Revista Maritaca - 7ª Edição

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Dez. 2021

Ano 5 - 7ª edição

Revista laboratório do curso de Jornalismo da UFRRJ


As cidades que nos habitam

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d i t o r i a l

Realizar a 7° edição da revista Maritaca foi um desafio diferente de qualquer outro. No ano em que o mundo enfrentou uma pandemia, os estudantes de jornalismo da UFRRJ se viram diante de uma proposta desafiadora: falar sobre cidade sem estar na cidade. O tema seria: Cidade e Alimentação. O que alimenta uma cidade? Um assunto tão amplo abriu portas para a imaginação dos futuros jornalistas. A criatividade não se limitava em pensar na reportagem, mas também como produzila cada um em sua própria casa. Nossos repórteres não tiveram a experiência de sair pelas ruas com seus gravadores, conhecer lugares e tirar fotos. Não, os alunos pegaram seus computadores, celulares e eletrônicos para pesquisar, entrevistar, explorar... Tudo no online. Uma vivência única e dolorosa. Porém, nem os momentos estressantes de ansiedade e vontade de desistir os impediu de continuar em frente nessa jornada. Ao se reinventar dessa maneira, também reinventaram o tema da Maritaca. O que antes seria só sobre cidade e alimentação passou a ser uma busca pela cidade que nos habita. As próximas páginas trazem matérias sobre uma cidade pela visão de jovens isolados em um mundo parado. Com todo esforço e cuidado, os repórteres buscaram aprender o que alimenta uma cidade. Dividida em três editorias - Circo, Pão e Trabalho- assuntos como alimentação, religião, festas e direitos trabalhistas foram explorados com toda originalidade e vigor. Então, esperamos que cada leitor sinta-se dentro de uma cidade única construída com pedaços do isolamento e encontre a resposta para a pergunta: você tem fome de quê?


Trabalho Pão Circo

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Cosme e Damião: a festa das ruas

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10 Angu do Gomes: tradição da praça XV

16 Arte no trem: desculpe perturbar sua viagem

22 Carnaval: a festa de muitos enredos

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Merenda Escolar: pedagogia alimentar

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Entregadores: a fome de quem entrega comida

34 Insegurança Alimentar: movimentos sociais contra a fome

46 Empreendedorismo: faca de dois gumes ou promessa

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de ilusões Camelôs: a luta pelo local de trabalho ou pelo direito ao trabalho

Expediente Revista-laboratório produzida pelos estudantes de segundo período do curso de Jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro da turma 2020.1. Projeto interdisciplinar de Técnicas de Reportagem, Introdução à Fotografia e Mídia Impressa. Professoras responsáveis: Ana Lucia Vaz, Cecília Figueiredo e Sandra Garcia. Edição: Ana Lucia Vaz MTb/RJ 18058 Projeto gráfico e programação visual: Pedro Henrique da Silva Vaz do Cabo e Isabelle Chaves Gonçalves Copidesque e revisão: Lucas de Andrade Santos, Mariana Rodrigues Freitas e Karine Nunes.


Quem manda na rua são as crianças

Brincadeira de criança. Foto: Hugo Henrique

Distribuição de doces em dia de Cosme e Damião muda a lógica da cidade do Rio Por: Gabriel Reis, Hugo Henrique, Isabelle Gonçalves, João Marcelo e Lara Almeida

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Circo

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dia nem bem amanhece e lá estão elas: crianças eufóricas, de mochilas nas costas, traçando às pressas o caminho em direção aos doces. A peregrinação dos pequenos subverte a ordem das ruas. Os motoristas redobram a atenção com o movimento das calçadas e os adultos são os intrusos de passagem. Não há espaço para o que é cinza, concreto e acelerado. O tempo se comporta de outra forma. É 27 de setembro, dia de São Cosme e São Damião! A tradição de dar doces em honra aos santos se mantém, nas ruas do subúrbio carioca, até as primeiras semanas de outubro. Umbandistas, católicos, promesseiros e guardiões da infância se misturam nessa data para garantir que os pacotes recheados de guloseimas cheguem à meninada. A corrida em direção aos saquinhos de Cosme e Damião, acalorada com gritos de “Ali tem doce!”, obriga a cidade a se reorganizar. Quem manda nas ruas, até o dia 12 de outubro, são elas, as crianças.

Decapitados por realizarem milagres

Segundo a liturgia católica, Cosme e Damião eram dois irmãos de origem árabe que praticavam a medicina de forma gratuita. Realizavam milagres de cura em pessoas, em animais e difundiam a fé em Cristo. Foram perseguidos e decapitados pelo imperador romano Diocleciano, acusados de serem cristãos e praticarem magia, por volta dos anos 300, em 27 de setembro. No Brasil, os gêmeos são considerados os padroeiros dos médicos, farmacêuticos e das faculdades de medicina. Os primeiros registros na imprensa nacional de celebração aos santos, na vida carioca, datam de 1890. Porém, os festejos católicos só começam a ganhar destaque com a construção da primeira igreja dedicada a São Cosme e São Damião, na década de 1940, em Andaraí, bairro do Rio de Janeiro.

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Orixás e entidades se misturam com os santos

Nas casas de Candomblé, 27 de setembro é dia de culto dedicado a Ibeji, o Orixá Criança, representado na figura de duas divindades infantis. A palavra em Iorubá é resultado da junção de “Ibi”, que significa parir, e “eji”, que significa dois, indicando uma gestação dupla. A dedicação à figura de dois meninos na tradição Iorubá tem relação com o grande número de gêmeos nascidos no sudoeste da Nigéria, país africano de origem da fé em orixás. A tradição, na Bahia, manda que no dia da festa seja servido um prato de caruru a sete meninos antes de toda a comunidade se servir do banquete. Para os adeptos da religião, os gêmeos, filhos de Xangô e Iansã, estão diretamente ligados às crianças, cuidando da inocência e da alegria. A confusão entre Ibeji e Ibejada ainda é muito comum para os que encaram a afroreligiosidade brasileira como uma coisa só. A Ibejada representa os erês, entidades crianças do panteão da Umbanda, mensageiras dos orixás, que trabalham na limpeza e proteção espiritual. São espíritos que, embora infantis e travessos, não correspondem ao arquétipo de ingenuidade e sabem enfrentar demandas como ninguém. Agradados nos terreiros e altares particulares com doces e guaraná, a celebração aos erês ajudou a adoçar a devoção nas ruas do Rio. Os Santos gêmeos na revista O Cruzeiro

Entre o final da década de 40, nas páginas da revista O Cruzeiro, os Santos gêmeos faziam parte dos assuntos retratados até 1975, quando houve o encerramento da revista. A revista carioca retratava os Santos não só exaltando a fé católica, mas também fazendo as relações entre o candomblé e a umbanda. O acervo do veículo fala desde a história dos Santos, até a festa de Cosme e Damião nos terreiros.


“Desta data feliz eu me lembro: Cosme e Damião, Doum… 27 de Setembro.” Assim compôs o carioca Gilberto Alves sobre a data que envolve doces, devoção e um terceiro personagem: Doum, reflexo das raízes africanas na cultura brasileira O fato das religiões afro-brasileiras serem vividas a partir dos ensinamentos sagrados falados e não centralizados, impossibilita as histórias de serem iguais em todas as casas. Doum seria uma corruptela de Idowu, que significa “aquele que nasce depois dos gêmeos”, em Iorubá. Camilla Oliveira, umbandista e estudiosa da relação da cultura Iorubá com a cultura brasileira, conta que Doum é um dos três filhos do orixá Ogum. “Doum é a criança mais levada”, afirma a historiadora, característica registrada no refrão que conta uma de suas travessuras “Cosme, Damião/ Damião, cadê Doum?/ Doum foi passear no cavalo de Ogum”. Representado como uma criança vestida igual a Cosme e Damião, Doum passa a ser reverenciado junto dos gêmeos, marcando o movimento de hibridização religiosa das ruas cariocas. O que para uns é dia de celebrar os santos gêmeos da Igreja Católica, para outros é dia de agradecer aos erês, crianças da Umbanda, e cultuar Ibeji, orixá do Candomblé.

“Não tenho a ver com a religião, mas, pelo fato de ter sido uma coisa muito importante para mim, todo dia 27, eu dou doce, pela

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memória afetiva.” Lindauria Gutierres

Arte em azulejo homenageando os Santos


Circo

Para além da devoção

Foto: Hugo Henrique

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A festa transborda as barreiras religiosas e se estende por toda a cidade, marcando a formação da cultura carioca. O pesquisador, antropólogo e um dos organizadores do projeto Doces Santos, Lucas Bártolo, ajuda a entender esse movimento e a variedade de motivações para as celebrações na cidade. “No final do séc XIX, você tem a cidade precisando de uma tradição, que está se construindo como cidade moderna, construindo o que hoje é conhecido como cultura. A Umbanda pega tudo que está se configurando como cultura carioca e sacraliza. Os próprios doces vão virar uma doçaria sagrada que você não vê no Candomblé.”, explica o antropólogo. A religiosidade, por muito tempo, foi o único motivo para a existência do 27 de setembro no Rio. Com o passar dos anos, porém, as relações com a data foram se modificando. Hoje em dia, a festa acontece, também, pelas mãos de quem quer preservar a infância e de quem herda a tradição da família. “Uma característica forte da devoção a Cosme e Damião é o caráter familiar. As pessoas dão doces para manter uma tradição. É outra caraterística vital para a continuidade da festa: muitas pessoas dão porque pegaram”, afirma Bártolo.

