Battle royale book

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BATTLE ROYALE

K O U S H U N

T A K A M I


Conteúdo Conteúdo .............................. II Koushun Takami _______ III Notas de tradução _____VII Introdução ___________ 1 Prólogo ............................... 2 Nota do Governo ________ 2

Parte 1................................. 4 Início de Jogo ____________ 4 0________________________________5 1_______________________________ 14 2_______________________________ 16 3_______________________________ 18 4_______________________________ 23 5_______________________________ 30 6_______________________________ 34 7_______________________________ 39 8_______________________________ 43 9_______________________________ 45 10______________________________ 46 11______________________________ 53 12______________________________ 63 13______________________________ 67

Parte 2...............................74 Estágio Médio __________ 74 14______________________________ 75 15______________________________ 79 16______________________________ 83

II


Koushun Takami Koushun Takami nasceu em 1969 em Amasaki, perto de Osaka, e cresceu na Prefeitura de Kagawa em Shikoku, onde atualmente mora. Depois de se graduar na Univesidade de Osaka em literatura, ele largou o curso por correspondência de Artes Liberais da Universidade Japonesa. De 1991 a 1996 ele trabalhou para a companhia de notícias da prefeitura, o Shikoku Shinbun, escrevendo em várias áreas, incluindo política, relatórios policiais e economia. Apesar de ter um certificado de ensino em Inglês, ele ainda não foi aos Estados Unidos. Battle Royale foi completado após Takami ter abandonado a empresa de notícias. O livro foi rejeitado na rodada final de uma competição literária patrocinada por uma grande editora devido às críticas controversas que provocou entre os membros do júri. Porém com sua publicação no Japão em 1999, Battle Royale recebeu amplo suporte, particularmente de jovens leitores, e se tornou um bestseller. Em 2000 o livro foi adaptado para um mangá e transformado em filme. O filme teve uma continuação em 2003.

III


Eu dedico a todos que amo. Mesmo que n達o gostem.

IV


"Um estudante não é uma tangerina." ― Kinpachi Sakamoto, Terceiro Ano Classe B, Professor Kinpachi

"But tramps like us, baby we were born to run" ― Bruce Springsteen, "Born to Run"

"É tão difícil amar" ― Motoharu Sano, "É tão difícil amar"

V


"Em Barcelona, durante todas estas últimas semanas que passei aqui, havia uma sensação peculiar de maldade no ar – uma atmosfera de suspeita, medo, incerteza e ódio velado. Não estava acontecendo nada, mas mesmo assim eu não conseguia imaginar o que iria acontecer; e ainda havia uma vaga e infindável sensação de perigo, a ciência de que havia alguma perversidade iminente. Porém quanto menos você estivesse realmente conspirando, a atmosfera o forçava a se sentir como um conspirador. Você parecia passar todo seu tempo mantendo conversas sussurradas nos cantos dos cafés e imaginando se a pessoa na mesa ao lado era um espião da polícia. Eu não sei se eu posso levar para casa a profundidade com a qual aquela ação me tocou. Parece algo pequeno, mas não era. Você tem que entender qual era o sentimento da época– a terrível atmosfera de suspeita e ódio, as mentiras e rumores circulando todo lugar, os pôsteres gritando das multidões de que eu, e todos que eram como eu, era um espião fascista." ― George Orwell, Respeito à Catalúnia

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Notas de tradução Olá, este é um trabalho de tradução iniciado por mim apenas pelo prazer de poder ter esta obra prima da literatura pop em minha língua natal. Todos os direitos pertencem à Koushun Takami. As seguintes notas são importantes para que o entendimento da obra seja completo. A tradução da língua japonesa é complicada por haverem diversas diferenças culturais e lingüísticas entre o Japão e o Brasil. No entanto, procuro esclarecer algumas destas diferenças com estas notas. Durante o restante das páginas desta tradução, você encontrará notas de rodapé para esclarecer algumas referências que merecem explicação. Classe B da Oitava Série : a divisão dos anos escolares no Japão é a mesma que nos EUA, isto é, o ensino dado aos jovens é dividido em shougakkou (elementary school), chuugakkou (junior high school) e koukou (high school). O shougakkou tem duração de cinco anos, então a criança entra para o chuugakkou, que dura três anos, e finalmente entra para o koukou, que dura outros três anos. O que seria a oitava série do ensino primário no Brasil é o terceiro ano do chuugakkou no Japão. Nomes : no Japão, quando se apresenta uma pessoa, diz-se primeiro seu sobrenome, acompanhado do nome. Aqui eu estou seguindo o padrão brasileiro, primeiro é dito o nome e depois o sobrenome. Cidades e Prefeituras: a organização das cidades no Japão é parecida com o Brasil, mas enquanto aqui as cidades fazem parte de um estado, lá chamam os estados de prefeituras.

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Classe B da Oitava Série, Lista de estudantes da Escola Fundamental Shiroiwa

1 2

Homens

Mulheres

1 2

Yoshio Akamatsu Keita Iijima

1 2

Mizuho Inada Yukie Utsumi

3 4

Tatsumichi Oki Toshinori Oda

3 4

Megumi Eto Sakura Ogawa

5 6

Shogo Kawada Kazuo Kiriyama

5 6

Izumi Kanai Yukiko Kitano

7 8

Yoshitoki Kuninobu Yoji Kuramoto

7 8

Yumiko Kusaka Kayoko Kotohiki

9 10

Hiroshi Kuronaga Ryuhei Sasagawa

9 10

Yuko Sakaki Hirono Shimizu

11 12

Hiroki Sugimura Yutaka Seto

11 12

Mitsuko Souma Haruka Tanizawa

13 14

Yuichiro Takiguchi Sho Tsukioka

13 14

Takako Chigusa Mayumi Tendo

15 16

Shuya Nanahara1 Kazushi Niida

15 16

Noriko Nakagawa Yuka Nakagawa

17 18

Mitsuru Numai Tadakatsu Hatagami

17 18

Satomi Noda Fumiyo Fujiyoshi

19 20

Shinji Mimura2 Kyoichi Motobuchi

19 20

Chisato Matsui Kaori Minami

21

Kazuhiko Yamamoto

21

Yoshimi Yahagi

Sobre o nome Nanahara: em japonês, a primeira parte do sobrenome de Shuya significa “sete” Sobre o nome Mimura: em japonês, a primeira parte do sobrenome de Shinji significa “três”

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Introdução [Desvario de um fã de luta livre profissional em um mundo bem parecido com o nosso] Quê? Battle Royale3? Se quer saber o que é um “Battle Royale"? Vai, não me diz que não sabe!? Você não vem muito em jogos de luta livre, né? Acha que é o nome de um movimento? O nome de um torneio? Não, Battle Royale é uma batalha de luta livre. Quê? "Hoje?" Hoje, aqui, você quer dizer? Não, não está no programa de hoje. Só fazem Battle Royale em arenas grandes quando há um festival ou algo do tip. Olha, lá está Takako Inoue. Ela é gostosa, não é? A-Ah, desculpa. Tá bom, Battle Royale. Ainda tem o apoio da Liga Japonesa de Luta Livre Profissional. Resumindo, deixa ver, Battle Royale é – você sabe que a batalha normal de luta livre é de um contra um ou entre parceiros. Bom, em Battle Royale, dez, vinte, um monte de lutadores sobe no ringue. E então qualquer um pode atacar qualquer um, um contra um ou dez contra um, não importa. Não importa quantos lutadores pregam alguém no chão – quê, você nem sabe o que é pregar? Uma vez que suas costas estão na esteira, a contagem vai de um, dois, três, você perdeu. Não é diferente de uma batalha normal. Lutadores podem também desistir, e às vezes alguém é nocauteado. Ah sim, e também tem a contagem final. Você também pode ser desqualificado por quebrar as regras. A maioria dos lutadores perde por quedas no Battle Royale. Ei, vai lá Takako, vai! Vai, vai! A-Ah, desculpa, desculpa. Em todo caso, aqueles que perdem têm que sair do ringue. Menos e menos jogadores continuam no jogo. Só dois restam no final. Um contra um, uma luta bem séria. Um dos dois vai eventualmente perder. E então fica só um lutador no ringue, e ele é o vencedor. Ele ganha. Ele recebe um troféu e um prêmio em dinheiro. Entendeu? Âh? Sobre os lutadores que são amigos? Bom, no começo, é claro que eles se ajudam uns aos outros. Mas no final eles têm que lutar um contra o outro. Você tem que seguir as regras. Isso também significa que você consegue ter algumas lutas raras. Como há um bom tempo, quando os parceiros de luta Dynamite Kid e Dayvey Boy Smith eram os lutadores restantes. O mesmo aconteceu com os parceiros Animal Warrior e Hawk Warrior. Naquela luta, eu não lembro quem, mas o cara foi de propósito pra contagem final deixando seu parceiro ganhar, uma mostra de camaradagem que foi uma decepção. Ah, você também pode se unir a jogadores que eram seus inimigos. Mas no momento que você acha que está no time para se livrar se outra pessoa, este "amigo" sorrateiro pode te trair de repente e te vencer. Vamos ver, um Battle Royale que eu quero ver agora? Bom, dado o número de federações que temos, queria ver um Battle Royale entre os líderes de cada federação. Keiji Mutoh, Shinya Hashimoto, Mitsuharu Funaki, Akira Maeda, Great Sasuke, Hayabusa, Kenji Takano, também Genichiro Tenryu, Riki Choshu, Tatsumi Fujinami e Kengo Kimura poderiam estar concorrendo. Seria legal por Yoji Anjoh e Super Delphin. Eles poderiam terminar como os dois últimos jogadores. Para mulheres, primeiro de tudo, Takako, então Aja Kong, Bull Nakano, é claro, Dynamite Kansai, e Cutey Suzuki e Hikari Fukuoka, Mayumi Ozaki, Shinobu Kandori, e Chigusa Ngayo e... quê? Como você não conhece nenhuma delas? Você veio aqui para assistir luta livre mesmo? Ah, não não não não não, Takako, contra ataca! Takako! Beleza. 3

Battle Royale é o que chamamos no Brasil de “batalha campal”

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Pr贸logo

Nota do Governo

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Nota Interna do Governo 1997, No. 00387461 Documento Secreto Confidencial Despachado pela Secretaria da Autoridade Central Supervisora da ForçaTarefa Especial de Defesa e Conselheiro de Batalha Experimental do Exército Especial de Defesa. Para : Representativo dos Experimentos de Batalha da Seção de Oficiais do Estado Maior CC: Representativo do Experimento de Batalha No. 12, 1997, Programa No. 6108 Em 20 de Maio, 18:15, o mesmo dia da inspeção periódica do Centro de Gerenciamento de Operações do Governo Central Republicano, a evidência de uma invasão no sistema operacional da central governamental foi confirmada. A invasão foi detectada na data de 12 de Março antes do amanhecer. Nós estamos atualmente investigando qualquer evidência de reingresso adicional. A identidade do possível suspeito, razões e possível vazamento de informações também estão sendo investigados, mas dadas as elevadas habilidades computacionais do suspeito, nós antecipamos um atraso significativo na apresentação do perfil do suspeito. A Secretaria da Autoridade Central Supervisora da Força-Tarefa Especial de Defesa e Divisão de Batalha Experimental do Exército Especial de Defesa foram informados que os dados do Programa No. 68 podem ter sido corrompidos e, como resultado, nós recomendamos reconsiderar imediatamente a postergação do Programa No. 12 de 1997. Entretanto, devido às preparações para No. 12 estarem completadas e por não haver indicação dos dados acima terem vazado para a população civil, concluímos que o programa deve proceder como programado. No entanto, nós consideraremos a reprogramação dos futuros programas seguintes ao No. 12, bem como a implementação de mudanças de projeto em "Guadacanal". Como supervisor encarregado de executar o experimento, você, supervisor do Programa No. 12, deverá proceder com extrema cautela. No mais, este incidente de infiltração está classificado como informação confidencial e deverá ser tratada como tal.

