[cemiteriodoslivros02]o jogo do anjo carlos ruiz zafon

Page 443

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZ AÇÃ O

DA

L EITUR A

EPÍLOGO

1945

Passaram-se 15 longos anos desde aquela noite em que fugi para sempre da cidade dos malditos. Durante muito tempo, a minha foi uma existência de ausências, sem nenhum nome ou companheira senão a de um estrangeiro itinerante. Tive cem nomes e outros tantos ofícios, nenhum deles o meu. Desapareci em cidades infinitas e em aldeias tão pequenas que nelas ninguém tinha passado ou futuro. Não me detive em lugar algum mais do que o necessário. Antes cedo do que tarde, fugia de novo sem aviso prévio, só deixando um par de livros velhos e roupas de segunda mão em quartos lúgubres onde o tempo não tinha idade e as lembranças queimavam. Não tive outra memória senão a incerteza. Os anos me ensinaram a viver no corpo de um estranho, que não sabia se cometera aqueles crimes cujo cheiro ainda podia sentir nas mãos, se perdera a razão e estava condenado a vagar pelo mundo em chamas que ele mesmo sonhou um dia — em troca de algumas moedas e da promessa de enganar uma morte que agora lhe parecia a mais doce das recompensas. Perguntei-me muitas vezes se a bala que o inspetor Grandes disparou em meu coração atravessou mesmo as páginas daquele livro ou se fui eu quem morreu naquela cabine suspensa no céu. Em meus anos de peregrinação, vi que o inferno prometido nas páginas que escrevi para o patrão ganhava vida à minha passagem. Mil vezes, fugi de minha própria sombra, sempre olhando às minhas costas, sempre esperando encontrá-la ao virar uma esquina, do outro lado da Rua ou ao pé de minha cama nas horas intermináveis que precediam a aurora. Nunca permiti que ninguém me conhecesse o tempo suficiente para poder me perguntar por que não envelhecia nunca, por que não se desenhavam linhas em meu rosto, porque meu reflexo era exatamente o mesmo que deixou Isabella no cais de Barcelona, nem um minuto mais velho. Houve um tempo em que acreditei que tinha esgotado todos os esconderijos do mundo. Estava tão cansado de ter medo, de viver e morrer de lembranças, que parei lá onde a terra acaba e começa o oceano que, como eu, amanhece todo dia exatamente como no anterior, e deixei-me cair. Hoje faz um ano que cheguei a esse lugar e recuperei meu nome e meu ofício. Comprei esse velho casebre na praia, apenas um galpão que compartilho com os livros


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.