A VISITA

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A VISITA

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Como nasceu a ideia de levar à cena A Visita da Velha Senhora?

Pensou na situação actual quando aceitou esse convite?

Surgiu na altura em que propus ao São Luiz ser co-produtor do Medida por Medida, de Shakespeare. Nessa altura interessava-me mostrar os jogos de poder, os esquemas e o modo como a responsabilidade política é vista. O José Luís Ferreira falou-me então de A Visita da Velha Senhora e de como as temáticas se cruzavam. Eu já tinha visto a peça, sabia que tinha sido uma das fontes de inspiração para o Dogville, de Lars Von Trier, e pouco mais.

Indiscutivelmente a peça é uma metáfora sobre a nossa situação. Não se pode dizer que seja uma analogia total, não é uma coisa que se encaixe completamente com o momento actual, mas a cruxis da peça remete, de facto, para o ponto em que estamos, e de alguma forma o que acontece na peça tem que ver com o que nos aconteceu nestes anos democráticos. No geral, a peça pareceu-me muito justa e, a fazê-la, tinha de ser agora. Ajustava-se àquilo que sinto e vejo como cidadão nos dias de hoje. Pareceu-me a peça perfeita.

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Qual foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça quando leu a peça? A primeira coisa que senti foi uma enorme vontade de rir com algumas coisas. A peça é aparentemente muito leve, mas é extremamente irónica. Isso agradou-me. A primeira imagem que tive foi a de uma procissão, um mural, uma banda desenhada. E na realidade não mudou muito desde aí. Foi a partir dessas imagens que começámos a trabalhar. Há um jogo quase sardónico com as pessoas, a maneira como falam das instituições democráticas. Achei que fazia uma excelente ligação com o nosso trabalho imediatamente anterior, o Medida por Medida. Já tinha encenado a Boa Alma de Sechuan, de Brecht, e encontrei muitas ressonâncias entre os dois textos. Por outro lado, gostei muito da carpintaria teatral. Há neste texto uma artificialidade muito justa que o aproxima ainda mais do seu conteúdo. Isso torna-o mais certeiro do que se tivesse havido uma naturalização ou uma intenção claramente metafórica ou ilustrativa. Nesse sentido, achei a peça muito enxuta. É como se fosse uma peça de Brecht, mas sem a carga ideológica. Além disso a própria figura do Dürrenmatt é-me cara...

Como se deu o encontro com a Companhia Maior?

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E porque é que lhe é cara? Não só porque é um multitasker, escreve, pinta, desenha, mas porque é um individualista. Normalmente aprecio pessoas com um carácter próprio, que se bastam a si próprias. Não de uma forma egocêntrica, mas pessoas que vêem a vida um bocadinho na oblíqua e não através de linhas rectas. Achei-o um personagem, pelo menos na ficção que faço dele, muito interessante. NC

Ao ler a peça tive a sensação de que não a podia fazer com um elenco sem memória. Ou seja, para falar do nosso quotidiano não podia trabalhar com actores que não tivessem sido adultos nos últimos 30 anos e que não tivessem participado, com a lucidez e as obrigações de adultos, nas decisões que tomámos nestes últimos 30 anos e que nos trouxeram até aqui. Quando li a peça, Güllen surgiu-me como uma cidade desvitalizada, e isso levou-me a querer trabalhar com um elenco que tivesse mais de 60 anos. Quis criar um contraponto entre alguns dos actores que trabalham no Ao Cabo Teatro e que me são próximos, têm a minha idade ou são mais novos, e que de alguma viveram outra coisa. Como seria esse confronto? Há dois grupos distintos na peça. Há os habitantes de Güllen e os que acompanham a velha senhora e que vêm de fora. A velha senhora é de Güllen, Koby e Lóby são de Güllen e o mordomo era juiz em Güllen, enquanto que o Roby e o Toby, os dois assassinos de Manhattan, os maridos ou os jornalistas, são de fora.

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A velha senhora é a factura que arrasta atrás de si a memória de todas as nossas acções passadas.

Sobre a opção de o cenário ser uma rua. A rua é a cidade. Há um texto do Dürrenmatt em que ele diz que pretende fazer um teatro de objectos, onde o actor, através de adereços, consegue criar a história. Nesse sentido optei por criar um espaço de jogo em que o próprio actor vai manipulando objectos e criando os espaços e contando histórias. Isso dá um tom e um ritmo à peça que resvala entre o grotesco e o burlesco e que remete para essa capacidade, que todos temos, que é a de quando estamos a manipular objectos estarmos muito próximos das crianças. Tudo é possível, a transformação torna-se possível. Houve um esforço para que todos os objectos fossem reais e retirados de um mundo real, de Lisboa. Daí o banco da estação ser um banco de estação. Esta rua é esta cidade onde tudo se joga.

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