Doces Santos é um projeto lançado em formato de livro digital, e tem como foco estudar as origens e documentar as festas de São Cosme e São Damião no estado do Rio de Janeiro. A equipe conta com pesquisadores e colaboradores eventuais, desde pesquisadores do ensino médio, do Colégio Pedro II, até pesquisadores de pósdoutorado. O Doces Santos é disponibilizado gratuitamente no site http://ludens.museunacional.ufrj.br


prima, todo ano, sentávamos na mesa com a minha avó e ficávamos montando as sacolinhas. Depois saíamos de carro distribuindo.” Maria Luisa

A festa começa antes

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Isso tudo você aprende em casa

Os doces santos. Foto: Hugo Henrique

Como todo grande evento, o dia de Cosme e Damião começa antes de 27 de setembro. Da arrecadação e compra à distribuição dos doces, existe um caminho iniciado em agosto, que se estende até as primeiras semanas de outubro. “Um período, ali entre 27 de setembro e 12 de outubro, em que a cidade tem uma outra lógica, que não é única.” afirma Lucas Bártolo. Seja em forma de dinheiro ou em pacotes de guloseimas, as doações marcam o verdadeiro início da festa. Há também os devotos que fazem as próprias compras sozinhos. Começam a guardar dinheiro com meses de antecedência, para que possam rechear os saquinhos. Cocada, suspiro, doce de abóbora, doce de leite, doces de gelatina, maria-mole, balas macias, pirulitos, pipoca doce e bananadas não podem faltar. A montagem dos saquinhos é um evento à parte. Os mais velhos reúnem as crianças em volta da mesa, como um processo industrial. Cada criança fica responsável por uma guloseima e os saquinhos passam de mão em mão até ficarem recheados. “Um dia antes, era o dia pra fazer e não importavam as outras coisas. A gente ficava sentado e era tipo um processo fabril, sabe? Você pega, toma um, pronto, toma um, pronto. Cada um fazia uma coisa.”,

relembra Camila Oliveira, estudiosa da tradição. É nesse processo que os laços e as tradições familiares se mantêm. “É uma festa, uma tradição, essencialmente familiar. Você aprende a fazer em casa, a montar os saquinhos, a escolher os doces, a fazer o cálculo de quantos doces você coloca. A própria ordem dos doces, isso tudo você aprende em casa”, explica Lucas. Ele conta que teve uma escuta afetiva sobre esses momentos. “‘Meu pai me ensinou isso.’ ‘Era o jeito que minha mãe tinha de montar.’ ‘A minha avó fazia questão de fazer tal coisa.’ É uma forma de manter essa dimensão da tradição familiar.”, conta Lucas sobre os relatos dos tempos de pesquisa.

Aonde o vento levar, como uma pipa avoada Foto: Gabriel Reis

“Lembro que eu e minha


Circo

O encantamento que dá cor à cidade

Quando amanhece em 27 de setembro, as mães fazem suas recomendações e pedem aos santos proteção para as crianças que vão às ruas em busca dos saquinhos de doces. “Você colocava a mochila nas costas, saía às oito da manhã e só voltava às oito da noite e a mãe nem brigava.”, recorda Camila Oliveira dos seus tempos de criança. Animada, a criançada traça e modifica suas rotas a fim de encontrar os lugares mais proveitosos ao seu principal objetivo: arrecadar o máximo de doces. A lógica de ruas tomadas por carros e pessoas percorrendo os mesmos caminhos é rompida com a caça aos doces. Muitos veículos, no dia, são dirigidos por devotos e andam quase

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parando, procurando grupos de crianças para esvaziar as caixas abarrotadas de saquinhos. “O dia de Cosme e Damião tem essa característica de redefinir a forma de organização do cotidiano. Nesse dia, as pessoas têm deslocamentos que não existem no cotidiano, elas vão para lugares que normalmente não iriam. E o principal, as crianças ganham uma autonomia que no resto do ano não têm”, explica o antropólogo. A vida urbana chega como uma avalanche e ameaça o ambiente sagrado que são as ruas, como defende o historiador Luiz Simas. As pessoas ficam tão ocupadas com a vida moderna que seus mundos se tornam cinza. O encantamento perde o lugar para a atitude blasé, e, por um tempo, o funcionamento das ruas se torna indiferente aos nossos olhos. No entanto, o dia 27 chega como uma quebra dessa nova ordem. A interação com o divino, muitas vezes demonizado, que alimenta a cidade carioca resulta na recordação da essência que mantém as ruas vivas. De acordo com dados do último Censo (2010), o Rio de Janeiro contava com mais de 4 milhões de fiéis de denominações evangélicas. O movimento preconceituoso de demonizar, queimar e até se apropriar da tradição de distribuir doces, obriga a festa a se adaptar para resistir. A cidade apresenta um novo modo de manter a celebração. “É uma cidade muito verticalizada, tendo seus espaços redefinidos” afirma Bártolo. Os devotos, então, acabam por adaptar seus meios de festejar os santos. As crianças, cada vez mais antenadas às novas informações que surgem, rapidamente se adaptam às novas organizações e aprendem a seguir os lugares que apresentam maior distribuição de doces. Essa é a chamada “Mancha de Doces”, por Morena Freitas no livro Doces Santos. “É um lugar que concentra muitos doces, você tem outros lugares que tem tradição muito forte, mas em lugares específicos como terreiros, Madureira, Oswaldo Cruz...”, explica Lucas. Indo a terreiros, atravessando bairros ou sendo surpreendidos na porta de casa, os pequenos só se preocupam com uma coisa nesse dia: pegar o maior número possível de saquinhos de doces.


“Quando sentir fome um Angu do Gomes já dá pra enganar” O trecho acima é da música de João Nogueira que fala do único prato tombado como Patrimônio Cultural Carioca. Por: Júlia Luna, Lívia Fernandes e Samuel Guedes

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Circo

Tem caroço nesse angu Ao desembarcar, exaustos e enfermos, a preocupação dos comerciantes do mercado negreiro do Valongo era apenas uma: recuperar os viajantes. Eram, então, alimentados com uma massa cremosa à base de farinha de milho, a fim de retomarem as forças antes de serem vendidos como mão-de-obra. Esse alimento, que surgiu inicialmente para recuperar os

escravos enfraquecidos, passa a ser conhecido como angu. Em meados de 1830, negros livres passaram a vender o alimento nas ruas, agradando as pessoas de diversos níveis sociais. Segundo as pesquisadoras Juliana Dias e Carolina Amorim, “os ex-escravos empreenderam uma indústria alimentar na cidade e deixaram um legado, que tornou-se símbolo da vida noturna carioca. Desde o século XIX a receita foi incorporada ao hábito da cidade e se tornou um bem cultural”. A posição litorânea no seio da América Portuguesa proporcionou à cidade condições privilegiadas de trânsito. Sendo assim, os comerciantes cariocas tinham acesso exclusivo aos portos. E é justamente na zona portuária do Rio de Janeiro, a partir da fusão entre os três povos — africano, brasileiro e português — que surge a primeira barraquinha do que viria a ser o famoso Angu do Gomes.

Gravura Jean Baptiste Debret – Vendedoras de Angu/Reprodução

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zona portuária do Rio de Janeiro conta a história das muitas pessoas que por ali já transitaram. A multiplicidade de culturas que os portos carregam colaboram para formar a identidade da cidade. É nesse encontro de culturas, em 1955, que nasce a história da iguaria que detém o título de Patrimônio Cultural Carioca, o famoso Angu do Gomes.

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O Angu

Ingredientes: Azeite 5 dentes de alho triturados 2 litros de caldo de legumes ½ quilo de fubá fino Modo de fazer: Esquente um fio de azeite na panela e refogue o alho. Feito isso despeje o caldo de legumes na panela. Depois, sempre mexendo, adicione aos poucos o fubá. Mexa até que ele fique com consistência cremosa e grossinha.

Sarapatel

Reprodução: O Globo

O começo de tudo: as vendas nas carrocinhas e a criação da marca

“O Manuel, que é o velhinho que começou, estava andando e viu uma senhora baiana vendendo um angu em duas latas de tinta. Tinha uma lata com polenta, e a outra com miúdos. Ele olhou e falou que era meio nojento, né?”, brinca Rigo Duarte. “Mas ele provou, gostou e decidiu imitar. Pegou uma receita de um ensopado português, feito de miúdos de boi e bem concentrado e começou a vender”, conta Rigo Duartr, atual dono da marca.

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Ingredientes: 3 kg de miúdos de porco muito frescos (incluindo o sangue coagulado) 6 limões 3 pimentões 1 molho grande de hortelã ½ molho de cebolinha verde ½ molho de coentro 3 cebolas grandes 4 tomates 150 g de toucinho defumado 6 pimentas-de-cheiro 5 dentes de alho 10 folhas de louro sal a gosto 1 colher de sopa de pimenta do reino moída com cominho (opcional) Modo de fazer: Lave os miúdos com muito limão. Pique as cebolas no liquidificador, junto com os dentes de alho, os tomates, a cebolinha, o coentro e a hortelã. Misture os miúdos com temperos batidos e junte o louro, a pimenta-cominho e as pimentas-de-cheiro inteiras. Pique uma cebola bem miudinha e junte ao toucinho derretido numa panela, deixando dourar. Coloque os miúdos temperados no refogado de cebola e mexa bem. Junte toda a água de uma vez, cobrindo o sarapatel e ultrapassando em três dedos. Deixe cozinhar por algumas horas e sirva, acompanhado de farinha e arroz. Os cozinheiros recomendam que o sarapatel deve ser feito de véspera. Para o Angu do Gomes, você servirá cada prato, servindo o angu de milho primeiro e o sarapatel sobre ele.


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Praça XV

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A Praça XV, localizada no coração do Rio de Janeiro, diz muito sobre a memória da cidade. Além de ser um local onde inúmeras histórias de vida se cruzam, a antiga Praia do Peixe foi palco de acontecimentos importantes do passado. Segundo o historiador Maurício Santos, “passar pela praça XV é passear cercado de história”. Até meados da década de 1770, a Praia do Peixe foi o local onde os escravos trazidos da África desembarcavam e eram negociados. Ao aumentar suas proporções, o tráfico começa a incomodar a alta sociedade carioca que consegue a realocação do mercado de escravos. É a partir de 1774, que o Vice-Rei do Brasil, Marquês do Lavradio, transfere o comércio de escravos para a região do Valongo. As pesquisadoras Juliana e Carolina complementam: “Manuel Gomes da Silva desembarcou no Rio de Janeiro com a família, em 1955. Como bom mineiro, o presidente Juscelino era fã de Chico Angu e aprovou a iguaria popular no Rio. Gomes deu continuidade à atividade de venda de angu na rua, ainda em 1955, numa barraquinha instalada na Praça XV. Manuel instituiu a receita oficial da noite carioca com assinatura própria. Angu, no Rio de Janeiro, é do Gomes”. Depois de um tempo, o senhor Manuel Gomes ficou doente e não teve mais condições de trabalhar. Seu filho João Gomes, juntamente com o sócio Basílio Pinto, assumiram o negócio.

