindo assuntos sociais e políticos atuais relacionados à sua situação, resolvendo amigavelmente suas diferenças durante os encontros de grupo, e também conversando inteligentemente com os avaliadores visitantes sobre os direitos das crianças e dos adolescentes no contexto da convenção sobre a Constituição Nacional que estava poe acontecer. Além da observação participativa formal e aberta, foram realizadas entrevistas com informantes-chave, incluindo responsáveis pelos programas, pessoas da comunidade e antigos participantes do programa. Documentos do programa foram também consultados e discutidos para se obter uma visão mais completa da filosofia subjacente ao programa, seus sucessos e dificuldades. As declarações dos informantes-chave foram especialmente úteis na apreensão de mudanças percebidas por eles como evidências de impacto, tal como exemplificadas adiante.


Para todas as observações, utilizando-se técnicas diferentes, cada avaliador fez anotações na lista correspondente a cada indicador. Os comportamentos não eram pistas, mas sim mudanças reais ou mostras de evidências de impacto, em relação a cada indicador. Tais dados extraídos através de pelo menos dois métodos diferentes ou fontes, permitiram ao avaliador confirmar o impacto.

Amostra de declarações e comentário de educadores de rua, voluntários e outros responsáveis pelo Programa “Os meninos colaboram espontaneamente em limpeza, pintura e restauração no local do programa.” (mudança em habilidade social, com respeito ao indicador cooperação) “Os meninos reduzem drasticamente comportamentos de violência em relação a outros meninos, aos adultos e ao ambiente em geral.” (mudança em habilidade social em relação ao indicador resolução de problema sem violência) “Os meninos e meninas prestam contas, corretamente, da venda de seus produtos.” (mudança em habilidade para o trabalho em relação ao indicador uso competente de renda) “Os meninos são pontuais para a realização de suas responsabilidades no programa.” (mudança na habilidade para o trabalho em relação ao indicador responsabilidade no trabalho) “Os meninos falam positivamente de si mesmos.” (mudança em crescimento individual com relação ao indicador autoestima) “Os meninos criticam toda forma de repressão e se consideram merecedores de bom tratamento.” (mudança em crescimento individual em relação ao indicador pensamento crítico) “Os meninos reivindicam seus direitos e elaboram código de conduta.” (mudança em valores morais em relação ao indicador senso de justiça)

“Os meninos participam voluntária e respeitosamente de serviços religiosos.” (mudança em valores morais em relação ao indicador espiritualidade)

Triangulação No fim do segundo dia, os avaliadores triangulavam entre si suas conclusões e percepções de impacto. Antes de deixarem um programa e se dirigirem ao próximo, os avaliadores se encontravam com o coordenador do programa para relatar e discutir os resultados, a fim de validarem suas percepções em relação às percepções do próprio programa. Era uma precaução adicional no sentido de preservar a autenticidade dos dados. Vale dizer que os coordenadores estavam de acordo com a maioria das percepções dos avaliadores. Quaisquer preocupações, mesmo pequenas, eram anotadas para futuras revisões nas visitas a outros programas. Os passos até aqui mencionados eram repetidos em cada programa a ser visitado em sequência. Entre as visitas, os impactos de cada programa eram consolidados através de duas triangulações – primeiro, individualmente, no nível do avaliador e depois coletivamente, no nível da equipe de avaliadores. Consequentemente, o banco preliminar de indicadores ia aumentando sua listagem pelo acréscimo de novos e emergentes indicadores. Ao mesmo tempo, o esquema sistemático ia sendo revisado para a visita seguinte – adicionando, eliminando ou modificando passos e etapas.

Resultados Os impactos e o perfil dos programas As análises resultaram numa visão geral dos impactos ao longo de todos os programas. De moderados a elevados, os impactos estavam ocorrendo, nas crianças de rua, num percentual de 58% a 70%, sendo que a maioria dos impactos ocorreu nas habilidades sociais, seguidas de valores morais, habilida-

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des para o trabalho e crescimento individual, nessa ordem. Esse resultado fez sentido quando relacionado ao tipo de oportunidades de aprendizagem oferecidas nas atividades dos programas visitados (Penna Firme et al., 1987). No entanto, nem todos os programas apresentaram esse resultado. Isso foi percebido nos perfis individuais de cada programa, elaborados segundo as pontuações dos impactos. Constatou-se, ainda, que os impactos parecem ter seguido um padrão que juntou os programas em dois grupos distintos, seis no primeiro grupo e cinco no segundo. Os avaliadores os denominaram programas de tipo 1 e tipo 2 e examinaram outros dados relacionados, que explicavam essas diferenças. Verificou-se, então, que os programas do tipo 1 eram aqueles que atendiam meninos e meninas que trabalhavam na rua e os do tipo 2 eram os que atendiam os mais necessitados e sem casa – meninos e meninos da rua. Essa diferença explica por que o grupo do tipo 1 apresentou maior impacto do que o grupo do tipo 2 – habilidades sociais (81% vs 52%), habilidades de trabalho (79% vs 40%), valores morais (74% vs 53%) e crescimento pessoal (63% vs 51%). Mais ainda, os programas do tipo 1 tiveram o menor impacto em crescimento individual dos meninos e os programas do tipo 2 tiveram o menor impacto em habilidades para o trabalho. Evidentemente, os meninos do programa do tipo 2 tiveram um período mais longo e mais difícil de “namoro”, no qual foi necessário

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maior esforço de atenção às necessidades básicas de crescimento pessoal e de atitudes cívicas antes de os meninos estarem prontos para qualquer atividade de treinamento. Por outro lado, os programas do tipo 1 teriam dispendido menos esforços nas necessidades básicas, podendo, assim, atrair os meninos para as atividades de trabalho, de certo modo, mais rapidamente. De fato, em alguns dos programas do tipo 1, os meninos produziram arte e artesanato de qualidade exportável. Vale, ainda, acrescentar que os programas do tipo 1 eram mais antigos que suas contrapartes do tipo 2. Reiterando, todos os valores de impacto, ao longo dos dois tipos de programa, foram altos ou moderados e, em nenhum deles, houve baixo impacto.

Uma metodologia sistemática para a avaliação continuada dos programas Desse processo naturalístico-responsivo de avaliação emergiu também uma metodologia para coleta e construção de dados autênticos e confiáveis para o contínuo monitoramento e aperfeiçoamento de um programa. O estudo produziu um método que, testado e refinado, ao passar por 11 programas, foi relevante para os programas de meninos e meninas de rua e, portanto, valioso para coordenadores de programas e, em geral, para o Projeto Alternativo de Atendimento aos Meninos de Rua, sob os cuidados do Unicef.


Discussão e conclusões O impacto da avaliação nas partes interessadas Os resultados foram integrados e divulgados aos principais interessados de várias maneiras. Foram feitas apresentações orais antes da elaboração do relatório final – primeiramente em Brasília, para o Unicef e o Projeto de Atendimento Alternativo, e depois, no Rio de Janeiro, num seminário de dois dias, para os representantes dos 11 programas, Os programas demonstraram grande entusiasmo e receptividade em relação aos esforços dos avaliadores e aos resultados. Eles apreciaram tanto o banco de indicadores quanto a metodologia de avaliação como sendo valiosos instrumentos pedagógicos. Um fato interessante que vale destacar foi o que aconteceu quando os avaliadores indicaram a utilização dessa metodologia em sua autoavaliação. Surpreendentemente, os representantes dos programas disseram que eles prefeririam a avaliação externa realizada pelos avaliadores. Numa atmosfera em que a avaliação era geralmente percebida e sentida como intimidadora, essa declaração era confortante e confirmava a credibilidade da avaliação, bem como o seu valor para aqueles interessados. O ponto alto do encontro ocorreu quando os responsáveis pelos programas validaram os perfis dos impactos dos 11 programas como corretos. Eles facilmente se identificaram nos gráficos anônimos (codificados) de cada programa, exclamando: “Estou ali, aquele sou eu, o Programa B, claro que é meu!!” E assim por diante. Todos eles também confirmavam, em uníssono, que a diferença entre os programas do tipo 1 e os do tipo 2 era de fato devido às diferentes clientelas apresentando diferentes desafios. De modo geral, o encontro validou os métodos naturalísticos do estudo e o sentimento de confiança que ele gerou. Mais ainda, ele reconheceu que a avaliação tinha sido responsiva às suas preocupações. O Unicef recebeu um relatório completo, por escrito, dos avaliadores e publicou o estudo (Penna Fir-

As partes interessadas (stakeholders) de um projeto são as pessoas e as organizações afetadas por ele de forma direta ou indireta, positiva ou negativamente; seu envolvimento é crucial para que os objetivos da iniciativa sejam alcançados.

DICA

me et al., 1990). Ao rever a experiência avaliativa neste capítulo, a intenção é enfatizar a validade das ideias de Paulo Freire para o pensamento avaliativo no contexto, bem como compartilhar os aspectos metodológicos de interesse especial para a comunidade avaliativa e para profissionais em áreas disciplinares associadas.

Lições aprendidas Freire afirma que ninguém ensina sem aprender, nem aprende sem ensinar. As duas ações são simultâneas e há nelas intercâmbio de conhecimento. O que os avaliadores aprenderam? Primeiro e mais do que tudo, eles aprenderam que métodos naturalísticos-responsivos são viáveis e efetivos, num contexto emocional e politicamente sensível. Diferentemente de avaliações que a equipe anteriormente tinha conduzido, essa foi uma conclusão deduzida da experiência, baseada na participação e na troca de conhecimento no contexto. Dados confiáveis foram coletados e levaram a resultados críveis. Se isso é critério de grau de efetividade, o processo pode também ser considerado como sendo de custo-efetividade, fazendo a coleta de dados qualitativos valer a pena, não se constituindo em algo a ser sempre desprezado. Para os avaliadores, foi crucial aprender a ser instrumentos humanos, o que, no contexto do estudo, foi pôr em prática os princípios de Paulo Freire. Basicamente isso significou abertura. Num certo nível, foi necessária determinada “orientação de

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valor” para ser capaz de pôr em prática empatia e sensibilidade nas interações com pessoas. Curiosamente, esse comportamento requeria não ser julgador, o que os avaliadores entendiam ser semelhante à postura “neutra” no sentido científico – entretanto, o seu significado era para ser “próximo e afetuoso”, e não “frio e distante”. Num outro nível, a abertura, em Paulo Freire, significava pensamento crítico. Os avaliadores aprenderam a questionar suas escolhas metodológicas em cada passo da trajetória, criando métodos e medidas apropriados ao contexto sem comprometer a qualidade dos dados, mas, em verdade, elevando-os com criatividade. Como lidar com a falta de linha de base? Como medir o que é preciso em vez de somente o que é possível? Concretamente, como quantificar e avaliar o comportamento afetivo? Os avaliadores aprenderam a enfrentar o desafio de fazer da subjetividade humana uma vantagem e não uma desvantagem, combinando pensamento crítico com criatividade no sentido de fazer escolhas iluminadas. Nesse sentido, limitações contextuais frequentemente se transformaram em oportunidades. Assim, como disse um dos avaliadores, eles tiveram a sabedoria de seguir uma “metodologia de rua” e abandonaram uma metodologia rígida. Os avaliadores aprenderam também como se faz uma equipe coesa, compartilhando as qualidades antes mencionadas – diversa e crítica em seus insumos, mas sempre unidas pelos valores do contexto – o que era muito necessário para a triangulação.

O que os avaliadores ensinaram? Quais conhecimento eles comunicaram? Obviamente, os resultados-chave – os impactos, o banco de indicadores e o delineamento de uma metodologia de avaliação – representaram novos conhecimentos para os interessados. Menos óbvio, mas talvez o mais valioso ensinamento, especialmente no nível dos responsáveis pelos programas dos meninos e meninas de rua, foi o conhecimento

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de que a avaliação é uma amiga, não um inimigo; que se pode confiar nos avaliadores como seres humanos e profissionais; e que os dados servem para uma causa comum e não para serem utilizados na exploração do indivíduo.

Postscriptum Finalmente, é importante observar que, embora muito mais precise ainda ser feito para meninos e meninas de rua no cenário brasileiro, o movimento popular nacional em favor de crianças e adolescentes de rua catalisado pelo Projeto de Atendimento Alternativo do Unicef nos anos 1980 gerou a histórica criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990, Lei Federal 8069/90), o qual introduziu novos direitos para a jovem população brasileira (dirigida para a todas as crianças e os adolescentes) numa proposta radicalmente inovadora que adotou a doutrina das Nações Unidas de incluir proteção total, baseada na Declaração dos Direitos das Crianças (Gomes da Costa, 1993). O que está faltando é a total implementação desta Lei Federal para apoiar o contexto educacional e social aperfeiçoado, no qual as pessoas jovens crescem. Entretanto, programas para meninos e meninas de rua se multiplicaram deste então e têm caminhado de “alternativos” para “alterativos” – eles são orientados para mudanças, interagindo com escolas e organizações sociais variadas. Uma conscientização geral do problema invade o Brasil. E é possível ver a influência de Paulo Freire implícita na prática desses programas. A esperança é de que, se seguirmos as pegadas deste grande educador brasileiro, a profissão de “educador de rua” um dia desapareça, bem como, os “meninos e as meninas de rua. Quem sabe a expressão “o lugar da criança é na escola” poderá um dia ser refraseada como “o lugar da escola é na criança?” A criança, então, será verdadeiramente uma prioridade nacional e, em verdade, uma prioridade universal. Enquanto isso, como Paulo Freire costumava dizer “para fazer o amanhã o que é impossível hoje, precisamos fazer hoje o que é possível hoje”.


Referências

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A pedagogia de Paulo Freire na educação de rua: Descobrindo o impacto em meninas e meninos em situação de rua no Brasil

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PARTE

Princípios pedagógicos de avaliação inspirados em Freire



Princípios pedagógicos de avaliação: Interpretando Freire Michael Quinn Patton

T

oda vez que avaliamos algo, seja a aprendizagem de um grupo de estudantes ou os resultados de um projeto, estamos aprendendo com os participantes – e também ensinando. Mas... o que ensina a avaliação?

Medo ou coragem de agir? Como ensina? Pregando sermões ou dialogando? Que pedagogia está implícita em seus procedimentos? Uma pedagogia para a manutenção do que aí está, ou para a mudança social? Neste capítulo, um dos mais renomados especialistas mundiais no tema interpela a leitora ou o leitor: “Qual a sua pedagogia da avaliação?” E apresenta dez princípios básicos que extraiu da obra de Paulo Freire, em especial, da Pedagogia do Oprimido. Princípios que vêm orientando, nos mais diferentes países, abordagens de avaliação voltadas para construir a consciência crítica, impulsionando ações transformadoras, de fortalecimento da democracia e da justiça social.

MICHAEL QUINN PATTON, fundador e diretor da Utilization-Focused Evaluation, tem mais de 45 anos de experiência como consultor independente de avaliação e é autor de vários livros sobre avaliação, incluindo Developmental evaluation: applying complexity concepts to enhance innovation use e Principles-focused evaluation (Avaliação para o desenvolvimento: aplicando conceitos da complexidade para estimular o uso da inovação e Avaliação centrada em princípios).

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Introdução: Uma pedagogia da avaliação focada em princípios

1 (N. da T.) No original em inglês, as citações foram retiradas de Freire, P. (1970) Pedagogy of the Oppressed. New York: Bloomsbury paperback edition (2000). A tradução as substituiu pelos parágrafos correspondentes do original em português, cf. Pedagogia do Oprimido (Editora Paz e Terra, edição de 2015).

Uma pedagogia da avaliação implica examinar como e o que a avaliação ensina. Incorporados a diferentes abordagens de avaliação encontram-se os mais variados pressupostos, valores, premissas, prioridades, processos de construção de sentido e princípios. Vou enfocar aqui os princípios – elementos fundamentais para uma pedagogia da avaliação. Quem participa de uma avaliação vivencia princípios pedagógicos por vezes explícitos, mais frequentemente implícitos e tácitos. Os princípios informam e orientam a tomada de decisão. Eles fazem isto aos nos apontar onde concentrar a nossa atenção e como agir. Por exemplo, a avaliação baseada em metas (goal-based evaluation) é derivada do princípio que diz que estabelecer metas aumenta a efetividade, levando-nos a focar na realização dos objetivos e a medir tal realização. A avaliação guiada pela teoria (theory-driven evaluation) baseia-se no princípio de que as intervenções serão, provavelmente, mais efetivas, se fundamentadas em uma teoria da mudança e, assim, nos convida a identificar a teoria implícita em determinado programa e avaliá-la. A avaliação focada em utilização (utilization-focused evaluation) baseia-se no princípio de que identificar as pessoas que vão utilizar a avaliação, e trabalhar com elas sobre como pretendem usá-la, incrementa este uso. A avaliação do desenvolvimento (developmental evaluation) baseia-se na teoria da complexidade e coloca o foco no princípio do surgimento (emergence), que nos orienta a sermos abertos e ágeis para apreender resultados que emergem de situações dinâmicas complexas. Este capítulo irá identificar e elucidar os princípios pedagógicos de Paulo Freire, além de examinar as suas implicações para a avaliação, assim iluminando uma pedagogia freiriana de avaliação. Esta é uma forma de avaliação focada em princípios (Patton, 2017). A avaliação focada em princípios examina: a) se os princípios são claros, significativos e viáveis, e em caso afirmativo; b) se realmente estão sendo seguidos

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e, se for assim; c) se estão conduzindo aos resultados desejados. Princípios são derivados de experiência, expertise, valores e pesquisa. Eles operam em diferentes níveis. São capazes de orientar escolhas e ações individuais, programáticas, organizacionais, políticas e comunitárias. Há princípios de planejamento, de relacionamento, de prática profissional, de filantropia, de prestação de contas, de formulação de políticas, de sustentabilidade, de investigação e assim por diante, porque todas as áreas da atividade humana geram princípios orientadores. Ao identificar princípios pedagógicos freirianos e examinar a sua relevância e aplicabilidade à avaliação, espero ilustrar o modo pelo qual os princípios explicitam a pedagogia implícita em determinada abordagem de avaliação. Este processo poderá ser utilizado, então, para iluminar a pedagogia de qualquer avaliação. A avaliação focada em princípios qualifica as escolhas que fazemos a respeito de quais princípios são apropriados para que fins, em quais contextos – e isso nos ajuda a navegar pelo traiçoeiro terreno das orientações conflitantes e aconselhamentos em disputa. Descobrir que princípios funcionam para que situações e com que resultados é uma questão de avaliação. Assim, na perspectiva da avaliação, princípios são hipóteses, não verdades. Podem funcionar, ou não; ser seguidos, ou não conduzir a resultados desejados, ou não. Se funcionam, se são seguidos, se produzem os resultados desejados – tudo isso é passível de avaliação. A partir dos escritos de Freire, extraí dez princípios pedagógicos. Vou explicar cada princípio e sua relevância para uma pedagogia crítica da avaliação. Começarei por fazer uma síntese de um cenário avaliativo que retirei da Pedagogia do Oprimido para, em seguida, dele extrair princípios freirianos e examinar sua relevância para a avaliação hoje e daqui para a frente. Vou citar Freire muitas vezes, para oferecer à leitora e ao leitor um gostinho da linguagem e da perspectiva freirianas. O cenário e todas as citações foram extraídos da Pedagogia do Oprimido (Freire, 2015),1 a menos que indicado em contrário.


O processo freiriano de se engajar em avaliação O que segue é um exemplo, oferecido por Freire, de sua pedagogia do oprimido, reforçada pelo pensamento avaliativo crítico. Eis o cenário: um plano de educação de adultos precisa ser desenvolvido e implementado em uma região rural com alto índice de analfabetismo. O processo começa com uma análise participativa da situação, facilitada por “investigadores”. Os pesquisadores realizam uma reunião informal na região onde vai acontecer a campanha de alfabetização. Durante essa reunião inicial com a população local, eles explicam “o porquê, o como e o para quê da investigação que pretendem realizar e que não podem fazê-lo se não se estabelece uma relação de simpatia e confiança mútuas” (p. 144). Voluntários são recrutados nessa reunião para servir como assistentes na coleta de dados sobre a vida naquele território. Juntos, investigadores e voluntários desenvolvem uma “percepção crítica de sua realidade, que implica um método correto de aproximação do concreto para desvelá-lo. E isto não se impõe. Nesse sentido é que, desde o começo, a investigação temática se vai expressando como um quefazer educativo. Como ação cultural” (p. 145): Os investigadores observam as pessoas vivendo sua vida e se envolvem em conversações informais com elas. Registram tudo em seu caderno de notas, incluindo “as coisas mais aparentemente pouco importantes: a maneira de conversar dos homens; a sua forma de ser. O seu comportamento no culto religioso, no trabalho. Vão registrando as expressões do povo; sua linguagem, suas palavras, sua sintaxe, que não é o mesmo que sua pronúncia defeituosa, mas a forma de construir seu pensamento”. (p. 145-146) É essencial que os investigadores “surpreendam a área em momentos distintos. É preciso que a visitem em horas de trabalho no campo; que assistam a reuniões de alguma associação popular, observando o procedimento de seus participantes, a linguagem usada, as relações entre diretoria e sócios; o papel que desempenham as mulheres, os jovens. É indispensável que a visitem em horas de lazer; que presenciem seus habitantes em atividades esportivas; que conversem com pessoas em suas casas, registrando manifestações em

torno das relações marido-mulher, pais-filhos; afinal, que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para esta compreensão primeira da área”. (p. 146)

O processo então se desloca de coletar dados, para interpretá-los, o que significa engajar-se em avaliação. A propósito de cada uma destas visitas de observação compreensiva devem os investigadores redigir um pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pela equipe, em seminário, no qual se vão avaliando os achados, quer dos investigadores profissionais, quer dos auxiliares da investigação, representantes do povo, nestas primeiras observações que realizaram. Daí que este seminário de avaliação deva realizar-se, se possível, na área de trabalho, para que possam estes participar dele. (p. 146-147)

Durante essas “reuniões de avaliação” os participantes, “um a um, vão todos expondo como perceberam ou sentiram este ou aquele momento que mais os impressionou”. Ao fazê-lo, explica Freire, os que participam na investigação se desafiam uns aos outros, “re-presentificando-lhes a realidade recém-presentificada à sua consciência intencionada a ela. Neste momento, ‘re-admiram’ sua admiração anterior no relato da ‘admiração’ dos demais. Desta forma, a ‘cisão’ que fez cada um da realidade (...) os remete, dialogicamente, ao todo ‘cindido’ que se totaliza e se oferece aos investigadores a uma nova análise, à qual se seguirá novo seminário avaliativo e crítico, de que participarão, como membros da equipe investigadora, os representantes populares.” (p.147) A investigação inicial centra-se em desvelar e compreender contradições na consciência das pessoas que estão sendo estudadas. No entanto, Freire adverte: “o fato de os investigadores, na primeira fase, terem chegado à apreensão mais ou menos aproximada do conjunto de contradições não os autoriza a pensar na estruturação do conteúdo programático da ação educativa. Até então, esta visão é deles ainda, e não a dos indivíduos em face de sua realidade” (p. 149-150). Em vez disso, uma segunda etapa da investigação é iniciada, para, “sempre em equipe” , investigar algumas dessas contradições. As contradições identificadas devem ser familiares aos que participaram na investigação... “Não seria possível

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(...) propor representações de realidades estranhas aos indivíduos” pois o propósito é que as pessoas, “analisando sua própria realidade, percebam sua percepção anterior, do que resulta uma nova percepção da realidade distorcidamente percebida” (p. 151). Através dessa investigação os participantes “explicitam sua 'consciência real ' da objetividade. Na medida em que, ao fazê-lo, vão percebendo como atuavam ao viverem a situação analisada, chegam ao que chamamos antes de percepção da percepção anterior” (p. 152).

te interessadas e envolvidas, quando a investigação “dizia respeito, diretamente, a aspectos concretos de suas necessidades sentidas. Qualquer desvio ou tentativa do educador de orientar o diálogo para outros rumos... provocavam o seu silêncio e o seu indiferentismo” (p. 154). Com a continuação dos trabalhos, Freire e colegas desenvolveram uma pedagogia da conscientização que leva as pessoas a irem além da simples identificação de suas necessidades para perceberem as causas destas necessidades. É aí que emerge a conscientização, ou consciência crítica.

Ao alcançar esta consciência, os participantes vêm a perceber a realidade de forma diferente; ao alargar o horizonte de sua percepção, eles descobrem mais facilmente, em sua “consciência de fundo”, as relações dialéticas entre as duas dimensões da realidade.

Numa das investigações realizadas em Santiago (...), ao discutir um grupo de indivíduos residentes num “cortiço” (conventillo) uma cena em que apareciam um homem embriagado, que caminhava pela rua, e, em uma esquina, três jovens que conversavam, os participantes do círculo de investigação afirmavam que “aí apenas é produtivo e útil à nação o borracho que vem voltando para casa, depois do trabalho, em que ganha pouco, preocupado com sua família, a cujas necessidades ele não pode atender. Ele é o único trabalhador. Ele é um trabalhador decente como nós, que também somos borrachos. (p.157)...

Promovendo a percepção da percepção anterior, a descodificação, desta forma, provoca o surgimento de nova percepção e o desenvolvimento de novo conhecimento. A nova percepção e o novo conhecimento, cuja formação já começa nesta etapa da investigação, se prolongam, sistematicamente, na implantação do plano educativo, transformando o “inédito viável” na “ação editanda” , com a superação da consciência real” pela “consciência máxima possível”. (p. 153)

Freire relata haver aprendido com os colegas que as pessoas das comunidades só ficavam profundamen-

D ICA No processo de conscientização, a pessoa passa a ver uma situação-limite não mais como algo a que deve se adaptar, mas que é possível transcender, descobrindo o inédito viável – a mudança possível, a ser concretizada. O inédito viável transforma-se, assim, na ação editanda, que muda para melhor a realidade e não cessa de se aperfeiçoar.

Em seus comentários sobre a codificação de uma situação existencial que eles podiam reconhecer, e na qual se reconheciam, disseram o que realmente sentiam... Em contraste, imaginemos o insucesso de um educador “moralista', que fosse fazer prédicas a esses homens contra o alcoolismo, apresentando-lhes como um exemplo de virtude o que, para eles, não é manifestação de virtude. O único caminho a seguir, neste como em outros casos, é a conscientização da situação, a ser tentada desde a etapa da investigação temática. (p.158).

Freire oferece muito mais detalhes sobre como passar da fase da indagação, à reflexão e à ação, enquanto se avalia cada passo ao longo do caminho e se utiliza o que é aprendido em cada etapa da ação, para estruturar o próximo ciclo de investigação, deste modo aprofundando a consciência crítica das pessoas locais envolvidas, ao longo de todo o percurso da jornada pedagógica. Quero lembrar que Freire descreveu, no cenário apresentado, sua abordagem pedagógica de como trabalhar com pessoas pobres não alfabetizadas, antes de a avaliação ter surgido como uma área formal da prática profissional.