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Parte 1

InĂ­cio de Jogo 42 estudantes restantes

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0 Quando o ônibus entrou na capital da prefeitura de Takamatsu, os jardins de subúrbios transformaram-se em ruas de cidade com néons multicoloridos, luzes de carros vindo do sentido contrário e luzes quadriculadas de prédios de escritórios. Um grupo de homens e mulheres bem vestidos estava parado conversando em frente a um restaurante de calçada. Cansados, jovens fumavam agachados no estacionamento vazio de uma loja de conveniência. Um trabalhador em sua bicicleta esperava o semáforo mudar no cruzamento. Estava frio para uma noite de maio, por isso o homem vestia sua jaqueta surrada. Junto com esta corrente de sensações, o trabalhador desapareceu atrás da janela do ônibus, engolido pelo ruído baixo do motor. O mostrador digital na frente do ônibus mudou para 8:57. Shuya Nanahara (Estudante Masculino No. 15, Oitava Série Classe B, Colégio Shiroiwa, Cidade de Shiroiwa, Prefeitura de Kagawa) estava observando o lado de fora, inclinando-se sobre Yoshitoki Kuninobu (Estudante Masculino No. 7), que estava no assento da janela. Quando Yoshitoki virou-se para mexer em sua bolsa, Shuya olhou para seu pé direito, que estava saindo para o corredor, e tirou seu tênis Keds com os dedos dos pés. Antigamente os Keds não eram difíceis de encontrar, mas agora eles já eram extremamente raros. A lona no tênis de Shuya estava rasgada no calcanhar direito, e os fios que saíam pareciam bigodes de gato. A companhia de sapatos era americana, mas os sapatos eram feitos na Colômbia. Atualmente, em 1997, a República do Leste da Ásia Maior dificilmente sofria com falta de produtos. Na verdade era rica em mercadorias de consumo, mas importados ultimamente entravam com mais dificuldade. Bom, isto já era esperado em um país com uma política oficial de isolacionismo. Além do mais, América – tanto o governo quanto os livros chamavam de "os Imperialistas Americanos"– era um estado inimigo. No lado de trás do ônibus, Shuya viu seus quarenta e um colegas de classe, que estavam iluminados por luzes fluorescentes fracas fixas em painéis sujos no teto. Eles estiveram todos na mesma classe do ano passado. Todos eles ainda estavam animados e conversavam, já que nem mesmo uma hora se passara desde sua partida da sua cidade natal de Shiroiwa. Passar a primeira noite de uma viagem escolar em um ônibus parecia um tanto quanto barato. Pior ainda, parecia que eles estavam indo em marcha forçada. Mas todos se acalmariam quando o ônibus cruzasse a Ponte Seto, entrasse na Auto-estrada Sanyo e se dirigisse ao seu destino, a ilha de Kyushu. Os estudantes barulhentos da frente que estavam sentados rodeando o seu professor Sr. Hayashida eram garotas: Yukie Utsumi (Estudante Feminina No. 2), a representante de classe que ficava bonita com os cabelos trançados; Haruka Tanizawa (Estudante Feminina No. 12), sua colega de vôlei que era excepcionalmente alta; Izumi Kanai (Estudante Feminina No. 5), a graduada em colégio preparatório cujo pai era representativo da cidade; Satomi Noda (Estudante Feminina No. 17), a estudante modelo que usava óculos de quadro fino que combinava com seu rosto calmo e inteligente; e Chisato Matsui (Estudante Feminina No. 19), que era sempre quieta e contida. Elas eram as garotas principais. Você poderia chamá-las de "as neutras". Meninas tendem a formar panelinhas, mas não havia nenhuma panelinha que se destacava na Classe B da Oitava Série do

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Colégio Shioiwa, por isso não dá para separar em grupos distintos. Se havia um grupo, era o rebelde –ou, de forma mais simples – o grupo delinqüente liderado por Mitsuko Souma (Estudante Feminina No. 11). Hirono Shimizu (Estudante Feminina No. 10) e Yoshimi Yahagi (Estudante Feminina No. 21) fechavam aquele pacote. Shuya não conseguia vê-las de onde estava sentado. Os assentos logo atrás do motorista estavam levemente elevados, e aparecendo por cima estavam as cabeças de Kazuhiko Yamamoto (Estudante Masculino No. 21) e Sakura Ogawa (Estudante Feminina No. 4), o casal mais íntimo na classe. Talvez estivessem rindo, porque suas cabeças estavam balançando levemente. Eles eram tão simples que a coisa mais trivial podia entretê-los. Mais próximo de Shuya, caído no corredor, estava um enorme uniforme escolar. Pertencia a Yoshio Akamatsu (Estudante Masculino No. 1). Ele era o mais alto da classe, mas era do tipo tímido, o tipo de criança que sempre foi alvo de piadas e insultos. Seu grande corpo estava encolhido e ele estava jogando um videogame portátil. Também no corredor estavam Tatsumichi Oki (Estudante Masculino No. 3, time de handball), Kazushi Niida (Estudante Masculino No. 16, time de futebol) e Tadakatsu Hatagami (Estudante Masculino No. 18). Eles estavam sentados juntos. Shuya jogou na Pequena Liga de baseball na escola primária e era conhecido como o shortstop (entre-bases) estrela. Ele costumava ser amigo de Tadakatsu, mas parou de andar junto com ele. Em parte foi porque Shuya parou de jogar baseball, mas também tinha a ver com o fato de que Shuya havia começado a tocar guitarra, que era considerada uma atividade "não-patriótica". A mãe de Tadakatsu era rígida com esse tipo de coisa. Sim, rock era fora da lei neste país. (É claro que havia brechas. A guitarra elétrica de Shuya veio com um adesivo de aprovação do governo que dizia "Música Decadente é estritamente proibida." Música decadente era rock.) "Falando nisso", Shuya pensou, "Eu mudei de amigos também.". Ele ouviu alguém rir baixinho atrás do grande Yoshio Akamatsu. Era um dos novos amigos de Shuya, Shinji Mimura (Estudante Masculino No. 19). Shinji tinha cabelo curto e usava um brinco de formato esquisito em sua orelha esquerda. Na época que Shuya e Shinji se tornaram colegas de classe no segundo ano, Shuya já tinha ouvido falar dele. Shinji era conhecido como "O Terceiro Homem"– o armador oficial do time. Sua habilidade atlética era igual à de Shuya, apesar de Shinji ter dito "Sou melhor, mano." Juntos na quadra de basketball pela primeira vez no segundo ano, eles fizeram uma combinação mortal, por isso era natural que eles se dessem bem. Mas havia muito mais sobre Shinji que o esporte. Suas notas em matérias que não fossem matemática e inglês não eram ótimas, mas a profundidade de seu conhecimento do mundo real era incrível, e suas visões eram maduras, muito além da de seus colegas. De alguma forma, ele tinha uma resposta para qualquer pergunta sobre informações do além-mar que não poderiam ser obtidas neste país. E ele sempre sabia a melhor coisa para dizer quando você estava desanimado, como, "Você sabe, eu sou o cara." Mas ele nunca foi arrogante. Ao contrário, ele sempre sorria e fazia uma piada. Ele nunca foi cheio de si. Basicamente Shinji Mimura era um cara legal.

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Shinji parecia estar sentado ao lado de seu amigo de ginásio, Yutaka Seto (Estudante Masculino No. 12), o palhaço da classe. Yutaka deve ter feito outra piada, pois Shinji estava gargalhando. Hiroki Sumimura (Estudante Masculino No. 11) sentava-se atrás deles. Seu corpo alto e esbelto quase não cabia no assento estreito. Ele estava lendo um livro de brochura. Hiroki era reservado e estudava artes marciais, por isso ele projetava dureza. Ele não saía muito com os outros rapazes, mas se você o conhecesse um pouco mais, ele era legal, só era um pouco tímido. Shuya se dava bem com ele. “Ele está lendo aquele livro de poesia Chinesa que ele gosta tanto?” (livros chineses traduzidos eram fáceis de obter, isso não é nenhuma surpresa considerando que a República reivindicava a China como "parte de nossa terra natal"). Certa vez Shuya encontrou uma frase em um romance Americano que desenterrou de uma loja de livros usados (ele conseguiu entender com um dicionário): amigos vêm e vão. Talvez as coisas fossem assim. Assim como ele e Tadakatsu não eram mais amigos, viria um tempo em que ele não seria mais amigo de Shinji e Hiroki. Bem, talvez não fosse assim. Shuya espiou Yoshitoki Kuninobu, que ainda estava mexendo na mochila. Shuya chegou até aqui com Yoshitoki Kuninobu. E isso nunca iria mudar. Além do mais, eles eram amigos desde que eles molhavam suas camas naquela instituição católica com o nome bombástico "a Casa de Caridade"– onde viviam órfãos e outras crianças que, devido à "circunstâncias", não poderiam mais viver com seus pais. Você pode dizer que eles estavam praticamente amaldiçoados a serem amigos. Talvez nós devêssemos cobrir a religião enquanto estamos nesse assunto. De fato este país, sob um sistema único de socialismo nacional governado por uma autoridade executiva chamada "o Ditador" (Shinji Mimura uma vez disse fazendo uma careta "Isto é o que eles chamam de 'fascismo bem sucedido'. Onde mais no mundo você poderia encontrar algo assim tão sinistro?"), não tinha nenhuma religião nacional. A coisa mais próxima de religião era fé no sistema político– mas isto não casava com nenhuma religião estabelecida. Portanto a prática religiosa era permitida enquanto fosse moderada e ao mesmo tempo não fosse garantida. Por isso só era praticada em particular por seguidores dedicados. Shuya nunca teve nenhuma inclinação religiosa, mas foi graças a esta instituição religiosa em particular que ele conseguiu crescer relativamente ileso e normal. Ele pensava que era melhor assim. Haviam orfanatos estatais, mas aparentemente suas acomodações e programas eram administrados porcamente, e pelo que ele ouviu, eles serviam como escolas para soldados das Forças Especiais de Defesa. Shuya virou-se e olhou para trás. O grupo de delinqüentes que incluía Ryuhei Sasagawa (Estudante Masculino No. 10) e Mitsuru Numai (Estudante Masculino No. 17) estava sentado no banco largo, no fim do ônibus. Lá estava... Shuya não conseguia enxergar seu rosto, mas podia ver sobre os assentos a cabeça com o cabelo longo de estilo esquisito, puxado para trás aparecendo perto da janela. Apesar de que no seu lado esquerdo (bem, Ryuuhei Sasagawa deixara dois assentos vazios lá) os outros estavam conversando e rindo sobre algo sujo, a cabeça dele permanecia