No final da década de 1970 eles já contavam com mais de 80 barraquinhas espalhadas pela cidade. O Angu do Gomes faz parte da cultura popular do Rio de Janeiro. Contava sempre com a presença de cantores e radialistas da época (Chico Anysio, Jô Soares, Grande Otelo, Oscarito) que, após terminarem os seus shows e programas, iam para a praça comer o angu. As antigas carrocinhas eram uma forma de representação de união. Pessoas das mais diferentes atmosferas sociais se sentavam para comer em harmonia. Com esse histórico, o angu foi reconhecido e tombado como o prato de comida mais democrático do Rio de Janeiro. João Gomes e Basílio Pinto tiveram um grande trabalho para administrar essa marca. Além de servirem um prato de qualidade, eles proporcionavam trabalho para quase 150 funcionários. Uma das histórias mais famosas das barraquinhas é a da contratação de um de seus empregados. Um homem que havia acabado de ser solto da cadeia, e como sua primeira refeição pediu um prato de comida para Basílio. Consumiu tão rápido que desmaiou depois disso. O homem foi socorrido por Basílio, e quando melhorou pediu um emprego e ali trabalhou mais de 20 anos. No início da década de 1990, o Angu do Gomes teve de ser fechado. Basílio e João estavam muito cansados de cuidar das barraquinhas. O negócio continuou parado até 2008 quando o neto de Basílio, Rigo Duarte, decidiu reabrir o comércio da família.

Arquivo Angu do Gomes

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gu do Gom

Arquivo An


Ressurreição Angu do Gomes no século XXI Eu comecei a querer desenvolver porque teve aniversário da Beth Carvalho de 60 anos, e ela queria Angu do Gomes. E aí um conhecido meu que tocava música, também sambista, falou: “Pô, eu conheço o neto dele, do fundador, e aí eu fiz o angu da Beth Carvalho no aniversário de 60 anos, e quem me contratou foi o Zeca Pagodinho.” Relembra Rigo. Rigo também quis prestar uma homenagem às antigas barraquinhas de angu. Construiu seu novo restaurante na mesma rua onde a primeira barraca havia sido montada. Como era de se esperar, o estabelecimento fez tanto sucesso que outras duas casas foram abertas: uma localizada no bairro Botafogo e outra também na Praça XV. Quando questionado sobre gerenciar um restaurante com tanta história, Rigo diz: “Eu me sinto na obrigação de manter essa história viva, né? .... Geralmente as coisas acabam muito cedo, a gente não tem bares centenários, não temos marcas históricas, então eu levanto essa bandeira de tentar fazer com que a casa sobreviva para sempre.” Apesar de todo sucesso que o Angu do Gomes possui, os últimos anos não foram fáceis. Precisou fechar seus dois outros restaurantes quando o surto de Covid-19 chegou. Rigo Duarte contou as dificuldades de se manter em um momento tão delicado: “Na saúde e no trabalho, foi bem complicado. Muita análise, muito choro, sofrimento, muitas noites sem dormir, muita tristeza, né? .... É difícil você que tem uma vida normal, já estabilizada, ter que voltar à estaca zero.” Compreendendo a situação, Rigo completa: “A vida é mais importante do que dinheiro, isso aí eu não tenho dúvida.” Uma das integrantes do grupo que produziu esta reportagem visitou o atual restaurante Angu do Gomes e contou como foi embalada pelo clima do lugar. “A boemia realmente envolve aquele boteco, dá pra sentir no ar. Só de passar na frente dá vontade de sentar em alguma mesinha e trocar ideia com meia dúzia de amigos. Rigo me deixou muito à vontade me mostrando o restaurante. E se teve uma coisa que aconteceu nessa visita foi que eu fiquei com água na boca.”, contou Lívia.

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Circo Seu Pará, cliente que poderia ser tombado como Patrimônio Histórico. Foto: Lí via Fernandes

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Prato que aquece o coração. Fonte: @angudogomes Rigo Duarte e Lívia Fernandes Foto: Lívia Fernandes


Arte que Alimenta

Manifestações artísticas em trens e metrô transformam a viagem dos cariocas Por: Jessica Martins, Jhennifer Bimbato e Patrick de Sousa

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Fonto: Jhennifer Bimbato


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stamos onde o povo está!”. Esse é o lema de artistas independentes que lutam pelo seu espaço, desde suas raízes nas periferias e subúrbios até o centro da cidade do Rio de Janeiro. Para eles, na maioria das vezes, o fio condutor de sua arte é o espaço público. Apropriar-se desse ambiente tornou-se não apenas uma opção, mas uma solução. Conhecidos como “artistas de vagão”, encontram seu palco nos trilhos, onde estão o seu sustento e propósito.

Renúncia e sonhos caminham juntos

As histórias por trás dos bastidores são de sacrifícios, sonhos e lutas. Flávio Lemos, vocalista da Banda Dona Zezé, contou como iniciou essa jornada. Incentivado pelo irmão, deixou o emprego para viver da arte na rua e do seu sonho: “O tempo passa né? E quando a gente vê, já está muito velho para fazer certas coisas”. Inicialmente, o propósito era divulgar sua arte e arrecadar recursos financeiros para investir no sonho. Hoje, sua banda já tem cinco anos, com apresentações, composição de músicas e gravação de forma independente. O cantor e compositor Victor Vasconcellos vivenciou algo parecido e pensou que dos vagões poderia sair o seu sustento. A primeira vez que cantou com o seu amigo no metrô, apenas por diversão, saiu com o valor de dois ingressos para o cinema. Atualmente, com suas apresentações, conseguiu produzir músicas autorais, um EP (extended play) com sua banda e consegue pagar suas contas. Esses artistas acordam cedo, embarcam numa estação e percorrem as linhas e ramais de trem e metrô. Ao final das apresentações, recebem alguns aplausos, contribuições e propostas de trabalho em eventos. Mas nem sempre. “Tem dias que a gente trabalha e volta pra casa com R$ 20, infelizmente. Mas é justamente nesses dias que acontece alguma coisa que me faz perceber que o nosso trabalho vale a pena, faz a diferença!”

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Agentes transformadores

“Estava tocando a música ‘Girassol’, da Priscilla Alcântara e do Whindersson Nunes e uma passageira começou a chorar na minha frente. Depois ela me mandou mensagem no Instagram agradecendo pela música, dizendo que foi algo que tocou muito nela, que precisava ouvir aquela palavra”. Para Victor, são experiências como essa que o motivam. Segundo ele, a escolha das músicas e das palavras certas fazem toda a diferença no astral de quem está ouvindo. “Me senti um porta voz de algo que fosse ajudar alguém, tá ligado?”. Para Flávio, “dentro do trem, mesmo que por um breve momento, as pessoas se libertam da rotina fatigante. A arte é o alimento da alma”. Prática que é descrita pelos próprios passageiros. “Hoje vi esses meninos novamente em Madureira e eu faço questão de deixar esse recado pra eles! Eu pegava o trem toda semana para fazer hemodiálise com o meu marido. Hoje, ele comemora um ano de transplante e eu consegui ver essa banda de novo! Muito obrigada pela força que vocês me deram” , conta uma admiradora.

Me senti um porta voz de algo que ia ajudar alguém, tá ligado? Foto: Fábia Souza


Apagam-se as luzes, mas não a arte

Foto: Jessica Martins

A pandemia do Covid-19 causou grande impacto no trabalho dos artistas. A maioria deles depende da contribuição dos passageiros. Mas o que acontece quando os “palcos” ficam vazios? De onde tirar o sustento? O auxílio emergencial foi uma saída. Com a volta da população trabalhadora aos metrôs e trens, os artistas também retornaram. “Agora já está voltando um pouco ao normal, no início estava mais vazio e as pessoas estavam mais fechadas por causa de toda tragédia que aconteceu no mundo”, comenta Victor. Com a volta gradativa, ele relata como está sendo difícil reconquistar as pessoas, principalmente sem a expressão facial escondida pela máscara de proteção. “O lance de cantar de máscara ainda é chato, mas é algo necessário, infelizmente. Tira muito da visão da pessoa, pois não só a música influencia, mas toda a expressão facial que a gente coloca, a emoção.”

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Foto: Jessica Martins

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“Desculpa atrapalhar o silêncio da sua viagem”

Mesmo com o fim da pandemia, há outra pedra no caminho. O que poderia ser uma constante atmosfera de melodias, é quebrada pelas tensões que envolvem as leis e a luta pela regulamentação da expressão artística nos vagões. “No metrô, caso encontrem a gente em flagrante, os seguranças pedem gentilmente para que a gente se retire e nos encaminham para fora da estação, como se a gente fosse um criminoso”, manifesta Flávio. As empresas de transporte são contrárias a essas atividades afirmando os riscos que poderiam causar dentro dos vagões, como acidentes ou falta de acessibilidade. Existem relatos de ações truculentas por parte dos guardas. Victor Vasconcellos descreve a sensação de ser retirado do vagão: “É um saco, não vou mentir não, isso desanima muito porque o fato de você estar sendo retirado dali, me dá a sensação de que eu tô cometendo algum crime, alguma coisa muito errada, sendo que eu só estou cantando”. “O problema não são os guardas, mas quem cria a ordem, quem manda mesmo na parada. São eles que mandam os guardas fazerem as operações.” continua Victor. Na tentativa de impedir as manifestações artísticas dentro dos metrôs sem prejudicar sua reputação, o MetrôRio implantou em 2016 o projeto Palco Carioca. O projeto selecionava estações adequadas a performances musicais em dias úteis, das 12h às 20h. O artista se inscrevia gratuitamente através do site do Metrô Rio e o cachê era algo voluntário. Com a pandemia, o Palco Carioca passou a ser online e ganhou maior visibilidade. Através das suas mídias sociais, a instituição promovia a imagem de que apoiavam os artistas, algo distante da realidade. “O palco carioca, com todo respeito, é mais um migué da própria instituição do metrô para falar que faz algo para ajudar aos artistas, mas, na verdade, isso não ajudou muito não”, diz Victor. Citada pelo músico Flávio Lemos, a frase “É nosso dever moral, e obrigação, desobedecer a uma lei injusta” de Martin Luther King, traz a ideia da resistência que os artistas vivem.


Em 2014, o deputado estadual André Siciliano (PT) apresentou o projeto de Lei 2958/2014, para autorizar manifestações culturais no interior de trens e metrôs. Apenas em 2018, a lei que aprovava artistas foi sancionada pelo ex-governador Luiz Fernando Pezão. Os artistas não poderiam cobrar cachê dos usuários, as doações deveriam ser voluntárias. As empresas deveriam criar um cadastro online para os artistas que gostariam de se apresentar. A Supervia criou um regulamento para o cadastro desses artistas. Várias condições foram impostas, como horário limitado para as apresentações e local selecionado pela própria empresa. A medida tinha o objetivo apenas de organizar o horário das apresentações, portanto, não havia impedimento para que os artistas não cadastrados trabalhassem. Em 2019, o Tribunal de Justiça do Rio passou a considerar ilegítima a lei que regulamenta os artistas em estações e vagões. A decisão foi tomada com base na ação movida pelo senador Flávio Bolsonaro (PL/ RJ), alegando que as apresentações poderiam causar risco para a segurança e o bem-estar dos passageiros.