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Princípios freirianos Não existe nenhuma lista definitiva de princípios freirianos. Diferentes analistas que utilizam os trabalhos de Freire e são por eles influenciados – inclusive os autores neste volume – enfatizam elementos diferentes e articulam princípios de formas variadas. Assim, o que segue é minha interpretação de seus princípios, de olho em sua relevância e influências específicas para a avaliação.

1. Usar o pensamento avaliativo para abrir, desenvolver e cultivar a consciência crítica (promover conscientização) A convicção dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação, não é um dom concedido pela liderança revolucionária, mas resulta de sua própria conscientização. (p. 201-202)

Consciência crítica, ou conscientização, refere-se ao alcance de uma compreensão profunda, significativa e realista de seu mundo próprio, que esteja baseada em realidade. Isto inclui a pessoa tornar-se consciente de como tem sido doutrinada e condicionada a pensar de determinada forma por aqueles que detêm o poder e a riqueza e controlam os canais tradicionais de difusão de educação, como escolas, agências governamentais, meios de comunicação e mundo corporativo. Freire introduziu a ideia de conscientização em seu livro Pedagogia do Oprimido (1970), para enfatizar que as pessoas comuns, especialmente as mais pobres, são oprimidas por uma falsa consciência, tendo interiorizado a mensagem de que são inferiores, sem valor, incapazes e inúteis. Uma pedagogia do oprimido desperta a consciência das pessoas a respeito da natureza, origens e implicações da opressão – que inclui mitos dominantes e autoritários – e assim possibilita que escapem ao controle dos que estão no poder e passem a atuar com liberdade e consciência, como seres humanos reflexivos e autodeterminados. Esta compreensão empodera os oprimidos e os convoca a agir.

O melhor ponto de partida para tais reflexões é a inconclusão do ser humano que se tornou consciente. Como vimos, aí radica nossa educabilidade bem como nossa inserção num permanente movimento de busca, em que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta das coisas, mas também delas podemos ter um conhecimento cabal. A capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa educabilidade a um nível distinto do nível de adestramento dos outros animais ou do cultivo de plantas (Freire, 2008, p. 68-69).2

Relevância para a avaliação hoje O fato de que existam pessoas desfavorecidas nos aflige. Vemos o abismo entre equipes, gestores, patrões privilegiados, de um lado, e, de outro, comunidades e participantes desfavorecidos... Somos defensores de uma sociedade democrática (Stake, 2004, p. 103-107).

2  (N. da T.) A citação, no texto em inglês, foi extraída de Freire (2001), Pedagogy of Freedom: ethics, democracy and civic courage (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, p. 66-67). A tradução substituiu a citação em inglês pelo parágrafo correspondente do original em português, cujo título é: Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (Editora Paz e Terra, 2008).

A citação acima do avaliador pioneiro Robert Stake transpira valores. Michael Scriven (2015), também pioneiro nesta área, considera a transição de uma ciência social livre de valores para uma avaliação baseada em valores como a primeira grande revolução transdisciplinar da avaliação. Incorporar e julgar valores é o propósito maior da avaliação, mas os avaliadores vêm lutando há muito para descobrir como fazer isso. Schwandt resumiu os desafios de forma sucinta e arguta. Debates têm sido centrados no grau em que o avaliador precisa ser explícito quanto aos critérios empregados no julgamento... A controvérsia está associada com a medida e a maneira em que os interessados (stakeholders) (e quais deles – os gerentes, os que encomendam avaliação, beneficiários?) devem ser envolvidos na determinação de critérios … e se o avaliador por si seria a última pessoa responsável pelo julgamento. O desacordo se encontra acerca de se ou não deveria ter um conjunto universal de critérios (por exemplo, os critérios de OECD/DAC (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico/Comitê de Assistência do Desenvolvimento) de relevância, efetividade, eficiência, impacto, e sustentabilidade para a avaliação de assistência ao desenvolvimento), se determinado critério ou conjunto de critérios é sempre primordial (por exemplo, responsividade cultural, responsividade a gênero, foco em equidade), ou se critérios são

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sempre coisas para serem negociadas em contextos particulares. Igualmente problemático é o desacordo considerável existente sobre a melhor maneira de lidar com critérios múltiplos, o chamado problema de agregação ou síntese. E finalmente, disputas envolvem tanto a aplicabilidade como a justificação de vários métodos para atribuir valor (por exemplo, determinar impacto via experimentos, julgar eficiência por meio de técnicas de custo-benefício) em contextos específicos (Schwandt, 2015, p. 463-464).

Freire, com certeza, acreditava que os critérios dos pobres e oprimidos deveriam ser ascendentes, mas, para que isso ocorresse, seria necessário que desenvolvessem a consciência crítica. Hoje, a influência pedagógica de Freire se manifesta e é representada por duas pedagogias de avaliação principais e interligadas: heurística dos sistemas críticos (critical systems heuristics) , como uma forma de operacionalizar a consciência crítica, e pensamento avaliativo, como a capacidade fundamental a ser desenvolvida no processo de conduzir avaliações. A heurística de sistemas críticos aplicada ao plane-

D ICA A palavra Heurística vem do verbo grego Heuriskein e significa “a arte ou a prática de encontrar ou descobrir”. E qual a melhor forma de encontrar ou descobrir algo? O diálogo em comunidade. Qualquer coletivo que pratique o diálogo como forma de investigar determinado problema ou situação e descobrir soluções, estará usando um procedimento heurístico. Mas o diálogo só será heurístico (capaz de chegar a descobertas) se for conduzido pelo pensamento crítico – que não se reduz à habilidade de criticar e denunciar. O pensamento crítico ou avaliativo é uma ferramenta essencial, a ser exercitada também nas escolas, que nos dá a capacidade de explorar aspectos relevantes de um problema, levantar e examinar suposições e estratégias de soluções, considerar múltiplas perspectivas, comparar evidências, detectar inconsistências e nunca nos contentarmos com a primeira resposta que aparece. Uma abordagem heurística crítica dá conta de perceber qualquer situação como um sistema, de múltiplas dimensões interconectadas e interdependentes. Assim, ao utilizá-la, o grupo aumenta a possibilidade de chegar a soluções que realmente provoquem mudanças.

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jamento e implementação da avaliação, dá atenção explícita à dinâmica de poder, levando em conta múltiplas perspectivas que representam diversos valores, e sendo explícita a respeito de decisões críticas sobre limites. Toda investigação avaliativa é ‘delimitada’ (bounded), no sentido de que fatos e valores específicos, que influem na determinação do valor da intervenção em pauta, são incluídos ou excluídos da análise. Determinados critérios de desempenho e certos tipos de evidência de desempenho, por exemplo, são considerados mais ou menos importantes. Estes limites ou escolhas não são naturalmente dados (como, por exemplo, características do contexto), mas representam construções sociais (e pessoais) que definem o que deve ser considerado relevante na análise de valor” (Schwandt, 2015, p. 464). O pensamento avaliativo enquanto forma de consciência crítica é fundamental para a conceituação da avaliação por meio do diálogo, feita por House (1977), que envolve a interação argumentativa entre avaliador e partes interessadas, “em um diálogo em que eles são livres para empregar sua própria lógica” (p. 48). É quando se desafiam as premissas avaliativas colocadas pelo avaliador, quando “a natureza argumentativa da avaliação torna-se aparente” (House, 1977, p. 8). Uma avaliação democrática e deliberativa (House, 2014; House & Howe, 2000) ao mesmo tempo requer consciência crítica e aperfeiçoa a capacidade de pensar criticamente.

2. A consciência está nas comunidades de pessoas e não apenas nos indivíduos Quando [os oprimidos] descobrem em si o anseio por libertar-se, percebem que este anseio somente se faz concretude na concretude de outros anseios. (p. 47)

O surgimento e o cultivo da consciência crítica é tanto uma atividade cultural quanto política e, portanto, é intrinsecamente, uma atividade coletiva que inclui investigar ou indagar junto com outros. A pe-


dagogia de Freire envolve pessoas que juntas examinam questões importantes para elas e para sua situação. Ele chama estas questões de “temáticas”. A investigação da temática envolve a investigação do próprio pensar do povo. Pensar não se dá fora dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e sempre referido à realidade. (...) simplesmente, não posso pensar pelos outros, nem para os outros, nem sem os outros, nem os outros podem pensar por mim. A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito do seu pensar. E se o seu pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará. (p. 140-141)

Relevância para a avaliação hoje Na longa história da humanidade (e do reino animal também), prevaleceram aqueles que aprenderam a colaborar e a improvisar melhor (Charles Darwin, 1809-1882).

A avaliação participativa veio a destacar-se, dentre as outras abordagens avaliativas, como um enfoque distinto e importante. Os primeiros manuais de avaliação participativa foram escritos por e para pessoas que trabalhavam em desenvolvimento comunitário na América Latina e na África. Um grupo colaborativo chamado Private Agencies Collaborating Together (Agências Privadas Colaborando Juntas, 1986) publicou um dos primeiros manuais de avaliação participativa, bem como um Guia de consulta em avaliação (Pietro, 1983), mais geral. Ambos continuam a ser relevantes ainda hoje. Os manuais incluem técnicas para envolver pessoas não alfabetizadas, como participantes ativos na avaliação de seus próprios esforços para incrementar o desenvolvimento. Essas obras reconhecem a influência de Freire. A avaliação participativa, centrada na comunidade, tem sido usada com grande êxito, como parte dos esforços de desenvolvimento internacional e comunitário, por muitos grupos não governamentais e organizações voluntárias privadas no Sul Global. Estudos internacionais sobre desenvolvimento têm demonstrado como a pesquisa participativa pode

ser um modo de compreender e articular diversas perspectivas para o desenvolvimento responsivo (Better Evaluation, 2014; Mansuri & Vijayendra, 2012; Salmen & Kane, 2006). O impacto dos processos de participação e colaboração sobre os participantes e colaboradores vai muito além de qualquer relatório ou conclusões que eles poderiam produzir ao trabalhar juntos. No processo de participar da avaliação, os envolvidos são expostos à lógica da investigação e à disciplina do raciocínio baseado em evidências e têm a oportunidade de aprendê-las. Também adquirem habilidades em identificação de problemas, especificação de critérios e coleta, análise e interpretação de dados. Por meio da aquisição de habilidades em pesquisa e em formas de pensar, um processo de investigação colaborativa pode ter um impacto que vai além dos resultados gerados por determinado estudo. Mais ainda, pessoas que participam na criação de algo tendem a sentir-se donas do que criaram e a fazer mais uso dessa criação. Quem participa ativamente da avaliação, portanto, fica mais propenso a sentir-se dono não só de seus resultados, mas também do próprio processo de pesquisa. Quando é feito de forma apropriada, sensível e autêntica, torna-se um processo que pertence às pessoas. Membros da comunidade, moradores, pessoas que trabalham na organização, equipe do programa e/ou participantes (como clientes, estudantes, agricultores) – todos podem participar e colaborar. Às vezes, administradores, financiadores e outros também participam, mas o entendimento usual é de que os principais participantes são os que costumam ser colocados “mais embaixo” na hierarquia – gente de Freire. A avaliação participativa é de baixo para cima. O truque é assegurar-se de que a participação seja genuína e autêntica, não só simbólica ou retórica, especialmente na avaliação participativa, quando diferentes agendas políticas muitas vezes competem. A avaliação participativa possui quatro propósitos distintos: a) um é pragmático – o de aumentar a utilização dos resultados por parte dos envolvidos (Patton, 2008); b) o segundo é filosófico ou metodológico – o de embasar os dados nas perspectivas dos

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participantes; c) o terceiro é político – o de mobilizar para a ação social, por exemplo, na avaliação empoderadora (ver capítulo 6, neste volume) ou no que é às vezes chamado de pesquisa avaliativa “emancipatória” (Cousins & Earl, 1995, p. 10); e d), finalmente, o quarto propósito é ensinar a lógica e as habilidades da pesquisa (Patton, 2015, p. 222). Para realizar estes propósitos avaliativos, é preciso que as pessoas em uma comunidade investiguem juntas, de forma ativa. Uma pessoa de uma comunidade envolvida em processo deste tipo, certa vez me disse: “Não sentimos que sabemos algo, até o momento em que o sabemos juntos.” Esta percepção exprime a essência do princípio de Freire de que a consciência está nas comunidades de pessoas, não apenas nos indivíduos.

cador-educando com educando-educador. Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos (...). Já agora ninguém ensina ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo; os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária” são possuídos pelo professor que os descreve ou deposita nos educandos passivos”. (p. 95- 96)

Relevância para a avaliação hoje Ser humano é empenhar-se em uma dinâmica interpessoal. Dinâmica: forças que produzem atividade e mudança.

3. A pedagogia da consciência crítica deve ser interativa e dialógica Freire faz uma extensa crítica ao que ele denomina conceito “bancário” da educação, em que educadores “depositam” informações nos estudantes (Freire, 2015, p. 80). Em contraste, a pedagogia do oprimido deve ser interativa e dialógica. A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo “encha” de conteúdos (...), mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas da problematização dos homens em sua relação com o mundo. (...) (...) a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir conhecimentos e valores (...) mas um ato cognoscente (...)” (p. 94). Sem a superação da contradição educador-educando (...) não é possível a relação dialógica indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível. É através do diálogo (...) que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando, não mais educando do educador, mas edu-

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Inter: entre. Pessoal: pessoas. Combinando essas definições, dinâmica interpessoal são forças existentes entre as pessoas, que as levam à atividade e à mudança. Seja qual for o lugar ou o tempo em que pessoas interajam, estas dinâmicas estarão funcionando (King & Stevahn, 2013, p. 2).

Esta citação, extraída de Interactive Evaluation Practice /Práticas de avaliação interativa (King & Stevahn, 2013), define e explicita a conexão entre as abordagens de avaliação interativa e a mudança social. Da mesma forma, a avaliação dialógica democrática (House & Howe, 2015) apresenta uma lógica e um conjunto de processos e métodos para tornar o diálogo entre pessoas com diferentes perspectivas e interesses a pedra angular de uma avaliação que apoia a democracia. House e Howe articularam três requisitos para que a avaliação seja realizada de modo a apoiar a democracia: inclusão, diálogo e deliberação. Preocupam-se com o poder que deriva do acesso à avaliação e com as implicações para a sociedade, se este acesso for garantido apenas aos poderosos. Acreditamos que as condições contextuais para a avaliação devam ser explicitamente democráticas, de modo que a avaliação esteja vinculada à sociedade mais ampla por princípios democráticos aceitos pela comunidade de avaliação, depois de um processo de argumentação e debate. A avaliação é importante demais para a sociedade, para ser comprada por


quem oferece o maior valor em uma licitação, ou para que dela se apropriem os interesses mais poderosos. Os avaliadores deveriam ser autoconscientes e tomar decisões a respeito destas questões. Se olharmos para além dos estudos individuais, conduzidos por avaliadores individuais, podemos ver os contornos da avaliação como uma instituição social influente, que pode ser vital para a realização de sociedades democráticas. Em meio a reivindicações e contra-reivindicações dos meios de comunicação, em meio as relações públicas e propaganda, em meio à legião daqueles que, em nossa sociedade, representam interesses financeiros particulares, a avaliação pode ser uma instituição que se posiciona à parte, confiável pela exatidão e integridade das suas pretensões. Mas ela precisa de um conjunto de princípios democráticos explícitos para orientar suas práticas e testar suas intuições” (House & Howe, 2000, p. 4).

Barry MacDonald (1987), em parte influenciado e inspirado por Freire, foi um dos primeiros defensores do modelo de avaliação democrática. Ele postulou que “o avaliador democrático” fosse alguém que reconhecesse e apoiasse o valor do pluralismo e, em consequência, ao planejar uma avaliação, procurasse representar toda a gama de interesses em presença. Dessa forma, o avaliador pode apoiar uma cidadania bem informada, condição indispensável de uma democracia forte, atuando como um agente de informação entre grupos que desejam e precisam obter conhecimento um do outro. O avaliador democrático deve disponibilizar os métodos e técnicas de avaliação aos não especialistas – ou seja, aos cidadãos em geral. O avaliador democrático de MacDonald procura levantar uma vasta gama de interesses, assegurando confidencialidade às fontes, engajando-se na negociação entre grupos de interesse e tornando os resultados da avaliação amplamente acessíveis. A ética orientadora é o direito que o público tem de saber. Saville Kushner (2000, 2016) tem levado adiante, aprofundado e atualizado o modelo de avaliação democrática de MacDonald. Ele vê a avaliação como uma forma de expressão pessoal e de ação política, com uma especial obrigação de ser crítica em relação a quem está no poder. Coloca no centro da avaliação as experiências das pessoas nos programas – os supostos beneficiários. Para Kushner,

Cognoscibilidade, cognoscente e cognoscível têm na origem a palavra latina cognitione, que significa “aquisição de conhecimento”. Cognoscibilidade é a capacidade que algo ou alguém tem de poder ser conhecido. Cognoscente refere-se àquele(a) que conhece, que é capaz de conhecer. Cognoscível é o que pode ser conhecido.

DICA

é aí que vamos encontrar a interseção da Política (com P maiúsculo: Política) com a política (com p minúsculo: pessoas). Ele utiliza estudos de caso para apreender as perspectivas de pessoas concretas – crianças, professores e pais – e as realidades de suas vidas, tais como as experimentam no contexto dos programas. Sente a obrigação especial de focar, apreender, relatar e, portanto, honrar os pontos de vista da gente marginalizada. Embora Kushner chame a isto “personalizar a avaliação”, a agenda mais ampla é reforçar a democracia. Consideremos estas reflexões sobre a necessidade de avaliadores e avaliações abordarem questões de justiça social e o contrato democrático: Assim como cada programa social e educativo pode ser visto como uma reafirmação do contrato social mais amplo (ou seja, uma confirmação das bases de poder, autoridade, estrutura social, etc.), cada avaliação de programa é uma oportunidade de rever seus pressupostos e consequências. E é isto que normalmente fazemos, em algum nível. Todos os programas expõem a democracia e as suas falhas; cada avaliação de programa é uma avaliação da efetividade da democracia em lidar com problemas na distribuição de riqueza, poder e bens sociais. Dentro dos termos do acordo de avaliação, levar em conta este nível de análise, ou seja, renovar parte do contrato social, é agir mais autenticamente; deixar de lado esta oportunidade é agir mais inautenticamente, ou seja, aceitar as ficções (Kushner, 2000, p. 32-33).

Os trabalhos escritos sobre o papel da avaliação como apoio aos processos democráticos refletem uma mudança significativa na natureza da contribuição real e potencial da avaliação para o fortalecimento da democracia. Há uma década atrás, toda a ênfase estava em incrementar o uso dos resultados

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para reforçar a tomada de decisão e a aperfeiçoar os programas e, portanto, certificar-se de que os resultados refletiam as diversas perspectivas de múltiplas partes interessadas, incluindo os menos poderosos, por meio da avaliação inclusiva (Mertens, 1998, 1999) e envolviam de fato os participantes dos programas, em vez de apenas equipe, administradores e financiadores. Embora esta tendência permaneça importante, um uso paralelo e reforçador da avaliação centra-se em ajudar as pessoas a aprenderem a pensar e raciocinar avaliativamente e em como prestar esta ajuda pode contribuir para reforçar a democracia no longo prazo – uma visão freiriana que merece elaboração. Comecemos com a premissa de que uma democracia saudável e forte depende de uma cidadania informada. Uma contribuição central da pesquisa e avaliação de políticas é ajudar a garantir um eleitorado informado, seja pela divulgação das conclusões, seja ao incentivar os cidadãos a ponderar evidências e a pensar avaliativamente. Isto envolve processos de pensamento que devem ser aprendidos. Não é suficiente ter informações confiáveis e precisas (a parte informativa da cidadania informada). As pessoas também devem saber como usar as informações, ou seja, comparar evidências, considerar as inevitáveis contradições e inconsistências, articular valores, interpretar resultados, lidar com a complexidade e examinar pressuposições, para apontar apenas algumas das coisas que se quer dizer com “pensar avaliativamente”. Além disso, um pensamento democrático aprofundado inclui sofisticação política para refletir sobre as origens e as implicações das categorias, “construções mentais”, conceitos, que moldam aquilo que experimentamos como informação e “conhecimento” (Minnich, 2004), uma questão central para Freire, contemplada por seu foco na consciência crítica. A filósofa Hannah Arendt, também contemporânea de Freire, estava especialmente sintonizada com este fundamento da democracia. Tendo experimentado o totalitarismo nazista e fugido dele, dedicou

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grande parte de sua vida a estudá-lo e ao seu oposto, a democracia. Ela acreditava que havia uma interligação entre o pensar com cuidado em deliberações públicas e o agir democraticamente. O totalitarismo é construído e sustentado pelo engano e pelo controle do pensamento. Para resistir aos esforços dos poderosos de iludir e de controlar o pensamento, Arendt (1968) acreditava que as pessoas precisavam praticar o pensar. Para esse fim, ela desenvolveu “oito exercícios em pensamento político”. Já no final da vida, escreveu que a “experiência de pensar... pode ter êxito, como toda experiência de se fazer algo, apenas através da prática, através de exercícios” (p. 4). Desse ponto de vista, seria possível considerar cada pesquisa e cada investigação avaliativa participativas como uma oportunidade para que os envolvidos pratiquem o pensamento crítico e aumentem a consciência crítica? A este respeito, poderíamos desejar que a investigação sobre políticas, a pesquisa-ação, a pesquisa participativa e a avaliação colaborativa fizessem o que Arendt esperava de seus exercícios em pensamento político, ou seja, ajudar-nos “a ganhar experiência em como pensar”. Seus exercícios “não contêm prescrições sobre o que pensar ou sobre que verdades abraçar” mas, pelo contrário, têm a ver com o ato e o processo de pensar. Por exemplo, Arendt achava importante, para ajudar as pessoas a pensar conceitualmente: ...descobrir a origem real de conceitos originais, para de novo, deles destilar seu espírito original, que se evaporou tão tristemente das palavras chave da linguagem política – como liberdade e justiça, autoridade e razão, poder e glória - deixando para trás conchas vazias (Arendt, 1968, p. 14-15).

4. Integrar reflexão e ação Freire critica com intensidade e eloquência a justaposição de reflexão e ação como campos separados e distintos da experiência humana. Para ele, a reflexão está orientada para a ação, e a ação é o conteúdo da reflexão. Diálogo crítico pressupõe ação. Em todos os estágios de sua libertação, os oprimidos precisam reconhecer-se como mulheres e homens


engajados na vocação ontológica e histórica de se tornarem mais plenamente humanos. A reflexão e a ação tornam-se imperativas, quando não se pretende, erroneamente, criar uma separação entre o conteúdo da humanidade e suas formas históricas. A insistência com que os oprimidos se envolvem em um permanente esforço de reflexão sobre suas condições concretas, não é um apelo a “fazer a revolução sem sair do sofá”. Pelo contrário, a reflexão – a verdadeira reflexão – conduz à prática. Por outro lado, se a situação convoca à ação imediata, esta se fará autêntica práxis apenas se suas consequências tornam-se objeto de reflexão crítica (p. 72-73).3

DICA A palavra Ontos, em grego, quer dizer “ente, ser”. Os filósofos chamam a “Ciência do Ser” de Ontologia. Vocação ontológica é a vocação que todos nós temos de “ser” cada vez mais humanos. Em sociedades injustas, desiguais, as pessoas, oprimidas, não conseguem realizar o seu potencial: somos menos do que poderíamos ser. Por isso quem é oprimido, ao refletir criticamente sobre a situação em que está e tomar consciência das suas causas, age rumo à mudança social. A práxis acontece quando teoria e prática estão unidas em um movimento constante, que vai do “pensar criticamente”, para o “agir” e do “agir”, para “refletir criticamente” sobre a ação que realizamos.

Relevância para a avaliação hoje A prática reflexiva tem se tornado um dos pilares do desenvolvimento profissional, da pesquisa-ação e das organizações aprendentes (Patton, 2008, 2011, 2015). Donald Schon (1983, 1987) popularizou o conceito de praticante reflexivo. O que faz de Freire um caso à parte é sua afirmação, pioneira e radical, de que mesmo sem ter tido acesso à educação formal, mesmo não alfabetizadas, as pessoas poderiam engajar-se no uso da reflexão para informar a ação e se beneficiar do processo, esclarecendo-se por meio dele e provocando mudanças. A mudança social voltada para a justiça social é a evidência de que uma investigação baseada na reflexão conduziu à consciência crítica – e que essa consciência orientou a ação. A avaliação com foco na justiça social, então, deve examinar tanto a qualidade do processo comunitário de reflexão, quanto os resultados desse processo. Esta é a essência do ato de se avaliar a avaliação – neste caso, avaliar em que medida a avaliação centrada na justiça social conduz à maior justiça social.

5. Valorizar e integrar o objetivo e o subjetivo Consciência crítica, reflexão e ação devem ser fundamentadas em uma realidade objetiva, que é subjetivamente experimentada e compreendida. Jamais será o radical um subjetivista. É que para ele, o aspecto toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria ideia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram naquela unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o atuar e este com aquele. (p. 35)

3  (N. da T.) Os dois parágrafos acima são paráfrases do autor, a partir do texto de Freire, nas páginas citadas. 4  (N. da T.) Cf a edição americana da Pedagogia do Oprimido (Pedagogy of the Oppressed, 1970/2000 New York, NY: Bloomsbury).

No cerne da consciência crítica está a “capacidade de apreender a realidade” (Freire, 2000, p. 38).4 Para Freire, a pobreza é uma realidade verificável. A opressão também. Não são meras percepções. Freire desce aos detalhes para distinguir objetivismo e subjetivismo na perspectiva intelectual e acadêmica, de objetividade e subjetividade na perspectiva do senso comum, como são normalmente compreendidas e vividas pelas pessoas comuns. Além disso, Freire diz que é preciso “verificar objetivamente” (p. 50) qualquer transformação

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da opressão para a libertação que seja esperada, alegada ou afirmada. Aqui estão algumas citações ilustrativas e esclarecedoras. Não se pode pensar objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser dicotomizadas. A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo, ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em constante relação dialética. (p. 50-51) A realidade social, objetiva, que existe não por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade... então, transformar essa realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. (p. 51) Não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como “não eu” do homem, capaz de desafiá-lo; como não haveria ação humana se o homem não fosse um “projeto”, um mais além de si, capaz de captar a sua realidade, de conhecê-la para transformá-la. (p. 55)

Relevância para a avaliação hoje O filósofo francês Jean-Paul Sartre uma vez observou que “palavras são pistolas carregadas”. As palavras objetividade e subjetividade são balas que as pessoas disparam umas contra as outras ao debaterem. É verdade que a objetividade goza de muito prestígio. A ciência aspira à objetividade e o principal motivo pelo qual os tomadores de decisão patrocinam uma avaliação é obter dados objetivos de fonte independente, externa ao programa que está sendo avaliado. No entanto, hoje em dia os filósofos da ciência em geral duvidam da possibilidade de qualquer indivíduo ou qualquer método ser totalmente “objetivo”. Mas a subjetividade se sai ainda pior. Mesmo que reconhecida como inevitável, ou valiosa como uma ferramenta para a compreensão, a subjetividade carrega conotações negativas em

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um nível tão profundo e para tantas pessoas, que o próprio termo pode ser um impedimento para o entendimento mútuo. Há um debate contínuo sobre objetividade versus subjetividade, tanto em avaliação como na ciência em geral, mas Freire ofereceu uma compreensão da conexão e interdependência entre os dois conceitos, um tema explorado e reforçado pelo antropólogo e avaliador de políticas Michael Agar. “Subjetivo” versus “objetivo” já não faz sentido, uma vez que todos os envolvidos são sujeitos (...) A Pesquisa Social Humana é intersubjetiva (...) construída a partir de encontros entre sujeitos, incluindo pesquisadores que, gostem ou não, são também sujeitos (Agar, 2013, p. 108-109).