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absolutamente parada. Talvez tivesse caído no sono. Ou talvez, como Shuya, ele estivesse vendo as luzes da cidade. Shuya estava totalmente desconcertado com o fato de que este rapaz – Kazuo Kiriyama (Estudante Masculino No.6) – pudesse participar de uma atividade infantil como uma viagem escolar. Kiriyama era o líder dos valentões do distrito, um grupo que incluía Ryuhei e Mitsuru. Kiriyama não era, de maneira alguma, grande. No máximo, ele tinha a mesma altura que Shuya, mas podia facilmente derrubar estudantes mais velhos e até encarar a yakuza4 local. Sua reputação era lendária em toda a prefeitura. E seu pai, sendo o presidente de uma grande corporação, o ajudava. (Havia rumores de que ele era um filho ilegítimo. Shuya não estava interessado, por isso nunca se importou em saber mais). É claro que isso não era o bastante. Ele tinha um rosto bonito e inteligente e sua voz não era muito baixa, mas havia algo intimidante nela. Ele era o melhor aluno na Classe B, e o único que mal o alcançava era Kyoichi Motobuchi (Estudante Masculino No. 20), que estudava tanto que mal dormia. Nos esportes, Kazuo era melhor e mais gracioso que quase todos na classe. Os únicos que podiam competir com ele eram, sim, o antigo entre-bases estrela, Shuya, e o atual armador estrela, Shinji Mimura. Dessa forma, em todos os aspectos, Kazuo Kiriyama era perfeito. Mas então como alguém tão perfeito poderia acabar como líder de valentões? Aquilo não dizia respeito à Shuya. Mas se havia algo que Shuya podia saber era uma sensação, quase palpável, de que Kazuo era diferente. Shuya não sabia exatamente o que. Kazuo nunca fez nada ruim na escola. Ele nunca ameaçaria alguém como Yoshio Akamatsu da forma que Ryuhei Sasagawa fazia. Mas havia algo tão... distante nele. O que era? Ao menos era o que isso parecia. Ele faltava bastante. A idéia de Kazuo “estudando” era um completo absurdo. Em todas as aulas Kiriyama permanecia quieto sentado em sua carteira como se estivesse pensando em algo que não tinha nada a ver com a aula. Shuya imaginava, “se o governo não tivesse poder para impor a educação compulsória em nós, ele provavelmente nem viria à escola. Por outro lado, ele poderia aparecer só por capricho. Vai saber.”, Shuya pensou, “Eu esperava que Kazuo faltasse a algo tão trivial como uma viagem de estudos, mas ele apareceu. Isso foi um capricho também?”. –Shuya. Shuya estava fitando as luzes nos painéis do teto se perguntando sobre Kiriyama quando uma voz alegre interrompeu seus pensamentos. Do assento do outro lado do corredor, Noriko Nakagawa (Estudante Feminina No. 15) oferecia algo embrulhado em um celofane liso. O embrulho brilhava como água sob a luz branca, e estava cheia de discos marrons claros – biscoitos, provavelmente. No topo havia um laço de fita dourada amarrado. Noriko era outra garota neutra como o grupo de Utsumi. Além de seus olhos gentis, que eram notavelmente escuros, ela tinha um rosto redondo e feminino e cabelos na altura dos ombros. Ela era delicada e alegre. Em suma, ela era uma garota comum. Se havia algo diferente nela, 4

Yakuza é o nome que se dá à máfia no Japão. Assim como em qualquer parte do mundo, eles são bem organizados e bastante temidos.

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provavelmente era o fato de que ela escrevia as melhores composições da classe de literatura. (Foi assim que Shuya conheceu Noriko. Shuya passava os períodos de intervalo escrevendo as letras das suas músicas nas margens dos seus cadernos e Noriko insistia em lê-las.) Normalmente ela andava com o grupo de Yukie, mas por ter aparecido tarde hoje, não teve outra escolha senão pegar um assento livre. Shuya levantou um pouco a mão e ergueu as sobrancelhas. Por algum motivo Noriko ficou perturbada e disse: –Estas são sobras dos que meu irmão me pediu pra assar. Estão bem frescos, por isso eu os trouxe pra você e o Sr. Nobu. "Sr. Nobu” era o apelido de Yoshitoki Kuninobu. Apesar de ele ter olhos saltados e amigáveis, o apelido parecia mais apropriado para alguém maduro e sábio. Nenhuma das garotas o chamava por aquele nome, mas Noriko não tinha problemas em chamar os garotos por seus apelidos, e o fato que isto dificilmente ofendia qualquer um deles indicava o quão inofensiva ela era. (Shuya tinha um apelido relacionado a esportes, o mesmo que uma famosa marca de cigarros, mas era como Shinji, que era referenciado como o "Terceiro Homem", pois ninguém o chamava assim na frente dele.) "Eu devia ter notado isso antes", Shuya observou, "mas ela é a única garota que me chama pelo meu primeiro nome".5 Yoshitoki, que estava escutando a conversa, interrompeu: –Sério? Pra gente? Muito obrigado! Se for você quem fez, aposto que estão deliciosos. Yoshitoki tomou o embrulho da mão de Shuya, rapidamente desfez o laço e pegou um biscoito. –Uau, estão maravilhosos. Quando Yoshitoki elogiou Noriko, Shuya sorriu. De que outro modo ele poderia ser mais óbvio? Desde o momento que ela se sentou perto de Shuya ele repetidamente esteve espiando na direção dela, sentado ereto, completamente nervoso. Foi há um mês e meio atrás, durante as férias de primavera. Shuya e Yoshitoki tinham ido pescar black bass na represa do reservatório que fornecia água para a cidade. Yoshitoki confessou a Shuya: –Ei Shuya, eu tô afim de uma pessoa. –Heim? Quem é? –Nakagawa. –Quer dizer, da nossa classe? –É. –Qual delas? Tem duas Nakagawa. Yuka Nakagawa? –Não. Ao contrário de você, eu não gosto de gordas. –Quê...? Você está querendo dizer que Kazumi é gorda? Ela só é um pouco cheinha. 5

cabe aqui uma observação sobre a forma que as pessoas tratam as outras no Japão. Lá é o costume, e a forma mais respeitosa, de se chamar alguém pelo seu sobrenome. Só se chama alguém pelo primeiro nome quando existe alguma intimidade com esta pessoa, como com amigos próximos, parentes e namorados. Chamar alguém pelo apelido é ainda mais íntimo, senão desrespeitoso.

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–Desculpa. Enfim, bom, então, é a Noriko. –Ah. Bom, ela é legal. –Não é mesmo? Não é? –Certo, certo. Sim, Yoshitoki estava totalmente óbvio. Mas apesar de seu comportamento, Noriko parecia não notar os sentimentos de Yoshitoki por ela. Talvez ela fosse lerda com esse tipo de coisa ou algo assim. Isso não surpreende, dada a sua personalidade. Shuya tirou um biscoito do embrulho, ainda na mão de Yoshitoki, e o examinou. Então ele olhou para Noriko. –Sabia que com o tempo eles perdem o sabor? –Ahã– ela balançou a cabeça.– Seus olhos estavam estranhamente tensos.– É verdade. –Isso quer dizer que você está certa de que eles têm um sabor muito bom. Ele deve ter aprendido este tipo de sarcasmo com Shinji Mimura. Ultimamente Shuya tem usado com freqüência, para o horror dos colegas de classe, mas Noriko deu uma risada alegre e disse: –Parece que sim. –Vai– Yoshitoki interrompeu de novo.– Eu te disse que estão bons, não disse, Noriko? Noriko sorriu. –Obrigada. Você é muito gentil. Yoshitoki subitamente ficou paralisado, como se ele tivesse enfiado o dedo em uma tomada, e ficou mudo. Olhando silenciosamente para próprio colo, ele tornou a comer o biscoito. Shuya riu e comeu o resto do seu biscoito. O sabor e o cheiro suaves e doces se espalharam por sua boca. –Estão bons.– disse Shuya. Noriko, que esteve observando-o todo este tempo, exclamou – Obrigada! – Ele podia estar errado, mas parecia que o tom da voz dela estava diferente de quando ela agradeceu a Yoshitoki. Bom, espera... Verdade, ela estava olhando para Shuya enquanto ele comia o biscoito. Será que eram mesmo sobra dos que ela assou para o irmão? Talvez ela os tenha assado para "outra pessoa". Ou talvez Shuya estivesse totalmente errado. Então por alguma razão Shuya pensou em Kazumi. Ela estava um ano adiante e foi colega do clube de música até o ano passado. Na República do Leste da Ásia Maior, rock era estritamente proibido nas atividades dos clubes das escolas, mas quando sua orientadora, Srta. Miyata, faltava, os membros do clube de música tocavam rock por conta própria. De qualquer forma, este era o tipo de membro que o clube atraía. Kazumi Shintani era a melhor garota saxofonista. Mas quando se tratava de rock, ela era a melhor de todos os saxofonistas do clube. Ela era alta (quase a mesma altura de Shuya, que tinha 170 centímetros) e cheinha, mas tinha o rosto notavelmente maduro e seus cabelos caídos sobre os ombros, ela parecia magnífica com o seu saxofone alto. Shuya foi arrebatado por esta visão. Foi ela que o ensinou como tocar os acordes difíceis na guitarra. (Ela dizia: "Eu tocava um pouco antes de