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Foto: Jessica Martins

Nessa queda de braços, tanto os sindicatos que representam os artistas na Câmara, quanto os artistas atuam em conjunto. O vocalista da banda Dona Zezé, por exemplo, cita como os membros do grupo “Arte no Vagão” estão sempre envolvidos em manifestações, protestos e discussões na Câmara: “A gente grita, mas infelizmente a gente continua sendo a minoria.”, lamenta.


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Três enredos do mesmo Carnaval

Se uma andorinha não faz verão, uma visão não faz uma grande festa.

Por: Gabriel Lopes, Eduarda Reis, Enzo Tomaz, Marlon Rismo.

Marquês de Sapucaí Vazia Foto: Enzo Tomaz

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Qs Gigante da Lira/Reprodução.


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Abre-alas

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Instituto duarda

r. Foto: E

Beija- Flo

ara Jorge Sapia, vice-diretor da Associação de Blocos Sebastiana, o Carnaval deve ser livre e aberto a todos, deve ser plural. O Carnaval, é um reflexo da sociedade e mostra como ela se comporta e quais são as suas demandas. Por isso, não deve ser visto como uma pausa temporária dos problemas, mas sim politizado e pensado para melhorias e reivindicações sociais. Devemos perceber que o Carnaval, por ser um vetor de união entre as classes e cores que convivem no Rio de Janeiro, tem como um dos principais objetivos mostrar do que é feita a população, que há todo tipo de gente e que somos todos iguais, apesar de tudo. Sapia critica o Carnaval que tem como protagonista as caravanas, justamente por separar os foliões e elitizar a festividade. O Carnaval tem um histórico de luta a favor da liberação dos blocos durante a ditadura civilmilitar brasileira, da liberdade festiva e das críticas ao Estado e à sociedade. Há quem enxergue o Carnaval com uma abordagem mais cultural, como faz Maurício de Jesus, filho do importante carnavalesco Geraldo de Jesus, o Candonga. Maurício acha que é interessante que assuntos de caráter político sejam explorados, mas que isso deve ser feito de vez em quando. Mauricio, diferente de Sapia, afirma ser contra a politização da festividade, pois, segundo ele, isso enfatiza coisas negativas que divergem do clima do Carnaval. Para ele, a festa já possui uma grande característica de inclusão por si só e é ela, em conjunto com a alegria, que deve ser ressaltada. Apesar disso, Maurício, que sempre esteve imerso no Carnaval, diz: “Hoje você tem dentro do samba a mistura de classes sociais. Então, por que não aproveitar isso para a união do povo?”.

Quadro fotográfico Candonga/Reprodução Mestre Candonga foi um amante do Carnaval e sempre esteve em contato direto com diversas escolas de samba. Ele foi um dos responsáveis não só por conseguir o apoio do governo da época, mas também por atrair patrocinadores e maior visibilidade para o evento. Além disso, idealizou o segundo recuo e foi importante para o reconhecimento do samba como cultura por parte da alta sociedade.

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A Sapucaí é importantíssima para o Carnaval carioca, mas, segundo Maurício, ela poderia ser útil durante todo o ano: “Infelizmente, se apresenta a maior festa do planeta durante três dias e daí acabou, tudo para, tudo morre”. O sambódromo, que sempre foi palco de desfiles e folia, poderia ser aberto e sediar atividades que promovessem cultura, renda e alegrias durante todo o ano.

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Foto: Enzo Tomaz


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Voo da Beija-Flor

As escolas de samba proporcionam várias experiências culturais e sociais para os cidadãos, principalmente para as comunidades que possuem uma interação com elas. Através de projetos, as escolas promovem vivências para a população, levando conhecimento sobre diversas áreas, como música, arte, esporte e, até mesmo, gastronomia. Esses projetos são alimento para a alma e para o corpo, uma forma de promover o Carnaval dentro de cada participante e auxiliá-los em suas vidas. “Todo mundo da parte social, cultural, acadêmica, esportiva, gastronômica e do alto rendimento estão juntos em busca de algo maior”, afirma Thiago Portugal, coordenador dos projetos sociais do instituto Beija-Flor. Stefany Silva é uma das alunas do curso de gestão de eventos. Segundo ela, esses cursos são capazes de mudar pensamentos, abrir mentes e direcionar indivíduos para aspirações profissionais. Eles são importantíssimos para a comunidade de Nilópolis e auxiliam muitos indivíduos que possuem menor condição financeira. Vale ressaltar que o projeto é tão grande que, normalmente, consegue ajudar mais pessoas que a própria prefeitura da cidade, a qual não tem competência para suportar grande parte da comunidade.

Time futsal Beija- Flor. Foto: Eduarda Reis

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Os carnavais com o passar do tempo

Mas quais as principais diferenças entre os Carnavais de Maurício, de Sápia e de Thiago e o que se tem hoje? Segundo eles, houve muitas alterações com o passar do tempo. Algumas delas são boas, como o jeito que a juventude festeja e o uso de fantasias. Apesar disso, para Maurício, muita coisa se perdeu também. Um dos exemplos foram os bailes de Carnaval, que ocorriam em alguns dos hotéis e casas de festas mais luxuosas do Rio. Segundo ele, esses eventos eram incríveis, pois ocorriam em locais que normalmente eram exclusivos, mas que, nessa época, se desfaziam das barreiras para se tornarem ambientes abertos e inclusivos. Maurício também diz que os desfiles entram na conta das perdas, pois eles estão se diluindo e parece que, a cada ano que passa, eles se distanciam mais dos desfiles originais, que focavam na história de luta social e política a favor dos marginalizados, e se aproximam de algo mais pomposo e espalhafatoso. “Quando você inova bastante, tem que tomar cuidado porque pode derrubar uma tradição, uma cultura. Vou contribuir sempre do lado da tradição e da cultura”, diz Maurício. Sápia defende o lado da responsabilidade social e da união do Carnaval. Thiago acredita e trabalha pelo assistencialismo. No fim das contas, o que os difere é a forma de fazer festa e o lugar no qual estão inseridos, mas o amor pelo evento é comum a todos, como diz Maurício: “O Carnaval é uma família, né, cara?”.


Comer é um ato político

Agricultura familiar, o prato básico da merenda escolar Por: Karine Nunes, Thaís Oliveira e Yasmin Alves.

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omer é o melhor para poder crescer”. A música que as crianças cantam na hora da merenda possui um significado maior do que aparenta. O poder que a alimentação escolar tem sobre o desenvolvimento da cidade influencia também a economia graças ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que garante a compra de produtos dos pequenos agricultores. O PNAE é um dos maiores programas de combate à fome do mundo e o maior da América Latina. “Já cheguei a viajar para fora do país para falar do programa de alimentação escolar de São Paulo, tamanha era a qualidade! Fui para França, para Suécia e para o México”, diz Luiz Bambini, engenheiro agrônomo que já foi o gestor responsável pela compra da alimentação escolar diretamente da agricultura familiar na metrópole paulistana. Embora exista há muitas décadas, apenas em junho de 2009 o programa passou a abranger toda a rede pública, levando em conta questões ambientais e valores nutricionais dos alimentos. Além disso, o PNAE exige agora que, pelo menos, 30% dos gastos em alimentação escolar, realizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), sejam voltados para a agricultura familiar.

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A exigência evita o desperdício de alimentos, assegura a compra por um preço diferenciado e auxilia no aproveitamento da produção. Graças aos ajustes do PNAE, pequenos agricultores podem desenvolver suas propriedades, expandir plantações e fornecer melhores condições de vida às suas famílias. A maior parte dos agricultores familiares que fornecem produtos para as escolas quase não fazem uso de agrotóxicos. Bambini explica que a qualidade da mercadoria vai influenciar na compra feita pelas instituições escolares. Frutas e legumes orgânicos, por exemplo, vão ter prioridade. Saber a origem dos alimentos e como são produzidos contribui para estabelecer formação de confiança entre o ponto de partida e o destino final da comida. As famílias são as responsáveis pela maior parte dos alimentos que circulam pelo Brasil desde o início do desenvolvimento de práticas agrícolas. O programa incentiva que produtores forneçam às escolas tipos variados de comida e os estimulam a pesquisarem novas técnicas de produção de culturas.


Do solo até as escolas Foto: Karine Nunes

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Para que o alimento faça seu caminho até as escolas, antes é feita uma pesquisa de preços e elaborada uma série de documentos. Após a aprovação dessa papelada, serão decididos os cronogramas de entrega, a quantidade e o que será comprado. A alimentação escolar deve seguir um cardápio elaborado por um profissional em nutrição que deve se preocupar não só em balancear os valores nutricionais, mas também com qual alimento poderá ser fornecido e como a sua produção será afetada ao longo das estações do ano. O nutricionista escolar do município de Paracambi, RJ, Bruno Ribeiro de Mota, destaca que cada escola, setor e criança terá uma realidade diferente. “Eu tenho uma escola rural que fica bem dentro de onde há plantação de banana. Aquelas crianças vêem banana o dia inteiro, de janeiro a dezembro. Se eu boto banana [no cardápio], elas não comem”. Após a entrega, o próximo passo é realizado pelas cozinheiras das instituições, que são encarregadas do preparo, preservação e lavagem adequada. Vanilde Gomes, merendeira de Minas Gerais com quase 20 anos de trabalho no ramo escolar, compartilha um pouco de sua longa experiência nessa área. “A merenda é muito bem preparada e ela é prioridade na escola. O manuseio, a aparência, até para o


Pão oferecimento à criança tem toda uma técnica, visto que trabalhamos com um público diferenciado. A gente recebe muito elogio dos pais, porque às vezes a criança não come em casa e aprende a comer na escola por causa da aparência e do sabor do alimento. Tem criança que forma, vai embora, encontra com a gente e fala sobre como sente falta da merenda da escola”. Ela ainda conta que, assim como as colegas de trabalho, também é encarregada de observar as reações dos estudantes em relação aos pratos servidos. A recepção é relatada para o nutricionista encarregado daquela instituição, que irá se basear nela para garantir uma aceitação maior do cardápio. “Nesse período, quando você oferece produtos mais saudáveis, contemplando o sistema alimentar, você faz com que essa criança possa estar levando esses hábitos para a sua vida adulta [...] É importante ter tudo disponível para que a criança experimente pelo menos 10 vezes de formas variadas”. O benefício por trás disso é que a criança vai ser ensinada desde cedo sobre a importância do que comer, e irá levar esses hábitos para fora da escola. Com isso, afetará o paladar dos familiares à sua volta. Porém, a necessidade de garantir que a alimentação fornecida nas escolas seja saudável vai além do quesito da educação nutricional. São inúmeros os jovens que dependem do alimento servido no colégio para, de fato, conseguir ter o que comer, já que o Brasil voltou a lidar com a insegurança alimentar nos últimos anos, após ter deixado o Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas) em 2014. Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), divulgados em 2020, 19 milhões de brasileiros estão em situação de fome.