Esquivando-se tanto da objetividade quanto da subjetividade, a intersubjetividade centra-se no conhecimento enquanto algo socialmente construído nas interações humanas. A avaliação e outras formas de investigação exigem “relações sociais humanas para que possam acontecer”. Elas são ciências intersubjetivas que requerem relações sociais com aqueles que apoiam a ciência, aqueles que a praticam, aqueles que a servem como sujeitos e aqueles que a consomem (Agar, 2013, p. 215). A decisão difícil para o pesquisador é esta: Em certa medida ele ou ela deve traduzir seu próprio quadro de referência e construir em conjunto um quadro de referência para comunicar-se com sujeitos dos mais diferentes tipos... O alicerce da pesquisa intersubjetiva não é “pregar sermões” ou fazer conferências, e sim aprender e comunicar os resultados, sem, no entanto, abandonar os princípios básicos da ciência. Há sempre pressão para se chegar a um equilíbrio, e o pesquisador tem de decidir quanto e de que maneira lidar com ela. Este fato deve ser parte da ciência, bem como uma parte central da formação de investigadores em ciências humanas. Como navegar este território ambíguo com integridade profissional e mantendo a qualidade do produto é um tema negligenciado. Na minha opinião, levar a investigação social humana para o mundo a torna mais difícil, mais interessante, mais intelectualmente desafiadora e com um valor moral mais alto do que jamais havia tido (Agar, 2013,p. 215-216).


6. Integrar pensamento e emoção Freire articulou uma abordagem holística e humanística ao diálogo que valorizava e integrava razão e emoções, especialmente em seu último livro, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (Freire, 1997). Freire insistia em conectar nossas emoções à nossa razão. No capítulo 1 da presente publicação, Moacir Gadotti, um colega de longa data de Freire, enfatiza esse ponto. Gadotti relata que Freire falava de uma “razão encharcada de emoção”: Ele (Freire) insistia muito neste ponto. A educação é responsável pela criação da liberdade em cada ser consciente, sensível, responsável, onde razão e emoção estão em equilíbrio e interação constantes. No mundo da vida, o conhecimento simbólico e o conhecimento perceptivo interagem constantemente. O conhecimento é produzido pelos seres humanos, seres de racionalidade e afeto. Nenhuma dessas duas características é superior à outra. É sempre um sujeito que constrói categorias de pensamento, através de suas experiências com o outro, em um determinado contexto, em um dado momento. Nesta construção, o aspecto afetivo está sempre presente. A onipotência da razão gera uma escola burocrática e racionalista, incapaz de compreender o mundo da vida e o ser humano na sua totalidade. É uma escola dogmática e adormecida, não um organismo vivo. É preciso compreender os processos cognitivos como processos vitais, na medida em que intelecto e sensibilidade são inseparáveis (Gadotti, neste volume).

Relevância para a avaliação hoje As pessoas são movidas pela emoção... As pessoas são suas emoções. Para entender quem uma pessoa é, é necessário compreender sua emoção.... Emoções atingem o cerne das pessoas. Dentro da emoção e por meio dela as pessoas conseguem definir o significado superficial ou essencial, nuclear de quem elas são. Emoções e estados de espírito são maneiras de desvendar o mundo para alguém (Denzin, 2009, p. 1-2).

Quando nos envolvemos uns com os outros como seres humanos integrais, tanto pensamento quanto sentimento entram em jogo. Pensamos sobre as

coisas e nos preocupamos com elas. Idealmente, pensamos sobre as coisas com as quais nos preocupamos e nos preocupamos com as coisas sobre as quais pensamos. Pesquisas em Ciência do Cérebro, Ciências da Decisão e Economia Comportamental (Patton, 2014), para citar apenas alguns exemplos, revelaram as profundas interconexões entre pensamento e sentimento, emoção e cognição. A compreensão e apreciação dessas interconexões se manifestam em abordagens de avaliação que incorporam visualizações, vídeos, arte e fotografia. Abordagens artísticas e evocativas de avaliação querem fazer emergir nosso “eu” emocional, integrando arte e ciência. A ciência nos faz pensar. A grande arte nos faz sentir. Espera-se que grandes avaliações evoquem tanto entendimentos (cognição) quanto sentimentos (emoções). A consciência crítica à la Freire certamente possui tanto a dimensão cognitiva quanto a afetiva. Os insights pedagógicos de Freire fornecem inspiração sobre por que e como integrar pensamento e sentimento em uma pedagogia da avaliação, ensinando aos envolvidos a pensar avaliativamente e a reconhecer e expressar sentimentos sobre o processo e os resultados.

7. A pedagogia da consciência crítica é uma educação cointencional entre os envolvidos, em qualquer papel que estejam A educação a ser praticada pela liderança revolucionária se faz cointencionalidade. Educadores e educandos (lideranças e massa), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento (p. 77-78).

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Relevância para a avaliação hoje. A avaliação do desenvolvimento (developmental evaluation), para dar um exemplo, é baseada em um princípio de cocriação: a inovação que está sendo avaliada e a avaliação desenvolvem-se juntas – são interligadas, interdependentes, iterativas e cocriadas – de tal forma que a avaliação para o desenvolvimento torna-se parte do processo de mudança. (Patton, 2015). Este princípio convoca os avaliadores a reconhecer, documentar, relatar e refletir sobre as maneiras pelas quais uma avaliação do desenvolvimento torna-se parte da intervenção. Quem faz avaliação do desenvolvimento aproxima-se o suficiente da ação para construir um relacionamento de confiança mútua com os inovadores sociais. A qualidade dessa colaboração deriva em parte da capacidade que o avaliador para o desenvolvimento demonstra de facilitar o pensamento avaliativo, oferecer, no tempo certo, feedback baseado em dados e esclarecer processos de construção de sentido que apoiem a inovação e a adaptação. O avaliador do desenvolvimento trabalha colaborativamente com inovadores sociais para conceitualizar, planejar e testar novas abordagens, em um processo contínuo de adaptação, mudança intencional e desenvolvimento. A avalição do desenvolvimento é interativa – engaja inovadores sociais, financiadores, apoiadores e outras partes interessadas essenciais, para adequar e alinhar as dinâmicas de inovação, desenvolvimento, adaptação e avaliação. Esta dinâmica se soma à cocriação tanto da inovação que está se desdobrando, quanto do planejamento da avaliação do desenvolvimento (Lam & Shulha, 2014). O princípio de cocriação é a manifestação de uma observação mais geral sobre

Iterativo é o adjetivo empregado para aquilo que é repetido, reiterado, frequente. Um processo iterativo é algo que pode ser repetido.

DICA 68 | Pedagogia da avaliação e Paulo Freire: Incluir para transformar

processos colaborativos de avaliação, articulada por Cousins e Shulha (2006) no Manual de Avaliação: “Possivelmente o avanço mais significativo da década passada, nas comunidades de pesquisa e de avaliação, tenha sido uma aceitação mais geral de que a forma como trabalhamos com clientes e pessoas que estão com a mão na massa, pode ser tão significativa e importante quanto o que aprendemos com nossos métodos” (p. 277). As consequências do modo como avaliadores trabalham com participantes na avaliação do processo de mudança em si, constituem o uso do processo (Patton, 2008, 2012). O uso do processo refere-se às aprendizagens e mudanças de comportamento que ocorrem entre os envolvidos na avaliação a partir deste envolvimento, por exemplo, ao se tornarem mais adeptos do questionamento e pensamento avaliativos. Mudanças baseadas no feedback sobre as descobertas são uso dos resultados. Mudanças baseadas nos processos de colaboração e cocriação constituem uso do processo. Por exemplo, quando inovadores sociais aprendem com um avaliador do desenvolvimento como articular e usar uma teoria da mudança baseada na complexidade, isto é uso do processo. Da mesma forma, pessoas que participam em uma avaliação com foco na justiça social, vão aprender como analisar várias desigualdades e injustiças, e, por meio dessa análise, o processo de mudança já está sendo iniciado.

8. A consciência crítica é, ao mesmo tempo, processo e resultado final (outcome), método e resultado intermediário (result), reflexão e ação, analítica e orientada para a mudança. Para Freire, o objetivo da consciência crítica como uma pedagogia é “ser mais” (p. 58) – “tornar a pessoa mais plenamente humana. Ele contrasta o objetivo de humanizar-se com o de “ter mais e cada vez mais” (p. 63). Não se alcança a consciência crítica como


um resultado final definido e fixo; em vez disso, é um resultado intermediário, algo que vai emergindo continuamente a partir do processo de envolvimento e da investigação em curso. Freire via a pedagogia crítica como um método para fazer sentido do mundo e também como uma nova maneira de ver e experimentar o mundo, que gerava significativos resultados finais, em termos de novos conhecimentos, novas atitudes, novos comportamentos e, em última instância, mudança social. Isto é conseguido através de um processo de construção de sentido que leva a uma nova compreensão do mundo, a qual constitui, como resultado final, um tipo diferente de conhecimento, que leva à mudança social. Sendo um processo de busca, de conhecimento, por isso tudo, de criação, exige de seus sujeitos que vão descobrindo, no encadeamento dos temas significativos, a interpenetração dos problemas. Por isto é que a investigação se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica, e tão mais crítica, quando, deixando de perder-se nos esquemas estreitos das visões parciais da realidade, das visões “focalistas” da realidade, se fixe na compreensão da totalidade. Assim é que no processo de busca da temática significativa, já deve estar presente a preocupação pela problematização dos próprios temas. Por suas vinculações com os outros. Por seu envolvimento histórico-cultural. Assim como não é possível elaborar um programa a ser doado ao povo, também não o é elaborar “roteiros” de pesquisa do universo temático a partir de pontos prefixados pelos investigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos da investigação. Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve tem de ser uma operação simpática, no sentido etimológico da expressão. Isto é, tem de constituir-se na comunicação, no sentir comum uma realidade que não pode ser vista mecanisticamente compartimentada, simplesmente bem-“comportada”, mas na complexidade de seu permanente vir a ser. (p. 145-146)

Relevância para a avaliação hoje As pessoas envolvidas em uma avaliação que utiliza as lentes da análise crítica visam fazer da investigação um mecanismo para induzir mudança social, cultural, econômica e política. Evitando qualquer pretensão de objetividade, assumem uma postura ativista. A inves-

Na língua inglesa, há nomes diferentes para diferentes tipos de resultados. Um resultado obtido no decorrer de um processo é um result. Um resultado que ocorre ao final do processo é um outcome ou produto.

DICA

tigação de mudança crítica (critical change inquiry) visa criticar as condições existentes e, por meio dessas críticas, chegar a mudanças. Os critérios da avaliação crítica da mudança (critical change evaluation) são derivados da teoria crítica, que, ao se enquadrar e se engajar na avaliação, utiliza a perspectiva freiriana, com uma agenda explícita de elucidar as desigualdades de poder, econômicas e sociais. A natureza “crítica” da teoria crítica decorre do compromisso de ir além de apenas avaliar, mas de usar a avaliação para criticar a sociedade, despertar a consciência e mudar o equilíbrio de poder em favor dos menos poderosos. Influenciada pelo marxismo e pela pedagogia de Paulo Freire, informada pela pressuposição da centralidade do conflito de classes na compreensão das estruturas sociais e comunitárias e atualizada pelas lutas radicais da década de 1960, a teoria crítica fornece ao mesmo tempo a filosofia e os métodos para abordar a pesquisa e a avaliação como manifestações explícitas e fundamentais da práxis política (conectando teoria e ação) e como formas de engajamento orientadas para a mudança. A ciência crítico-social e teoria crítico-social tentam compreender, analisar, criticar e alterar as estruturas e fenômenos sociais, econômicos, culturais, tecnológicos e psicológicos que trazem a marca da opressão, dominação, exploração, injustiça e miséria. Fazem isto visando alterar ou eliminar tais estruturas e fenômenos e ampliar o espaço da liberdade, da justiça e da felicidade. Pressupõe-se que este conhecimento seja usado em processos de mudança social, por pessoas para as quais é crucial compreender sua situação, a fim de que possam transformá-la (Bentz & Shapiro, 1998, p. 146; Kincheloe & McLaren, 2011).

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A avaliação crítica da mudança tem três elementos interligados: a) investigação sobre situações de injustiça social; b) interpretação dos resultados como uma crítica da situação existente; e c) uso dos resultados e da crítica para mobilizar e informar a mudança. Para promover a mudança social, a teoria crítica examina, expõe e questiona a hegemonia – tradicionais pressuposições de poder, mantidas a respeito de relacionamentos, grupos, comunidades, sociedades e organizações... A teoria crítica questiona o suposto poder que os pesquisadores em geral têm sobre as pessoas que eles normalmente pesquisam. Assim, a avaliação crítica da mudança baseia-se no pressuposto de que a sociedade é essencialmente discriminatória, mas é capaz de tornar-se menos excludente, através da ação humana deliberada. A avaliação crítica também pressupõe que as formas dominantes de pesquisa profissional são discriminatórias e devem ser contestadas. A avaliação crítica da mudança assume o conceito de ‘conhecimento como poder’ e torna igualitários a geração desse conhecimento, o acesso a ele e a sua utilização. A avaliação da mudança crítica é uma escolha ética que dá voz e compartilha o poder com pessoas que antes eram marginalizadas e silenciadas (Davis, 2008, p. 140; Given, 2008, p. 139-179; Schwandt, 2007, p. 50-55). 5  (N. da T.) Segundo a teoria queer ou queer theory, a orientação sexual e a identidade de gênero dos indivíduos são construídas socialmente e não existem papéis sexuais biologicamente determinados por uma suposta natureza humana. Nos países de língua inglesa, o termo “queer“ (literalmente “estranho”, “esquisito”), antes usado pejorativamente para designar gays, passou a ser reivindicado por pessoas homossexuais, lésbicas, bissexuais e transgêneros, como uma expressão guarda-chuva que abrange a todos. 6  Ver N. da T. 2.

A avaliação feminista geralmente inclui, como agenda explícita, provocar mudanças sociais (por exemplo, Benmayor, 1991; Brisolara, Seigart, & SenGuptaa, 2014; Hesse-Biber, 2013; 2014). A pesquisa para a libertação e a avaliação empoderadora derivam, em parte, da filosofia da práxis e da educação para a libertação de Paulo Freire, expressas em seus clássicos Pedagogia do Oprimido (1970) e Educação como Prática da Liberdade (1967), até hoje fontes de influência e debate (por exemplo, Glass, 2001). Barone (2000) aspira a um “compartilhamento de histórias emancipatório e educacional” (emancipatory educational storysharing) (p. 247). Stephen Brookfield (2004) usa a teoria crítica para iluminar as inequidades, tendências e questões da educação de adultos. Plummer (2011) integra a teoria crítica e a teoria queer.5 Caruthers

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e Friend (2014) trazem a investigação crítica para a aprendizagem e o engajamento on-line. Crave, Zaleski e Trent (2014) enfatizam o papel fundamental da mudança crítica na construção de um futuro mais igualitário, por meio da avaliação participativa de programas. Aqui estão dois exemplos oferecidos por Davis (2008, p. 141): Martin Diskin trabalhou com legisladores e agências de desenvolvimento na América Latina para realizar o que chamaram de “pesquisa da estrutura de poder”, na qual a exposição da injustiça foi uma estratégia para construir coalizões e motivar movimentos. Christine Davis realizou a avaliação de equipes de saúde mental infantil em parceria com agências comunitárias, o que incluiu examinar questões de poder, marginalização e controle dentro dessas equipes. Os resultados sugeriram rejeitar o modelo hierárquico tradicional de cuidados médicos e, em vez disso, considerar as crianças como seres humanos únicos, valiosos e como parceiras de igual para igual no tratamento (Davis, 2008, p. 141).

9. Toda pedagogia é política (...) toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideias. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra. Especificamente humana, a educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medos e desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente (Freire, 2008, Pedagogia da Autonomia, p. 69-70).6

Relevância para a avaliação hoje As ciências sociais... deveriam ser usadas para melhorar a qualidade de vida.... dos oprimidos, marginalizados, estigmatizados e ignorados... e para trazer


cura, reconciliação e restauração entre o pesquisador e o pesquisado. (Stanfield, 2006, p. 725) Toda investigação é moral e política... Eu quero um discurso que perturbe o mundo, entendendo que a investigação pode contribuir para a justiça social. (Denzin, 2010, p. 23-24)

Um manifesto qualitativo: chamado à ação O sociólogo C. Wright Mills, contemporâneo de Freire, também influenciado pelo marxismo, queria que as ciências sociais fizessem a diferença na vida das pessoas. Ele desafiou os cientistas sociais a ajudarem pessoas pobres a tomar a história nas próprias mãos a fim de “fazer as estruturas do capitalismo se curvarem às ideologias da democracia radical” (Denzin, 2010, p. 23-24). A avaliação como uma forma de atividade política pode contribuir para a justiça social, das seguintes formas: 1. Ajuda a identificar diferentes definições de um problema, ou situação que está sendo avaliada, em que existe algum acordo sobre a necessidade de mudar. Pode mostrar, por exemplo, como esposas maltratadas interpretam os abrigos para mulheres, as linhas telefônicas de emergência e os serviços públicos que lhes são disponibilizados pelas agências de bem-estar social. 2. Localiza e mostra até que ponto são corretas ou incorretas as pressuposições – muitas vezes desmentidas por fatos da experiência – sustentadas por várias partes interessadas como legisladores, trabalhadores do serviço social, clientes, profissionais on-line (Becker, 1967, p. 239).

DICA Gnosiológico vem da palavra grega gnosis, que significa conhecimento (aliás, é dela que se originou a palavra latina cognitione, que, como já vimos, quer dizer a mesma coisa). Gnoseologia é o estudo das formas de conhecimento. Então, quando Freire diz que a prática educativa tem cunho gnosiológico, ele está afirmando que essa prática tem a ver com a construção de conhecimento, envolvendo sonhos, conceitos, ideias, e, por isso, é sempre política, pois tais sonhos, ideias e conceitos não existem fora de um contexto social econômico e político.

sua ênfase na experiência e em seus significados, o método interpretativo sugere que os programas devem ser sempre julgados pelas pessoas por eles mais diretamente afetadas, a partir de seu ponto de vista (Denzin, 2010, p. 24-25).

10. A pedagogia crítica é sempre e fundamentalmente avaliativa A consciência crítica envolve um processo contínuo de avaliação. O cenário do desenvolvimento de uma campanha de alfabetização apresentado no início deste capítulo – o exemplo mais extenso da abordagem de Freire na Pedagogia do Oprimido – descreve, em profundidade e em detalhes, um processo participativo de avaliação. Mas a pedagogia crítica não é concebida como um projeto e seu objetivo não é produzir um relatório. A pedagogia crítica é um processo contínuo que visa a provocar mudanças duradouras, no longo prazo.

3. Identifica pontos estratégicos de intervenção em situações sociais. Assim, por exemplo, os serviços de uma agência e um programa podem ser melhorados e avaliados. 4. Torna possível sugerir “pontos de vista morais alternativos”, a partir dos quais problemas, políticas e programas possam ser interpretadas e avaliados” (Becker, 1967, p. 239-240). Devido à

Princípios pedagógicos de avaliação: interpretando Freire

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Triangulação: confrontando os dez princípios com os capítulos de Gadotti e Penna Firme/Stone Derivei os dez princípios pedagógicos acima de escritos de Freire. Eu o fiz ainda sem ter lido nenhum dos capítulos deste volume, escritos por brasileiros especialistas em Freire e que foram

seus colegas. Depois de identificar os princípios de forma independente, examinei os dois capítulos da Parte A, para descobrir se estavam manifestos e evidentes nesses escritos. E, na verdade, estavam. A Tabela 3.1 resume e dá exemplos desta triangulação. Os princípios identificados e explicados neste capítulo, relacionados às perspectivas apresentadas nos capítulos 1 e 2, conforme apresentado na triangulação da Tabela 3.1, são também explicitamente abordados e avaliados nos capítulos 4 e 5.

TABELA 3.1. Resumo e exemplos triangulação Princípio pedagógico freiriano

Capítulo 1, Gadotti

Capítulo 2, Penna Firme e Stone

1. Usar o pensamento avaliativo para abrir, desenvolver e cultivar a consciência crítica

Pedagogias emancipatórias, como a pedagogia do oprimido, propõem métodos em que o processo de ensinar/aprender envolve a avaliação como parte do desenvolvimento do pensamento crítico.

A intenção é destacar a validade das ideias de Freire para o pensamento avaliativo, no contexto da educação de rua. Uma abordagem crítica abrangente, estrutural, em sintonia com as ideias e preocupações de Freire, surgiu para superar o ciclo perverso de institucionalização, expulsão e prisão; para promover e defender os direitos humanos e a cidadania das crianças.

2. A consciência está nas comunidades de pessoas e não apenas em indivíduos

A ação pedagógica realizada por meio da interdisciplinaridade, demanda a construção de comunidades participativas de aprendizagem

Considerados em conjunto, os programas eram multidimensionais em intenção e métodos. E seus métodos educativos sempre preservavam a autonomia das crianças, deixando-as livres para tomar suas próprias decisões. Os métodos eram marcados por diálogo e pensamento crítico.

3. A pedagogia da conscientização deve ser interativa e dialógica

Os princípios e as premissas de educação popular são as bases da avaliação dialógica colaborativa – uma avaliação feita com aqueles que estão aprendendo, não para eles.

Considerados em conjunto, os programas eram multidimensionais em intenção e métodos. E seus métodos educativos sempre preservavam a autonomia das crianças, deixando-as livres para tomar suas próprias decisões. Os métodos eram marcados por diálogo e pensamento crítico.

4. Integrar reflexão e ação

A práxis transformadora, fundamentada na reflexão, conduz à ação social e comunicativa e ao trabalho produtivo.

As reflexões e conclusões avaliativas foram experimentalmente alcançadas, com base na participação e troca de conhecimento, em contexto.

(CONT.)

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Princípio pedagógico freiriano

Capítulo 1, Gadotti

Capítulo 2, Penna Firme e Stone

5. Valorizar e integrar objetivo e subjetivo

Ser e saber são indissociáveis. O conhecimento é uma construção social.

A intenção era infundir subjetividade esclarecida ao processo avaliativo, em conformidade com o princípio freiriano de valorizar e integrar o objetivo e o subjetivo... Os avaliadores aprenderam a enfrentar o desafio de fazer da subjetividade humana uma vantagem e não uma desvantagem, combinando pensamento crítico e criatividade para fazer escolhas esclarecidas.

6. Integrar pensamento e emoção

Lição 1: Razão e emoção estão/são interligadas.

Para os avaliadores, aprender a ser instrumentos humanos era crucial, o que, no contexto do estudo, significava praticar os princípios freirianos. Fundamentalmente, isto significava abertura. Em um determinado nível, requeria uma certa “reorientação de valor” para serem capazes de praticar empatia e sensibilidade nas interações com as pessoas. Curiosamente, isto implicava uma atitude de não julgamento, na qual os avaliadores descobriram um paralelo com a postura neutra no sentido científico – no entanto, ela significava “acolhimento e carinho”, não “frieza e distância”.

7. A pedagogia da consciência crítica é uma educação cointencional entre os envolvidos, em qualquer papel que estejam

Lição 3: Não há ensino sem aprendizagem, nem aprendizagem sem ensino. A pedagogia crítica é dialógica.

Freire sustentava que não se pode ensinar sem aprender, nem aprender sem ensinar. Os dois atos são simultâneos e há troca de conhecimento.

8. A consciência crítica é, ao mesmo tempo: processo e resultado final (outcome); método e resultado intermediário (result); reflexão e ação; analítica e orientada para a mudança

Lição 4: A pedagogia envolve tanto ser, quanto saber. Educar é ler o mundo para poder transformá-lo.

A abertura freiriana significava pensamento crítico. Os avaliadores aprenderam a questionar suas escolhas metodológicas a cada passo do caminho, criando métodos e medidas apropriados, sem comprometer a qualidade, mas de fato realçando-a através da criatividade...

Paulo Freire foi um homem da práxis, ao mesmo tempo um pensador e um fazedor.

Também emergiu, do processo naturalístico-responsivo de avaliação, uma metodologia para coletar e compilar dados autênticos e confiáveis para monitorar e aperfeiçoar continuamente o programa.

9. Toda pedagogia é política

A pedagogia freiriana diz respeito, essencialmente, à construção de uma sociedade justa e democrática. Toda educação e toda avaliação pressupõem um projeto social, o que torna as duas inerentemente políticas.

As necessidades das crianças de rua não são apenas uma questão de desenvolvimento econômico, mas também – e muito mais – uma questão de vontade política. Basear a avaliação na pedagogia freiriana, usando métodos naturalísticos e responsivos é viável e eficaz em um contexto emocional e politicamente sensível.

10. A pedagogia crítica é sempre e fundamentalmente avaliativa

Para Paulo Freire, a questão do método é fundamental no ato educativo, como o é no ato avaliativo: quando usamos certo método, que não é neutro, nós o fazemos com base em uma escolha ética, política e pedagógica.

O que os avaliadores ensinaram? Que conhecimento eles compartilharam? Talvez o ensinamento mais valioso, pelo menos no nível da equipe do programa, bem como para as crianças em situação de rua, tenha sido o conhecimento de que a avaliação é uma amiga, não um inimiga; que os avaliadores podem ser confiáveis como seres humanos e profissionais; que os dados podem servir a uma causa comum e nem sempre são usados apenas em proveito pessoal.