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começar a tocar saxofone.") A partir daquele dia Shuya gastou cada minuto livre que tinha para tocar sua guitarra, e no segundo ano ele era o melhor músico do clube. Tudo isso porque ele queria que Kazumi o ouvisse tocar. Então um dia, quando os dois coincidiram de estar sozinhos na sala de música após as aulas, Shuya tocou e cantou uma versão de "Summertime Blues" que a impressionou. "Foi tão legal, Shuya. Isto foi incrível." Naquele dia Shuya comprou uma lata de cerveja pela primeira vez na sua vida e comemorou com um brinde solitário. O gosto estava ótimo. Mas três dias depois, quando ele a convidou para sair, confessando "Ahn, eu gosto muito de você.", ela respondeu, "Desculpa, eu já estou saindo com uma pessoa.". Ela se graduou e foi para um colégio com um departamento de música, junto com seu "namorado". Isto lembrou Shuya de sua conversa com Yoshitoki na represa durante as férias de primavera. Depois de compartilhar seus sentimentos por Noriko, Yoshitoki perguntou a ele: –Você ainda está afim da Kazumi? –Sim, acho que ficarei afim dela o resto da minha vida. Yoshitoki parecia surpreso: –Mas ela tem um namorado, não tem? Lançando o anzol prateado com toda a força, ele respondeu: –Não tem importância. Shuya pegou o embrulho de biscoitos de Yoshitoki, que ainda estava olhando para o colo. –Você não vai deixar um pouco pra Noriko? –Ah é, desculpa. Shuya devolveu o embrulho pra Noriko. –Desculpa por isso. –Tudo bem, não tem importância. Vocês podem comer tudo. Shuya olhou pela primeira vez para o rapaz sentado do lado de Noriko. Enrolado em seu uniforme escolar, Shogo Kawada (Estudante Masculino No. 5) apoiava-se na janela com seus braços cruzados e olhos fechados. Ele devia estar dormindo. Seu cabelo estava cortado tão curto que ele parecia um monge6. Seu rosto fechado lembrou Shuya de um punk mafioso em uma festa à fantasia. "Uau! Barba, pessoal! Ele não parece meio velho para um estudante da oitava série?" Bom, uma coisa ele sabia. Apesar da Classe B consistir dos mesmos estudantes do ano passado, Shogo Kawada foi transferido neste último abril de Kobe. E por algum problema, um ferimento ou doença (ele não parecia o tipo de pessoa que fica doente, então deve ter sido um ferimento), Kawada teve que repetir um ano, pois foi incapaz de ir à escola por seis meses. Em outras palavras, ele era um ano mais velho que Shuya e seus colegas. O próprio Shuya nunca comentou isso com ninguém, mas foi o que ele ouviu. Na verdade, ele não ouviu coisas boas sobre Shogo. Havia um rumor de que ele foi um notório encrenqueiro em sua escola anterior e sua hospitalização foi o resultado de uma briga. Uma longa cicatriz que parecia ter sido de ferimento de faca corria por sua sobrancelha esquerda, e 6

É uma piada que fazem, pois monges budistas são carecas.

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quando eles se trocavam no vestiário do ginásio (não faz parte do assunto, mas o corpo de Kawada tinha a constituição de um lutador de boxe de peso médio), Shuya se impressionou ao encontrar o mesmo tipo de cicatrizes cobrindo seus braços e costas. Havia duas cicatrizes redondas próximas uma da outra em seu ombro esquerdo. Elas pareciam ferimentos de tiro, mas isso era inacreditável. Sempre que ouvia estes boatos sobre Shogo, alguém inevitavelmente sugeria: "Ele provavelmente irá acabar brigando com Kazuo." Logo depois que Shogo foi transferido pra escola, o idiota do Ryuhei Sasagawa tentou intimidá-lo. Os detalhes exatos do que se seguiu são apenas rumores, mas aparentemente Ryuhei ficou pálido, recuou e foi chamar pela ajuda de Kazuo. Porém Kazuo parecia indiferente e só olhou para Ryuhei. Ele não disse uma palavra a Shogo. Por isso, pelo menos naquela vez, eles conseguiram evitar um confronto. Kazuo não pareceu interessado em Shogo. Por conseqüência, a Classe B permaneceu em paz. Eles deram sorte. Todo mundo evitava Shogo por causa de sua diferença de idade e dos boatos. Mas Shuya não gostava de julgar as pessoas com base em boatos. Alguém já disse: se você pode ver por si mesmo, então não é preciso ouvir o que os outros dizem. Shuya apontou seu queixo por Noriko, na direção de Shogo: –Será que ele está dormindo? –Hum...– ela olhou para Shogo.– Eu não queria acordá-lo. –De qualquer forma, ele não parece ser do tipo que gosta de biscoitos. Noriko deu risada e quando Shuya estava a ponto de rir também eles ouviram: –Não, obrigado. Shuya olhou de volta para Shogo. A voz forte e baixa ecoou em sua cabeça. Apesar de Shuya não estar familiarizado com a voz, ela obviamente viera de Shogo, que ainda tinha os olhos fechados, apesar de não parecer estar dormindo. Logo Shuya se deu conta de que ele raramente havia ouvido a voz de Shogo apesar de ele ter sido transferido para a escola há mais de um mês. Noriko olhou para Shogo e então olhou para Shuya. Ele deu de ombros em resposta e enfiou outro biscoito na boca. Ele continuou conversando com Noriko e Yoshitoki por algum tempo, mas... Eram quase dez horas quando Shuya notou algo estranho. Algo esquisito estava acontecendo dentro do ônibus. Yoshitoki, que estava à sua esquerda, subitamente caiu no sono e estava respirando suavemente. O corpo de Shinji Mimura estava escorregando para o corredor. Noriko Nakagawa também estava dormindo. Ninguém parecia estar conversando. Todos pareciam estar dormindo. Bom, qualquer pessoa que cuida excessivamente de sua saúde deveria estar indo para a cama agora, mas esta era a viagem tão esperada por eles. Não era um pouco cedo para dormir logo depois da saída? Por que todos não estavam cantando, ou algo do tipo? Este ônibus não tinha uma daquelas máquinas de karaokê que Shuya tanto odiava? Pior de tudo, Shuya estava sentindo muito sono. Ele parecia estar confuso... Ele nem mesmo podia mover sua cabeça, que parecia pesada. Ele se inclinou no assento. Seus olhos foram do curto espaço do espelho retrovisor ao centro do grande pára-brisa desaparecendo no escuro... Ele conseguiu reconhecer a pequena imagem da parte de cima do corpo do motorista.

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O rosto do motorista estava coberto como que parecia ser uma máscara. Finas tiras estavam enroladas em sua cabeça, amarradas acima e abaixo de suas orelhas. O que era aquilo? Tirando o cano saindo para baixo, parecia uma máscara de oxigênio de emergência em aviões. "Então não podemos respirar dentro deste ônibus? Senhoras e senhores, este ônibus fará uma aterrissagem de emergência devido a problemas no motor. Por isso, por favor, apertem os seus cintos, coloquem suas máscaras de oxigênio e sigam as instruções da tripulação. Tá, certo." Ele ouviu um som de arranhado à direita. Shuya teve que lutar para poder lançar um olhar pra lá. Seu corpo parecia muito pesado. Era como se ele estivesse imerso em gelatina transparente. Shogo Kawada estava se erguendo e lutando para conseguir abrir a janela. Mas como se estivesse emperrada de ferrugem ou se a trava estivesse quebrada, a janela se recusava a mover. Shogo bateu com o punho esquerdo contra o vidro. Ele estava tentando quebrar o vidro. Por que toda a afobação? Mas a janela não quebrou. O punho que estava pronto para quebrar o vidro subitamente ficou inerte e caiu desajeitado. Seu corpo despencou no assento. Shuya pensou ter ouvido aquela voz baixa, com a qual só recentemente se familiarizou, dando um fraco resmungo “Droga.”. Quase imediatamente Shuya também caiu no sono. Aproximadamente na mesma hora, famílias de estudantes em Shiroiwa foram visitadas por homens em sedãs negros. Alarmados pela visita tardia, os pais devem ter ficados chocados quando os visitantes lhes entregaram documentos estampados com a insígnia vermelha oficial do governo. Na maior parte dos casos os pais abaixavam a cabeça em silêncio enquanto pensavam em seus filhos, quem muito provavelmente nunca mais veriam novamente, mas houve aqueles que protestaram histericamente, neste caso eles seriam nocauteados por um bastão de eletro choque ou, no pior caso, perfurados por balas de uma submetralhadora, um passo à frente de seus filhos ao partirem deste mundo. Até então o ônibus designado para a viagem de estudos da Classe B da Oitava Série da Escola Shiroiwa já havia se desviado há tempos da fila dos outros ônibus e dado meio volta em direção à cidade de Takamatsu. Depois de retornar à cidade ele tomou seu caminho através de várias estradas antes de finalmente parar e calmamente desligar seu motor. O homem quarentão, cujo cabelo estava salpicado de branco parecia um típico motorista de ônibus. Ainda usando máscara de oxigênio que estava enterrado em seu queixo levemente caído, ele se virou na direção dos estudantes da Classe B com um leve olhar de pena. Mas tão logo outro homem apareceu sob a janela, seu rosto endureceu. Ele fez a idiossincrática saudação da República e então pressionou o botão para abrir a porta. Shuya olhou de relance para fora enquanto homens mascarados com equipamentos de batalha entraram apressadamente. Sob a luz da lua o quebra-mar de concreto branco azulado cintilava como ossos, e atrás do quebra-mar o navio que transportaria os “jogadores” oscilava preguiçosamente no enorme e negro mar aberto. 42 estudantes restantes.

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1 Por um momento Shuya pensou que estava em uma sala de aula comum. Não era a sala de aula da Turma B da Oitava Série, é claro, mas havia um púlpito, um quadro negro gasto e à esquerda uma alta estante com uma grande televisão. Havia fileiras de mesas e cadeiras feitas de madeira compensada colada em tubos de aço. Sobre a mesa de Shuya alguém havia entalhado uma mensagem contra o governo com uma caneta: “o Ditador ama mulheres de uniforme.”. Então ele notou que todos estavam em suas carteiras, os rapazes vestidos com uniformes de escola abotoados e as garotas em seus uniformes de marinheiro, todos os quarenta e um colegas de classe que momentos atrás (ao menos é o que parecia) estavam viajando juntos no ônibus. Porém eles estavam – tanto esparramados sobre suas carteiras quanto inclinados de costas em suas cadeiras– todos completamente adormecidos. Por trás da janela quebrada do lado do corredor (supondo que este prédio tinha o mesmo esboço que sua escola), Shuya inspecionou o resto da sala. Ele parecia ser o único acordado. À sua frente, à esquerda e na direção do centro da sala estava Yoshitoki Kuninobu. Ao lado dele estava Noriko Nakagawa e atrás de Yoshitoki estava Shinji Mimura. Eles estavam todos debruçados em suas carteiras, dormindo profundamente. Hiroki Sugimura largou seu enorme corpo sobre sua carteira (que foi quando finalmente Shuya se deu conta de que os lugares na sala eram idênticos aos que eles ocupavam no Colégio Shiroiwa) com as janelas do seu lado esquerdo. Foi também quando ele começou a perceber porque o lugar parecia esquisito. As janelas atrás do corpo de Hiroki pareciam terem sido cobertas por algum tipo de quadro negro. Placas de aço? Elas tinham um reflexo gelado da luz fraca vinda das fileiras de lâmpadas fluorescentes penduradas no teto. As janelas de vidro congelado quebrado do lado do corredor pareciam estar cobertas de preto. Talvez tivessem sido cobertas também. Era impossível determinar a hora do dia. Shuya olhou para seu relógio de pulso. Lia-se uma hora. Da manhã? Da tarde? A data era “Quin/22”, que significava que, a menos que alguém tivesse mexido em seu relógio, ou três ou quinze horas haviam passado desde que ele teve aquele estranho ataque de sonolência. Tudo bem, suponha que seja este o caso. Porém... Shuya olhou para seus colegas de classe. Algo estava fora do lugar. Claro que toda a situação era estranha, mas havia algo em particular que o perturbava. Shuya imediatamente descobriu o que era. Com o rosto apoiado na carteira, Noriko tinha sobre sua gola uma faixa de metal prateado enrolado cuidadosamente ao redor de seu pescoço. Por causa de sua cola abotoada, o colar de Yoshitoki Kuninobu mal estava visível, mas Shuya conseguiu vê-lo. Shinji Mimura, Hiroki Sugimura, todos tinham um em seus pescoços. Então um pensamento ocorreu a Shuya. Ele tocou seu pescoço com sua mão direita. Ele sentiu algo duro e frio. A mesma coisa deve ter sido enrolada ao redor de seu pescoço.