29 Fotos: Karine Nunes


O que é um alimento saudável?

Para Bruno, “um alimento saudável é aquele que tem uma sustentabilidade econômica, ambiental e social”. “É a banana que o produtor rural daqui do município colheu e trouxe para a minha escola em curto prazo”, complementa. Já Vanilde diz que são aqueles que “ não têm uma boa aparência, mas são mais saudáveis”. “No paladar da criança não muda”, finaliza. A questão dos agricultores e do caminho da comida se relacionando com os alimentos saudáveis ainda é mencionada por Luiz Bambini. “[O alimento] não precisa atravessar o país, ou seja, não precisa vir no caminhão soltando fumaça pela estrada e poluindo o meio ambiente. Esse desenvolvimento local é benéfico para todo mundo”. Outro ponto enfatizado foram os agrotóxicos. Luiz e Bruno negam a estes o uso do termo “defensivo agrícola” e os apontam como veneno. “A relação da agricultura familiar com a agroecologia e a produção sem veneno é muito mais íntima”, afirma Bambini. “Se faz mal para gente que está consumindo não tão diretamente, imagina para quem está ali botando a mão no agrotóxico sem máscara e equipamento de proteção. A única coisa que os agrotóxicos fizeram, e fazem até hoje, é dar lucro para quem vende. Se formos pensar em uma escala de lucro, a agricultura familiar tem rendimentos até maiores”.

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Foto: Karine Nunes

A única coisa que os agrotóxicos fazem é dar lucro para quem vende.


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Em tempos de pandemia Com a exigência do distanciamento social, as escolas fecharam. No entanto, houve uma outra consequência para as crianças da rede pública: a falta de ter uma refeição garantida todos os dias, por direito. Gabriele Carvalho, assessora de segurança nutricional do Observatório de Alimentação, afirma que “tem um arcabouço de pessoas e setores envolvidos que vão se beneficiar ou não da operacionalização do programa”. Luiz Bambini cita que algumas prefeituras suspenderam os contratos com os agricultores, o que afetou toda a renda dessas famílias. De acordo com ele, houve um grande processo para buscar alternativas de vendas. O nutricionista relatou com emoção que, até antes da pandemia, os tópicos da fome e da insegurança alimentar dos estudantes eram visíveis. “A gente fornece 30, 40, 50% das necessidades dessas crianças com a alimentação escolar, só que de segunda a sexta. [...] Fico pensando muito no que elas comem nesses outros dias que não vão para a escola”.

Foto: Yasmin Alves

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Quanto à distribuição de kits, Bruno menciona que nem eles suprem essa necessidade porque os alimentos costumam ser divididos entre toda a família e, caso focassem na compra pelos pequenos produtores, eles seriam muito perecíveis. “A gente fez um processo muito amplo de discussões no início da pandemia [...] Se damos cartão em dinheiro, muitos não vão comprar alimentos ou, se comprarem, não serão saudáveis na maioria das vezes. [..] Já a questão dos ultraprocessados e produtos como arroz e feijão não iriam valorizar a agricultura familiar local”. Após a decisão, ele conta que utilizou 100% dos alimentos provenientes da agricultura familiar e que foi feito um trabalho intenso na montagem e entrega. “Foram realizados mutirões nas escolas para os kits e eu fiquei no controle de qualidade, porque era um único técnico da área que tinha para fiscalizar a segurança, higiene sanitária e o distanciamento social”. Gabriele, por sua vez, destaca a irregularidade entre estados com a produção dos kits. Nem todos tiveram a oportunidade de receber os alimentos da maneira que Bruno informou. “A grande questão que a gente viu foi que cada estado e município ficou para decidir o que fazer. O Paraná, por exemplo, foi um estado que conseguiu cumprir em alguma medida. Agora, teve lugares que simplesmente não fizeram nada”. “Teve estados que priorizaram famílias cadastradas em algum programa do governo, principalmente o Bolsa Família [...] no meio da pandemia, daí a mãe perdeu o emprego e o pai está em situação diferente. Se antes essa não era uma família considerada em vulnerabilidade social, passa a ser. Mas ela não é atendida porque não está cadastrada no programa”, relata.


Ambos mencionam a verba como fator decisivo. Enquanto a assessora garante que, pelo menos, o FNDE não as interrompeu, o nutricionista comenta que, infelizmente, elas não são, nem eram antes, suficientes. “O dinheiro que o FNDE repassa é muito pouco. É coisa de 10, 20 reais, por mês, por segmento. Por criança! Agora imagina você montar um kit com 10 reais! Quando era feita a alimentação nas escolas, antes da pandemia, o município de Paracambi entra com a sua contrapartida e integra com muito mais que 10 reais. Só que, nos kits de alimentação escolar, a prefeitura se recusou. O que pude fazer foi me virar para fazer 10 reais renderem com alimentos saudáveis”.

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Fotos: Karine Nunes


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Por que um programa com tanto valor não é valorizado?

Problemas que vão além da pandemia

Foto: Karine Nunes

Embora a ideia do PNAE seja boa, é possível citar várias falhas comuns, como a quantidade de burocracia e a pouca fiscalização. No entanto, um dos maiores obstáculos dessa política é assegurar a compra obrigatória de 30% da agricultura familiar. Se não houver garantia dessa aquisição, também não há garantia de renda para os pequenos produtores e de saúde para os estudantes. Em 2019, a Fiocruz fez um apanhado geral dos dados disponibilizados pelo FNDE sobre a compra de alimentos em 27 cidades do país. Cerca de um terço apresentou compra acima do mínimo recomendado, com concentração no Nordeste; porém, o Sudeste apresentou a menor porcentagem de compra (6,4%). Em cidades rurais, o programa costuma funcionar melhor, afinal, é mais fácil para o pequeno agricultor não precisar se deslocar de sua terra. A falta de nutricionistas responsáveis pelas escolas também é outro problema. O Rio de Janeiro possui, por exemplo, uma nutricionista chefe e três auxiliares para todo o estado. Em Paracambi, Bruno é responsável por 20, e, em breve, 21 unidades escolares com cerca de 5.000 alunos. “Com certeza todas as escolas recebem o mínimo dos 30% da agricultura familiar, mas, como eu trabalho sozinho, não tenho como garantir tudo, porque não consigo fiscalizar as 20 escolas ao mesmo tempo”. Manter tanto as crianças quanto os profissionais cientes de onde vem o alimento e a diferença que ele causa pode fortalecer o programa. Talvez assim, a compra ultrapasse o mínimo nos próximos anos.

Modelo de exemplo lá fora, para chegar à referência que é hoje o PNAE passou por mudanças. A troca de governantes influenciou na maneira em que a gestão funcionaria (ou não funcionaria, em alguns casos). Quanto ao governo Jair Bolsonaro, é possível perceber a falta de interesse em apoiar a alimentação escolar. Prova disso é o “PL do Leite”, aprovado no ano passado, de autoria do deputado federal Victor Hugo (PSL-SP). O texto disponibiliza 40% da verba do FNDE para a compra de leite fluído, ou seja, em forma líquida. Não coincidentemente, os maiores fornecedores deste produto não estão na agricultura familiar, e sim os grandes empresários agrícolas. Além disso, vários dos pequenos camponeses não possuem condições de transporte e armazenamento do leite fluido nas escolas. A pergunta que fica é: quem o governo está apoiando de verdade? Até porque, essa política enfraquece a pequena produção que abastece o PNAE. Diógenes Rabello, militante do MST e assessor do Observatório de Alimentação Escolar, afirma: “Quando se toma uma posição política de privilegiar o setor do agronegócio, também se toma uma posição política de desprestigiar a agricultura camponesa”. É isso o que acontece quando se tem, por exemplo, cerca de 75% dos recursos financeiros que são destinados para a agricultura no Brasil como um todo indo para o agronegócio. “Existem muitas pessoas vivendo com menos recursos e poucas pessoas vivendo com quase todo o recurso que é destinado para a agricultura. Isso causa uma desigualdade social muito grande no Brasil”, acrescenta Diógenes. Por isso, é fundamental que a população saiba de seus direitos, saiba do PNAE e o papel que ele desenvolve na vida de todos, porque como Luiz Bambini ressalta: Comer é um ato político. Quando você escolhe o que comer, você muda o mundo.


Dieta do Alfabeto: “I” de Insegurança Alimentar

Foto: João Quintaes

Além de diminuir a fome, os movimentos sociais buscam realizar doações de alimentos mais nutritivos. Por: Anna Lara, João Quintaes, Juçara Alves, Marina Moreira e Nicole Lopes

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or que a periferia não conhece alimentos como espinafre? Por que esses alimentos não estão no gosto popular da população?” questiona Bruna Távora, membro do coletivo de comunicação do MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores). Durante as ações promovidas pela organização, ocorre constantemente uma procura maior por alimentos que estão literalmente na boca do povo como salsicha e óleo. Os membros do MPA, entretanto, canalizam seus esforços para criar vínculos que permitam uma abertura ao diálogo, por refeições mais saudáveis. Movimentos sociais como o MST (Movimento Sem Terra), MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e o próprio MPA priorizam a arrecadação de alimentos mais nutritivos. As doações não contribuem apenas para saciar a fome daqueles que as recebem, mas também para repor os nutrientes e aumentar a imunidade já que vários donativos são orgânicos e livres de agrotóxicos.