Princípios pedagógicos de avaliação: interpretando Freire

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Relevância para a avaliação hoje: princípios pedagógicos freirianos conectados a abordagens de avaliação

nalmente, ele trouxe às suas análises o processo de engajamento e de construção de sentido que hoje chamamos pensamento avaliativo (Princípio 10), facilitando aos oprimidos, não alfabetizados, pobres e em situação de desvantagem, descrever, comparar, analisar, refletir e fazer julgamentos, como base para conduzir mudanças.

A Tabela 3.2 resume alguns avanços proeminentes e importantes na avaliação, influenciados, conectados ou relacionados a princípios freirianos.

Conclusão: Pedagogias da avaliação

Um quadro de referência holístico para a avaliação A base filosófica de Freire é a dialética hegeliana. O que mais me impressiona em sua pedagogia é sua genialidade para a síntese. Sua capacidade de transcender tese e antítese e gerar uma síntese integrada sustenta todos os dez princípios identificados e discutidos neste capítulo. Ele enfatizou, em toda a Pedagogia do Oprimido, que opressores e oprimidos devem alcançar a consciência crítica e fazê-lo para o avanço de ambos e de cada um (Princípio 1). Conectou o indivíduo à comunidade (Princípio 2) e as pessoas umas às outras (Princípio 3). Integrou reflexão e ação (Princípio 4), objetividade e subjetividade (Princípio 5), razão e emoção (Princípio 6), avaliadores e participantes da avaliação (Princípio 7). Freire enfatizou a interconexão e a inter-relação entre processo e resultado final (outcome), métodos e resultados intermediários (result), análise e engajamento, compreensão e mudanças sociais (Princípio 8). Ele retratou padrões culturais, interações sociais, relações com a comunidade, dinâmicas econômicas, manifestações sócio-psicológicas, conhecimento, educação e aprendizagem como fenômenos fundamentalmente políticos; fez sentido de tudo por meio das lentes da economia política e mostrou aos oprimidos como usar estas lentes para compreender sua situação na história e no momento atual; assim, conectou o passado ao presente e ao futuro, pedagógica e paradigmaticamente (Princípio 9). Fi-

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Não existe uma pedagogia da avaliação única ou monolítica. Como afirmei na abertura deste capítulo, incorporados a diferentes abordagens de avaliação encontram-se os mais variados pressupostos, valores, prioridades, processos de construção de sentido e princípios. Assim, aqueles que participam de uma avaliação experimentam princípios pedagógicos às vezes explícitos, mais frequentemente implícitos e tácitos. A avaliação convida quem nela está envolvido a ver o mundo de certa maneira, a dar sentido ao que vê, usando uma lente específica, a fazer julgamentos com base em determinados tipos de evidências e valores. As abordagens de avaliação que mais foram influenciadas pela pedagogia freiriana e compartilham seus valores, modos de engajamento e resultados finais desejados são as seguintes: focada na justiça social, democrática deliberativa, empoderadora, feminista, transformadora e a avaliação de sistemas críticos. Outras abordagens de avaliação valorizam, ensinam e lutam para obter resultados diferentes, ou seja, elas se baseiam em outras premissas e princípios pedagógicos. A compreensão mais ampla que a obra de Freire nos faz lembrar é a de que todas as abordagens de avaliação constituem uma pedagogia de algum tipo. Toda avaliação ensina algo. O que é ensinado e como é ensinado varia, mas a avaliação é inerente e predominantemente uma interação pedagógica. Freire


TABELA 3.2. Resumo e exemplos triangulação Princípios pedagógicos freirianos

Abordagens de avaliação em que os princípios ressoam

1.Usar o pensamento avaliativo para abrir, desenvolver e cultivar a consciência crítica (promover conscientização)

1. A consciência crítica é a base da avaliação empreendida em uma perspectiva de justiça social (House, 1976, 1990, 2014, 2015; Kirkhart, 1994; Ryan & DeStefano, 2000). Metodologicamente, inclui atenção à reflexividade e à práxis (Patton, 2015). O pensamento avaliativo surgiu como um resultado importante do envolvimento das partes interessadas na avaliação (diferentemente do que ocorre quando apenas se fazem avaliações) (Carden & Earl, 2007; Patton, 2008, 2012).

2. A consciência está nas comunidades de pessoas, não apenas em indivíduos

2. A comunidade como reservatório de conhecimentos é a base da avaliação participativa, colaborativa e empoderadora (Cousins & Chouinard, 2012; Cousins & Earl, 1992, 1995; Cousins, Whitmore, & Shulha, 2014; Fetterman, Rodríguez-Campos, Wandersman, & O’Sullivan, 2014; Fetterman & Wandersman, 2005).

3. A pedagogia da conscientização deve ser interativa e dialógica

3.  A avaliação dialógica democrática integra a justiça social a processos interativos e dialógicos (House & Howe, 2000).

4. Integrar reflexão e ação

4. A prática reflexiva como uma competência essencial dos praticantes (King & Podems, 2014; King & Stevahn, 2013; King, Stevahn, Ghere & Minnema, 2001; Schon, 1983, 1987). A prática reflexiva inclui atenção à reflexividade e à práxis (Patton, 2015).

5. Valorizar e integrar objetivo e subjetivo

5.  Avaliação responsiva (Guba & Lincoln, 1981; Stake, 1975, 1978, 1996); e métodos mistos (Greene, 2007).

6. Integrar pensamento e emoção

6.  Avaliação evocativa; avaliação multivocal (Patton, 2015).

7. A pedagogia da consciência crítica é uma educação cointencional entre os envolvidos, qualquer que seja o seu papel

7. Coevolução (Patton, 2011); avaliação feminista (Podems, 2010, 2013).

8. A consciência crítica é ao mesmo tempo processo e resultado final (outcome); método e resultado intermediário (result); reflexão e ação; analítica e orientada para a mudança

8. Avaliação para o desenvolvimento (Patton, 2011, 2016; uso do processo (Patton, 2008, 2012, Cousins, 2008).

9. Toda pedagogia é política

9. Toda avaliação é política (House, 1973; Weiss, 1993; Patton, 2008, 2012).

10. A pedagogia crítica é sempre e fundamentalmente avaliativa

10. Pensamento avaliativo integrado aos processos e métodos de avaliação (Patton, 2008, 2012).

Princípios pedagógicos de avaliação: interpretando Freire

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compreendeu e nos ensinou que todas as interações entre pessoas são pedagógicas: algo está sempre sendo ensinado, transmitido e propagandeado.

J.C.; MARK, M.M. (Eds.). The Sage handbook of evaluation: policies, programs and practices. Thousand Oaks, CA: Sage.

Para concluir, deixo uma pergunta: Qual é a sua pedagogia da avaliação?

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Princípios pedagógicos de avaliação: interpretando Freire

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A pedagogia em processo aplicada à avaliação:

Aprendendo com o trabalho de Paulo Freire na Guiné-Bissau Thomaz K. Chianca e Claudius Ceccon

T

homaz, consultor internacional em Avaliação e Claudius, arquiteto, cartunista, companheiro de aventuras de Paulo Freire, relatam um caso prático ocorrido na África Ocidental, na década de 1970. O fato:

Paulo Freire e um grupo muito próximo de colegas brasileiros, que incluía Claudius, recriaram algumas das principais ideias filosóficas freirianas sobre pedagogia, na reforma educacional ocorrida na Guiné-Bissau. As aprendizagens: ao refletir sobre o que ocorreu, os autores descobrem que oito dos dez princípios extraídos por Patton dos escritos de Freire estavam operando claramente na experiência em foco. E mais: apontam dois princípios freirianos adicionais, que caracterizaram o trabalho na Guiné-Bissau, concluindo que a pedagogia freiriana está sempre em processo, processo este enraizado nas necessidades das pessoas e em seus interesses básicos, conectados a uma agenda de mudança social.

THOMAZ CHIANCA é consultor internacional em Avaliação, com 20 anos de experiência no Brasil e em outros 24 países. É cirurgião-dentista, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde ensina métodos de pesquisa a estudantes de graduação e orienta pesquisas e projetos de extensão. Tem PhD em Avaliação Interdisciplinar pela Western Michigan University (EUA), é membro fundador da Associação Brasileira de Avaliação e Monitoramento e dirige sua própria empresa de coaching em avaliação, formação e prática de consultoria, a COMEA Avaliações Relevantes. CLAUDIUS CECCON é arquiteto, designer e cartunista político. Diretor Executivo do Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP), organização da sociedade civil que realiza cursos, projetos e campanhas de interesse público. Claudius e Paulo Freire foram aliados políticos, desde o exílio, época do trabalho descrito neste capítulo.

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Introdução: Paulo Freire e o contexto da Guiné-Bissau O educador brasileiro Paulo Freire acreditava profundamente que as pessoas são sujeitos de sua própria aprendizagem. Uma de suas principais concepções é a de que educadores e educandos aprendem juntos, numa relação dinâmica na qual a prática, associada à teoria, reinventa-se, como parte de um processo contínuo de aperfeiçoamento. De acordo com Freire, educadores não devem usar a educação como forma de adequar as pessoas às normas vigentes. Se a sua prática é coerente com a ideia de que educar significa libertar/empoderar as pessoas, então devem ser facilitadores do processo de aprendizagem e entender que estão envolvidos em um caminho de duas vias, no qual aprendem ao ensinar. Isso significa que os educadores não devem trabalhar com esquemas/planos preconcebidos. Em vez disso, devem engajar-se com as pessoas em um processo dialético, o qual fornecerá elementos para que, juntos, construam as melhores abordagens e estratégias para o seu contexto, cultura e demandas específicos. Freire defende a necessidade de um compromisso profundo, revolucionário, dialógico entre educadores e educandos para que qualquer processo educativo possa ser bem-sucedido. Este capítulo irá apresentar e discutir um caso prático, em que Paulo Freire e um grupo de seus colegas brasileiros mais próximos aplicaram, criaram, adaptaram ou recriaram algumas das principais ideias filosóficas freirianas sobre pedagogia. O caso refere-se à oportunidade que Freire e seus colegas tiveram, em meados dos anos 1970, de trabalhar com o governo de um país na África Ocidental – a Guiné-Bissau – que havia pouco se tornara independente. Seu desafio era ajudar o país a enfrentar o enorme nível de analfabetismo entre os guineenses. O convite inicial era desenvolver um programa nacional de alfabetização na Guiné-Bissau, logo em seguida à conquista da sua independência de Portugal, em 1974, depois de uma guerra de guerrilha que começara no final da década de 1950. Contaremos a história através dos olhos de um dos autores des-

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te trabalho (Claudius Ceccon), um dos colegas de Paulo Freire, que trabalhou com ele durante todo o projeto (1975-1980) e participou em todas as visitas de campo àquele país. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo foi como Freire intitulou seu livro sobre esta experiência (Freire, 1977). O título expressa muito de perto o que eles fizeram: a) um esforço constante para mergulhar em profundidade na história, cultura e realidade atual do país; b) o estabelecimento de conexões fortes e dialéticas, com as principais partes interessadas; e c) a permanente criação e reinvenção de um programa de alfabetização continuamente adaptado e aperfeiçoado, sem perder sua conexão com o ideal que estava no centro de tudo – contribuir para os esforços de reconstrução do país. As ideias de Freire, expressas nesta experiência, a respeito da necessidade de adaptar constantemente programas/pedagogias face a realidades complexas e de se concentrar em ser relevante para uma causa social, parecem claramente ligadas a abordagens de avaliação proeminentes que hoje conhecemos, como a avaliação para o desenvolvimento (Patton, 2011), a avaliação empoderadora (Fetterman, 2001), a avaliação responsiva (Stake, 2004) e a avaliação democrática deliberativa (House & Howe, 1999) – e provavelmente as tenham inspirado. Ao descrever e refletir sobre esta rica experiência na Guiné-Bissau, usando algumas informações em primeira mão, identificaremos exemplos em que se evidenciam alguns dos dez princípios pedagógicos extraídos por Patton dos escritos de Freire (ver Capítulo 3 deste livro). Além disso, como parte da análise crítica da experiência de Freire naquele país, serão introduzidos dois outros princípios relevantes para a teoria e a prática da avaliação.


O projeto na Guiné-Bissau Freire, um professor de ensino fundamental vivendo na cidade do Recife, capital de Pernambuco, provou, no início da década de 1960, que camponeses analfabetos poderiam aprender a ler e a escrever em 40 horas (Pelandré, 2002). Como parte do mesmo processo, eles também poderiam aprender a desenvolver o pensamento crítico – o que Freire chamava de “conscientização” (Instituto Paulo Freire, s. d.). O método educacional de Freire ajudava as pessoas a compreenderem os determinantes da sua realidade injusta e a refletirem sobre as ações que deveriam empreender para mudá-la. Em reconhecimento ao seu trabalho bem-sucedido, Freire foi convidado pelo Ministério da Educação para, a partir da capital, Brasília, organizar um Programa Nacional de Alfabetização (Brasil, 1964). Infelizmente, sua obra foi interrompida quando, em 1964, um golpe militar-civil iniciou 21 anos de ditadura militar no Brasil. Freire, acusado de subversão, foi preso e jogado na prisão. Depois de ser libertado, precisou ir para o exílio, primeiro na Bolívia e em seguida no Chile, onde trabalhou no Instituto de Reforma Agrária, durante toda a presidência de Eduardo Frei (1964 a 1970). Em 1970, foi convidado pelo Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, na Suíça, a fazer parte de sua divisão educacional. Em Genebra, Freire e três colegas brasileiros (Claudius Ceccon, Miguel Darcy de Oliveira e Rosiska Darcy de Oliveira) criaram o Instituto de Ação Cultural (Idac) com o objetivo de contribuir para um mundo melhor por meio da educação. Seu trabalho começou desenvolvendo e disseminando reflexões críticas sobre a experiência de Freire ao planejar o Programa Nacional de Alfabetização brasileiro e, no exílio, implementar programas de conscientização com camponeses chilenos. Seu trabalho começou a atrair a atenção de grupos europeus, frustrados com o autoritarismo das suas sociedades, que se refletia nas relações professor/estudantes, médico/pacientes, líderes sindicais/trabalhadores, políticos/eleitores, e assim por diante. A ideia era trazer a esses

grupos uma nova proposta político-pedagógica baseada no princípio de que cada ação educativa deve produzir novos conhecimentos. Foi naquele momento, na primavera europeia de 1975, que o escritório do Idac recebeu uma carta de Mário Cabral, ministro da Educação da recém-nascida República da Guiné-Bissau (África Ocidental), convidando Paulo Freire e equipe a conduzirem uma campanha nacional de alfabetização de adultos.

O primeiro encontro do Idac com a Guiné-Bissau Havia a emoção do desafio e a curiosidade de conhecer o país, cuja luta, liderada por um líder extraordinário, Amílcar Cabral , conseguira derrotar o poderoso e bem equipado exército colonial português. Ao mesmo tempo, o Idac sabia que as expectativas eram altas, e o desafio, enorme. Depois de muita reflexão e discussões, o grupo respondeu que era preciso conhecer melhor a situação e as reais necessidades do país, antes que se pudesse considerar uma colaboração formal.

DICA Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, Guiné-Bissau, onde seu pai era professor. Em 1945, conseguiu uma bolsa de estudos para estudar Agronomia em Lisboa. Logo se envolve em reuniões de grupos antifascistas e com movimentos como o da negritude. Já graduado, regressa a Bissau em 1952. Trabalhando no Recenseamento Agrícola de 1953, adquire um conhecimento profundo da realidade social de seu país e inicia suas atividades políticas. Em 1959, com seu meio-irmão Luís Cabral, e outros, funda o clandestino Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Quatro anos depois, tem início a luta armada contra Portugal, a metrópole colonialista, com o ataque ao quartel de Tite, no sul da Guiné-Bissau, a partir de bases na Guiné-Conacri. Depois de Cabral ser assassinado, em 1973, a luta armada se intensifica e a independência de Guiné-Bissau é proclamada, unilateralmente, em 24 de setembro de 1973. Luís Cabral é nomeado o primeiro presidente do país. Em 1975, a independência será reconhecida por Portugal.

A pedagogia em processo aplicada à avaliação: Aprendendo com o trabalho de Paulo Freire na Guiné-Bissau

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Com o apoio do Conselho Mundial de Igrejas, a equipe do Idac pôde visitar a Guiné-Bissau, poucos meses depois de receber o convite de Mário Cabral. Os brasileiros da equipe do Idac, exilados em um país europeu por anos que mais pareciam uma eternidade, logo ao chegar à Guiné-Bissau identificaram características que lhes eram familiares. As verdes mangueiras parecendo brilhar ao sol ardente, a cordialidade, o calor do povo, seu modo de sorrir, tocar, abraçar e andar em um ritmo descontraído, fez com que todos, de alguma forma, sentissem que encontravam ali uma parte do Brasil. O sotaque português dos guineenses e o sotaque brasileiro da equipe não prejudicaram a comunicação. Os brasileiros conseguiram até incorporar alguns termos em crioulo, a língua franca que construía uma ponte entre os distintos idiomas de cerca de 40 grupos étnicos guineenses. No entanto, eles levaram algum tempo para compreender que, por trás das muitas características e comportamentos comuns, havia também importantes diferenças culturais. Durante essa primeira visita, a equipe do Idac reuniu-se com representantes das partes interessadas – do próprio presidente e seus ministros aos camponeses na zona rural e das áreas urbanas na periferia de Bissau; de militares responsáveis por manter a linha política definida por Amílcar Cabral, aos “Homens Grandes” – os Anciãos, sábios respeitados, que mantêm a tradição, a cultura e a história do povo. A equipe reuniu-se com professores e funcionários do governo, em especial a equipe do Ministério da Educação responsável pela criação do novo sistema escolar em todo o país. Coletaram os documentos relevantes que puderam encontrar, fizeram uma grande quantidade de fotos e anotações e discutiram por longo tempo com a equipe do Ministério da Educação sobre questões estratégicas relativas à educação de adultos. A equipe do Idac procurou construir um entendimento comum da tarefa à vista, para que pudesse considerar, com maior clareza, se poderiam ajudar. Era a época das chuvas e não havia estradas que pudessem levar a equipe do Idac a lugares distantes da

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capital, Bissau. Foi preciso voar em enormes helicópteros militares, cujos pilotos, da União Soviética, voavam a baixa altitude, com mapas feitos à mão apoiados nos joelhos e se orientavam seguindo os meandros dos rios avistados lá emabaixo, identificados a olho nu. Em uma das viagens, o helicóptero pousou para desembarcar alguns passageiros. A equipe do Idac desembarcou com eles, só para descobrir, assim que o helicóptero decolou, que estavam na aldeia errada. Não havia rádio para chamar o helicóptero de volta. Chovia muito e ele só voltaria no dia seguinte. A autoridade principal da aldeia (chamada “Governador”) foi avisada de que Paulo Freire estava no “aeroporto” – uma estrutura aberta, coberta com folhas de palmeira. Ele imediatamente providenciou um transporte e recebeu Paulo Freire e a esposa Elza em sua casa, uma das poucas deixadas intactas pelos portugueses – que se retiraram após a derrota, deixando um rastro de destruição. O resto da equipe foi distribuído por várias casas semidestruídas, com vasos sanitários quebrados e sem eletricidade. Desconforto que aumentava com o calor infernal, alta umidade e mosquitos atacando sem piedade. O Governador compartilhou a pouca comida disponível. A ocasião permitiu que houvesse um tempo generoso para conversar com a população e com os educadores locais, antes de a equipe ser resgatada 24 horas mais tarde. Essa visita não programada serviu como um realista contraponto à reunião da equipe do Idac, alguns dias antes, com Julio de Andrade, militar responsável pelas diretrizes do Partido, que apresentara um panorama do que pretendia a orientação política geral que deveria ser implementada na Guiné-Bissau. Em nossa estada forçada naquele vilarejo, os moradores locais e os educadores falaram de suas condições concretas, ali e agora, e dos desafios e dificuldades que tinham de enfrentar. Este foi um dos muitos encontros que a equipe do Idac teve, antes de deixar o país, tendo consciência do enorme desafio que os guineenses, e a própria equipe, tinham pela frente.


Inteirando-se com o trabalho na Guiné-Bissau De volta a Genebra, a equipe retomou todas as informações que havia reunido. Foi muito rico o exercício de montar um quebra-cabeças coletivo a partir das perspectivas e experiências individuais de cada um. Isso mostrou quão diferentes eram as percepções e os valores de cada um de nós. Das inúmeras discussões, emergiu claramente a questão principal que os guineenses teriam de enfrentar: que tipo de sistema educacional deveriam construir? Na realidade, havia dois sistemas educacionais muito diferentes em presença naquele momento. O primeiro era o trazido pelos portugueses, uma pobre transposição do modelo da metrópole: uma caricatura, uma escola seletiva, alinhada aos interesses dos colonizadores e que só existia, praticamente, em Bissau. Os professores usavam o português, língua falada por não mais que 5% da população. O currículo era a Geografia, a Hidrografia, a Rede Ferroviária e a História de... Portugal. Nos livros, a África não existia antes da chegada dos conquistadores. “Em cada estação chuvosa, este rio, que corre ao lado da escola, inunda toda a aldeia. Nós conhecíamos os nomes de todos os rios de Portugal, mas não sabíamos como se chamava o nosso rio”, nos contou um professor. Esse sistema escolar não tinha outro propósito além de desafricanizar e alienar os estudantes de sua realidade nacional. Ao final de um processo extremamente seletivo, uns poucos iam para Portugal, para completar sua educação na Universidade de Coimbra. Lá, eram levados a crer que eram superiores aos seus concidadãos. Sua missão futura era impor e manter o domínio colonial nos territórios dominados pelos portugueses – Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Era para isso que tal educação servia. O outro sistema brotava das escolas que foram organizadas nas áreas liberadas, durante a luta pela independência. Lá, o processo de aprendizagem

acontecia necessariamente em estreita relação com a prática, pois todos tinham que fazer o que era necessário para a sobrevivência. Começava-se por aprender a cavar trincheiras para se proteger de ataques aéreos e a plantar o que era preciso para comer. Naquele sistema, os anciãos, os “Homens Grandes”, como eram chamados, que eram o repositório da cultura e da história da Guiné-Bissau, desempenhavam um papel importante. No entanto, ao mesmo tempo, era fundamental superar certos mitos da herança cultural – seja porque eles contradiziam a busca por novos tempos, ou porque fenômenos naturais podiam ser melhor explicados pela ciência do que pela ira dos deuses. O lugar das mulheres na nova sociedade também era uma das principais preocupações – e mudanças importantes precisavam acontecer nessa frente também. Esses dois sistemas educacionais eram diametralmente opostos. Depois de muita reflexão e discussão entre a equipe de educação de adultos do Ministério da Educação e a equipe do Idac, tornou-se claro que a melhor escolha era investir no sistema criado durante a luta pela independência. Havia sérios obstáculos, entretanto faltavam professores suficientemente capacitados, era preciso criar um novo currículo, com livros e outros materiais educativos adequados. Não era possível implementar, de uma hora para outra, um sistema inteiramente novo. Um período de transição, tão breve quanto possível, se fazia necessário. O novo teria que ser firmemente criado e reforçado, em coexistência com o velho. As mudanças iriam minimizar as características mais negativas do antigo sistema, até que, paulatinamente, houvesse condições para se implementar integralmente a “nova escola”. Em constante comunicação com o Idac, o Ministério da Educação decidiu adotar, como parte de sua abordagem educacional para todo o sistema, as ideias de Freire sobre conectar a educação à ação, como forma de compreender a realidade e responder a situações e necessidades da vida real. As escolas deveriam promover um processo educativo integral, como um fim em si mesmo e não apenas cumprir requisitos a fim de permitir o avanço das

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crianças a níveis mais elevados do sistema. O objetivo da educação deveria ser ajudar a melhorar concretamente a realidade das comunidades. Para implementar essas transformações, seria necessário proceder a uma série de mudanças estruturais, incluindo a criação de um Departamento de Educação de Adultos e de Centros de Educação Popular Integrados (CEPIs).

Estratégias centrais de Freire A abordagem freiriana de educação e ação possuía basicamente três estratégias:

1  (N. da T.) Na versão original, em inglês, deste capítulo, os autores retiraram as citações da edição americana do livro de Freire (1ª edição, 1978) e pelo menos um parágrafo da 1ª edição brasileira, de 1977, que eles mesmos verteram para o inglês. Nesta tradução, substituímos as citações em inglês pelos parágrafos correspondentes da 2ª edição brasileira das Cartas..., de 1978.

1. Compreender criticamente a realidade por meio do estabelecimento de um diálogo aprofundado com a população local, levando em conta seus conhecimentos acumulados e sua cultura enraizada em tradições, de modo que pudessem se dar conta tanto de suas potencialidades quanto de suas limitações. 2. Realizar estudos científicos a fim de preencher lacunas no conhecimento, esclarecer alguns aspectos-chave e procurar temas geradores. 3. Aplicar os novos conhecimentos em projetos práticos que dessem conta das questões mais importantes dentro das comunidades, especialmente aquelas relacionadas ao aperfeiçoamento da produção.

No processo houve conquistas, houve algumas falhas e houve resultados em que essas duas coisas se misturaram. Depois de cinco anos que incluíram um golpe militar, a conjuntura se degradou, tornando a situação insustentável – e o projeto não pôde continuar. O propósito do restante deste capítulo é examinar em que medida os dez princípios pedagógicos que Patton extraiu dos escritos de Freire (Capítulo 3) estão evidentes na experiência da Guiné-Bissau.

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Os dez princípios pedagógicos freirianos e a experiência da Guiné-Bissau O trabalho de Freire e seus colegas na Guiné-Bissau foi, sem dúvida, um dos exemplos mais relevantes da aplicação das teorias de Freire e de sua práxis nos campos da educação e da alfabetização. Dada a riqueza da experiência, discutiremos os princípios pedagógicos relevantes para a teoria e a prática da avaliação que podem ser extraídos de uma análise crítica do projeto Guiné-Bissau. Nossa análise encontrou evidências de todos os dez princípios identificados por Patton, menos dois. Os que faltam são o quinto (Valorizar e integrar o objetivo e o subjetivo) e o sexto (Integrar pensamento e emoção). O que segue é um relato reflexivo das evidências encontradas em relação a cada princípio pedagógico. A menos que seja indicado o contrário, todas as citações, daqui para a frente, foram extraídas de Cartas a Guiné-Bissau – Registros de uma experiência em processo (Freire, 1978).1

Princípio pedagógico freiriano 1: Usar o pensamento avaliativo para abrir, desenvolver e cultivar a consciência crítica Este princípio estava claramente incorporado a todas as atividades propostas pela equipe do Idac em seu trabalho com o Ministério da Educação da Guiné-Bissau. Freire constantemente salienta que sua abordagem visa à conscientização, ao despertar da consciência crítica/pensamento crítico das pessoas, àquilo que Michael Scriven (1994) também chamaria pensamento avaliativo – ser reflexivo ou analítico a respeito do que quer que esteja sendo avaliado. Este aspecto-chave torna-se aparente quando Freire explica como o processo de aprendizagem envolvendo educadores e educandos deve basear-se em uma atitude crítica a respeito dos aspectos que servirão para mediar sua aprendizagem mútua.