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Shuya puxou um pouco, mas o encaixe era tão apertado que se recusou a mover. Na hora que teve consciência disso, ele sentiu como se estivesse sufocando. Colares de aço! Colares de aço como se fôssemos cachorros, droga! Ele mexeu naquilo por um tempo com seus dedos, mas então desistiu. Em vez disso, pensou... O que aconteceu com a viagem de estudos? Shuya notou sua mala esportiva deitada ao lado de seus pés no chão. Na noite anterior ele despreocupadamente jogara suas roupas, toalha, caderno de viagem escolar e uma garrafa de uísque nela. Todos os outros também tinham suas malas ao lado dos pés. De repente um barulho alto irrompeu da entrada frontal e a porta abriu escorregando. Shuya olhou. Um homem entrou. Ele era troncudo, mas bem encorpado. Suas pernas eram extremamente curtas, como se servissem só como um mero apêndice de seu torso. Ele vestia calças bege-claras, uma jaqueta cinza, uma gravata vermelha e sapatos pretos. Todos pareciam gastos. Um crachá cor de pêssego estava pendurado na gola da jaqueta, indicando sua afiliação ao governo. Suas bochechas eram rosadas. O que mais se destacava era o corte de cabelo do homem. Ele os tinha até os ombros como uma mulher. Aquilo lembrou Shuya de uma capa de xerox granulado de uma fita de Joan Baez que ele comprara no mercado negro. O homem ficou de pé atrás do púlpito e examinou a classe. Seus olhos pararam em Shuya, que era o único acordado (supondo que isto não fosse um sonho). Os dois se encararam por, pelo menos, um minuto inteiro. Mas talvez porque os outros estudantes estivessem acordando, com suas respirações nervosas gradualmente se espalhando por toda a sala de aula, o homem desviou o olhar de Shuya. Suas vozes acordaram os outros colegas de classe de seu sono pesado. Shuya olhou para o resto da classe. Quando acordavam, seus olhos ficavam fora de foco. Ninguém tinha a mínima idéia. Seus olhos encontraram Yoshitoki Kuninobu quando seu amigo acordou. Shuya apontou para seu colar, inclinando levemente seu pescoço. Yoshitoki imediatamente tocou seu pescoço. Ele parecia chocado. Ele sacudiu sua cabeça para a direita e para a esquerda e se virou para a estante de leitura. Noriko Nakagawa também olhou para Shuya com um olhar confuso. Shuya só podia encolher os ombros como resposta. Então quando todos pareciam acordados, o homem falou com uma voz animada: –Certo, todos acordados? Eu espero que vocês tenham dormido bem! Ninguém respondeu. Até mesmo os palhaços da classe, Yutaka Seto e Yuka Nakagawa (Estudante Feminina No 16), estavam mudos. 42 estudantes restantes.

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2 Exibindo um largo sorriso, o homem de cabelos longos continuou atrás do púlpito: – Certo, certo. Então eu prosseguirei com a introdução. Antes de tudo, eu sou seu novo instrutor, Kinpatsu Sakamochi7. O homem que se apresentou como Sakamochi virou-se em direção ao quadro negro e escreveu seu nome em grandes letras verticais com o giz. “Kinpatsu Sakamochi”? Isso era algum tipo de piada? Dada a situação, talvez fosse um pseudônimo. De repente a representante feminina da classe, Yukie Utsumi, levantou-se e disse: – Não entendo o que está havendo aqui. – Todos olharam para Yukie. Com seu cabelo comprido ordenadamente trançado em um par de rabos de cavalo, parecia bastante confusa, mas sua voz permanecia assertiva. Apesar de tudo, Yukie provavelmente teve que se iludir para acreditar que eles passaram por algum acidente de tráfego ou algum outro evento que os levou à inconsciência. Yukie continuou: –O que está havendo aqui? Nós todos estávamos no meio da nossa viagem de estudos. Certo pessoal? Ela se virou e olhou para todos, iniciando uma avalanche de gritos: –Onde estamos? –Você também caiu no sono? –Que horas são afinal? –Droga, eu não tenho relógio. –Você lembra de descer do ônibus e vir aqui? –Quem diabo é ele? –Eu não lembro de nada. –Isto é terrível. O que está acontecendo? Estou com medo. Depois de observar Sakamochi calmamente ouvindo-os, Shuya lentamente inspecionou a sala. Havia vários outros que permaneceram em silêncio. O primeiro que ele notou estava sentado em um ângulo atrás dele na fileira de trás no meio. Era Kazuo Kiriyama. Por baixo de seu cabelo penteado pra trás seus olhos estavam olhando para o homem no púlpito. Seu olhar estava calmo, nem mesmo tinha brilho. Ele não dava atenção ao seu círculo de seguidores dirigindo-se a ele: Ryuhei Sasagawa, Mitsuru Numai, Hiroshi Kuronaga (Estudante Masculino No. 9) e Sho Tsukioka (Estudante Masculino No. 14). E lá estava Mitsuko Souma, sentada na segunda fileira do lado da janela. Ela era uma das que pareciam esgotadas. Seu assento estava separado do resto de seu “grupo”, que consistia de Hirono Shimizu e Yoshimi Yahagi. Claro, nenhuma das outras garotas, nem rapazes, tentaria conversar com ela. (À esquerda de Shuya, Hirono e Yoshimi estavam conversando uma com a outra.) Apesar 7

Kinpatsu Sakamochi é um trocadilho feito com os ideogramas japoneses do nome “Kinpachi Sakamoto”, um conhecido personagem de um drama japonês. Sakamoto era um personagem tão carismático que serviu como modelo para os professores do Japão.

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de Mitsuko ter a linda aparência de uma ídolo pop, ela sempre estava com uma estranha expressão desinteressada no rosto. Ela olhou para Sakamochi com seus braços cruzados. (Hiroki Sugimura estava sentado logo atrás dela, conversando com Tadakatsu Hatagami). Shogo Kawada estava sentado na segunda fileira a partir da última do lado da janela. Ele também estava olhando silenciosamente para Sakamochi. Então ele pegou um pedaço de chiclete e começou a mascar, continuando a encarar o professor enquanto sua mandíbula se movia. Shuya olhou para frente da classe. Noriko Nakagawa ainda estava olhando para ele. Seus olhos negros estavam tremendo nervosamente. Shuya deu uma olhada para Yoshitoki, que estava sentado na frente dela, mas Yoshitoki estava ocupado conversando com Shinji Mimura. Shuya imediatamente olhou de volta para Noriko, comprimiu levemente seu queixo e fez um aceno com a cabeça. Isso pareceu ter um efeito calmante nela. Seus olhos pareceram relaxar um pouco. –Tudo bem, tudo bem, por favor, fiquem quietos. – Sakamochi bateu suas mãos várias vezes para chamar a atenção deles. O protesto repentinamente acalmou. – Deixem-me explicar a situação. A razão pela qual vocês estão aqui hoje... Então ele disse: –... é para matar uns aos outros. Agora ninguém respondeu. Todos ficaram paralisados, como estátuas em uma fotografia imóvel. Mas – Shuya notou – Shogo continuou mascando seu chiclete. Sua expressão não havia mudado. Mas Shuya pensou ter captado um relance de um leve sorriso brilhar em seu rosto. Sakamochi continuou sorrindo e reiniciou: –Sua classe foi escolhida para o ‘Programa’ deste ano. Alguém gritou. 42 estudantes restantes.

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3 Todo estudante de colégio na República do Leste da Ásia Maior sabia o que era o Programa. Ele era até tratado em livros escolares a partir da quarta série. Aqui nós iremos citar da mais detalhada Enciclopédia Compacta da República do Leste da Ásia Maior: “Programa n. 1. Uma listagem de ordem de eventos e outras informações [...] 4. Uma simulação de batalha conduzida pelas forças de defesa terrestre de nossa nação, instituída por razões de segurança. Oficialmente conhecido como Programa de Experimento de Batalha No. 68. O primeiro programa foi organizado em 1947. Cinqüenta alunos da oitava série de colégios são selecionados anualmente (antes de 1950, 47 classes eram selecionadas) para conduzir o Programa por motivos de pesquisa. Colegas de turma em cada classe são forçados a lutar até que reste um sobrevivente. Resultados deste experimento, incluindo o tempo decorrido, são usados como dados. Ao sobrevivente final de cada classe (o vencedor) é fornecida uma pensão vitalícia e um cartão autografado do Grande Ditador. Em reação a protestos e agitação causados por extremistas durante o primeiro ano de seu decreto, o 317º Grande Ditador deu seu famoso ‘Discurso de Abril’. O ‘Discurso de Abril’ é leitura obrigatória na quinta série. Aqui estão alguns excertos: “Meus queridos compatriotas trabalhando pela Revolução e construindo nossa amada nação. [Dois minutos de interrupção para o 317º Grande Ditador devido a aplausos e aclamações] Agora então. [Um minuto de interrupção] Nós ainda temos imperialistas descarados rondando nossa república, tentando sabotá-la. Eles têm explorado as pessoas de outras nações, nações que deveriam ter se tornado nossas aliadas, traindo-as, lavando suas mentes e tornando-as peões para suas próprias táticas imperialistas. [gritos de indignação unânimes] E eles ficariam felizes com a chance de invadir o solo de nossa república, o mais avançado estado revolucionário do mundo, revelando seus esquemas malignos para destruir nosso povo. [gritos raivosos da população] Dada esta horrível circunstância o experimento do Programa 68 é absolutamente necessário à nossa nação. É claro, eu sofro ao pensar nos milhares, dezenas de milhares de jovens perdendo suas vidas na tenra idade de quinze anos. Mas se suas vidas servem para proteger a independência de nosso povo, não podemos clamar que a carne e sangue que eles derramam irá se unir ao nosso belo solo passado a nós pelos nossos deuses e viver conosco na eternidade? [Aplausos, uma onda de animação. Um minuto de interrupção] Como vocês todos estão cientes, nossa nação não tem um sistema de conscrição. O Exército, a Marinha e as Forças Especiais de Defesa Aérea, todas consistem de almas patrióticas, jovens voluntários, cada um deles guerreiros apaixonados pela Revolução e a construção de nossa nação. Eles estão arriscando suas vidas todo dia e noite nas linhas de frente. Eu gostaria que vocês considerassem o Programa como um sistema de conscrição único para este país. Para proteger nossa nação, etc...” Já é o suficiente. (Logo do lado de fora da estação de trem o recrutador de meia idade das Forças Especiais se aproximaria de candidatos potenciais com a frase preparada, “Que tal comer arroz com carne de porco?”) Shuya ouviu pela primeira vez do Programa antes de ir para a quarta série. Foi quando ele finalmente se acostumou com a Casa de Caridade, onde foi levado por um