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O Brasil volta ao mapa da fome

Criado nos anos 70, o termo ‘segurança alimentar’ focava a disponibilização de alimentos básicos para consumo, ou seja, a capacidade de produção agrícola dos países. Na década seguinte, após discussões na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e na OMS (Organização Mundial da Saúde), o foco foi mudado para o acesso e o uso adequado dos alimentos para suprir as necessidades da população. Entre 2017 e 2018, no Brasil, a insegurança alimentar grave - quando não se tem nenhum ou quase nenhum acesso ou disponibilidade de alimento por um longo período de tempo atingia 3,1 milhões de lares, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares: Análise da Segurança Alimentar no Brasil, feita pelo IBGE. Esse número, segundo Pablo Vergara, membro do grupo de comunicação do MST, está diretamente relacionado ao desmonte da política pública para a reforma agrária. “Houve uma queda em todos os tipos de incentivos para a agricultura familiar. Em contrapartida, o governo federal vem fortalecendo as políticas de créditos e fomento ao agronegócio”, diz. Segundo Humberto Pereira, “enquanto o alimento for considerado commodity, o mesmo será considerado uma mercadoria pela qual uma parte da população não poderá pagar e, assim, estará suscetível à fome”.


Reprodução/MST

Responsabilidade de quem? Muitos movimentos sociais se esforçam para diminuir a fome no Brasil, mesmo que esse não seja o intuito inicial. “Ações sociais são sempre ações de mitigação, que apagam o incêndio de um fogo que não deveria ter sido propagado”, explica Bruna Távora. A Cozinha Solidária é um exemplo disso. O MTST é uma organização do meio urbano, para lutar pela reforma urbana com ocupações nas periferias, favelas e centros das cidades. Hoje, o movimento realiza o projeto “Cozinha Solidária”, que oferece alimentação saudável e nutritiva em diversas cidades. Uma parte considerável do abastecimento das cozinhas solidárias do MTST conta com a produção dos pequenos agricultores do MST e MPA. Essa conexão ficou popularmente conhecida como “roça-favela” e se fortalece por meio do financiamento coletivo e de editais estaduais.

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Assistencialismo: resposta temporária Ventava bastante naquele dia, mas ainda assim as mães estavam ali firmes, muitas delas com suas crianças no colo, aguardando com paciência serem chamadas. Ainda que temporária, a ajuda era muito bem-vinda. O Instituto Meduca, ONG auxiliada pela campanha Juntos Contra a Fome”, do Shopping Nova Iguaçu e Top Shopping, realizou um grande evento de distribuição de cestas básicas e kit de higiene infantil, no dia 22 de junho, no CIEP Iara Simão Vieira, no bairro Dom Bosco, Nova Iguaçu. O esforço era perceptível nos rostos cansados, autoestima abalada, devido à atual necessidade de alimentos. Algumas mães solos, meninas-mulheres que engravidaram na adolescência. Muitos perfis, num quantitativo de mais de 100 mulheres. Após receber suas cestas básicas e seus kits, as mulheres saíam carregando quase 30kg, algumas ainda segurando seus filhos ou empurrando seus carrinhos.


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Ações sociais apagam o incêndio de um fogo que não deveria ter sido propagado Foto: Anna Lara

“Nós percebemos, enquanto movimento urbano que os alimentos produzidos pelos pequenos agricultores tem um custo mais elevado pela falta de fomento dos governos, de políticas públicas. Por conta disso, na mesa das famílias mais pobres, não chegam os alimentos produzidos pelos pequenos agricultores”, conta Julia Ladeira, coordenadora do MTST no Rio de Janeiro. Segundo a pesquisa Perfil Socioeconômico de Consumidores de Produtos Orgânicos, feita por especialistas em alimentos na feira da Glória, Rio de Janeiro, a maioria dos consumidores de produtos orgânicos entrevistados são mulheres de nível superior, com faixa etária entre 40 e 59 anos. Com relação à renda familiar, 54% dos consumidores declararam receber acima de dez salários mínimos. Julia defende a retomada do funcionamento de programas políticos de fomento à agricultura familiar. “Os governos deveriam retomar programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e outros programas de fomento da produção de alimento saudável”. Outra medida seria “uma renda básica que garanta o acesso das pessoas a uma cesta básica e, em conjunto com isso, retomar políticas importantes como os restaurantes populares, que podem ser ampliados e conectados com outras redes como as cozinhas solidárias”, diz. Julia acredita que o projeto supre a falta de quem não pode acessar os restaurantes populares nas metrópoles porque “as cozinhas solidárias são justamente nas periferias porque as pessoas não conseguem ter acesso às regiões centrais”.

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Protagonismo feminino em ações sociais

Os afazeres domésticos, e, sobretudo, tarefas referentes à escolha e ao preparo de alimentos são comumente relacionados ao feminino. Durante a crise alimentar que o país atravessa, por conta dos impactos da pandemia do coronavírus e do desamparo dos governos, dados demonstram que a fome também tem indicativos de gênero. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar), no último trimestre de 2020, 9% dos domicílios sofriam insegurança alimentar grave. Entre os domicílios chefiados por mulheres, esse índice chegava a 11,1%. Esse índice se agrava quando se considera a raça. Em 10,7% dos lares onde residem pessoas pretas ou pardas a fome esteve presente, contra 7,5% entre casas de pessoas brancas.

Foto: Juçara Alves

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Se por um lado as mulheres passam por maior vulnerabilidade ligada a questões alimentares, dentro do contexto de organizações populares elas também se tornam protagonistas, como no caso das cozinhas solidárias. Segundo Julia, em uma live para o curso de Jornalismo da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), “esse é um recorte interessante, porque a cozinha é muitas vezes colocada como um local de “aprisionamento” (...) e quando você transporta isso para uma cozinha coletiva, você ressignifica totalmente o espaço da cozinha. Aí, ela passa a se tornar um espaço de empoderamento, de emancipação das mulheres, porque é para além de fazer e distribuir comida, que tem já por si só um peso e uma importância gigantesca”. Perspectiva compartilhada pelo MPA, que deseja manter as entregas de forma contínua pelo “Comitê Popular do Alimento”, majoritariamente constituído por mulheres. Antes das distribuições de alimentos, o grupo promove pequenas rodas de conversa, verbaliza o intuito das ações e elucida motivos para a preferência por alimentos naturais ao invés de processados. “A gente tem esse trabalho de comunicação, para informar sobre nossas ações e compartilhar visões de mundo. Então eu vejo como uma grande oportunidade de fortalecimento do movimento como um todo”, reforça Bruna.


O algoritmo como o novo patrão Procurando emprego? Entra aí no app

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Por: Marcus Vinicius Brandão, Matheus Mendonça, Rafael Gutierrez e Tiago Freitas.

lan Mello Lima, 31 anos, morador de Campo Grande, Rio de Janeiro. Após ser dispensado da empresa, decidiu embarcar no mundo dos aplicativos. Buscando alternativas em meio ao caos proporcionado pelo covid-19, Alan teve dificuldades de conseguir um emprego de carteira assinada. A solução foi abandonar o modelo tradicional, preparar sua moto e rodar a cidade como entregador da Uber Eats. A primeira entrega de Alan aconteceu em março de 2021. De lá pra cá: muito trabalho, nenhum tempo livre e alguns acidentes no currículo. Nos aplicativos é comum ter sistemas de pontuação e horários. Manhã, tarde e noite são bons horários para conseguir pontos. Na madrugada, a pontuação para subir o seu “ranking” é menor. Mesmo com todos os riscos, Alan trabalhou o dobro em um horário ruim para que sua conta chegasse a um bom ranking. “Às vezes eu acordava, ligava o aplicativo, saia às dez e meia da manhã e voltava às seis da manhã do dia seguinte” Embora tenha sofrido três acidentes em três meses de trabalho como entregador de aplicativos, ele relata que o emprego informal foi sua rota de fuga da fila dos mais de 14,7 milhões de desempregados brasileiros. Em contrapartida, depois de seu último acidente, Alan está em casa. Sem receber nada do aplicativo e com sua conta “zerada”, o entregador vai precisar voltar trabalhando o dobro.

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Trabalho

Empreendedorismo ou exploração?

O entregador não para de trabalhar porque o horário dele acabou. Os aplicativos vendem a ideia de que pessoas como o Alan não são trabalhadores, mas sim empreendedores. Quanto mais eles trabalham, maior sua renda e mais benefícios. Os entregadores só param quando as empresas conseguem exaurir a força de trabalho deles. Alan Mello diz que trabalhar tantas horas, sem se alimentar adequadamente, sem ver sua família e sem o descanso são fatores que causam acidentes. Os entregadores possuem a consciência de que não podem parar. Se pararem, sua renda diminui. Seus bônus são reduzidos. Suas estrelas ficam baixas. Suas contas “esfriam’’. Os aplicativos de delivery surgem como uma forma de facilitar o fluxo de alimentos nas cidades. Na teoria, é bom para todo mundo. O consumidor recebe o alimento sem sair de casa e o entregador possui maior autonomia no emprego. A partir da consolidação do capitalismo e com o avanço da tecnologia, uma nova forma de trabalho é criada e identificada pelo termo “Uberização”.

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Foto: Matheus Medonça

Às vezes eu acordava, ligava o aplicativo, saia às 10h30 da manhã e voltava às 06h wda manhã do dia seguinte


Foto: Matheus Medonça

Uma nova forma de se pensar o trabalho: A uberização

Comecei a rodar aos 15 anos e nunca rodei em aplicativos

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Esse conceito constitui-se na ausência da formalidade prevista pela CLT e na ideia de uma flexibilização do trabalho. O indivíduo é levado a acreditar que, trabalhando para um aplicativo de comida, por exemplo, poderá montar seu próprio expediente. Por outro lado, a ausência do contrato formal ocasiona um efeito oposto ao esperado. A falta de garantias em situações de acidentes e a inexistência de direitos tornam essa modalidade mais incerta do que parece. A noção de controle do serviço se perde com a realidade exploratória dos aplicativos. Os clientes, em sua maioria moradores de grandes centros urbanos, dependem de entregadores. Os aplicativos trazem para as entregas toda a frieza que a tecnologia pode proporcionar.Com apenas alguns movimentos no celular o cliente pode designar uma nota baixa ao trabalhador desconhecido que trouxe sua comida. Apesar da nova configuração do trabalho, há quem consiga entregar comida nas cidades sem se submeter aos aplicativos.