Na verdade, nas relações entre o educador e os educandos, mediatizados pelo objeto a ser desvelado, o importante é o exercício da atitude crítica em face do objeto e não o discurso do educador em torno do objeto. E mesmo quando, nestas relações, em que educador e educandos, curiosos, se acercam ao objeto de sua análise, os segundos necessitam de alguma informação, indispensável ao prosseguimento da análise, pois que conhecer não é adivinhar; a informação deve ser precedida de certa problematização. Sem esta, a informação deixa de ser um momento fundamental do ato de conhecimento para ser a transferência que dela faz o educador aos educandos. (p. 17)

O princípio também aflora quando Freire orientava os animadores (trabalhadores na alfabetização de adultos) dos Círculos de Cultura sobre como deveriam ajudar os membros da comunidade a sistematizar os conhecimentos derivados de sua prática para desenvolver uma compreensão crítica de suas realidades. Envolvidas mais e mais neste mútuo processo de aprendizagem, (as equipes) se encontram, pois, inseridas num ato de conhecimento de que os sujeitos são, de um lado, elas; de outro, os grupos populares com os quais entram em diálogo. Aprendendo, indiscutivelmente, destes e com estes grupos, as equipes do Centro têm, porém, uma tarefa a que não podem escapar e para a qual precisam se preparar: a de ajudar, no sentido autêntico desta palavra, aqueles grupos, através da análise de sua prática, a ir sistematizando o conhecimento que dela deriva, ultrapassando, assim, a mera opinião sobre os fatos por uma crítica compreensão dos mesmos. (p. 58)

“Tabanca” é “aldeia” em crioulo, a língua franca da Guiné Bissau

DICA

Princípio pedagógico freiriano 2: A consciência crítica está nas comunidades de pessoas, não apenas nos indivíduos Durante todo o trabalho na Guiné-Bissau, os membros da equipe do Idac estavam conscientes da necessidade de envolver as pessoas nas comunidades no desenho e implementação de qualquer esforço de alfabetização. Uma estratégia básica adotada era assegurar que os animadores comunitários formados incluíssem a mobilização da comunidade como etapa introdutória essencial ao seu trabalho com os moradores locais. A mobilização, no entanto, não era apenas para atrair mais participantes para os Círculos de Cultura onde as atividades de alfabetização iriam ocorrer: os aldeões precisavam tornar-se conscientes da importância de seus processos educacionais e tornar-se coproprietários ou codesenvolvedores de tais processos. Segue um exemplo das ideias de Freire, ao explicar o sucesso do trabalho na aldeia de Có. O nascimento do Centro... não é apenas resultado do sonho da equipe de animadores locais com o apoio do Comissariado de Educação. No sonho da equipe havia a convicção de que o Centro não poderia apenas aparecer do nada como um presente dado à comunidade. Portanto, a Comunidade deveria também assumir o sonho da equipe como algo próprio... Isto explica porque os animadores locais fizeram o trabalho político inicial envolvendo comitês de tabancas . Do processo de interpretação do projeto para fazer do Centro uma realidade, a equipe iria mobilizar as pessoas para participar ativamente nos primeiros esforços para sua criação. O trabalho conjunto entre a população local (que forneceu também seus instrumentos de trabalho) e os animadores tornou isso possível para a limpeza inicial do velho quartel do exército e seus campos circundantes (Freire, 1977, p. 49-51).2

A pedagogia em processo aplicada à avaliação: Aprendendo com o trabalho de Paulo Freire na Guiné-Bissau

2  Por algum motivo, este parágrafo não foi incluído na versão em inglês do livro de Freire, intitulada Pedagogy in Process: the letters to Guinea-Bissau (1978). Sua tradução, usada a versão americana desta publicação, foi fornecida pelos autores, a partir da versão original do livro em português (Freire, 1977, p. 49-51).

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Essas ideias também emergem quando Freire explica como o Programa Nacional de Alfabetização deveria ser implementado em cada comunidade. Ele enfatiza que isto precisaria ser feito por meio do estabelecimento de uma parceria com os comitês políticos da comunidade local. Há um ponto que me parece necessário sublinhar, antes de mais nada. É o que diz respeito à “linha de massas” que caracteriza a prática e a visão da alfabetização no país. Com isto o que se pretende, fundamentalmente, é que a alfabetização de adultos, como ato político, em coerência com os princípios do PAIGC, que informam a ação do Governo, se faça com um real envolvimento do povo. Em outras palavras, que os programas de alfabetização de adultos, onde quer que sejam iniciados, de acordo com as prioridades estabelecidas pelo Partido e pelo Governo, sejam assumidos, tanto quanto possível, pelas populações locais. Daí a relação indispensável entre os programas de alfabetização de adultos e os comitês políticos de tabancas e de bairros, de tal maneira que seja, através destes comitês, que os educadores ou animadores, enquanto militantes também, se aproximem das populações. (p. 64)

Princípio pedagógico freiriano 3: A pedagogia da consciência crítica deve ser interativa e dialógica Reconhecer e valorizar o conhecimento do povo, derivado de sua práxis, era um princípio básico que Freire defendia e praticava em quaisquer esforços educacionais em que estivesse envolvido. Ele acreditava que o ato de conhecer exigia que os aprendizes assumissem papéis complementares como criadores, re-criadores e re-inventores do objeto de conhecimento. Eles deveriam ter sua curiosidade deflagrada e ser convidados a aprender mais sobre o conhecimento existente, enquanto, ao mesmo tempo, tentariam criar novos conhecimentos. Essas duas ações inseparáveis não deveriam ser desconectadas, pois, como ele advertiu a equipe do Ministério da Educação a Guiné-Bissau, A separação entre esses momentos reduz, de modo geral, o ato de conhecer o conhecimento existente à sua pura transferência “burocrática”. A escola, não impor-

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ta o seu nível, se transforma em “mercado de saber”; o professor, num especialista sofisticado, que vende e distribui um “conhecimento empacotado”; o aluno, no cliente que compra e “come” este conhecimento. (p. 18)

Ele também indicou que, para se promover uma educação baseada em valores, era necessário um total desligamento do sistema colonial, que via os aprendizes como receptores passivos de um conhecimento padronizado. Uma educação voltada para a concretização de valores como a solidariedade, a responsabilidade social, a criatividade, a disciplina a serviço do interesse comum, a vigilância, o espírito crítico, valores em que se forjou o PAIGC, em todo o processo da luta de libertação, não seria possível se nesta educação os educandos continuassem a ser, como na educação colonial, meros recipientes de “conhecimentos empacotados”, a eles transferidos pelos educadores. Puros objetos, incidências da ação “educativa” dos educadores. (p. 46)

Princípio pedagógico freiriano 4: Integrar reflexão e ação Os membros da equipe do Idac e do Ministério da Educação foram capazes de colocar em prática a ideia de Freire de conectar teoria e prática em todos os esforços pedagógicos, incluindo a alfabetização. Freire acreditava que Amílcar Cabral, o grande líder e mártir da guerra de independência daquele país, fora um exemplo da combinação dialética desses conceitos ao longo da sua vida. Enquanto um homem que viveu plenamente a coerência entre sua opção política e sua prática, a palavra, em Cabral, era sempre a unidade dialética entre ação e reflexão, prática e teoria. Daí que nunca se tenha deixado tentar, de um lado, pelo blá-blá-blá; de outro, pelo ativismo. (p. 23)

A realidade pós-independência do país também demandava que os estudantes guineenses participassem do esforço geral de reconstrução nacional. Portanto, o conteúdo escolar deveria ser moldado com base nas necessidades atuais e concretas e não em aspectos relevantes somente para o poder colonial, como a geografia europeia. Um dos programas cria-


dos como uma tentativa de resolver esse problema era o 'Escola ao Campo’ que consistia em mover temporariamente escolas urbanas, com seus professores e estudantes, para áreas rurais, onde, vivendo em acampamentos, eles podem aprender com os camponeses através da participação em atividades produtivas e também ensinar-lhes algumas coisas, sem de qualquer forma eliminar suas atividades regulares da escola. (p. 25)

O projeto foi expandido e ganhou escala nacional no ano seguinte (1976), contribuindo para promover a integração entre trabalho produtivo e as atividades normais da escola. Freire conclui que em certo momento “já não se estuda para trabalhar nem se trabalha para estudar; estuda-se ao trabalhar. Instala-se aí, verdadeiramente, a unidade entre a prática e a teoria” (p. 25). No entanto, ele salienta que este processo não elimina o pensamento analítico ou crítico sobre a prática, apenas acaba com a desconexão entre esses dois conceitos essenciais. Foram realizados seminários de avaliação após o regresso dos alunos do campo com o objetivo principal de confirmar, aprofundar ou corrigir a compreensão dos alunos dos temas e aspectos discutidos durante as reuniões preparatórias antes da sua partida (p. 25-26).

Princípio pedagógico freiriano 7: A pedagogia da consciência crítica é uma educação cointencional entre os envolvidos, em qualquer papel que estejam Qualquer encontro pedagógico que não se baseia na ideia de aprendizagem mútua entre educadores e educandos é considerado por Freire como uma prática opressiva, já que brota de uma ideologia de dominação. Portanto, desde o início de seus trabalhos na Guiné-Bissau, os membros do Idac construíram sua relação com o Ministério da Educação como uma parceria; não queriam nem ser os principais sujeitos do apoio que haviam sido convidados a oferecer, nem reduzir os guineenses a meros objetos de tal apoio. Eles acreditavam que uma ajuda autêntica é aquela em cuja prática os que nela se envolvem se ajudam mutuamente, crescendo juntos no esforço comum de conhecer a realidade que buscam transformar. Somente numa tal prática, em que os que ajudam e os que são ajudados se ajudam simultaneamente, é que o ato de ajudar não se distorce em dominação do que ajuda sobre quem é ajudado. (p. 15)

Freire e seus colegas sabiam que precisavam estar conscientes de que estavam engajados em uma relação dialética onde aprendiam com as diferentes perspectivas das equipes do Ministério e, ao mesmo tempo, eram proativos ao partilhar seus pontos de vista e conclusões com os parceiros. O Idac e os membros das equipes do Ministério deviam presumir que, ao interagir, eram ao mesmo tempo educadores e educandos. Naturalmente, enquanto participantes do mesmo processo de descodificação da realidade, em diálogo com as equipes nacionais, não poderíamos, de um lado, ser meros espectadores silenciosos; de outro, ser sujeitos exclusivos do ato de descodificar... Na verdade, nos achávamos envolvidos, com as equipes nacionais, num ato de conhecimento, no qual, tanto quanto elas, devíamos assumir o papel de sujeitos cognoscentes... Seria conhecendo e reconhecendo juntos que poderíamos começar a aprender e a ensinar juntos também. (p. 40-41)

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Além disso, a equipe estabeleceu estratégias para realizar análises e sínteses colaborativas sobre a realidade que dizia respeito ao trabalho que realizavam. Era um processo contínuo em que o Idac compartilhava suas percepções e conclusões com os guineenses, que as validavam e devolviam, produzindo novas análises e sínteses. A recapitulação que nos coube a nós iniciar implicava em que tornássemos clara a “leitura” que fazíamos da realidade nacional. Nossa “leitura”, por sua vez, se punha às equipes do Comissariado de Educação como um novo desafio a que deveriam responder, aceitando-a ou recusando-a, totalmente ou em parte; melhorando-a, aprofundando-a. Na síntese se voltava, assim, à análise, para alcançar uma nova síntese. (p. 41)

Ao descrever suas percepções sobre suas visitas ao projeto na aldeia de Có, Freire indicou que o espírito da educação cointentional descrito acima estava claramente presente dentro do projeto. Na unidade dialética entre ensinar e aprender é que a afirmação “quem sabe ensina a quem não sabe” ganha sentido revolucionário. Quer dizer, quando quem sabe, sabe, primeiro, que o processo em que algo aprendeu é social; segundo, quando sabe que, ao ensinar o que sabe a quem não sabe, sabe também que dele ou dela pode aprender algo que não sabia. Este é o espírito que se percebe em Có. (p. 55)

Princípio pedagógico freiriano 8: A consciência crítica é, ao mesmo tempo, processo e resultado final (outcome); método e resultado intermediário (result), reflexão e ação, analítica e orientada para a mudança Desde o início do trabalho do Idac na Guiné-Bissau, Freire e seus colegas tinham claro que a campanha de alfabetização não podia ser um fim em si. Tinha que ser feita com alta qualidade, mas deveria ser direcionada ao principal desafio que o país enfrentava naquela época: reconstruir uma nação a partir do zero. Portanto, todo o esforço deveria centrar-se, ao mesmo tempo, sobre a qualidade da campanha (processo/método) e sobre sua contribuição definitiva para essa jovem nação (resultado final).

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Não teria sentido (...) transformar-se o nascente Programa Nacional de Alfabetização de Adultos, na Guiné-Bissau, em mais uma campanha, nos moldes tradicionais que todos conhecemos, em que, à alfabetização, idealizada, por ingenuidade ou astúcia, se empresta uma força que ela não tem. A questão fundamental que se colocava, pois, não era a de se fazer a alfabetização de adultos por ela mesma ou a de fazê-la como se fosse ela, em si, um instrumento de transformação da realidade, mas a de pô-la a serviço, reinsista-se, da reconstrução nacional. (p. 33)

Princípio pedagógico freiriano 9: Toda pedagogia é política Já de antemão, Freire e seus colegas estavam bem conscientes do papel político que iriam desempenhar na implementação do programa de alfabetização na Guiné-Bissau. Sabiam que seu trabalho não poderia ser apenas o de técnicos em educação. O trabalho, como o percebiam, exigia deles não apenas acreditar, mas também tornar-se militantes da causa principal do país – a reconstrução nacional. Sabíamos que iríamos trabalhar não com intelectuais “frios” e “objetivos” ou com especialistas “neutros”, mas com militantes engajados no esforço sério de reconstrução de seu país... Por isso é que, só enquanto militantes, jamais como especialistas “neutros”, membros de uma missão estrangeira de assistência técnica, poderíamos, na verdade, prestar nossa colaboração, por mínima que fosse. (p. 15)

Ao definir seus papéis, Freire generaliza dizendo que educadores e educadoras são ao mesmo tempo “políticos” e “artistas”. Poderíamos, facilmente, dizer o mesmo dos avaliadores e avaliadoras. “O educador é um político e um artista, que se serve da ciência e das técnicas, jamais um técnico friamente neutro” (p. 20).

Princípio pedagógico freiriano 10: A pedagogia crítica é sempre e fundamentalmente avaliativa O pensamento crítico, avaliativo, estava incorporado a todas as teorias e aos métodos de Freire. Reflexões coletivas e dialógicas sobre o trabalho que estava


sendo realizado, prática que ele chamava de “seminários de avaliação permanente”, era o modus operandi básico para envolver todos os participantes chave e partes interessadas no Programa de Alfabetização da Guiné-Bissau. Seminários de avaliação eram realizados periodicamente pelo Idac, como uma prática comum para engajar as pessoas envolvidas no trabalho, em um diálogo em que eram explorados os diferentes pontos de vista sobre o que estava funcionando bem, o que podia ser melhorado e, principalmente, sobre as razões das falhas, para descobrir o que poderia ser feito para superar as limitações. Em setembro de 1976, quando de nossa mais recente estada no país, após a visita que fizemos à Escola de Có, a qual se alongou, como não podia deixar de ser, a quatro tabancas em volta do Centro, para ver e sentir o extraordinário trabalho de alfabetização de adultos nelas realizando-se, dedicamos oito de nossos dias na Guiné a um seminário de avaliação das atividades levadas a cabo pela Comissão. É interessante reafirmar, pois que disse algo sobre isto antes, que a avaliação que realizamos não é um processo em que tomamos a equipe coordenadora e sua ação como objetos de nossa análise sobre que falássemos, depois, com ares doutorais. Pelo contrário, nós e a Comissão, dialogicamente, tomamos a prática realizando-se como objeto da avaliação e procuramos entender as causas das falhas e estudar as diferentes maneiras de superá-las. (p. 67)

Os aldeões também estavam envolvidos em processos de reflexão crítica sobre suas conquistas e desafios. Freire via aqueles encontros como mais um elemento-chave para ajudar a população rural a começar a pensar para além dos limites de suas próprias aldeias e ganhar consciência sobre seu papel na reconstrução do seu país. A análise crítica por parte dos grupos populares de sua forma de estar sendo no mundo da quotidianeidade mais imediata, a de sua tabanca, e a percepção da razão de ser dos fatos que se dão nela os levam a sobrepassar os horizontes estreitos da tabanca, ou mesmo da zona, para ganhar a visão global da realidade, indispensável à compreensão da própria tarefa de reconstrução nacional. Neste sentido é que uma atividade político-pedagógica como esta e que põe em prática uma teoria do conhecimento dialética é, em si, uma dimensão fundamental do esforço de reconstrução nacional. (p. 59)

A equipe do Idac também adotou estratégias para refletir criticamente sobre o trabalho realizado nos círculos de cultura que tiveram a oportunidade de visitar. Ver e ouvir, questionar e discutir eram as ferramentas básicas usadas para desvelar se o trabalho dos facilitadores locais realmente fazia a diferença, empoderando as pessoas ao ajudá-las a desenvolver a consciência crítica por meio do programa de alfabetização. Obviamente, era necessário que os cinco componentes da equipe3 nos dividíssemos e, assim, visitássemos alguns, pelo menos, dos Círculos de Cultura em funcionamento. Era indispensável, no instante em que nos achávamos, o de ver e ouvir, indagar e discutir, que observássemos como se “moviam”, nos Círculos, os seus

A pedagogia em processo aplicada à avaliação: Aprendendo com o trabalho de Paulo Freire na Guiné-Bissau

3  (N. da T.) Na edição brasileira de 1978, Paulo Freire colocou, neste trecho da p. 31, a seguinte nota de rodapé: “No momento da visita, compunham a equipe Miguel D’Arcy de Oliveira, Claudius Ceccon, Marcos Arruda, Elza Freire e Paulo Freire. Posteriormente, se incorporaram, vivendo em Guiné Bissau, José Barbosa e Gisèle Ouvray e, ao nível de Genebra, Rosiska D’Arcy de Oliveira.”

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participantes, de um lado, os alfabetizandos, de outro, os animadores. Até que ponto sua prática estaria sendo preponderantemente criadora ou, pelo contrário, enfadonhamente repetidora e alienadamente memorizadora. Até que ponto estariam os alfabetizandos apropriando-se de sua palavra, exercitando a sua expressividade, conscientemente envolvidos num ato político ou se, pelo contrário, estariam simplesmente “aprendendo a ler e a escrever”. (p. 31)

A equipe do Idac também fazia seminários internos para avaliar o seu trabalho. Eles tinham uma estratégia sofisticada para considerar criticamente suas perspectivas, contrastando-as com as perspectivas de seus parceiros guineenses. Tal estratégia incluía decodificar determinada realidade através de suas próprias lentes e/ou tentar fazer a mesma reflexão, tomando de empréstimo as análises feitas pelos guineenses. Nos dois primeiros momentos, tomávamos a realidade como uma “codificação” que procurávamos descodificar, ora com os diferentes grupos nacionais, ora entre nós, enquanto equipe visitante, em nossas reuniões de avaliação do trabalho em andamento. Nesta última

hipótese, realizávamos, às vezes, uma dupla tarefa. Em certas ocasiões, tornávamos a realidade mesma como objeto de nossa análise tentando “lê-la” criticamente; em outras, era o próprio esforço anterior de análise da realidade feito com as equipes nacionais o que nos propúnhamos como objeto de nossa reflexão. Desta forma, analisávamos a análise anterior, reconhecendo, assim, em termos críticos, a maneira como havíamos percebido a mesma realidade, objeto de nossa curiosidade. (p. 40)

Seminários de avaliação permanente foram propostos pela equipe do Idac como a estratégia mais importante para possibilitar aos facilitadores/animadores locais refletir mais sobre o seu trabalho, identificando o que não funcionava bem e inventando formas criativas de melhorar a sua prática. Os supervisores também tinham lugar naqueles seminários de avaliação, para ajudar a estimular e a enriquecer as discussões. Tais desacertos, cuja inexistência, esta sim, nos teria surpreendido, considerando-se, sobretudo, o pouco tempo de prática e de formação teórica dos animadores, deveriam ir sendo superados através de seminários de avaliação permanente, coordenados pelos supervisores. Seminários em que estes, fundados na observação constante da prática dos animadores, fariam a avaliação, com eles, dessa prática, reforçando os acertos e procurando sobrepassar os erros. (p. 32)

Freire também defendeu a ideia de que as pessoas deveriam fazer o exercício de tomar distância das suas ações do dia a dia, como forma de fazer reflexões mais profundas e sólidas, rumo à compreensão da realidade. Uma tal tarefa, com o desenvolvimento aprofundado da qual o Centro se vai tornando aquela unidade universitária do povo, (...), implica em que as equipes e os grupos populares tomem a quotidianeidade como objeto de sua reflexão. “Tomar distância” da quotidianeidade em que geralmente se acham “imersos”, atribuindo, não raro, aos fatos que nela se dão uma “legalidade” intocável, é um passo indispensável para a “emersão” dela e seu desvelamento. A condição necessária, porém, para este passo, repita-se, é que a “tomada de distância” da quotidianeidade se dê na análise da prática realizada ou realizando-se e se alongue na prática subsequente, qualquer que seja ela, sempre social. (p. 59)

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Potenciais princípios pedagógicos freirianos adicionais, relevantes para a avaliação, que emergiram da experiência na Guiné-Bissau Nossas análises da experiência de Freire e seus colegas na Guiné-Bissau foram baseadas na revisão de três documentos (Freire, 1977; Freire, 1978; Idac, 1976) e em relatos em primeira mão de um dos membros da equipe do Idac e coautor deste capítulo, Claudius Ceccon, que participou de toda a experiência na Guiné Bissau, com Freire. Acessamos referências e informações diferentes das utilizadas por Patton para desenvolver a lista com seus dez princípios pedagógicos freirianos principais, com relevância para a avaliação (ver Capítulo 3). Portanto, não causa surpresa que tenhamos identificado algumas ideias diversas, mas complementares, que nos inspiraram a discutir dois possíveis acréscimos à lista de Patton.

Possível princípio pedagógico freiriano 11: Experiências não são transplantáveis, elas devem ser reinventadas Freire argumenta que não há modelos que possam ser transplantados para outros contextos, sem uma avaliação crítica, baseada nas características específicas do contexto específico em presença. Se algo que fizéramos no Brasil repetimos tal qual no Chile, foi exatamente não separar, de um lado, o ato de ensinar do de aprender; de outro, não tentar superpor ao contexto chileno o que havíamos feito de maneira distinta nos diferentes contextos brasileiros. Na verdade, as experiências não se transplantam, se reinventam. Porque disto convencidos, uma de nossas preocupações básicas, permanentes, durante todo o tempo em que nos preparávamos, em equipe, para a primeira visita à Guiné-Bissau, foi a de nos vigiar

quanto à tentação de superestimando este ou aquele aspecto desta ou daquela experiência de que antes participáramos, pretender emprestar-lhes validade universal. (p. 16-17)

Ele foi mais longe, ao dizer que essa ideia não significa que não devemos nos beneficiar de outras experiências. Pelo contrário, experiências que já foram realizadas devem ser levadas em conta com seriedade e servir de inspiração para reinventar o que precisa ser feito em uma nova realidade. Em nosso caso, pelo contrário, o que as experiências de que participamos ontem, como as em que nos achamos envolvidos hoje nos ensinaram, é que elas não podem ser simplesmente transplantadas. Podem e devem ser explanadas, discutidas, e criticamente compreendidas por aqueles e aquelas que exercem sua prática em outro contexto, no qual somente serão válidas na medida em que forem reinventadas. Desta forma, a prática realizada ou realizando-se no contexto A só se torna exemplar ao contexto B se os que atuam neste a recriam, recusando, assim, a tentação dos transplantes mecânicos e alienantes. É tão errado o fechamento a experiências realizadas em outros contextos quanto a abertura ingênua a elas, de que resulte a sua importação pura e simples. (p. 93)

A ideia de que, para ser realmente relevante e poder ajudar, a educadora ou o educador não deve trazer modelos preconcebidos e apenas transferi-los diretamente a qualquer outro contexto existente, é totalmente aplicável a avaliadores e avaliações. Especialmente quando lida com programas complexos (e a maioria deles é!), a avaliadora ou o avaliador deve estar preparada(o) para fazer a escuta de cada caso específico e tentar entender sua realidade única – o contexto, os interesses e valores dos diferentes atores envolvidos no jogo, a política em torno do programa, etc. Isso se alinha muito com a descrição que Bob Stake faz de sua conhecida abordagem, a avaliação responsiva (Stake, 2004). Ser responsivo significa orientar-se para a experiência de estar ali enquanto pessoa, sentindo a atividade, a tensão, conhecendo a gente e seus valores. Confia-se fortemente na interpretação pessoal. (A avaliação responsiva) familiariza-se com as preocupações das partes interessadas, dando atenção extra às ações do programa, ao que é único nele e à pluralidade cultural das

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pessoas. Seu plano em geral se desenrola lentamente, com o propósito da avaliação sendo continuamente adaptado e a coleta de dados acontecendo em sintonia com os avaliadores, à medida em que se familiarizam mais com o programa e seus contextos. Algo dessa mesma abertura à experiência, dessa determinação em descobrir “o que está lá fora,” pode ser construído em qualquer avaliação. (Stake, 2004, p. 86)

A avaliação para o desenvolvimento (Patton, 2011), é outro exemplo claro de uma abordagem que foi ou parece ter sido inspirada pelas ideias de Freire, de não tentar criar e aplicar modelos genéricos a diferentes realidades. Ela foi desenvolvida para dar conta de iniciativas emergentes, adaptativas, baseadas em esforços de mudança social ou em outras intervenções, operando em contextos incertos e turbulentos. Patton aponta que “abordagens tradicionais de avaliação não são adequadas a tal turbulência... [elas visam] controlar e prever, trazer ordem ao caos” (p. 5). Por outro lado, “a avaliação para o desenvolvimento adapta-se às realidades de dinâmicas complexas não lineares, ao invés de tentar impor ordem e certeza em um mundo incerto e desordenado” (p. 5).