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amigo de seus pais depois que ambos morreram em um acidente de tráfego. (Todos os seus parentes se recusaram a recebê-lo. Ele ouviu que era porque seus pais tinham se envolvido em atividades contra o governo, mas ele nunca confirmou esta história). Shuya lembrava-se de quando tinha cinco anos. Ele estava vendo televisão na sala de brinquedos com Yoshitoki Kuninobu, que estava na Casa de Caridade antes de Shuya. Seu anime de robô favorito tinha acabado de terminar e a atual superintendente da instituição, Srta. Ryoko Anno (a filha do superintendente anterior; naquele tempo ela provavelmente ainda era uma estudante colegial, mas todos que trabalhavam lá era chamado de Sr. Sra. ou Srta.) mudou o canal. Shuya estava só olhando para a tela, mas tão logo ele viu o homem em terno firme falando, percebeu que era só aquele programa chato chamado “Notícias”, o programa que eles mostravam naquele canal em vários horários. O homem estava lendo do script. Shuya não se lembrava exatamente o que ele disse, mas era sempre a mesma coisa e provavelmente foi algo assim: “Nós recebemos um relatório das Forças Especiais de Defesa e o governo que o Programa na Prefeitura Kagawa terminou ontem às 3:12 pm. Faziam três anos deste que o último Programa foi conduzido aqui. A classe sujeita foi a Classe E da Oitava Série do Colégio Zentsuji No. 4. O local secreto foi a Ilha Shidakajima, quatro quilômetros longe de Tadotsucho. O vencedor surgiu em 3 dias, 7 horas e 43 minutos. Além disso, com a recuperação dos cadáveres e autópsias conduzidas hoje, as causas das mortes para todos os 38 estudantes mortos foram determinadas: 17 de ferimentos de tiro, 9 de ferimentos de facas ou lâminas, 5 de armas de impacto e 3 sufocados até a morte..” Uma imagem do que parecia ser “o vencedor”, uma garota vestida com um uniforme de marinheiro esfarrapado apareceu na tela. Espremida entre dois soldados das Forças Especiais de Defesa, ela olhou de volta para a câmera, seu rosto estremecia. Sob seu longo e desarrumado cabelo, alguma substância escura e vermelha aderia à sua têmpora direita. Shuya ainda podia se lembrar claramente de como o rosto contorcido dela formava o que parecia ser, por mais estranho que pareça, um sorriso. Agora ele se deu conta de que aquela foi a primeira vez que ele viu uma pessoa insana. Mas na hora ele não tinha a mínima idéia do que havia de errado com ela. Ele só se sentiu inexplicadamente amedrontado, como se tivesse visto um fantasma. Shuya acreditava ter perguntado: “O que é isso, Srta. Anno?” A Srta. Anno apenas balançou a cabeça e respondeu: “Ah, não é nada.” Então Srta. Anno virou-se para o outro lado e sussurrou “Pobre garota.” Yoshitoki Kuninobu já tinha parado de assistir há um tempo e estava preocupado com sua tangerina. À medida que Shuya crescia este mesmo relatório local, dado com a freqüência de uma vez a cada ano a qualquer momento sem nenhum aviso, parecia mais e mais sinistro. Entre todos os alunos da Oitava Série do colégio, a cinqüenta classes era dada uma sentença de morte garantida. Isto soma dois mil estudantes, mais precisamente, 1950 estudantes mortos. O pior é que não era simplesmente uma execução em massa. Os estudantes tinham que matar uns aos outros, competindo pelo trono do sobrevivente. Era a mais terrível versão imaginável da tradicional dança das cadeiras.

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Mas... era impossível se opor ao Programa. Era impossível protestar contra o que quer que a República do Leste da Ásia Maior fizesse. Então Shuya decidiu se render. Era assim que a maioria dos estudantes “reservas” da oitava série lidavam com isso, não é? Certo, nosso sistema especial de conscrição? A bela terra natal de Vigorosas Plantações de Arroz? Quantos estudantes de colégio ainda havia na república? A taxa de nascimento podia estar diminuindo, mas suas chances ainda eram menores que uma em oitocentas. Na Prefeitura de Kagawa isto significava que só uma classe a cada outro ano seria a ”escolhida”. De modo simples, era mais comum você morrer em um acidente de trânsito. Dado que Shuya nunca teve seu dia de grande sorte, ele imaginava que não seria escolhido. Mesmo na rifa local ele nunca havia ganhado mais que uma caixa de lenços. Por isso ele nunca seria escolhido. Então foda-se, cara. Mas então uma vez quando ele ouviu alguém na classe, particularmente uma garota em lágrimas, dizer algo como “meu primo foi no Programa e...”, aquele medo sombrio o sufocava novamente. Ele estava furioso também. Digo, quem tinha o direito de aterrorizar a pobre garota? Mas dentro de alguns dias a mesma garota que estava tão triste sorriria de novo. E o medo e raiva de Shuya gradualmente diminuiriam e desapareceriam também. Mas o vago sentimento de desconfiança e impotência que sentia em relação ao governo continuava apesar de tudo. Era assim que as coisas eram. E quando Shuya entrou na oitava série do colégio neste ano, ele, junto com seus outros colegas de turma, assumiu que estariam seguros. Na verdade eles não tinham nenhuma escolha a não ser pensar dessa forma. Até agora. –Não pode ser. Uma cadeira caiu quando alguém se levantou. A voz era aguda o suficiente para fazer Shuya olhar para a carteira atrás de Hiroki Sugimura. Era Kyoichi Motobuchi, que era o representante de classe masculino. Seu rosto estava mais que pálido. Ele tinha ficado cinza, dando um contraste surreal aos seus óculos de quadro prateado, parecendo uma daquelas pinturas de Andy Warhol ilustradas em seus livros de arte como “a arte decadente dos imperialistas Americanos”. Alguns de seus colegas de turma deviam estar esperando que Kyoichi forneceria alguma forma racional de protesto. Matar os amigos com quem que você estava saindo ainda ontem? Era impossível. Alguém deve estar cometendo um erro aqui. Ei, representante, você pode resolver isto pra gente? Mas Kyoichi os desanimou completamente. –M-meu pai é o diretor de assuntos governamentais no governo da prefeitura. Como a classe em que eu estou poderia ter sido escolhida p-para o Programa?... Devido ao seu tremor, sua voz tensa soava ainda mais afetada que o normal. O homem que se chamava Sakamochi sorriu e sacudiu a cabeça, seu longo cabelo balançou no ar.

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–Vamos ver. Você é Kyoichi Motobuchi, certo? –Você deve saber o que igualdade significa. Escute bem. Todas as pessoas nascem iguais. O emprego de seu pai no governo da prefeitura não confere a você privilégios especiais. Você não é diferente. Ouçam todos. Vocês todos tem seus próprios passados pessoais. Certamente alguns de vocês vêm de famílias ricas, alguns de famílias pobres. Mas circunstâncias além de seu controle como esta não determinam quem vocês são. Vocês todos devem entender que vocês têm seu próprio valor. Então Kyoichi, não vamos nos enganar dizendo que você é especial de alguma forma, por que você não é! Sakamochi vociferou isto tão subitamente que Kyoichi caiu em sua cadeira. Sakamochi olhou furiosamente para Kyoichi por um tempo, mas então seu sorriso retornou. –Sua classe será mencionada nas notícias desta manhã. Certamente pelo Programa dever ser conduzido em segredo, os detalhes ficarão secretos até o jogo acabar. Agora, vamos ver, certo, seus pais já devem ter sido notificados agora. Todos ainda pareciam perdidos em confusão. Colegas de classe se assassinando mutuamente? Impossível. –Vocês ainda não acreditam que isto está acontecendo, não é? Sakamochi coçou a cabeça com um olhar preocupado. Então ele se virou para a entrada e chamou: –Eu quero vocês aqui dentro! Em resposta a porta abriu escorregando e três homens entraram rapidamente. Eles estavam todos usando roupas de camuflagem e botas de combate e segurando capacetes de aço com a insígnia vermelha sob seus braços. Era óbvio que eles eram soldado das Forças Especiais de Defesa. Eles tinham rifles de assalto presos sobre seus ombros e Shuya podia ver pistolas automáticas guardadas em seus cintos. Um dos soldados era alto com cabelo estranhamente encurvado, dando a impressão de alguém frívolo, o outro tinha altura mediana com um rosto belo e infantil e o último tinha um sorriso leve, mas estava eclipsado pelo carisma dos outros dois. Eles carregavam uma sacola grande de nylon grosso que parecia um saco de dormir preto. Várias partes do saco estavam puxadas como se estivesse recheado com abacaxis. Sakamochi parou em frente a janela e os três homens colocaram a sacola no púlpito. Os dois lados da sacola estavam saindo do púlpito, particularmente o lado virado para a janela, e pendurado, talvez porque seu conteúdo fosse macio. Sakamochi anunciou: –Deixem-me apresentar estes homens que estarão ajudando vocês durante o Programa. Sr. Tahara, Sr. Kondo e Sr. Nomura.8 Agora por que vocês não mostram a eles o que tem dentro? O frívolo, Tahara, aproximou-se do púlpito do lado do corredor, colocou sua mão no zíper e abriu a sacola. Alguma coisa se molhou em líquido vermelho... –AIEEEE! 8

Tahara, Kondo e Nomura são outra referência à novela japonesa. Os três faziam parte do Trio Tanokin que apareceu na primeira série do 3-B Kinpachi Sensei.

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Antes que estivesse totalmente aberto, uma das garotas da fileira da frente gritou foi imediatamente seguida pelas outras. À medida que as mesas e cadeiras faziam barulho de batida, outras vozes perguntaram “Quê??” e um coral agudo encheu a sala. Shuya prendeu a respiração. Ele podia ver o corpo do professor responsável pela Classe B, Masao Hayashida, dentro do saco semi-aberto. Não, ele agora era seu professor morto. De fato ele era agora o falecido Sr. Hayashida. Seu fino paletó azul-cinzento estava ensopado em sangue. Só restava metade de seus óculos largos que lhe deram o apelido de “Libélula”. O que você podia esperar, só a metade esquerda de sua cabeça restava. Sob a lente restante o globo ocular parecido com bola de gude vermelha olhava distraidamente para o teto. Gelatina cinza, que deve ter sido seu cérebro, presa ao que restava de seu cabelo. Como se aliviado por ter sido libertado, seu braço esquerdo, ainda com o relógio, caiu da sacola, balançando na frente do púlpito. Aqueles que estavam sentados na frente viram o segundo balanço. –Certo, certo, certo, quietos agora. Fiquem calados. Silêncio! Sakamochi bateu palmas, mas o grito das garotas não iria ceder. Subitamente, o soldado com cara de moleque chamado Kondo puxou sua pistola. Shuya esperava um tiro de aviso no teto, mas em vez disso o soldado agarrou o saco contendo Hayashida com uma de suas mãos e puxou o saco do púlpito. Ele agarrou a cabeça de Hayashida pelo rosto. Parecia um herói em um filme de ficção lutando contra um verme ensacado gigante. O soldado deu dois tiros na cabeça de Hayashida. O resto de sua cabeça voou em pedaços. As balas de alta potência fizeram em pedaços o cérebro e ossos que formaram uma névoa e respingaram sobre os rostos e peitos dos estudantes da fileira da frente. Os ecos dos tiros pararam. Mal havia algum traço da cabeça de Hayashida. O soldado jogou o corpo de Hayashida do lado do púlpito. Ninguém mais estava gritando. 42 estudantes restantes.