Trabalho Antônio Victor Queiroz, VT, de 21 anos, trabalha como entregador de comida há seis anos e nunca rodou em aplicativos. “Quem roda em aplicativo acorda e espera o pedido tocar. Se ele não tocar, o entregador não faz nada na rua. Por isso prefiro trabalhar fixo’’ conta o entregador. Por mais que os trabalhadores de aplicativos sejam cada vez mais comuns nos últimos anos, são inúmeros os entregadores que não veem como boa opção a relação de dependência com os aplicativos. A prática de rodar fixo, como chamam, vai contra tudo o que os aplicativos pregam. São poucos os estabelecimentos que não se renderam à lógica da uberização e desafiam a ascensão dos aplicativos. A falta de carteira de habilitação e regulamentação dos veículos é natural entre os entregadores que resolvem trabalhar com as lojas. Para alguns empresários é melhor ter uma relação direta com seus entregadores - o que facilita na hora de lidar com alguns problemas, como VT explica ao falar de uma mulher que o acusou de roubar 10 reais em uma corrida. Victor diz que se não fosse a relação pessoal que tinha com seu patrão, ficaria em uma situação ruim. “Se eu trabalhasse em aplicativos estaria ferrado, já teria sido bloqueado, perdido estrelas e dinheiro’’. Os entregadores possuem um vínculo com a cidade que poucos cidadãos têm. As metrópoles não se modificaram para acoplar esses trabalhadores. Continuam caóticas, desordenadas, violentas e inseguras. O perigo iminente de Victor, Alan, Jefferson, Carlos e Kaio perderem suas únicas fontes de renda e até mesmo suas vidas é uma realidade.

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Qual a diferença entre os salários? ‘’Eu consigo fazer uma média de 1.800 reais até 2.800 reais por mês, às vezes mais, quando as semanas são boas’’. Segundo Alan, o aplicativo têm promoções que incentivam o entregador a fazer mais entregas em pouco tempo ou em determinado local que aumentam o valor recebido por entrega. ‘’Cara, eu ganho 40 reais fixo todos os dias só de ir trabalhar. E cada entrega que faço, ganho entre uns 5 a 20 reais de comissão.’’ VT diz que esses valores de comissão dependem dos lugares que ele vai entregar. Dos bairros de Campo Grande até Cosmos, são os valores mais altos: de 10 até 20 reais.


A alimentação de quem alimenta as cidades

Os entregadores de aplicativos organizam o período de alimentação de forma autônoma. Alan explica que se alimenta “quando é possível”. Em alguns casos, ele diz comer em períodos bem tarde ou entre um pedido e outro. Entre trabalhadores fixos de estabelecimentos, as formas de alimentação podem variar. De acordo com Jefferson Carmo, entregador de 26 anos, o seu local de trabalho não disponibiliza refeições, sendo necessário que faça sua alimentação durante a jornada de trabalho. ‘’No Kian (local de trabalho) eles não dão lanche nem nada não. Eu e os motoboys juntamos para fazer um lanche maneiro, ou quando não, eu mesmo como um salgado pela rua, ou um biscoito’’ Jefferson diz. Por outro lado, há estabelecimentos que fornecem alimentos aos funcionários, como a pizzaria Point Mix, segundo Ronald Oliveira, morador de Santa Cruz, na cidade do Rio de Janeiro: “A maioria dos restaurantes e lanchonetes não fornecem alimentação para os motoboys. Em relação ao point mix, eles fornecem. Quando a gente chega tem janta. Durante a noite a gente belisca umas fatias de pizza”.

Foto: Marcus Vinicius Brandão

A estranha relação entre os aplicativos e seus entregadores

A reclamação da falta de transparência por parte dos aplicativos é algo extremamente enraizado dentro da “web comunidade” do delivery. Sistemas e pontuações, algumas ocultas e internas, põem diversas dúvidas nas cabeças de quem precisa utilizá-los para sobreviver. O sistema SCORE traz as contas “quentes” ou “frias”, o temível “bloqueio branco” e funciona como uma avaliação do “nível” do entregador, ranqueando ele da seguinte forma:

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S - Super entregador P- Profissional E- Eventual N1- Iniciante C- Ruim


Trabalho Uma conta “quente” recebe uma quantidade maior de pedidos e uma “fria”, poucos chamados. Este sistema não é algo confirmado pelos aplicativos e já foi negado diversas vezes em respostas do iFood a entregadores no “Reclame Aqui”. Ao tentar contato com a plataforma de suporte do iFood, recebemos a seguinte resposta: “O recebimento de pedidos por entregadores é feito de forma aleatória, uma vez que dependemos da demanda de pedidos por clientes realizados no App para assim, repassar pedidos aos parceiros entregadores. Não há um sistema de ranking nem de score no iFood. O algoritmo do aplicativo leva em conta apenas a disponibilidade do entregador e a distância entre restaurante e o consumidor.” As polêmicas em torno das engrenagens ocultas do iFood não se limitam à pontuação. Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido popularmente como Galo, em entrevista para a Folha de São Paulo na série “E eu?” conta que após ter realizado protestos contra a exploração do entregador, sofreu um “bloqueio branco” utilizado quando o entregador para de receber chamados pelo aplicativo, apesar de aparentar um funcionamento normal.

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Para tudo: O breque dos aplicativos

Charge: Reprodução/Toni

As novas configurações proporcionadas pela uberização no trabalho de entregadores vem sofrendo muitas críticas. O movimento começou com maior intensidade em 2020, principalmente com a entrada de mais funcionários e maior adesão dos consumidores. Um dos principais protestos organizados foi o #BrequedosApps”. Os consumidores foram convidados a não utilizarem o serviço em forma de apoio. O movimento teve grande repercussão nas redes sociais e impulsionou a luta dos entregadores que procuram melhores condições de emprego. Considerado um dos símbolos das revoltas que mobilizaram o Brasil, o exentregador de aplicativos, Galo, é também o líder do movimento “Entregadores Antifascistas”. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Galo exclama que a uberização caminha a passos largos para outros ganharem dinheiro em cima dos trabalhadores. O ativista define a sua luta por direitos: “Eu não queria estar lutando para recuperar a carteira de trabalho. Eu queria estar lutando pelo direito à preguiça. Almoçar e descansar uma hora”.


Uma promessa que não acontece Empreendedorismo: de personagem encantado a vilão Bárbara Albuquerque, Carolina Domard, Fernanda Paiva, Gabriela Camargo e Isadora Gomes

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esmo numa sociedade individualista como a nossa, o empreendedorismo surge como uma ideologia de resgate do desempregado com padrões que focam no crescimento individual. Porém, a realidade de muitos empreendedores mostra que ter o próprio negócio não é um conto de fadas.

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Empreendedorismo para quem?

Foto: Carolina Domard

“Antes eu via o empreendimento como um resgate de vida, hoje eu estou repensando...”, diz Beatriz Carvalho, jornalista e idealizadora do Mulheres de Frente, empreendimento que busca empoderar digitalmente mulheres e meninas desde 2017. Recém formada e desempregada, Beatriz viu seu sonho de ser uma jornalista de TV cada vez mais difícil de realizar. Ao conversar com mulheres empreendedoras da Cidade de Deus e do Complexo da Maré, a jornalista percebeu potenciais vozes que usavam as redes sociais “para fuxicar”, mas não para divulgar seus trabalhos. Havia falta de representatividade dentro das redes sociais. A maioria das blogueiras e empreendedoras da internet é rica, loira, branca e magra, o que não é o padrão da maioria das mulheres brasileiras. “Isso mina muito a atitude dessa mulher empreendedora que está se formando, a partir do momento que ela não se vê na internet”, afirma Beatriz. A história de Beatriz não é um caso isolado. De acordo com o Núcleo Brasileiro de Estágios (Nube), cinco de cada dez jovens que receberam seus diplomas entre 2019 e 2020 estão sem trabalhar e 28% deles estão desempregados há mais de um ano. Uma matéria publicada na revista Veja mostra que, no Brasil, o número de Microempreendedores Individuais (MEIs) cresceu 20% só no ano de 2020. Isso porque a escassez de vagas formais de trabalho obrigou cerca de 1,8 milhão de pessoas a se desdobrarem para achar uma fonte de renda. Ao contrário do que imaginava antes, Beatriz explica que, às vezes, trabalha mais do que se estivesse empregada pel CLT; sua renda, além de ser instável, quando recebe, não é alta. Para ela, a ideia de que o empreendedorismo seria a grande salvação da vida do favelado é equivocada. O incentivo a empreender é utilizado para esconder o desemprego de jovens pretos, periféricos e favelados.

O incentivo a empreender é utilizado para esconder o desemprego de jovens pretos, periféricos e favelados


“Empreender não é abrir um negócio, é criar algo, dar vida a algo” diz Jota Jr., fundador da empresa social “Atitude Inicial”. Como Beatriz, Jota começou seu negócio pela vontade de resolver problemas sociais. Além de estar desempregado, ele olhava para pessoas na mesma situação, que queriam mudar algo na sociedade. “A Atitude nasce nesse contexto de enxergar várias pessoas muito boas em fazer várias coisas ao meu redor, sem emprego”, explica Jota. Para ele, a sociedade é pouco estimulada nessa área. Mas, ao mesmo tempo, ele reconhece que existe uma visão romantizada do empreendedorismo. Para Fransérgio Goulart, o empreendedorismo é uma invenção da sociedade capitalista para acabar com os direitos trabalhistas. Fransérgio Goulart é coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), uma organização que atua com ações de enfrentamento à violência do Estado. Ele não nega casos de empreendedores negros em favelas que tiveram sucesso, mas diz que são casos raros. “Para nós, o empreendedorismo só serve se for para desenvolver o coletivo, desenvolver a consciência coletiva e superar a consciência de patrão ou de empregado”, diz Inessa Lopes, participante do Movimento das Comunidades Populares (MCP) que atua no Complexo do Chapadão, Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela ainda diz que empreender individualmente acaba alimentando o sistema, pois você melhora a sua vida, mas a vida da população em geral não muda. Ou seja, empreender pensando no coletivo traz um novo objetivo para o projeto, tornando-o uma saída para o ciclo capitalista que o envolve. “Por isso o empreendedorismo é necessário, é importante, não para o individual, mas para o coletivo...” reforça Inessa.