Possível princípio pedagógico freiriano 12: Enraíze qualquer esforço pedagógico nos reais interesses e necessidades das pessoas, assim este esforço se tornará mais eficaz Freire acreditava que um dos aspectos mais cruciais para qualquer esforço de alfabetização ser bem-sucedido era conectar o processo de aprendizagem aos principais interesses e necessidades dos educandos. Seu método de alfabetização de adultos baseava-se no estabelecimento de palavras geradoras que os alunos eram convidados a dividir para criar novas palavras através de diferentes combinações de sílabas (Freire, 2015). Para que esse processo seja relevante para os aprendizes, as palavras geradoras, bem como as novas palavras criadas, devem ser sempre diretamente relacio-

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nadas a um problema que estiveram enfrentando. Desta forma, o processo de aprendizagem terá um significado, será útil para as pessoas e, portanto, terá maiores chances de sucesso. Ao longo de seu trabalho na Guiné-Bissau, Freire e seus colegas adotaram estratégias para garantir que os esforços de alfabetização implementados em cada aldeia se baseassem nos princípios básicos acima mencionados. Eles se envolveram em várias conversas com representantes dos ministérios da Educação, Agricultura e Saúde, sobre como conectar o programa de alfabetização a outros esforços em curso, envolvendo a produção e a saúde. Esta estratégia iria garantir exatamente o que Freire defendia em seu método: o programa de alfabetização seria mais eficaz em ajudar os alunos a dominar a linguagem, entrando em cena como uma parte sistêmica e relevante dos principais esforços para a reconstrução do país (o problema em presença). Portanto, o que se colocava ao Comissariado de Educação, como lucidamente anotava Mário Cabral, seria estar presente, através de projetos de alfabetização de adultos, a toda iniciativa do Comissariado de Agricultura (...) e a de incluir, nos programas de alfabetização, aspectos ligados à medicina preventiva, de acordo com o Comissariado de Saúde (...). Simultaneamente com o aprendizado da escrita e da leitura, os alfabetizandos deveriam ser convidados a pensar sua prática e as finalidades que a motivam no combate, por exemplo, aos mosquitos, na luta contra a malária, ou chamados ao debate em torno das vantagens do trabalho baseado na ajuda mútua sobre o trabalho de caráter individualista, na criação da cooperativa. Na alfabetização e educação de adultos não havia espaço para categorias exclusivas de trabalho e aprendizagem. As preocupações de todas as diferentes Comissões faziam parte da vida das pessoas e podiam ser incorporadas a seu processo de aprender e crescer. (p. 34-35)

Este princípio pedagógico provisório está estreitamente alinhado com alguns aspectos muito importantes da disciplina da avaliação. Conectar os propósitos de uma avaliação com as reais necessidades e prioridades das partes interessadas ou dos que vão utilizá-la é essencial para assegurar que ela será relevante para as principais questões de interesse e, portanto, aumentará o seu uso para informar decisões e/


ou promover a ação (Patton, 1997; Bamberger, Rugh e Mabry, 2012; Davidson, 2012). Além disso, Scriven (2013) vai um pouco além, indicando que as necessidades dos usuários ou participantes devem ser a principal fonte dos valores ou dos critérios que serão usados para determinar o mérito e o valor de um programa, ou o que quer que esteja sendo avaliado.

qualidade, relevância e utilização, os propósitos das avaliações devem basear-se nas necessidades e prioridades das partes interessadas, que também devem servir como fonte primária dos valores e critérios a serem aplicados na avaliação.

Conclusão

BAMBERGER, M.; RUGH, J.; MABRY, L. (2012). Real World Evaluation: working under budget, time, data, and political constraints. (2 ed.) Thousand Oaks, CA: Sage.

Mesmo tendo sido frustrante no final, devido às dificuldades políticas que impediram a continuidade da experiência de Freire na Guiné-Bissau, é justo dizer que ela foi muito rica e esclarecedora. Foi um exemplo único de aplicação, adaptação e reinvenção de alguns dos aspectos mais notáveis da pedagogia de Freire. Ela corroborou a maioria dos princípios pedagógicos com relevância para a avaliação estabelecidos por Patton (ver capítulo 3) e iluminou também dois novos princípios complementares provisórios. Freire nos ensina, por meio do caso da Guiné-Bissau, que a pedagogia está sempre em processo. O ato de ensinar e aprender é constantemente moldado pelos contextos políticos, econômicos, sociais e culturais e por quem está desempenhando os papéis de educadores e educandos. Um aspecto, no entanto, precisa, ao mesmo tempo, estar presente: o processo pedagógico deve sempre estar enraizado nas necessidades das pessoas e em seus interesses básicos, conectados a uma agenda de mudança social. Essas ideias podem ser extrapoladas para a arena de avaliação – e foram, por diferentes e importantes autores, embora, às vezes, não explicitamente. As avaliações são empreendimentos complexos, profundamente influenciados pelo contexto, bem como pelas pessoas envolvidas. Modelos e abordagens realmente não podem ser transferidos diretamente para outros cenários ou até mesmo para o mesmo cenário em tempos diferentes, dadas as alterações no contexto que sempre acontecem. Cada avaliação é um processo único e precisa ser tratada dessa maneira. Além disso, para garantir

Referências

BRASIL (1964). Institui o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura e dá outras providências. Decreto n. 53.465, de 21/01/1964. Diário Oficial da União, Seção 1, 22/1/1964, p. 629 (Publicação Original). DAVIDSON, E.J. (2012). Actionable evaluation basics: getting succinct answers to the most important questions [Kindle iPad version] (2nd version; revised September 25, 2012). Retrieved from http://www.amazon.com.br. FETTERMAN, D.M. (2001). Foundations of empowerment evaluation. Thousand Oaks, CA: Sage. FREIRE INSTITUTE. (n.d.) Concepts used by Paulo Freire. Burnley, United Kingdom Freire Institute. Retrieved from http://www.freire.org/component/easytagcloud/118-module/ conscientization/ FREIRE, P. (1970). Pedagogy of the oppressed. New York: Herder & Herder. FREIRE, P. (1977). Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FREIRE, P. (1978). Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. (2 ed). Rio de Janeiro: Paz e Terra. FREIRE, P. (1978). Pedagogy in process: the letters to Guinea Bissau. New York: The Seabury Press. FREIRE, P. (2015). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. HOUSE, E.R.; HOWE, K.R. (1999). Values in evaluation and social research. Thousand Oaks, CA: Sage Publications. IDAC (Institute for Cultural Action). (1976). Guinea-Bissau: reinventing education. Document Idac Series 11/12. Geneva, Switzerland: Institute for Cultural Action. PATTON, M.Q. (1997). Utilization-focused evaluation: the new century text. (3 ed.). Thousand Oaks, CA: Sage. PATTON, M.Q. (2011). Developmental Evaluation: applying complexity concepts to enhance innovation and use. New York, NY: The Gilford Press. PELANDRÉ, N.L. (2002). Ensinar e aprender com Paulo Freire: 40 horas, 40 anos depois. São Paulo: Cortez. SCRIVEN, M. (1994). Evaluation thesaurus (4 ed.). Newbury Park, CA: Sage. SCRIVEN, M. (2013). Key Evaluation checklist (KEC). Retrieved from http://www.michaelscriven.info/images/ KEC_3.22.2013.pdf STAK E, R.E. (2004). Standards-based and responsive evaluation. Thousand Oaks, CA: Sage.

A pedagogia em processo aplicada à avaliação: Aprendendo com o trabalho de Paulo Freire na Guiné-Bissau

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PARTE

Exemplos da atual influência de Freire na avaliação



Avaliação pedagógica transformadora:

Princípios freirianos praticados em escolas públicas brasileiras Vilma Guimarães

N

o Brasil, a avaliação em geral praticada nas escolas vem promovendo o fracasso dos mais pobres, que acabam por interromper os estudos, convencidos de que são incompetentes. Em contraste, centenas

de escolas espalhadas pelo Brasil adotam uma pedagogia da avaliação cooperativa e dialógica, parte de uma abordagem baseada no pensamento freiriano, a Metodologia Telessala. A autora deste capítulo participou da criação e da implementação desta Metodologia – um vasto empreendimento coletivo que contou, em vários momentos, com a participação pessoal de Paulo Freire. As páginas seguintes, além de mostrar aspectos pouco conhecidos da trajetória profissional de Freire, oferecem uma resposta ao questionamento com que

VILMA GUIMARÃES é Gerente Geral de Educação e Implementação da Fundação Roberto Marinho no Rio de Janeiro. É responsável pela concepção pedagógica de inovações tecnológicas e pela implementação dos projetos educacionais da Fundação. E foi professora, diretora escolar e diretora do Departamento de Tecnologia Educacional da Secretaria de Educação de Pernambuco.

Michael Patton encerra o Capítulo 3: “Qual é a sua pedagogia da avaliação?” A análise do enfoque avaliativo da Metodologia Telessala, mostra que a pedagogia nele implícita ensina aos estudantes, antes discriminados pela escola conservadora, a acreditar em sua inteligência, criatividade e poder de mudar suas vidas e o mundo.

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Incluir para transformar Metodologia Telessala em cinco movimentos

FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO

1  A Metodologia Telessala foi sistematizada no livro Incluir para Transformar: Metodologia Telessala em cinco movimentos (Guimarães, 2013). O nome Telessala, formado pela conjunção de “Tele”, televisão e “Sala”, o espaço físico, justifica-se, pois a abordagem tornou-se popularmente conhecida por promover o uso da televisão e do computador na educação presencial, num tempo em que ainda era tímida a presença das TICs nos sistemas públicos de ensino. 2  A Fundação Roberto Marinho foi criada em 1977 pelo jornalista Roberto Marinho, fundador das organizações que hoje formam o Grupo Globo, movido por seu compromisso com a responsabilidade social. A crença deste mentor de que a comunicação pode ser um instrumento de mudança social foi mantida por seus herdeiros, os mantenedores da Fundação. Esta instituição cria, desenvolve e implementa, em todo o Brasil, projetos em educação, patrimônio histórico e cultura.

Introdução: Contexto pessoal Peço licença para começar com uma nota pessoal, que vai justificar o foco de minhas reflexões neste capítulo: o contraste entre a pedagogia colonizadora embutida na cultura de avaliação, que ainda prevalece na maioria das instituições escolares, e a possibilidade libertadora da pedagogia freiriana, evidenciando o quanto inovações como a “Metodologia Telessala”1 podem favorecer uma avaliação transformadora, ao afirmar a humanidade dos cidadãos e contribuir na construção da equidade e da justiça social.

gogia da avaliação?”. Ao fazer isso, compartilharei uma história que poucos conhecem: como o encontro de pessoas e instituições comprometidas com a mudança social moldou gradativamente uma abordagem que desenvolve o pensamento crítico avaliativo, e expressa, em seus componentes, os princípios freirianos relevantes para uma pedagogia da avaliação transformadora, conceituados e discutidos por Patton no Capítulo 3 deste livro.

Um olhar sobre a avaliação educacional que exclui e sobre sua alternativa

Sou o que Schon (1983) denomina uma “praticante reflexiva” – uma educadora que segue o mote do grande Galileu Galilei: “Pensar e agir, sobre o agir de novo pensar, e assim caminhar.” Ainda adolescente, experimentei a mesma atmosfera político-cultural na qual Paulo Freire viveu. Conheci suas ideias e os Círculos de Cultura que ele estava organizando e decidi agir de acordo. Desde os anos 1970, quando atuei como diretora em escolas públicas do estado de Pernambuco, contestei na prática os modelos dominantes de educação e avaliação, apresentando alternativas a eles. Duas décadas mais tarde, como gerente de Educação da Fundação Roberto Marinho,2 participei da criação e da implementação da “Metodologia Telessala”. Um vasto empreendimento coletivo que, em diversas ocasiões, contou com a participação pessoal de Paulo Freire e, depois de sua morte, em 1997, com o envolvimento do Instituto que leva seu nome (ver Capítulo 1 neste volume).

Em muitos países do chamado “Sul Global”, durante demasiado tempo, a avaliação educacional permaneceu atrelada a um modelo educativo colonizador, centrado na transmissão de informações desconectadas da prática, a serviço da manutenção de um status quo opressivo. Nele se manifesta a concepção bancária da educação, definida e criticada por Freire em sua Pedagogia do Oprimido. A educação colonizadora se caracteriza por desconsiderar o saber próprio de cada povo, de cada comunidade. Tenta uniformizar a rica diversidade cultural do planeta e de cada região dentro dos diferentes países. Centrada na educação escolar, seu propósito não é possibilitar a criação de novos saberes, e sim estimular a repetição do conhecimento produzido em outros contextos, mantendo a dependência, a submissão. A cultura educacional do Brasil está, ainda, impregnada desse paradigma colonizador.

Quero discutir aqui esta metodologia que, desde 1995, é adotada na maioria dos estados brasileiros, como política pública educacional. Ela vem sendo usada com êxito em escolas públicas e outras instituições, como hospitais, presídios e empresas, fazendo da educação “um ato de amor, e por isso de coragem, que não teme o debate, a análise da realidade, a discussão criadora” (Freire, 1969, p. 95). Nas páginas que seguem tentarei responder à questão proposta por Patton: “Qual é a sua peda-

Coerente com os princípios de uma educação colonizadora, a avaliação tradicional estabelece, de cima para baixo, padrões abstratos aos quais todos devem se adequar. Abomina as diferenças e trata os erros dos estudantes como desvios da norma, que devem ser corrigidos e punidos. O sistema educacional, como o sistema penal, alimenta a crença de que a punição tem efeito educativo, contribuindo para que a pessoa se recupere e persuadindo-a a não repetir o erro. Nas escolas, a punição se dá por meio

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das notas baixas e da reprovação. Reprovar significa “desaprovar” e sua etimologia remete ao termo provação, ou seja, sacrifício. Pesquisas mostram, no entanto, que punir não educa ninguém; o que gera a mudança é um processo educacional integral, humanizador. Quase todas as crianças e jovens reprovados na escola brasileira tendem a piorar seu desempenho a cada ano de repetência. Sua autoconfiança e autoestima são prejudicadas. São, em geral, os filhos das famílias mais pobres, negros, indígenas, trabalhadores. Sentem-se rejeitados pela escola e a abandonam, sem concluir a educação básica, à qual têm direito.

A essência de uma avaliação transformadora Em suas memórias de aluno da “escola pública para poucos” (anos 1930), Paulo Freire lembra, em especial, de um professor que não usou a avaliação para humilhar e domesticar as crianças, mas para validar sua competência e estimulá-las a prosseguir aprendendo. Freire, então um menino retraído, sentindo-se “feio e menos capaz que os outros”, submeteu timidamente uma redação à apreciação do mestre. Depois de ler o texto, o professor ficou ao lado do futuro autor da Pedagogia do Oprimido e comunicou, apenas com o olhar e o gesto, que ele havia produzido algo de valor e tinha um grande potencial (Freire, 2008, p. 43). A atitude do professor apontava para a essência de uma avaliação transformadora, que – feita com o aprendiz, a seu favor, nunca contra ele – contribui para empoderá-lo, para incrementar sua capacidade de agir. O adolescente inseguro cresceu para, no início dos anos 1960, criar o revolucionário método que alfabetizaria, em 40 horas, 300 camponeses na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte, convidando-os a “ler primeiro o mundo, depois a palavra” – o que lhe valeu a prisão e o exílio em 1964!

DICA No início dos anos 1960, no contexto da Campanha de Alfabetização de Adultos deflagrada pelo Governo Federal (João Goulart), havia encontros, em geral realizados com os participantes dispostos em círculo, em que Paulo Freire, sua equipe e os camponeses, dialogavam sobre situações vividas pelos trabalhadores rurais na região. Essas reuniões eram chamadas Círculos de Cultura. Usavam-se imagens para instigar uma reflexão sobre a realidade – e as pessoas primeiro aprendiam a ler o mundo, depois, as palavras.

Inspirados por Freire Nos anos em que Freire foi forçado a viver no exterior (regimes autoritários temem os que ensinam a pensar), eu e outros jovens líamos às escondidas seus livros Educação como Prática da Liberdade (1967) e Pedagogia do Oprimido (1968). Àquela altura já estava bem claro para mim e para muitos colegas que a abordagem freiriana não era apenas um método de alfabetização de adultos: era também uma nova teoria da educação, que colocava em xeque a escolarização tradicional opressiva. Embora nos anos 1970 a escola fosse considerada a principal representante do Estado capitalista, um lugar onde a educação popular não poderia florescer, sempre acreditei nas contradições que possibilitam nela introduzir e desenvolver práticas que estejam a serviço da maioria da população à qual serve. Assim, como diretora de escolas públicas situadas em comunidades pobres próximas a Recife, Pernambuco,3 minha equipe e eu começamos a colocar em prática o que Paulo Freire ensinava a respeito da indissociável relação entre educação, comunicação e cultura; sobre diálogo como fundamento das interações educativas; e sobre a importância de despertar a consciência crítica das pessoas para o fato de que não são apenas produtos, mas produtores de cultura. Apesar do governo ditatorial em que vivía-

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3  Escola Frei Caneca, no município de Camaragibe e Escola Polivalente Compositor Antônio Maria, em Olinda.

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4  Embora Freire tenha decidido deixar a Secretaria Municipal de Educação em 1991, o Projeto Freiriano na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo estendeu-se até 1993, com seus amigos Mario Sergio Cortella como secretário e Moacir Gadotti como chefe de Gabinete.

mos, processos educativos populares e democráticos foram implantados nessas escolas. Foi então que nos demos conta de que os instrumentos de avaliação tradicionais não conseguiam captar o quanto os estudantes estavam construindo de conhecimentos, novas atitudes, comportamentos e potência para agir de forma transformadora. Refletimos sobre a essência da avaliação presente nos Círculos de Cultura de Paulo Freire – os próprios camponeses se autoavaliavam num coletivo que incluía os coordenadores dos Círculos e descobriam o que haviam aprendido. Então, intuitivamente, chegamos à conclusão de que, para ser coerente com uma abordagem freiriana, a avaliação deveria basear-se no diálogo.

Dessa maneira, criamos novas formas de avaliar, para além da prova escrita ou oral. Os estudantes apresentavam aos pais e à comunidade o que haviam aprendido, utilizando as mais diferentes linguagens, como arte, dança e teatro, e recebiam feedback. Organizávamos conselhos de classe, com participação dos pais e representação dos estudantes, para discutir os resultados alcançados. As crianças e jovens eram percebidos de forma holística, como um todo em que as dimensões cognitiva, emocional e espiritual são indissociáveis. Portanto, íamos muito além de atribuir valores numéricos de 0 a 10, para marcar o progresso do aluno. O cerne da questão era ajudar o estudante a se dar conta do quanto já havia caminhado em direção aos seus objetivos e infundir-lhe confiança para seguir em frente.

Nova oportunidade Em 1979, graças à abertura democrática que garantiu anistia aos presos políticos do regime, Paulo Freire pôde retornar ao Brasil e nossos caminhos voltaram a se cruzar. Mas antes de relatar este reencontro, ligado à história da Metodologia Telessala, quero deixar aqui registrado que Paulo Freire foi pioneiro na luta por neutralizar, nos sistemas públicos de ensino brasileiro, a avaliação que ensina aos mais pobres que eles são responsáveis por sua miséria, pois “não conseguem aprender”. A experiência de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (1989-1991)4 demonstrou que é possível realizar, sob a égide do estado, uma educação popular – caracterizada por uma política emancipatória, norteada pelos princípios do diálogo, da participação cidadã e da gestão democrática (ver o Capítulo 1 deste volume). Neste contexto, os educadores foram convidados a repensar suas concepções sobre a avaliação e torná-la parte intrínseca do processo de aprendizagem, não só dos estudantes, mas deles próprios e outros líderes educacionais.

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Como estratégia para se contrapor aos danos causados pela avaliação de caráter seletivo e excludente, o ensino fundamental passou a ser organizado não mais em séries, mas em ciclos de aprendizagem em progressão continuada, no decorrer dos quais o aluno não poderia ser reprovado (Saul, 2009). Alguns anos depois, inspirando-se no que Paulo Freire havia feito na capital, o ensino fundamental do estado de São Paulo, então de oito anos, passou a ser organizado em dois ciclos de aprendizagem em progressão continuada em todo o estado: 1ª a 4ª série, e 5ª a 8ª série. No decorrer destes ciclos a criança, embora continuamente avaliada, não poderia ser retida por “mau desempenho”. No início de 1998, o Conselho Estadual de Educação de São Paulo adotou o sistema de ciclos para as escolas de ensino fundamental paulistas, públicas e privadas.

Fundação Roberto Marinho. Também recorríamos a outros programas televisivos, para fortalecer a prática pedagógica dos educadores da escola pública, atuando “do sertão ao cais”6 ao implantar uma formação em rede por meio da televisão. Além disso, o conjunto de materiais do Telecurso propiciava educação à distância para jovens que, devido às já referidas características da escola e da avaliação tradicionais, não conseguiam completar a educação básica no devido tempo. Este recurso possibilitava que realizassem, com qualidade, seus estudos nos níveis primário e secundário (atuais ensino fundamental e médio).

Paulo Freire e a Metodologia Telessala

A parceria entre o Departamento de Tecnologia Educacional da Secretaria de Educação e a Fundação Roberto Marinho acabou resultando em um convite, aceito, para que eu assumisse a Gerência de Educação da entidade. Em 1992, nesta nova posição, construí uma equipe a partir dos contatos profissionais realizados durante minha carreira no sistema público de ensino de Pernambuco – todos unidos em torno da abordagem articulada em livros de Freire como Educação como Prática da Liberdade (1967) e da Pedagogia do Oprimido (1968).

O trabalho coletivo, pressuposto da educação como prática social, é um princípio central na obra de Freire. E assim foi a construção da Metodologia Telessala: nasce de um processo coletivo, orgânico e evolutivo, que foi se desenvolvendo ao longo do tempo, antes mesmo que tivéssemos consciência disso. Sua pré-história se iniciou quando Silke Weber, educadora que havia colaborado com Paulo Freire nos Círculos de Cultura, foi nomeada Secretária de Estado da Educação de Pernambuco (1987-1990). Paulo Freire tornou-se consultor do Departamento de Educação de Jovens e Adultos daquela Secretaria na mesma época em que assumi a direção de seu Departamento de Tecnologia Educacional. Ali, com uma equipe de profissionais comprometidos, passamos a explorar o potencial educativo da televisão e dos vídeos. Inicialmente, nós os utilizamos como tecnologia para a formação presencial e à distância dos educadores em Pernambuco. Aos poucos, com base em Freire, desenvolvemos uma estratégia de leitura de imagem, que passamos a adotar quando utilizávamos o Telecurso.5 Este, na época, constituía-se em um conjunto de programas de vídeo e livros-texto para Educação à Distância, criado pela

Estava pronto o cenário para o meu reencontro com Paulo Freire, que passou a assessorar o Departamento de Tecnologia Educacional, inclusive emprestando sua imagem e sua fala aos programas teleducativos que produzíamos.

5  O Telecurso, reconhecido pelo Ministério da Educação brasileiro (MEC), é a maior e mais significativa realização da Fundação Roberto Marinho na área da Educação. Até 2015, sete milhões de estudantes haviam completado o seu programa, que é adotado na maioria dos estados brasileiros. 6  Esta expressão, muito usada em Pernambuco, um estado costeiro, significa uma ação que abrange toda a região, do interior (sertão) ao litoral (as praias, onde está o cais).

Já na Fundação Roberto Marinho, acompanhei a volta de Paulo Freire e um grupo de novos e antigos colaboradores, a Angicos, no Rio Grande do Norte. Trinta anos haviam se passado desde sua experiência inovadora de alfabetização de adultos. O registro do emocionante reencontro de Freire com homens e mulheres idosos, que haviam participado dos Círculos de Cultura como aprendizes e coordenadores, resultou em quatro programas para a televisão, da série Globo Ciência. A presença de um grupo inspirado por ideias progressistas na Gerência de Educação da Fundação Roberto Marinho possibilitou que seus materiais educativos passassem a desempenhar um papel

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Esta metodologia usa o princípio pedagógico freiriano 3, identificado por Patton, segundo o qual “a consciência crítica é interativa e dialógica” (ver Capítulo 3 deste volume). Por meio dela, são construídas comunidades cooperativas de aprendizagem, nas quais a tecnologia educacional – representada pelos vídeos e livros do Telecurso – é utilizada no contexto de uma abordagem problematizadora. Com sua proposta pedagógica voltada para o mundo do trabalho, para o desenvolvimento de competências e para a formação de cidadania, a Metodologia Telessala iria, comprovadamente, diminuir, nos locais em que foi implementada, a evasão escolar, eliminar a repetência e incrementar o desempenho do discente e do docente, já que a aprendizagem do primeiro reflete e influencia a aprendizagem do segundo. Além disso, ao promover o pensamento crítico dos envolvidos, levando a projetos de mudança rumo a realidades mais justas e sustentáveis, a Metodologia Telessala possibilitaria que princípios das teorias freirianas fossem colocados em prática em sistemas públicos de ensino de norte a sul do Brasil.

maior. Em 1995, era lançada uma nova versão dos livros e vídeos do Telecurso, com conteúdos mais abrangentes, para o ensino fundamental, médio e profissionalizante. Também foi criada uma estrutura que possibilitava implementar projetos educacionais com uso dos materiais do Telecurso. Entre 1996 e 1997, Freire aceitaria o convite da Fundação Roberto Marinho para criar um Telecurso – que iria se chamar Tecendo o Saber – voltado para jovens e adultos que, embora não fossem analfabetos, precisavam cursar as séries iniciais do ensino fundamental. Tendo coordenado e acompanhado a concepção e a produção dos materiais da nova edição do Telecurso, minha equipe e eu pudemos sistematizar o caminho para implementar seu uso presencial por educadores interessados: a Metodologia Telessala.

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O livro Incluir para Transformar: Metodologia Telessala em cinco movimentos apresenta as bases teóricas da abordagem, que abrangem os conceitos de hegemonia cultural de Gramsci, pensamento complexo de Edgar Morin, pedagogia da Terra de Moacir Gadotti, e destaca as concepções de educação e cultura de Paulo Freire como o seu eixo articulador (Guimarães, 2013, p. 86-115). O mesmo livro identifica os componentes da Metodologia, que se inter-relacionam de forma sistêmica, para produzir aprendizagem e mudança (p. 5-6). Destacarei alguns deles: • Organização curricular. • Produção e uso de materiais. • Organização de situações de aprendizagem. • Formação de educadoras e educadores. • Avaliação. No restante deste capítulo, vou apresentar exemplos da vinculação destes componentes aos princípios freirianos identificados por Patton no Capítulo 3


deste volume. Cada componente individual da Metodologia pode expressar todos os princípios, dada a articulação e interdependência tanto dos princípios freirianos quanto dos componentes enfocados. No entanto, por motivos de espaço, na maioria dos casos vou limitar-me a iluminar um componente por princípio ou grupo de princípios.