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4 A maioria dos estudantes de pé retornou timidamente aos seus assentos. O soldado não carismático que estava mais longe puxou o saco contendo o corpo de Hayashida para o canto da sala de aula, então juntou-se aos outros dois parados ao lado do púlpito. Sakamochi retornou à sua posição atrás do púlpito. Mais uma vez a sala ficou silenciosa, mas o silêncio logo foi quebrado pelo som de alguém gemendo no fundo, seguido pelo úmido som de vômito caindo contra o chão. Shuya podia sentir o cheiro. –Ouçam todos. Como podem ver, Sr. Hayashida veementemente se opôs a designação de sua classe ao Programa. – Sakamochi disse coçando o cabelo. – Bom, foi tudo tão súbito, nós realmente nos sentimos mal por isso, mas... A sala ficou silenciosa novamente. Todos agora sabiam. Isto era real. Não havia nenhum erro, nem era uma brincadeira. Eles seriam forçados a matar uns aos outros. Shuya desesperadamente tentou pensar claramente. A situação irreal tinha o colocado em confusão. Sua mente estava girando com o horrível cadáver de Hayashida e o lugar que ele tomou neste show de terror. Eles tinham que escapar. Mas como? ... Certo ... primeiro ele se encontraria com Yoshitoki... Shinji e Hiroki... mas como o Programa era conduzido? Os detalhes nunca eram publicados. Estudantes ganhavam armas para matar uns aos outros. Era só isto o que sabiam. Mas poderiam conversar uns com os outros? Como o governo monitorava o jogo? –Eu... Eu... – os pensamentos de Shuya foram interrompidos. Ele ergueu o olhar e abri seus olhos. Yoshitoki Kuninobu se ergueu um pouco e olhava para Sakamochi, incerto, pelo que parecia, se ele deveria continuar. Ele parecia como se suas palavras estivessem foram do controle. O corpo de Shuya ficou tenso. Não os provoque, Yoshitoki! –Siiiim? O que é? Você pode me perguntar o que quiser. Sakamochi deu um sorriso amigável e, como um fantoche, Yoshitoki continuou: –Eu... não tenho pais. Então quem você contatou? – Ahã. – Sakamochi acenou com a cabeça. – Eu lembro que havia alguém de uma das instituições de caridade. Então você deve ser Shuya Nanahara? Vamos ver, de acordo com o relatório da escola você estava com idéias perigosas. Então... –Eu sou Shuya.– Shuya interrompeu, erguendo sua voz. Sakamochi olhou para Shuya e então de volta para Yoshitoki. Ainda confuso, Yoshitoki olhou de volta para Shuya. – Ah, está certo. Desculpe-me. Havia mais um. Então você deve ser Yoshitoki Kuninobu. Bom, eu contatei a superintendente de sua instituição onde vocês cresceram. É verdade... ela era muito bonita. – Sakamochi disse e sorriu. Apesar de seu sorriso parecer alegre, havia algo perturbador nele. O rosto de Shuya ficou tenso. “Que diabos você fez com a Srta. Anno?”

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– Bom, como o Sr. Hayashida, ela não foi muito cooperativa. Eles não aceitaram sua designação, então para silenciá-la, bom, eu tive que... – Sakamochi continuou calmamente. – ...violentá-la. Ah, mas não se preocupe. Ela não está morta. Shuya ruborizou de raiva e pulou, mas antes que pudesse dizer algo, Yoshitoki disse: – Eu te mato! Yoshitoki estava de pé. Sua expressão, no entanto, havia mudado. Ele que sempre foi amigável com todo mundo. Não importa o que acontecesse, era impossível imaginá-lo ficando nervoso. Sua expressão agora era algo que ele havia guardado para aqueles raros momentos em que ele estava verdadeiramente furioso. Ninguém mais na sala havia visto ele assim, mas Shuya o viu zangado duas vezes. A primeira vez foi quando eles estavam na quarta série e um carro atropelou o cão de estimação da Casa de Caridade. Eddie, bem em frente ao portão. Freneticamente, Yoshitoki perseguiu o carro fugitivo. A segunda vez foi apenas um ano atrás, quando um homem esteve usando o débito da escola como desculpa para avançar na Srta. Anno. Depois que ela conseguiu pagar de volta o dinheiro, e com isso rejeitou seus avanços, o homem amaldiçoou-a bem na frente deles, como se ele quisesse que todos os residentes da Casa de Caridade o ouvissem. Se Shuya não tivesse parado Yoshitoki, o homem teria perdido os dentes da frente, apesar de Yoshitoki poder também ser gravemente ferido. Yoshitoki era extremamente gentil e mesmo quando era insultado ou provocado ele geralmente zombava. Mas quando alguém que ele gostava de verdade era machucado, sua resposta era extrema. Isto era algo que Shuya admirava em Yoshitoki. –Vou te matar, seu bastardo!– Yoshitoki continuou, gritando. – Vou te matar e te jogar numa pilha de merda! –Hum.– Sakamochi parecia surpreso.– Você fala sério, Yoshitoki? Você sabe que deve-se ser responsável pelo que se diz. –Dá um tempo! Eu vou te matar! Não se esqueça! –Pára, Yoshitoki! Pára! Yoshitoki não deu atenção aos gritos de Shuya. Sakamochi falou com uma voz estranha e gentil como se fosse para acalmar Yoshitoki. –Olha, Yoshitoki. O que você está fazendo agora é declarando sua oposição ao governo. –Vou te matar!– Yoshitoki não parou.– Vou te matar, vou te matar, vou te matar! Shuya não podia mais se conter e justo quando ele estava prestes a gritar, Sakamochi balançou a cabeça e acenou com a mão para os três soldados das Forças Especiais de Defesa parados ao lado do púlpito. Eles pareciam um grupo de coral, como os “Four Freshmen”9. Os homens em fardas, Tahara, Kondo e Nomura, todos ergueram suas mãos direitas em uma pose dramática, emocionalmente carregada. Mas suas mãos estavam segurando armas. O coral neste momento estaria cantando algo como “Baby, please, baby please, spend this night with me...” Shuya viu os olhos saltados de Yoshitoki se abrirem ainda mais. 9

“The Four Freshmen” foi um dos grupos musicais de grande sucesso da década de 1950. Eram um quarteto de vocal que sobreviveu por décadas.

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As três pistolas automáticas explodiram todas ao mesmo tempo. Como ele estava se dirigindo para o corredor entre as fileiras, o corpo de Yoshitoki tremeu como se estivesse dançando boogaloo. Isto aconteceu tão rápido que Noriko Nakagawa, que se sentava logo atrás de Yoshitoki, juntamente com o resto da classe, não teve tempo de abaixar. Os barulhos de tiro não evaporaram antes que Yoshitoki lentamente se inclinasse para a direita e batesse no chão entre sua carteira e a da Izumi Kanai na direita. Izumi gritou. O trio permaneceu de pé com suas mãos direitas estendidas. Fina fumaça de cada um dos canos simultaneamente deixaram rastro subindo. Shuya então viu entre os pés da carteira o rosto familiar virado para ele. Os olhos saltados permaneciam abertos, fixos em um ponto no chão. O ombro direito de Yoshitoki se estremeceu até chegar aos dedos. –Yoshitoki! Shuya levantou-se para correr até ele, mas Noriko Nakagawa, que estava sentada mais perto, foi mais rápida. –Yoshitoki!– ela berrou e curvou-se ao seu lado. Agora Tahara, o frívolo, apontou sua arma em Noriko e puxou o gatilho. Noriko caiu para frente como se tivesse torcido seu pé e caiu em cima de Yoshitoki, que continuava estremecendo. Tahara imediatamente apontou sua arma para Shuya. A mente de Shuya estava em disparada, mas seu corpo estava paralisado. Apenas seus olhos mexiam. Ele viu o sangue escapando da panturrilha de Noriko. Sakamochi disse para Noriko: –Você não deixará sua carteira sem minha permissão. Então ele olhou para Shuya, dizendo: –O mesmo se aplica a você, Shuya. Agora sente-se. Shuya fez o máximo para tirar seus olhos da perna ensangüentada de Noriko e Yoshitoki sob ela. Ele olhou Sakamochi diretamente nos olhos. Seus músculos do pescoço estavam tensos do choque da cena. – Que diabos está havendo aqui!? – Tahara ainda apontava a arma para sua testa. Shuya permaneceu parado, explodindo – Que diabos estão fazendo!? Nós temos que buscar ajuda para Yoshitoki... e Noriko... Sakamochi fez uma careta e balançou a cabeça. Então ele repetiu: –Esqueça isto e sente-se. Você também, Noriko. Noriko, completamente pálida de olhar Yoshitoki deitado sob ela, lentamente olhou para Sakamochi. Ela parecia estupefata com ódio mais do que estava com a dor que devia estar sofrendo. Ela ergueu os olhos e encarou Sakamochi. –Por favor, traga alguma ajuda.– Ela falou cada palavra propositadamente.– Por Yoshitoki. O braço direito de Yoshitoki continuava a estremecer. Mas enquanto eles o observavam o movimento parou. Era evidente que seu ferimento seria fatal se ele não fosse tratado imediatamente.

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Sakamochi suspirou profundamente, então dirigiu-se ao frívolo: –Então Sr. Tahara, faça o favor de cuidar disso. Antes que eles pudessem compreender o que ele quis dizer, Tahara apontou sua arma para baixo e puxou o gatilho. BLAM. A cabeça de Yoshitoki saltou uma vez e então algo de sua cabeça espirrou no rosto de Noriko. Abismada, o queixo de Noriko caiu. Seu rosto estava coberto por uma substância vermelho escura. Shuya percebeu que sua boca estava aberta também. Apesar de parte de sua cabeça ter sido estourada, os olhos de Yoshitoki ainda permaneciam focadas na mesma parte do teto. Porém ele não estava mais tremendo. Ele não se movia. –Vê? – disse Sakamochi – Ele já estava morrendo. Então agora, por favor, retornem aos seus assentos. –Ah...– Noriko olhou para baixo para a cabeça deformada de Yoshitoki.– ...ah meu... Shuya também estava em estado de choque. Seus olhos estavam colados no rosto de Yoshitoki, deitado entre os pés de sua carteira. Seus pensamentos estavam completamente paralisados, como se seu próprio cérebro tivesse sido estourado em pedaços. Memórias de Yoshitoki brotavam em sua mente confusa. As pequenas aventuras que eles tiveram, acampando ou descendo o rio, um dia chuvoso gasto jogando um velho jogo de tabuleiro, imitando “Jake and Elwood”, os heróis que, como eles mesmos, eram órfãos no filme Americano “The Blue Brothers” (surpreendentemente, era uma versão dublada, porém os dubladores eram horríveis), que havia se tornado um hit de mercado e, recentemente, o rosto de Yoshitoki quando ele disse “Ei Shuya, eu estou afim de alguém.”. Mas agora... –Vocês dois são surdos?– Sakamochi repetiu. Sim, Shuya estava surdo para as suas palavras. Ele apenas olhava para Yoshitoki. Noriko não estava diferente. Se eles não tivessem se movido, poderiam ter seguido os passos de Yoshitoki. Do lado de Sakamochi, Tahara apontou sua arma para Noriko, enquanto os outros dois apontavam as deles para Shuya. Mas foi graças a uma calma, na realidade, despreocupada voz chamando – S-s-s-senhor Sakamochi”, que Shuya foi trazido de volta à consciência, pelo menos o suficiente para olhar entorpecido para a direção da voz. Do outro lado do assento vazio de Yoshitoki, Shinji Mimura levantou sua mão. Noriko lentamente olhou para ele também. –Ahn? Vamos ver. Você deve ser Shinji Mimura. O que foi? Shinji abaixou sua mão e disse: –Noriko parece machucada. Eu estava pensando se eu poderia ir até ela e ajudá-la a voltar ao seu assento. Apesar da extremidade de sua situação, Shinji falou na sua voz normal de Terceiro Homem. Sakamochi ergueu sua sobrancelha levemente, mas então concordou. –Tudo bem, vá em frente. Eu realmente quero que as coisas andem rápido.