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Foto: Isadora Gomes


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49 Reprodução Mulheres de Frente

Identidade como valor Projetos sociais vão além de simplesmente ajudar pessoas. Eles podem ajudar o meio ambiente, os animais e a infraestrutura das cidades. Além de agirem como incentivo para as pessoas, formam pensamentos mais críticos, levam conhecimento, reflexão e mudam a forma de viver de quem participa das ações. “A sociedade dá valor ao que é de interesse dela”, diz Beatriz Carvalho sobre a valorização dos projetos sociais. Segundo ela, normalmente, as pessoas se interessam pelo trabalho dela porque existe uma identificação. “Quando uma mulher se identifica comigo, empreendedora, periférica, ela vai me dar valor. Tanto que hoje minha cliente é a mulher preta jornalista, e ela me reconhece. É ainda a questão de falar com os nossos” explica Beatriz Seguindo a mesma linha de pensamento, Jota Jr. afirma que “as comunidades que recebem os nossos projetos valorizam, porque eles não entendem tão profundamente a nossa constituição, interessa aquilo que chega para

eles”. Ele também fala do poder da transformação dos projetos criados por ele. “Semana passada, a gente estava em um bairro periférico. Quando a gente fala o nome do bairro as pessoas torcem o nariz. Falam ‘você vai morrer lá’, ‘vai ser assaltado’, ‘não vai voltar vivo’. E aí, a molecada faz uma oficina de fotografia, faz fotos iradas e, no final, faz uma exposição.” Jota ainda conta que esse tipo de projeto ajuda na mudança do olhar das pessoas sobre determinados lugares. Muitos locais são subestimados e discriminados por parte da sociedade porque são considerados perigosos e de difícil acesso. Porém, na maioria das vezes, o que falta é proporcionar oportunidades para que as pessoas daquele local possam mostrar do que são capazes. Inessa, do MCP, explica que as ações sociais colaboram para o bom funcionamento da cidade. “A vida melhora quando a gente faz ação de urbanização, luta por abertura de ruas, energia, água, transporte...”, declara Inessa.


Com licença, posso trabalhar?

A luta dos camelôs pelo direito ao espaço público Brenda Eshiley, Guilherme Natalino, Joana Bertola e Roger Ribeiro

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necessidade de organizar o espaço público do Rio de Janeiro tem gerado muitos conflitos entre a Guarda Municipal e os camelôs da cidade. Alguns guardas utilizam a falta de regulamentação dos comerciantes para justificar atos hostis. No entanto, para um trabalhador informal, conseguir a licença para trabalhar na rua não é tão fácil quanto parece. Muitas vezes, inclusive, precisam alugar a autorização de terceiros, que não são camelôs, para conseguirem trabalhar de maneira legal. Algumas leis foram criadas com o objetivo de regularizar esses trabalhadores e evitar que ocupem locais que atrapalhem o fluxo de pedestres. “Não cabe ao guarda municipal fazer fiscalização, mas sim manter o logradouro livre para garantir o direito de ir, vir e permanecer das pessoas. Por isso, alguns guardas não deixam que os camelôs que não tem autorização ocupem as calçadas e isso gera toda uma confusão e mal estar entre eles”, diz o guarda municipal Gilliard Flauzino. Entretanto, “sempre tem alguém que ultrapassa os limites e arruma mais confusão, por conta da prerrogativa que os guardas têm para fazer retenção de produtos”, complementa. Para que o comerciante consiga o cadastramento de legalização do comércio informal, deve ir ao site da Prefeitura do Rio de Janeiro ou pelo Portal Carioca e obedecer a um sistema de pontos. Caso a área escolhida pelo requerente esteja indisponível, ele poderá ficar em uma lista de espera.

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Curiosidade O comércio informal, praticamente, coincide com a formação das cidades há milhares de anos. Com a popularização desse tipo de comércio na França, espalhou-se também o verbo cameloter, que é a ação de vender quinquilharias e coisas de pouco valor em lugares movimentados e de via pública. Assim surgiram os camelôs como conhecemos atualmente.

A Guarda Municipal e a organização do espaço público Em 1992, pela necessidade que os governantes tinham em estruturar o trabalho dos camelôs e suas relações com a cidade, foi sancionada a Lei 1.887/92 que criou a Guarda Municipal do Rio de Janeiro, responsável pelo controle e organização do espaço público. Em 2007, foi criada a Coordenação de Controle Urbano (CCU) que passou a fiscalizar os camelôs no lugar da guarda municipal. Alguns guardas ainda realizam essa função, mesmo não podendo.


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André Goulart é comerciante ambulante desde os oito anos de idade, hoje regularizado. Começou a trabalhar por incentivo da própria mãe que também era camelô. No início de sua jornada, vendia produtos como doces e biscoitos. Já adulto, com a febre dos CD’s e DVD’s piratas, começou a produzir e vender essas gravações. Nos últimos anos, viu uma oportunidade crescente: o mercado de eletrônicos. Por isso, atualmente trabalha com consertos, peças de celulares e outros produtos. André alega que quando começaram a divulgar sobre a licença de trabalho na televisão, a proposta era vendida como uma boa oportunidade para essa classe de trabalhadores conseguir seus direitos. “Quando divulgaram sobre a licença de trabalho, citavam como benefício a oportunidade de cadastro no MEI (microempreendedor individual) que dava ‘uns’ privilégios com o apoio do governo, empréstimos em bancos para crescer o negócio. Tudo ‘caozada’, eu me regularizei mais para não ‘tá’ perdendo mercadoria ‘pro’ guarda municipal.” André fala também sobre a dificuldade de conseguir a licença: “A maioria não tem, porque você faz o protocolo e não sai a licença (...) Você paga pela regularização e a prefeitura recebe. É uma burocracia tão grande… Eu mesmo só consegui como auxiliar da minha mãe, que já tinha a licença. Quando ela faleceu tentei passar pro meu nome, fiz croqui, planta de onde eu ficava, tudo certinho e não consegui”.

Fotos: Joana Bertola


Uma luta pelo (re)existir

Maria dos Camelôs, também conhecida como Maria do Carmo, é comerciante informal no Rio de Janeiro há 26 anos e mãe de quatro filhos. Trabalhou na roça desde os seis e, durante sua vida, muitas vezes revirou lixeiras para procurar roupas para vestir e colchões para dormir. Quando adulta começou a trabalhar como doméstica. Mas, após a separação de um relacionamento abusivo, não poderia arcar com os custos de manter a família como mãe solo e decidiu optar pela liberdade das ruas. Após sofrer agressões de guardas municipais em 2003, Maria do Carmo começou a se engajar politicamente. Foi a partir desse dia que o MUCA (Movimento Unidos do Camelô) passou a se tornar realidade e, hoje, em 2021, possui até um aplicativo próprio para integração e comunicação entre os trabalhadores. “Eu fui regulamentada em 2014. Não é fácil se regularizar. A lei 1.876 possui muitos critérios que dificultam o cadastro e a autorização para o trabalho na rua. Hoje, tem 6 mil pessoas que se cadastraram em 2009 e ainda não conseguiram uma autorização. Quando a Prefeitura abre um cadastro muito amplo, que inclui muitas pessoas, acabam gerando um problema maior, porque muitas pessoas que não trabalhavam na rua conseguiram a autorização e os camelôs que estavam ali há muito tempo, não. Nós queremos que a Prefeitura faça esse cadastro na rua para que todos consigam suas autorizações e deixem de pagar aluguel.” O que torna a regulamentação tão difícil? Para conseguir a licença, é necessário cumprir as condições expressas na lei municipal 1.876/1992: possuir alguma deficiência física, ser idoso, possuir dependência de filhos menores, ser egresso prisional ou estar desempregado. Há, também, a exigência do pagamento de uma taxa anual para realizar suas atividades no espaço público. O valor varia entre R$ 150, como o caso de Maria, que vende roupas femininas, e R$ 3.000, com uma barraca de jornal, por exemplo.

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A comerciante busca as mercadorias que comercializa em São Paulo todo fim de semana.. Perto de onde trabalha, no centro do Rio, aluga um local para guardar os produtos. Sai às 7h para trabalhar e volta às 18h para buscar a filha de cinco anos na creche. Quando ainda não tinha sua filha menor, voltava para casa às 20h. Para ela, a cidade é um espaço difícil e os camelôs não têm incentivos para trabalhar. Quando trabalhava como doméstica, o dinheiro que ganhava com carteira registrada não dava nem para alimentar seus filhos. A rua deu oportunidades para que eles estudassem e vivessem em melhores condições. A cada esquina da cidade existem meninos, a maioria negros, que não querem se render ao crime para sobreviver e recorrem ao trabalho de camelô. “O tempo todo nos é negado tudo, o tempo todo ‘nós’ somos ‘empurrado’ pra ser criminoso, mas nós somos persistentes”, revela. Certo dia, depois de pegar suas mercadorias em São Paulo, Maria voltou para o Rio de ônibus. Quando saiu da rodoviária, o VLT estava quebrado. Não teve outra opção senão empurrar seu carrinho cheio de mercadorias da rodoviária Novo Rio até um pouco depois da roda gigante Rio Star - mais de dois quilômetros de percurso. Enquanto empurrava seu carrinho, contou que só pensava em seus filhos. Aquele sacrifício era necessário para pagar a faculdade, a creche e alimentá-los. “Eu tiro dinheiro da rua e gero renda, ‘nós’ deveria ter um respeito maior do poder público”. As autoridades municipais não resolvem os impasses nem parecem aprovar que os trabalhadores reivindiquem seus direitos. Quando Maria e os membros do MUCA resolveram fazer uma manifestação no centro do Rio, o subsecretário da Prefeitura ligou para ela mandando os camelôs liberarem o trânsito e pararem o protesto. Apesar disso, os trabalhadores continuaram.

Fotos: Guilherme Natalino


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Reviver o que e para quem? O “Reviver Centro” é o mais novo projeto da prefeitura do Rio de Janeiro que tem tirado muitos comerciantes de seus lugares de trabalho. A proposta é, basicamente, ressignificar o centro da cidade, diminuindo o comércio de rua e trazendo pessoas para morarem no bairro. Maria e os membros do MUCA (Movimento Unido dos Camelôs) seguem tentando serem incluídos nesse plano. “Nós não somos contra o projeto Reviver Centro, só queremos ser incluídos nele e reivindicar nossos direitos. Quando fizemos uma reunião, recentemente, com o prefeito Eduardo Paes para falar sobre o projeto, levamos o arquiteto que desenhou o espaço da rua pra ver como poderiam ficar as barraquinhas. Então ficamos de fazer um documento muito mais elaborado querendo saber quem tem protocolo, quem não tem, quem tem cadastro, quem não tem cadastro, e todas as informações pessoais para conseguir cumprir o critério de pontuação presente na lei.” Maria ainda relata que, hoje, apesar de terem um movimento político bem organizado, os direitos do trabalhador informal continuam sendo muito precários. Mas que, ainda assim, sente-se mais segura para realizar seu trabalho na rua e lutar pelo o que acha certo. Ao longo dos anos, existiram outros projetos idealizados por antigas gestões a fim de organizar o comércio informal. São eles, o “Camelôs em harmonia” e o “Ambulante Legal”, mas Maria contesta: “Que harmonia? Quem é legal?’’. A violência e o medo de trabalhar continuam existindo”. Ela defende que haja uma organização que pense na inclusão de todos: “Não queremos roubar o espaço de outros comerciantes. Todos devem ganhar de suas maneiras”.



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