A Metodologia Telessala e os princípios freirianos como pedagogia da avaliação Organização curricular vs Princípio 1. Usar o pensamento avaliativo para abrir, desenvolver e cultivar a consciência crítica (promover conscientização) O pensamento avaliativo examina os pressupostos das informações recebidas, considera suas contradições e inconsistências, articula valores e lida com a complexidade (ver Capítulo 3). Com isso, alimenta a consciência crítica, que permite às pessoas compreender a própria realidade, para melhor atuar sobre ela. A organização curricular do Telecurso e da Metodologia Telessala alinha-se a este princípio, favorecendo o pensamento avaliativo, ao lidar com o conhecimento em uma perspectiva interdisciplinar e de contextualização. “Os eixos temáticos de cada módulo do trabalho pedagógico articulam-se para construir o sujeito que pensa, que se percebe, conhece o seu entorno e nele interfere, descobre-se produtivo e vive a sua condição de cidadão” (Guimarães, 2013, p. 118). Tais eixos são norteados por questões a serem respondidas pelos estudantes na perspectiva de cada disciplina: Quem sou eu? (Módulo 1); Onde estou? (Módulo 2); Para onde vou? (Módulo 3); e Qual a minha missão no mundo? (Módulo 4).

DICA As pessoas se educam entre si, em comunidade. Existem muitas formas de conectar as pessoas de um grupo, transformando-o em uma comunidade de aprendizagem. Esta, por sua vez, deve descobrir estratégias para se articular com a comunidade mais ampla, ao promover ações transformadoras. Veja um exemplo: “Para inspirar os estudantes a se perceberem como produtores e produtos da cultura de sua região, integrando-a aos projetos educacionais que desenvolvem, são editados os Cadernos de Cultura, que “expõem a arte, os costumes, as crenças e as gentes dos Estados nos quais a Metodologia Telessala é experimentada (...)” (Guimarães, 2013, p. 132).

Produção e uso de materiais educativos vs Princípio 2. A consciência está nas comunidades de pessoas e não apenas nos indivíduos “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. As pessoas se educam entre si, em comunidade, mediatizadas pelo mundo”, diz a Pedagogia do Oprimido (Freire, 2015, p. 95). Ao se educar entre si, elas desenvolvem consciência crítica e se humanizam cada vez mais. Na Metodologia Telessala, a produção e o uso de materiais educativos, em especial os vídeos (teleaulas) e publicações que os acompanham, respeitam este princípio, pois seu formato leva à superação do isolamento, convidando o grupo de estudantes a fazer uma leitura coletiva da realidade. Cada teleaula de 15 minutos representa uma codificação da realidade dos estudantes, semelhante à realizada em 1993, a pedido de Freire, pelo artista pernambucano Brennand. Este artista produziu pôsteres nos quais codificou visualmente conceitos básicos, relacionados às experiências vividas pelos camponeses que participavam dos Círculos de Cultura. Essas imagens eram o elemento que deflagrava a análise e problematização da realidade pelo grupo (a descodificação, facilitada por um educador popu-

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7  Cenatexto é a história/a narrativa por meio da qual se problematiza o tema a ser discutido pelo grupo em determinada aula.

lar). Na Metodologia Telessala, os vídeos codificam, por meio da cenatexto,7 situação-problema cujo objetivo é instigar a curiosidade e provocar a reflexão. Ao ser descodificada coletivamente pelo grupo, possibilita, por exemplo, que tomem consciência de seus valores e crenças, muitas vezes preconceituosos, ou das forças políticas e sociais que estão por trás de situações injustas consideradas “naturais”. (dica na página anterior)

Organização de situações de aprendizagem vs Princípios 3, 5 e 6. A pedagogia da consciência crítica deve ser interativa e dialógica; Valorizar e integrar o objetivo e o subjetivo; Integrar pensamento e emoção Desenvolver o pensamento crítico, capaz de superar visões estereotipadas e preconceituosas da realidade que perpetuam a opressão, exige superar a concepção bancária da educação e compreender que, apenas por meio do diálogo entre diferentes, a aprendizagem se dá. O diálogo cria a intersubjetividade, que supera a dicotomia entre objetividade e subjetividade, entre pensamento e emoção, gerando o conhecimento e o afeto, ambos frutos de interações humanas. Os princípios freirianos 3, 5 e 6 podem ser reconhecidos na organização de situações de aprendizagem da Metodologia Telessala.

DI CA “Na Metodologia Telessala, o lugar do afeto é tão importante quanto o da ciência: o ambiente acolhedor favorece a construção do conhecimento científico, pois o acolhimento se reflete no reconhecimento e valorização das diferenças, no respeito às crenças e valores do outro, facilitando a troca de saberes essenciais à reelaboração de novos conceitos” (Guimarães, 2013, p. 139).

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O professor, atuando como mediador pedagógico, utiliza tecnologia e diversos materiais educativos, com o objetivo de promover o diálogo entre todos os membros do grupo e tornar a aprendizagem mais afetiva, efetiva e intensa. A rotina diária inclui a organização do grupo em equipes, dinâmicas de integração, problematização, leitura de imagens, trabalho em equipe, socialização das aprendizagens e avaliação das mesmas. Um dos procedimentos mais fecundos para trabalhar ao mesmo tempo as competências socioemocionais e intelectuais da turma é dividi-la em equipes, de forma que cada uma fique responsável por um aspecto do trabalho pedagógico. Estas equipes mudam periodicamente de função, portanto todos têm a experiência de exercer cada uma delas. A equipe de Socialização realiza dinâmicas que promovem a integração, a solidariedade, a partilha e a afetividade, buscando fortalecer vínculos. A de Coordenação ajuda no planejamento e organização das aulas, para que materiais e tempo sejam bem utilizados. Cabe à equipe de Síntese a tarefa de sistematizar e apresentar os pontos mais importantes das aprendizagens do dia. E há também a equipe de Avaliação. Ela é incumbida de promover, ao final das atividades, um momento de reflexão coletiva, tomando como focos de observação a temática trabalhada, o material utilizado, as dinâmicas desenvolvidas, a atuação do professor mediador e a participação dos estudantes.

Formação de professores(as) vs Princípio 4. Integrar reflexão e ação Patton ressalta que, para Freire, a reflexão dirige-se para a ação e a ação é o conteúdo da reflexão. Em contextos educativos, o estudante deve ser constantemente convidado a refletir sobre as atividades que desenvolve, seja na escola ou fora dela. A Formação de Professores(as), na Metodologia da Telessala norteia-se por esse princípio. O processo de aperfeiçoamento profissional dos educadores prevê que desenvolvam as mesmas competências que precisam desenvolver nos estudantes e se transformem em praticantes refle-


xivos. Em encontros semanais ou quinzenais, elas e eles avaliam a prática e planejam suas aulas. “Nestes encontros, dialogam e refletem sobre suas práticas, sobre os resultados alcançados (...). Ao revisitar sua prática de forma coletiva e sistemática, podem identificar as necessidades de aprendizagem dos estudantes e as suas próprias” (Guimarães, 2013, p.141). Nessa caminhada, responsáveis pelo componente formação de professores, como Madalena Freire (educadora e filha de Paulo Freire), vêm produzindo textos teóricos que convidam o professor a se tornar educador pensante, pesquisador do seu ensinar, capaz do exercício disciplinado da reflexão sobre a prática e a teoria, que se alia ao exercício da observação, da avaliação e do planejamento. (cf. Guimarães, 2013, p. 139)

Avaliação vs Princípio 10. A pedagogia crítica é sempre e fundamentalmente avaliativa Em uma educação problematizadora, os educandos “desenvolvem o seu poder de captação e de compreensão do mundo, que lhes aparece, em suas relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade que se transforma, em processo” (Freire, 2015, p. 100). Ou seja, eles desenvolvem a consciência crítica, por meio de um contínuo refletir sobre o que pensam, sentem e fazem, que nada mais é que comparar teoria e prática, discutir e questionar critérios de julgamento – enfim, avaliar. A avaliação que se pratica na Metodologia Telessala expressa uma pedagogia crítica, pois ensina a pensar e a pensar em grupo, de forma dialógica, participativa. A avaliação, na Metodologia Telessala, é dialógica, horizontal, participativa, transparente e contínua – um convite a todos os envolvidos no processo educativo para que desenvolvam o autoconhecimento e apoderem-se da responsibilidade de promover a própria aprendizagem. Ela é parte integrante da reflexão sobre a prática, indispensável ao incremento

da aprendizagem e à mudança. Trata-se de um processo formativo contínuo, que possibilita diagnosticar situações, iluminar o caminho percorrido e empoderar todos os envolvidos na direção de um agir mais transformador. Fortalece, assim, a cidadania e a democracia. Trata-se, em suma de pensar a prática enquanto a melhor maneira de aperfeiçoar a prática. Pensar a prática através da qual se vai reconhecendo a teoria nela embutida. A avaliação da prática como caminho de formação teórica. (Freire, 2001b, p. 11)

A avaliação, na Metodologia Telessala, respeita o direito de aprender. Assim, o(a) professor(a) aprende a avaliar o(a) estudante em todas as suas potencialidades, utilizando o melhor de sua sensibilidade e de sua competência para captar indica-

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dores de avanço e sinais de preocupação. Além disso, aprende a se autoavaliar como educador(a), a avaliar a escola e seu contexto mais amplo, inseparáveis das dimensões sociais e econômicas da vida educacional. O(a) estudante, por sua vez, também aprende a se autoavaliar e a avaliar os outros, dando e recebendo feedback. Ele(a) descobre a importância de avaliar o contexto para tomar decisões a respeito de sua própria vida. Avanços e dificuldades, bem como juízos de valor sobre o crescimento pessoal e do grupo são registrados em um portfólio, o Memorial. No que se refere às competências e habilidades avaliativas, a participação na equipe de Avaliação possibilita o desenvolvimento de capacidades essenciais a quem deseja mudar a realidade: observação, autocrítica e comparação entre o planejado e o realizado, como base para a tomada de decisões.

Conclusão: Uma pedagogia da avaliação para a justiça social A Pedagogia da Avaliação da Metodologia Telessala inspira-se em princípios freirianos que buscam instaurar um mundo sem opressores e oprimidos. Ensina, sobretudo às pessoas pobres e marginalizadas, que elas têm poder de transformar suas vidas e o mundo. Entre 1995 e 2015, a Metodologia Telessala e a pedagogia freiriana de avaliação possibilitaram a sete milhões de jovens e adultos brasileiros – que de outra forma ainda estariam acreditando que eram piores que os outros e incapazes de aprender – concluir uma educação básica emancipadora e empoderadora. Com a Metodologia Telessala, os que estão confinados em prisões e hospitais ou residem em áreas de difícil acesso – na zona rural, em reservas indígenas ou terras quilombolas, não correm o risco de serem excluídos do direito à educação ou impedidos de completar seus estudos. As escolas públicas brasileiras que aplicam a Metodologia Telessala são convidadas a vivenciar exemplos concretos de aprendizagem por meio do diálogo. Compreendem que outra avaliação é possível: ética, participativa e democrática, na qual decisões sobre o que será avaliado e como será avaliado são tomadas em conjunto; contínua, pois ocorre durante todo o processo de aprendizagem, possibilitando agir e refletir sobre a ação realizada, celebrar os resultados positivos e considerar os erros como oportunidades de aprendizagem e crescimento. “Princípios são hipóteses, não verdades. Eles podem ou não funcionar. Podem ou não ser seguidos. Podem ou não levar aos resultados finais desejados”, diz Patton (ver Capítulo 3). Avaliações externas do Telecurso e da Metodologia Telessala realizadas em sistemas educacionais estaduais e municipais – como os de Pernambuco, Acre e Rio de Janeiro, por exemplo – vêm demonstrando que,

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sim, os princípios freireanos funcionam. Os dados coletados e analisados indicam o poder da Metodologia Telessala de praticamente eliminar a evasão e possibilitar que os estudantes passem para séries adequadas à sua idade. Assim, o Telecurso e a Metodologia Telessala realizam sua missão de incluir para transformar, rumo ao país justo e sustentável que sonhamos.

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Avaliação empoderadora transformativa e pedagogia freiriana:

Sintonia com uma tradição emancipatória David M. Fetterman

O

s movimentos sociais no Brasil costumam usar as palavras “empoderar” e “empoderamento”, sempre com um significado coletivo, não individual. O empoderamento diz respeito a aumentar o poder

para produzir mudanças sociais, por meio de transformações nas instituições sociais e nas consciências individuais. Ajudar a transformar pessoas e grupos em sujeitos ativos de mudança é o que pretende o enfoque avaliativo criado por David Fetterman, inspirado na pedagogia de Paulo Freire. O empoderamento pode ser usado nos mais diferentes contextos – também em escolas e outras instituições educativas – para formar e entusiasmar comunidades de aprendizes que dialogam, constroem consciência crítica e desenvolvem ações coletivas comprometidas com a luta pela equidade e pela inclusão.

DAVID M. FETTERMAN, Stanford University Ph.D., é presidente e Diretor Executivo de Fetterman & Associates, empresa internacional de consultoria em avaliação. Ele é, também, professor da University of Charleston e da San Jose State University, nos Estados Unidos. Introduziu a abordagem de avaliação para o empoderamento durante seu mandato como presidente da Associação Americana de Avaliação.

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Introdução: Pontos em comum entre a avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana A avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana são duas formas de educação transformadora. Elas criam contextos que levam as pessoas a conquistar mais poder para mudar suas realidades. Apoiam-se em ciclos de reflexão e ação que contribuem para o processo transformador. Ambas combatem a “cultura do silêncio” (aceitação de um sistema generalizado de crenças que enfraquecem e desvalorizam grupos inteiros de pessoas). A avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana compartilham uma crença em comum: Qualquer pessoa, ainda que (...) submersa na “cultura do silêncio”, pode olhar criticamente seu mundo por meio de um processo de diálogo com os outros e, gradualmente, vir a perceber sua realidade pessoal e social, pensar e agir sobre ela. (Shaull, 1974, p. 13)

Esta abordagem se opõe aos enfoques educacionais planejados para reproduzir o status quo. Como Shaull (1974) explica: Não existe processo educativo neutro. Ou a educação funciona como instrumento para facilitar a integração da geração mais jovem à lógica do sistema atual e produzir conformismo, ou torna-se prática da liberdade, o meio pelo qual homens e mulheres lidam crítica e criativamente com a realidade e descobrem como participar na transformação de seu mundo. (p. 15)

Tanto a avaliação empoderadora como a pedagogia freiriana dedicam-se aos conceitos de comunidade e colaboração, bem como autodeterminação, justiça social e sustentabilidade. As duas se alinham em princípio e prática. Fui influenciado pela pedagogia freiriana antes de desenvolver a avaliação empoderadora, durante o tempo em que infundi vida a esta abordagem e até hoje continuo sendo influenciado pelo trabalho de Freire.

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O nicho da avaliação empoderadora A avaliação empoderadora é uma abordagem voltada para o envolvimento das partes interessadas na avaliação. Ela difere de outros enfoques similares da seguinte forma: enquanto avaliadores colaborativos são responsáveis pela avaliação e avaliadores participativos partilham a responsabilidade pela avaliação, avaliadores para o empoderamento veem os membros da equipe do programa avaliado, os participantes do programa e os membros da comunidade, como se estivessem no controle da avaliação (Fetterman, Rodriguez-Campos, Wandersman & Goldfarb O'Sullivan, 2014). A avaliação empoderadora é o uso de conceitos, técnicas e resultados da avaliação para promover aperfeiçoamento e autodeterminação (Fetterman, 1994). É uma abordagem que “visa aumentar a probabilidade de que os programas alcancem resultados, aumentando a capacidade das partes interessadas de planejar, implementar e avaliar seus próprios programas” (Wandersman et al., 2005, p. 28). Ela se integra ao planejamento e gestão da organização/ programa. Em essência, a avaliação empoderadora é uma ferramenta para ajudar os envolvidos no processo a produzirem os resultados que desejam, ao alcançarem seus próprios objetivos.

Dois enfoques A avaliação empoderadora, na prática, é normalmente aplicada segundo dois enfoques. O primeiro é prático, e o segundo, transformador. A avaliação empoderadora prática é semelhante à avaliação formativa. Ela é planejada para aumentar o desempenho e a produtividade do programa. Embora controlada pela equipe do programa, participantes e membros da comunidade, seu foco é a resolução de problemas práticos, bem como o aperfeiçoamento do programa e seus resultados.


A avaliação empoderadora transformativa (Fetterman, 2015) destaca o poder psicológico, social e político da libertação. As pessoas aprendem como ter maior controle sobre suas próprias vidas e sobre os recursos disponíveis. O foco da avaliação empoderadora transformativa é libertar as pessoas de papéis, estruturas organizacionais ou “modos de fazer as coisas” preestabelecidos, convencionais. Além disso, o empoderamento é um objetivo mais explícito e aparente. A pedagogia freiriana tem uma sintonia maior com a avaliação empoderadora transformativa, na medida em que se empenha em ajudar as pessoas a enfrentar a cultura do silêncio sobre o status quo, a despertar consciência sobre o seu papel no mundo (superando a “falsa consciência”) 1 e aperfeiçoar a condição humana.

Teorias que orientam a avaliação empoderadora Uma revisão das teorias que orientam a prática da avaliação empoderadora – como as do empoderamento, autodeterminação, avaliação como construção de capacidades, uso do processo e uso da ação – irá ajudar a iluminar a relação integral que existe entre ela e a pedagogia freiriana

Teoria do empoderamento Tem a ver com ganhar controle, obter recursos e compreender o próprio contexto social. É uma teoria focada no positivo, ao invés do negativo. Por exemplo, a linguagem do empoderamento centra-se no bem-estar e não na doença, na competência e não no déficit, na força e não na fraqueza (Perkins e Zimmerman, 1995). Além disso, a teoria de empoderamento enfatiza as capacidades, em vez dos fatores de risco; e as influências do contexto social, em vez de perspectivas que culpam a vítima (Fetterman, 1981). Uma definição formal de empoderamento/autodeterminação:

um processo intencional e contínuo, centrado na comunidade local, envolvendo respeito mútuo, reflexão crítica, cuidado e participação em grupo, por meio do qual as pessoas às quais falta uma parte justa na partilha de recursos valorizados, ganham maior acesso e controle sobre estes recursos. (Cornell’s Empowerment Group, 1989, p. 1)

1 A cultura do silêncio é arquitetada para doutrinar e condicionar as pessoas a se verem como inúteis, sem valor e incapazes de oferecer uma contribuição significativa à sociedade, desenvolvendo, assim. uma “falsa consciência”.

Esta definição está de acordo com a tradição freiriana que demanda que as pessoas assumam um papel ativo na sua própria transformação e atuem para ganhar maior controle sobre suas vidas. A teoria do empoderamento/autodeterminação é dividida em processos e resultados. De acordo com Zimmerman (2000):

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Os processos de empoderamento/autodeterminação são aqueles em que as tentativas para ganhar controle, obter os recursos necessários e compreender criticamente o ambiente social são fundamentais. O processo é empoderador se ajuda as pessoas a desenvolverem habilidades para que possam tornar-se solucionadoras de problemas e tomadoras de decisão independentes (...) Os resultados finais (outcomes) do empoderamento referem-se à sua operacionalização, a fim de que possamos estudar as consequências das tentativas dos cidadãos e cidadãs de ganharem maior controle em sua comunidade, ou os efeitos de intervenções planejadas para empoderar os participantes. (p.3)

A teoria do empoderamento ajuda a operacionalizar tanto a avaliação empoderadora quanto a pedagogia freiriana, ao separar os processos dos resultados finais (outcomes). Ambas proporcionam às pessoas as habilidades conceituais necessárias para compreender seu contexto social de forma crítica e se tornar solucionadoras de problemas, com independência.

2 Veja também Bandura,1982, para mais detalhes sobre temas relacionados a autoeficácia e autodeterminação 3 Existe uma abundante literatura relativa ao uso da avaliação. No entanto, a maior parte dela se dedica às lições aprendidas após a avaliação. A discussão do uso do processo, neste contexto, concentra-se no uso dessas lições durante a avaliação (ver também Patton, 1997, 1998 e 2005). 4 (N. da T.) O autor extraiu a maioria das citações de Freire, de Pedagogy of the Oppressed (New York: Seabury Press, 1974). Ao traduzir este capítulo, tais citações foram substituídas pelos parágrafos correspondentes da Pedagogia do Oprimido (São Paulo: Paz e Terra, 2015). As citações que o autor retirou de Freire (1985), The Politics of Education: Culture, Power, and Liberation, foram traduzidas para o português por nós, para esta edição.

Autodeterminação Este é um dos conceitos fundamentais subjacentes à teoria do empoderamento. Autodeterminação é definida como a capacidade de uma pessoa de mapear seu próprio curso na vida. Consiste em numerosas competências interconectadas, tais como a habilidade de identificar e expressar necessidades; estabelecer objetivos ou expectativas e um plano de ação para alcançá-los; identificar recursos; fazer escolhas racionais entre vários cursos alternativos de ação; estabelecer os passos apropriados para atingir os objetivos; avaliar resultados no curto e longo prazo, inclusive reavaliando planos e expectativas e fazendo os desvios necessários; e persistir na busca desses objetivos. Uma ruptura em qualquer nó dessa rede de competências – bem como diversos fatores do ambiente – podem reduzir a probabilidade de uma pessoa de ser autônoma, se autodeterminar.2 Estes micropassos instrumentais são necessários para que as pessoas alcancem seus objetivos, construam confiança, projetem novas metas desafiadoras e, finalmente, se responsabilizem por suas próprias vidas. Freire reconheceu a necessidade de as

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pessoas agirem baseadas na realidade, para transformar suas vidas. Estes passos são um mapa para a ação, em um nível micro.

Uso do processo Este conceito representa muito da lógica subjacente à avaliação empoderadora na prática, porque cultiva a apropriação do processo, colocando a abordagem nas mãos da comunidade e dos membros da equipe. Quanto mais as pessoas se envolvem na condução de suas próprias avaliações, mais é provável que acreditem nelas, porque os resultados lhes pertencem. Além disso, um subproduto desta experiência é que elas aprendem a pensar de forma avaliativa. Isso as torna mais propensas a tomar decisões e realizar ações baseadas nos seus dados de avaliação. Essa forma de pensar é o cerne do uso do processo3 (ver Patton, 1997 e 2005). Em uma avaliação empoderadora, pensar de modo avaliativo é um produto da imersão orientada. Isso ocorre quando um grupo de pessoas conduz sua própria avaliação, com apoio de um avaliador que empodera. Ensinar as pessoas a pensar avaliativamente é como ensiná-las a pescar. É algo que vale para toda a vida e é disso que trata a sustentabilidade avaliativa – internalizar a avaliação. A avaliação empoderadora segue o modelo da pedagogia libertadora freiriana, em parte porque reconhece a importância de as pessoas permanecerem no controle de suas próprias vidas, ao invés de transferi-lo a peritos externos. Como Freire (2015) alertou: (...) o fato de os investigadores, na primeira etapa da investigação, terem chegado à apreensão mais ou menos aproximada do conjunto de contradições, “não os autoriza a pensar na estruturação do conteúdo programático da ação educativa. Até então, esta visão é deles ainda, e não a dos indivíduos em face de sua realidade”. (p. 149)4

A avaliação empoderadora pressupõe que as pessoas aprendam e internalizem essa aprendizagem, ao praticá-la. Freire (2015) observou que somente


quando as pessoas “se engajam na luta organizada por sua libertação, (é que) começam a crer em si mesmas” (p. 72). Além disso, elas aprendem, tornam-se mais plenamente conscientes e são libertadas ao conduzir suas próprias avaliações. Freire captou esse fenômeno de autorreflexão ao explicar que a opressão, em si mesma, precisa ser a base da reflexão, o que leva ao tipo e ao nível de envolvimento necessários para a libertação. Ele propõe: uma pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos , de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (p. 43)

Uma preocupação fundamental surge quando se fala a respeito do envolvimento das pessoas em sua própria avaliação: a tendenciosidade ou viés. Por exemplo, Scriven (1997), Stufflebeam (1995) e outros têm argumentado sobre a natureza contaminada ou tendenciosa da autoavaliação.5 No entanto, Freire (2015) aponta a falha neste pensamento: Poderá dizer-se que o fato de sermos homens do povo, tanto quanto os investigadores, sujeitos da busca de sua temática significativa, sacrifica a objetividade da investigação. Que os achados já não serão “puros” porque terão sofrido uma interferência intrusa. No caso, em última análise, daqueles que são os maiores interessados – ou devem ser – em sua própria educação. Isto revela uma consciência ingênua da investigação temática, para a qual os temas existiriam em sua pureza objetiva e original, fora dos homens,6 como se fossem coisas. Os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos... Há, pois, uma relação entre o fato objetivo, a percepção que dele tenham os homens e os “temas geradores”. (p. 137)

DICA Freire considera oprimidos todas as pessoas impedidas de realizar plenamente a sua humanidade, de “serem mais”. Em sociedades onde existe injustiça social, machismo, racismo e os mais diferentes tipos de violência, a imensa maioria é oprimida. Os que vivem situações extremas de miséria são os mais oprimidos. Aqueles que pertencem ao 1% da população do planeta que oprime os outros 99% também estão impedidos de realizar sua humanidade plena (é impossível humanizar-se ao desumanizar o outro), e serão libertados quando os oprimidos se libertarem. E tem mais: dentro de cada oprimido vive um opressor, pois internalizamos as ideias e crenças dominantes. Desenvolver consciência crítica é nos libertar deste opressor interno.

rar e aventurar-se” (idem, p. 55) (ver também Fetterman e Wandersman, 2007, para uma resposta à questão do viés).

Construção de capacidades Construir capacidades tem sido a força motriz da avaliação empoderadora desde a sua concepção (Fetterman, 1994; Fetterman, Kaftarian e Wandersman, 1996). A literatura sobre avaliação de capacidades coincide e faz interseção com a avaliação empoderadora (ver Duffy & Wandersman, 2007; Taylor-Ritzler, et al., 2013).

5 Ver Fetterman, 1997, 2001; Fetterman e Wandersman, 2005, para uma resposta mais detalhada a esta crítica. 6 (N. da T.) Ao contrário da edição brasileira de 2015, usada nesta tradução, a edição americana de 1974, usada pelo autor, obedece às recomendações de Freire, ao incluir ao lado da palavra “homens” (men) a expressão “e mulheres” entre parênteses (and women).

Ao realizar uma síntese das pesquisas sobre o tema, Labin, Duffy, Meyers, Wandersman e Lesesne (2013) definiram a avaliação para a construção de capacidades (ECB, na sigla em inglês, ACC em português) como “um processo intencional para aumentar a motivação, o conhecimento e as habilidades individuais e para incrementar a capacidade um grupo ou organização de conduzir ou utilizar a avaliação” (p. 2). A suposição é que estratégias de ACC irão melhorar atitudes, conhecimentos e habilidades individuais, o que será evidenciado por mudanças de comportamento. Além disso, estratégias de ACC facilitariam a aprendizagem organizacional sustentada.

7 Conscientização é uma palavra brasileira. É o processo pelo qual as pessoas desenvolvem uma consciência crítica sobre a sociedade e sobre seu papel no mundo enquanto grupo. Geralmente é discutida em termos da consciência adquirida na prática da libertação. No entanto, a separação entre consciência e mundo é artificial. É a relação dialética entre os dois que torna possível a conscientização. Separá-los resulta “nas ilusões do idealismo ou dos erros mecanicistas”.

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Nenhuma pedagogia é realmente libertadora, se continua a tratar as pessoas como “desafortunadas” e a lhes oferecer como modelos aqueles que estão no poder. “Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção” (p. 56). Assim é que se alcança a “conscientização”7 “o processo pelo qual os seres humanos começam a participar criticamente de um ato transformador” (Freire, 1985, p. 106) e as pessoas se tornam livres: têm “liberdade para criar e construir, para admi-


Freire também acreditava na capacidade de cidadãs e cidadãos comuns (alfabetizados ou não) de analisar sua própria realidade e “reconsiderar”, através das 'considerações' dos outros, suas próprias 'considerações' anteriores. O propósito de indivíduos analisarem sua própria realidade é perceberem “sua percepção anterior, do que resulta uma nova percepção da realidade distorcidamente percebida” (p. 151). A avaliação empoderadora e a prática freiriana usam muitos dos mesmos mecanismos ou procedimentos para construir capacidades e uma cultura avaliativas, reflexivas e sustentáveis – colocando, de forma orientada, o trabalho nas mãos das próprias pessoas.

Uma teoria da ação Para concluir, a sintonia entre as teorias do uso e as teorias da ação explica como a avaliação empoderadora ajuda as pessoas a produzirem os resultados desejados. A teoria do uso é geralmente a teoria operativa abraçada, a respeito de como funciona um programa ou organização. É uma ferramenta útil, geralmente baseada nas perspectivas da equipe do programa. A teoria da ação é muitas vezes comparada à teoria do uso. A teoria do uso é a realidade de fato do programa, o comportamento observável das partes interessadas (ver Argyris & Schon, 1978). Já a teoria da ação é criada, em determinado estágio, pelas pessoas engajadas em avaliações empoderadoras. Estes mesmos participantes irão testá-la, em uma fase posterior, confrontando-a com a teoria de uso existente. De modo semelhante, eles criam uma nova teoria da ação, à medida em que planejam para o futuro. Como a avaliação empoderadora é um processo contínuo, que se repete (iterativo), as partes interessadas estão sempre testando suas teorias da ação, ao confrontá-las com as teorias de uso, para determinar se suas estratégias estão sendo implementadas de acordo com o que foi recomendado ou planejado. A teorias do uso e da ação andam de mãos dadas na avaliação empoderadora. Freire recomendava o diálogo e a discussão, seguidos por ação e depois, de novo, a reflexão sobre a

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prática. Em essência, ele está sugerindo, precisamente, uma comparação entre as teorias do uso e da ação. (A abordagem é discutida, com detalhes adicionais, no item “Ciclos de reflexão e ação”, mais adiante). Justapor as teorias de uso e de ação é o mecanismo pelo qual as pessoas desenvolvem sua capacidade de aprender e, como Freire sugeriu, de se adaptar-se ao mundo, intervir nele, recriá-lo e transformá-lo.

Princípios de uma prática avaliativa de qualidade Os fundamentos teóricos da avaliação empoderadora levam aos princípios específicos necessários para orientar uma prática de qualidade. Os princípios da avaliação empoderadora proporcionam senso de direção e propósito ao longo da avaliação. São dez estes princípios específicos (Fetterman e Wandersman, 2005, p. 1-2, 27-41, 42-72). 1. Aperfeiçoamento – a avaliação empoderadora é planejada para ajudar as pessoas a melhorarem o desempenho de um programa; é planejada para ajudar as pessoas a construir com base em seus êxitos e reavaliar áreas merecedoras de atenção. 2. Apropriação pela comunidade – a avaliação empoderadora valoriza e facilita o controle que é realizado pela comunidade; o uso e a sustentabilidade da avaliação dependem da existência de um senso de propriedade sobre ela. 3. Inclusão – a avaliação empoderadora convida ao envolvimento, à participação e à diversidade; as contribuições chegam de todos os níveis e esferas da vida. 4. Participação democrática – a participação e a tomada de decisão devem ser abertas e justas. 5. Justiça social – a avaliação pode e deve ser usada para enfrentar as desigualdades sociais. 6. Conhecimento da comunidade – a avaliação empoderadora respeita e valoriza o conhecimento da comunidade.


7. Estratégias baseadas em evidências – a avaliação empoderadora respeita e usa a base de conhecimento dos estudiosos (em conjunto com o conhecimento comunitário). 8. Construção de capacidades – a avaliação empoderadora é planejada para incrementar a capacidade das partes interessadas de conduzir avaliações e aperfeiçoar o planejamento e a implementação do programa. 9. Aprendizagem organizacional – os dados devem ser usados para avaliar novas práticas, orientar a tomada de decisão e implementar práticas do programa; a avaliação empoderadora é usada para ajudar as organizações a aprenderem com sua experiência (usando os sucessos como base para desenvolver-se, aprendendo com os erros e fazendo correções de rumo durante o processo). 10. Responsabilidade/Prestação de Contas (Accountability) – a avaliação empoderadora é focada nos resultados finais e na prestação de contas; avaliações empoderadoras funcionam no contexto das políticas, normas e medidas de responsabilização existentes; a pergunta é ‘até que ponto o programa ou a iniciativa realizou seus objetivos’? Os princípios da avaliação empoderadora ajudam avaliadores(as) e membros da comunidade a tomar decisões que estão em sintonia com propósitos e objetivos mais amplos, associados à construção de capacidades e à autodeterminação. O princípio da inclusão, por exemplo, lembra avaliadores(as) e líderes comunitários de que devem incluir, não excluir os membros da comunidade, mesmo que aspectos fiscais, logísticos e de personalidade possam sugerir o contrário. O princípio da construção de capacidades lembra o(a) avaliador(a) de oferecer aos membros da comunidade a oportunidade de coletar seus próprios dados, mesmo que, inicialmente, possa ser mais rápido e fácil para ele(a) reunir as mesmas informações individualmente. O princípio da responsabilidade/prestação de contas (accountability) orienta os membros da comunidade a cobrarem responsabilidade uns dos outros. Ele também situa a avaliação no contexto dos

requisitos externos e da necessidade de produzir resultados intermediários ou finais confiáveis (ver Fetterman, 2005, p. 2). Todos os princípios acima estão em sintonia com a pedagogia freiriana. Por exemplo, os princípios da apropriação pela comunidade, da inclusão e da participação democrática nas decisões, destacam a importância do envolvimento e do controle realizado pela comunidade. Espera-se que os membros da comunidade participem autenticamente – se não controlarem tudo, que pelo menos tenham controle sobre decisões ligadas à avaliação, relacionadas a questões que afetam diretamente suas vidas. A avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana estão de acordo em que a presença de pessoas que lutam “na busca de sua libertação, mais que pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento” (Freire, 2015, p. 78). Ademais, o compromisso da avaliação empoderadora com a justiça social compartilha os mesmos pressupostos freirianos sobre o mundo, especialmente o de que desigualdades estão por toda parte e há uma necessidade premente de encará-las a tempo – por meio da ação. Um princípio de suma importância para a avaliação empoderadora e para o discurso freiriano, é o da responsabilidade/prestação de contas (accountability). A prestação de contas deve ser precedida pelo diálogo e pela compreensão, mas é um dos melhores testes de efetividade. A responsabilidade, neste caso, refere-se tanto à responsabilidade do indivíduo para com o grupo, quanto à responsabilidade do grupo para com forças sociais mais amplas, incluindo a produção de resultados finais.

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Conceitos que apontam como fazer

8 Estes conceitos são influenciados pela teoria tradicional do desenvolvimento e transformação organizacionais, incluindo autores como Argyris e Schon (1978) e Senge (1994), bem como avaliadores associados à aprendizagem organizacional (Preskill e Torres, 1999).

Os conceitos da avaliação empoderadora oferecem uma visão mais instrumental de como implementar a abordagem. Conceitos-chave incluem: ciclos de reflexão e ação, comunidades de aprendizes e praticantes reflexivos (ver Fetterman, Deitz e Ge8 sundheit, 2010).

Ciclos de reflexão e ação Estes ciclos envolvem fases contínuas de análise, tomada de decisão e implementação (com base nos resultados da avaliação). É um processo cíclico. Programas são dinâmicos, não estáticos – e exigem feedback contínuo enquanto mudam e evoluem. Freire (2015) descreveu o mesmo processo no contexto da transformação e libertação, explicando que a “a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática. Por outro lado, se o momento já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o saber dela resultante se faz objeto da reflexão crítica” (p. 73). Ciclos de reflexão e ação são processos contínuos, planejados para contribuir para formas sustentáveis de mudança e transformação social no longo prazo. É por meio desta testagem cíclica de ideias e estratégias na prática, no mundo real (revisitando-as com base no feedback) que se ganha conhecimento. Como Freire (2015) explica: “Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também” (p. 81).

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Comunidade de aprendizes A avaliação empoderadora é impulsionada por um processo grupal. Cria uma comunidade de aprendizes. Os membros do grupo aprendem entre si, funcionando como ‘equipe de revisão entre colegas’ (peer review group) onde cada um é, para o outro, um amigo crítico, fonte de recursos e mecanismo normatizador. Membros individuais do grupo apoiam a responsabilidade/prestação de contas de cada um pelo progresso rumo aos objetivos que estabeleceram. Freire também era comprometido com a aprendizagem grupal e acreditava que a verdadeira mudança não poderia ser realizada por um indivíduo isolado, mas precisava ser compreendida e realizada por meio do grupo (Freire, 1985, p. 34, 52, 88, 100). Como ele (2015) explicou: Não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros. A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar. E se seu pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se faz no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação. (p. 140-141)

Praticantes reflexivos Finalmente, a avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana ajudam a criar praticantes reflexivos. Ao praticar a reflexão, a pessoa usa dados para informar decisões e ações relativas à sua vida diária. Isto produz um indivíduo autoconsciente e autorrealizado, capaz de aplicar sua visão de mundo a todos os aspectos da sua vida. À medida em que os indivíduos desenvolvem e aprimoram sua própria capacidade, eles aperfeiçoam a qualidade das trocas, as deliberações e os planos de ação do grupo.


Despertar entusiasmo: quatro aspectos importantes A avaliação empoderadora e a abordagem educacional libertadora de Freire promovem a conscientização e encorajam as pessoas a assumirem responsabilidade por suas próprias vidas. Ajudam os participantes a se envolverem em ciclos de reflexão e ação, para que se tornem mais criticamente conscientes de sua existência, procurem aperfeiçoar o seu desempenho como membros do grupo e contribuam para o desenvolvimento de sua comunidade. Essas abordagens ajudam a despertar entusiasmo e elevar o moral das pessoas, em vez de desanimá-las e empurrá-las para baixo (ver também Lentz et al., 2005). Quatro aspectos importantes contribuem para isso: o levantamento, pelo grupo, de prioridades ou temas geradores; o diálogo coletivo sobre estas prioridades; o planejamento para o futuro; o monitoramento das estratégias, feito pelo grupo.

DICA Na Pedagogia do Oprimido, Freire diz que chama os temas de geradores porque, ao serem compreendidos e provocarem ações transformadoras, têm a possibilidade de se desdobrar em outros temas, que, por sua vez vão gerar novas ações (p. 130, Nota de Rodapé). Ele continua, afirmando que os temas geradores podem ter caráter universal – como o da libertação, implicando o da dominação – considerado por Freire como o tema fundamental de nossa época, em todo o planeta. Mas há temas não tão gerais, como os que emergem das nações, ou de áreas menores – que ele chama de “subunidades epocais” – pois participam das questões da mesma época... Por exemplo, no Brasil, uma destas subunidades, um tema gerador poderia ser o racismo, em uma parte do Brasil, a fome... Muitas vezes as pessoas não percebem nem reconhecem estas questões – apenas sentem o problema, mas não conseguem dar nome a ele. Quando isso acontece, explica Freire, é porque estão imersas em “situações limite”, que se apresentam às pessoas “como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa senão adaptar-se” (p. 130).

Temas geradores O processo de engajamento em avaliação empoderadora levanta prioridades para a investigação que são semelhantes ao que Freire denominava “temas geradores”. Sem estes temas, questões e tópicos críticos podem nunca se tornar explícitos e, portanto, nunca serem enfrentados. Freire (2015) observou que os temas de caráter nacional podem ser ou deixar de ser captados em sua verdadeira significação, ou simplesmente podem ser sentidos. Às vezes, nem sequer são sentidos. O impossível, porém, é a inexistência de temas nestas subunidades epocais . O fato de que indivíduos de uma área não captem um “tema gerador”, só aparentemente oculto ou o fato de captá-lo de forma distorcida, pode significar, já, a existência de uma “situação-limite” de opressão em que os homens se encontram mais imersos que emersos. (p. 132)

Temas geradores oferecem material relevante, que promovem o engajamento ativo – representam as coisas que mais preocupam as pessoas. Isto prepara o terreno para uma das partes mais importantes do

processo – o diálogo autêntico. Semelhante ao que ocorre na pedagogia freiriana, a avaliação empoderadora, por meio do diálogo, muda formas existentes de pensar, para que novos conhecimentos sejam criados.

Diálogo O diálogo sobre prioridades é uma das partes mais importantes do processo de avaliação empoderadora. Além de se esclarecerem questões, usam-se evidências para apoiar pontos de vista. “Temas tabus” são colocados na mesa e examinados durante o diálogo. E mais: o processo de especificar a razão ou a evidência de uma prioridade fornece ao grupo uma forma mais eficiente e focada de identificar o que precisa ser feito depois, durante o planejamento dos futuros passos do processo. Em vez de gerar uma intratável lista de estratégias e soluções que podem ou não ser relevantes para as questões em presença,

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o grupo pode concentrar as suas energias em suas preocupações específicas e nos motivos pelos quais um tema levantado no diálogo ou troca foi classificado como de baixa prioridade. O diálogo é analítico e frequentemente emocional. A avaliação empoderadora tem respondido a críticas realizadas em uma perspectiva objetivista, que não dedica atenção suficiente à emoção (Fetterman, 1995, 2001; Stufflebeam, 1995). Freire reconheceu a natureza dialética dessas características humanas que são a objetividade e a subjetividade. Por um lado, destacou o valor de dados objetivamente verificáveis (p. 50). No entanto, ele também observou: “Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade” (p. 50); o subjetivo e objetivo estão “em permanente dialeticidade” (p. 51). Freire se refere a isto como “razão encharcada de emoção”. 9 Para Freire (2015, p 53), “a separação entre objetividade e subjetividade, negando-se esta última, quando se analisa a realidade ou se age sobre ela, é objetivismo. Esta separação nega a influência equilibradora da subjetividade e das emoções”. Isso explica muito dos debates iniciais entre Fetterman (1995), que inclui as emoções na equação humana e Stufflebeam (1994), que argumentava em favor de uma abordagem objetivista para avaliação.

A avaliação empoderadora abraça esta combinação. As pessoas têm emoções. Elas são uma força poderosa que molda sua consciência e ações. De acordo com Freire (2015), “confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, é negar-lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo” (p. 51).9 O nível de emoção em uma troca é frequentemente um teste da profundidade das questões em jogo. No entanto, a realidade deve ser confrontada por uma combinação do analítico e do emocional:

D I CA Objetividade e subjetividade, razão e emoção, corpo e mente, todos esses pares de opostos têm natureza dialética, o que significa que um não pode ser entendido sem o outro, e que existe um movimento constante de um para o outro – uma interação, um diálogo, que quando é rompido, causa um profundo desequilíbrio.

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O mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção crítica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro. Este é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que é antes o resultado da arbitrariedade do subjetivista o qual, fugindo da realidade objetiva, cria uma falsa realidade “em si mesmo”. (Freire, 2015, p. 53)

O diálogo é uma parte essencial da pedagogia da consciência crítica ou conscientização. As pessoas se confrontam umas com as outras com uma visão avaliativa sobre a funcionalidade, produtividade e adaptabilidade de seu contexto comunitário, considerando onde ele se situa na sociedade mais ampla. Elas criam significado compartilhando entre si sua visão da realidade e chegam a um consenso sobre o mundo em que vivem e o que precisa ser feito, em seguida, para melhorar suas vidas. É aí que, muitas vezes, o “elefante na sala” aparece: aquele problema ou injustiça que fica nas entrelinhas, que todo mundo sabe que existe, mas ninguém está disposto a trazer à tona e discutir no dia a dia. O diálogo faz o grupo ir além das necessidades percebidas e conectá-las às suas causas. Modelos lógicos e teorias da mudança (sem o jargão ou terminologia) tornam-se mais significativos e úteis. O diálogo crítico contribui para a consciência crítica, ou seja, para a conscientização. A reflexão nele baseada impulsiona os grupos para a ação. De acordo com Freire, diálogo crítico pressupõe ação. Na avaliação para o empoderamento, o planejamento para o futuro é construído por meio do diálogo crítico – em um intercâmbio onde se faz um balanço da situação. Representa o mapa do caminho (ou da intervenção), colaborativamente construído, que é preciso seguir para realizar os objetivos da comunidade.


Planejando para o futuro Muitas avaliações terminam na fase de se fazer o balanço e tomar pé da situação (inventário e classificação das atividades em curso). No entanto, este balanço é apenas uma base de referência – um ponto de partida para o restante da avaliação empoderadora. Depois de discutir e classificar as atividades programáticas, é importante que se faça algo com as descobertas. É hora de planejar o futuro. Isto envolve produzir objetivos, estratégias e evidências confiáveis (para determinar se as estratégias estão sendo implementadas e se são efetivas). Os objetivos estão diretamente relacionados às atividades selecionadas na fase do inventário (balanço). O planejamento para o futuro só pode ser realizado depois que o grupo fez o inventário de sua situação. Em outras palavras, de maneira semelhante ao que acontece nos passos da abordagem freiriana, o plano de ação vem depois do diálogo (onde se faz o balanço da situação, o inventário). E mais: o balanço é precedido por uma discussão inicial sobre o propósito ou missão do grupo, o que garante coerência intelectual ao esforço comum e, como em Freire, oferece uma teoria interna para guiar a prática, a ação. No entanto, conscientizar, executar planos de ação e testar hipóteses exige monitoramento se quisermos que as iniciativas produzam os resultados desejados (e não percam o rumo, sendo realizadas a tempo).

Monitorando as estratégias Muitos programas, projetos e avaliações falham na fase da implementação dos planos de ação por falta de responsabilidade/capacidade de prestar contas (accountability) individual e grupal. Na avaliação empoderadora, convidam-se indivíduos que falaram de forma eloquente e/ou emocional sobre determinado tópico durante as etapas iniciais do processo, a liderar, como voluntários, forças-tarefa específicas visando a responder a preocupações ou problemas identificados. Eles não têm que completar a tarefa. No entanto, são responsáveis por assumir a liderança em uma área bem delimitada (um objetivo específico) e relatar periodicamente o sta-

tus dos esforços realizados rumo à consecução deste objetivo, em reuniões contínuas de gerenciamento. Da mesma forma, os membros da comunidade se comprometem a rever, enquanto grupo, o status das novas estratégias adotadas (fazendo ajustes no meio do caminho, se não estiverem funcionando). Instrumentos de avaliação, quer convencionais ou inovadores, são usados para monitorar as estratégias. Um painel de avaliação é uma ferramenta especialmente útil para monitorar mudanças ou progresso ao longo do tempo. Consiste na exposição de bases de referência (parâmetros), pontos de referência ou marcos, objetivos e exemplos do desempenho real do grupo. Estes elementos mensuráveis permitem que os membros da comunidade comparem, por exemplo, suas avaliações feitas no início do processo, que constituem a base de referência, com os marcos – pontos esperados de progresso –, o desempenho efetivo dos envolvidos e os objetivos que estabeleceram. Esta abordagem está em sintonia com a pedagogia freiriana porque coloca os instrumentos para monitorar o desempenho nas mãos das pessoas da comunidade. É transparente, fazendo com que a equipe do programa e os membros da comunidade possam monitorar seu próprio desempenho, ao mesmo tempo em que permite aos patrocinadores determinar se é necessário assistência adicional ao longo do caminho. É também um instrumento útil para construir capacidades em avaliação, porque ensina as pessoas como monitorar seu próprio desempenho, aprendendo, a tempo, a fazer ajustes no momento certo.

10 Os conceitos de relacionamento e amigo crítico são influenciados por teóricos tradicionais do desenvolvimento e transformações organizacionais, como Argyris e Schon (1978) e Senge (1994), assim como por avaliadores associados com a aprendizagem organizacional (Preskill & Torres, 1999).

O papel do avaliador para o empoderamento: centralidade dos relacionamentos Os relacionamentos desempenham papel crucial no processo de se conduzir uma avaliação empoderadora. O papel de amigo crítico10 merece atenção, porque pode ser um ponto de equilíbrio e de apoio em termos de relações fundamentais entre as

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D ICA Coach significa “treinador”, “tutor”. Em ciências humanas, coach é o profissional capaz de escutar alguém, fazer as perguntas certas e, por meio de observações e sugestões, ajudar a pessoa a se aperfeiçoar, encontrando suas próprias respostas. Enfim, é um “amigo crítico”.

o(a) avaliador(a) ou facilitador(a) se abstém de assumir o controle: ele(a) não enquadra a discussão, nem domina o diálogo ou prescreve os planos de ação. Em vez disso, o grupo assume a liderança e as pessoas trabalham juntas, enquanto equipe. Freire traça um quadro semelhante desse papel, em sua comparação de educadores e educandos:11 Educador e educandos (liderança e massas), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. (p. 77)

11 De acordo com Freire, em sua Pedagogia da Autonomia (Paz e Terra, 2008), “quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”. (...) “Não há docência sem discência (...) “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (p. 23).

pessoas de um coletivo. Aplicada incorretamente, esta função transforma-se em empecilho, inibindo o movimento e a mudança; aplicada corretamente, pode ser usada para alavancar e maximizar o potencial de um grupo. Avaliadores(as) para o empoderamento têm um grande conhecimento na área, mas é como amigos(as) críticos(as) ou coaches , que ajudam a manter a avaliação sistemática, rigorosa e no rumo certo. São capazes de atuar recorrendo à sua capacidade de aconselhar, ao invés de tentar dirigir ou controlar a avaliação. Oferecem uma estrutura ou conjunto de etapas para conduzi-la. Em vez de exigir, recomendam instrumentos e atividades específicas. Sabem escutar e confiam no conhecimento e compreensão do grupo a respeito de sua situação local. Avaliadores(as) para o empoderamento diferem de muitos colegas com enfoques tradicionais. Em vez de se apresentarem como “especialistas” e se colocarem como totalmente independentes, separados, afastados das pessoas com as quais trabalham, para não se “contaminarem” ou serem “tendenciosos”, avaliadores(as) para o empoderamento atuam de modo muito próximo, ao lado, como parceiros(as) dos membros da equipe do programa e dos participantes. Em mais este aspecto, a abordagem está em sintonia com a pedagogia de Freire, na qual o líder trabalha junto com a comunidade e não como um especialista externo, distante. Em ambas as abordagens,

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Tanto o(a) facilitador(a) freiriano quanto o(a) avaliador(a) para o empoderamento servem aos grupos ou às comunidades, na tentativa de ajudá-los a maximizar o seu potencial e liberar sua energia criativa e produtiva para alcançar o bem comum. Atributos importantes de um(a) amigo(a) crítico(a) incluem: criar um ambiente propício ao diálogo e ao debate; fornecer ou solicitar dados que informem a tomada de decisão; facilitar ao invés de conduzir; ser aberto(a) às ideias alheias, inclusivo(a) e disposto(a) aprender (para mais detalhes sobre esta função, ver Fetterman, 2009; Fetterman et al., 2010).

Conclusão A avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana estão sintonizadas, na teoria e na prática. Esta sintonia é mais pronunciada em relação à avaliação empoderadora para a transformação, que em relação à avaliação empoderadora prática. No entanto, os dois enfoques da avaliação empoderadora abraçam as mesmas características essenciais, incluindo pensamento crítico, diálogo autêntico, conscientização e ação. A avaliação empoderadora e a pedagogia freiriana são emancipatórias e, se aplicadas adequadamente, ajudam as pessoas a se libertarem das limitações que lhes foram impostas, bem como das limitações que elas mesmas se impõem. Juntas, elas também podem ajudar a transformar a prática da avaliação.


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FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO

PRESIDENTE

José Roberto Marinho

SECRETÁRIO GERAL

Hugo Barreto

GERENTE GERAL DE EDUCAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO

Vilma Guimarães



FICHA TÉCNICA

Pedagogia da Avaliação e Paulo Freire: Incluir para transformar Fundação Roberto Marinho EDIÇÃO BRASILEIRA

Vilma Guimarães TRADUÇÃO

Madza Ednir Thereza Penna Firme COORDENAÇÃO

Sandra Portugal DIREÇÃO DE ARTE e DESIGN GRÁFICO

Claudius Ceccon e Silvia Fittipaldi ILUSTRAÇÕES “XILOS”

Claudionor* REVISÃO

Sonia Cardoso / Editare

Este livro é a reedição, traduzida e ampliada, do número 155, outono de 2017, da revista New Directions for Evaluation, publicação oficial da American Evaluation Association (AEA), intitulado Pedagogy of Evaluation, com edição de Michael Quinn Patton.

*Claudionor é o pseudônimo do ilustrador deste livro, que aqui deseja render sua homenagem aos maravilhosos artistas populares do Nordeste, em cujas xilografias ele se inspirou.



Este livro foi composto com as tipografias Univers e ITC Officina Sans para títulos e subtítulos, e Minion Pro para textos, corpo 11/14. Impresso na gráfica J. Sholna. Rio de Janeiro, agosto de 2018.



“A avaliação não é medo, é coragem; não é autoritária, é participativa, não é imposição, é negociação.” THEREZA PENNA FIRME

“Este livro é dedicado a você, que utiliza a avaliação para refletir sobre a prática, diagnosticar situações, iluminar o caminho percorrido e aumentar o poder de agir para incluir e transformar. Seu tema, as contribuições de Paulo Freire às reflexões e práticas globais sobre avaliação nos enchem de orgulho por pertencermos ao Brasil solar que deu ao mundo o autor da Pedagogia da Esperança. Que ele possa ser lido, individualmente e em grupos, estimulando a reflexão e a prática de uma avaliação que ensine a acreditar no poder que tem muitas pessoas pequenas, fazendo muitas pequenas coisas, em muitos pequenos lugares, de mudar o mundo.” VILMA GUIMARÃES


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