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Shinji acenou com a cabeça, levantou-se e andou em direção a Noriko. Quando ele aproximou-se dela, tirou um lenço ordenadamente dobrado de seu bolso e inclinou-se entre o corpo de Yoshitoki e Noriko. Ele primeiro limpou o rosto de Noriko, que estava coberto com o sangue de Yoshitoki. Noriko nem mesmo reagiu. Então ele disse “Levante-se, Noriko.” e pôs sua mão sob o braço direito de Noriko para ajudá-la a se erguer. Então, com suas costas viradas para Sakamochi, Shinji olhou para Shuya, que continuava meio levantado. Sob suas sobrancelhas finas e bem definidas, seus olhos que sempre tinham um olhar levemente distraído estavam agora absolutamente sérios. Sua mão esquerda ia para baixo, como se ele estivesse fazendo um movimento insistente. Shuya não entendeu este sinal. Shinji fez o mesmo movimento novamente. Apesar de ainda estar confuso, Shuya finalmente entendeu que Shinji estava dizendo para ele se acalmar. Ele olhou de volta para Shinji... e lentamente relaxou de volta ao seu assento. Shinji acenou com a cabeça. Depois de devolver Noriko ao ser assento, ele se virou e voltou à sua carteira. Noriko se sentou. Sangue saía da ferida em sua perna direita pendurada no assento. Suas meias e tênis brancos estavam ensopados de vermelho, como se ela estivesse usando botas do Papai Noel, mas só em seu pé direito. Noriko estava retomando a consciência um pouco também. Ela parecia estar fazendo um gesto para agradecer a Shinji. Mas como se pudesse enxergar por trás da cabeça, Shinji encolheu os ombros para impedi-la. Noriko recuou e novamente viu o cadáver de Yoshitoki deitado sob sua mão direita. Ela olhou fixamente para ele sem dizer uma palavra, mas seus olhos pareciam estar cheios de lágrimas. Shuya também olhou de volta para o cadáver, sua visão parcialmente obscurecida pelas carteiras. Sim, era um cadáver. Não havia dúvidas sobre isso. Era difícil entender, mas Yoshitoki tinha se tornado um cadáver, o cadáver de alguém com quem ele tinha compartilhado dez anos de sua vida. Quando ele olhou para os olhos abertos de Yoshitoki, a raiva de Shuya tornou-se mais saliente e clara, como um pulso palpitando. O ódio correu por todo o seu corpo tão intensamente que quase o fez tremer. Seus sentimentos, que haviam sido calados pelo choque inicial, estavam começando a aparecer. Shuya se virou e mostrou os dentes na direção de Sakamochi. Sakamochi olhou entretido para Shuya. Shuya nunca iria perdoá-lo por isso. Ele iria matar o bastardo. Shuya estava prestes a explodir como Yoshitoki fez, mas então... Shinji Mimura interveio no momento crucial, dizendo-o para se acalmar... Shuya imediatamente se lembrou que ele recebeu o sinal dele alguns momentos atrás. Está certo... com certeza, se ele explodisse agora iria terminar como Yoshitoki. E mais importante... agora a garota que Yoshitoki adorava tanto estava machucada seriamente. Se ele morresse agora... o que aconteceria com Noriko Nakagawa?

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Shuya fez o melhor que pôde pra tirar seus olhos de Sakamochi. Ele olhou para baixo, para sua carteira. Ele se sentia desprezível, como se seu coração tivesse sido esmagado pelo ódio e tristeza que não podiam ser desabafados. Sakamochi riu em silêncio. Ele tirou os olhos de Shuya. Shuya trincou os dentes com força olhando para a carteira para acalmar seu corpo que estava tremendo incontrolavelmente. Ele apertou mais e mais forte. Mas não era tarefa fácil controlar suas emoções com o cadáver de Yoshitoki deitado logo na frente dele. Isto era incompreensível. Como podia ser? Como você podia perder alguém... alguém tão próximo? “Yoshitoki sempre esteve comigo. Não importa o quão banais foram nossas experiências. E então o dia que nós brincamos no rio e eu o salvei de se afogar? Ou quando nós nos divertimos colecionando quilos de gafanhotos, enchendo uma caixa pequena deles e eles terminaram morrendo? Nós dois nos sentimos muito mal com aquilo. Ou então quando nós brigamos pela atenção daquele cachorro, Eddie? Ou quando nós pregamos uma peça na escola e acabamos nos escondendo no sótão da sala dos professores? Nós quase fomos pegos, mas depois que demos um jeito de escapar, demos boas risadas... Yoshitoki e eu sempre estivemos juntos. Isto era fato. Ele esteve comigo.” Então como ele pode ter... morrido agora?” Shinji ergueu sua mão de novo. –Tenho outra pergunta, Sr. Sakamochi. –Você de novo? O que é? –Noriko está ferida. Eu entendo que nós participaremos do Programa, mas isto não torna o jogo injusto? Sakamochi pareceu surpreso. –Bem, talvez sim. E então? – Que significa que ela deveria ser tratada, que o Programa deveria ser adiado até seu restabelecimento, não? Shuya mal havia conseguido segurar sua raiva, por isso ele estava surpreso pelo contraste pelo contraste na calma de Shinji Mimura. Era um pouco estranho que Shuya pudesse se permitir estar impressionado agora. Sim, Shinji Mimura era muito mais calmo que Shuya. Shinji estava certo. Se o pedido de Shinji fosse concedido, poderia dar-lhes algum tempo extra. Eles poderiam ser capazes de escapar. O rosto de Sakamochi se contorceu em riso. –Esta é uma sugestão muito interessante, Shinji. Sakamochi então ofereceu uma solução alternativa: –Então devemos matar Noriko Nakagawa agora, e tornar o jogo igualado? A própria Noriko junto com o resto da classe subitamente congelaram novamente. Shuya podia ver as costas de Shinji sob o uniforme contrair quando ele respondeu imediatamente: –Eu retiro o que disse, retiro o que disse. Vamos lá, eu só estava brincando.

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Sakamochi explodiu em gargalhadas de novo para o tom humorístico de Shinji. Tahara, cuja mão direita estava no coldre, rapidamente colocou-a na faixa do rifle pendurado no seu ombro. Sakamochi bateu as palmas de novo. – Certo então, escutem. Primeiro de tudo, cada um de vocês difere de acordo com sua inteligência, destreza física, etc., etc. Nós nascemos diferentes. Então nós não trataremos Noriko Nakagawa... Você aí!! Nada de cochichar! – Sakamochi gritou subitamente. Ele jogou um objeto branco onde Fumiyo Fujiyoshi (Estudante Feminina No. 18) estava no processo de sussurrar alguma coisa para a representante de classe Yukie Utsumi, que estava sentada ao lado dela. Shuya pensou que fosse giz por um momento, mas é claro que isto era absurdo, dadas as circunstâncias. O objeto fez um ruído da pancada de um prego sendo enterrado em um caixão. Uma fina faca foi plantada no meio da testa larga e de bela pele de Fumiyo Fujiyoshi. Yukie viu a cena com os olhos arregalados. Uma visão ainda mais estranha era a própria Fumiyo erguendo seus olhos, esforçando-se para localizar a faca plantada em sua testa. Sua cabeça arqueou para trás na tentativa. Então ela caiu para o lado. Quando ela caiu, sua têmpora esquerda bateu no canto da mesa de Yukie. Agora não havia espaço pra dúvidas. Quem podia sobreviver a uma faca cravada na testa? Ninguém se moveu. Ninguém falou uma palavra. Yukie tomou um fôlego longo e olhou para Fumiyo. Noriko também estava olhando para ela. Shinji Mimura manteve seus lábios apertados enquanto via Fumiyo caída entre as carteiras exatamente como Yoshitoki. Com sua garganta seca, Shuya segurou seu fôlego e pensou: “Ele fez isso sem pensar! Sem pensar! Diabos! Nossas vidas estão totalmente à mercê deste imbecil do Sakamochi!”. –Ops, foi mal. Sinto muito. O instrutor matando alguém é contra as regras, não? Sakamochi fechou seus olhos e coçou sua cabeça. Mas seu rosto ficou sério de novo e ele disse: – Eu preciso de sua completa atenção. Ações impulsivas estão estritamente proibidas. Isto significa que cochichar não será permitido. É difícil para mim, mas se vocês sussurrarem eu vou jogar outra faca em vocês! Shuya apertou seus dentes. Ele disse a si mesmo para ser paciente e repetiu isto mais e mais para si mesmo enquanto dois se seus colegas de classe estavam estendidos mortos no chão. Porém, ele estava preso ao rosto de Yoshitoki e não podia fazer nada senão olhar para ele. Ele sentia que estava prestes a chorar. 40 estudantes restantes.

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5 –Permitam-me explicar as regras. Sakamochi retornou à sua alegre voz. A sala de aula começou a ter o cheiro do sangue fresco de Yoshitoki Kuninobu, um odor completamente diferente daquele sangue seco de seu instrutor, “Libélula” Hayashida. Shuya não podia ver o rosto de Hayashida de seu lugar, mas parecia que havia muito pouco sangue saindo dele. –Acho que todos vocês sabem como isto funciona. As regras são simples. Tudo o que vocês tem que fazer é matar uns aos outros. Não há violações. E, – Sakamochi exibiu um sorriso largo – o último sobrevivente restante pode ir para casa. Você até recebe um belo cartão autografado pelo Ditador. Não é maravilhoso? Em sua mente, Shuya imaginou-se dando uma bofetada no rosto dele. – Agora vocês podem estar pensando que este é um jogo horrível. Mas na vida real o inesperado pode acontecer. Vocês devem a todo tempo manter autocontrole com a finalidade de responder apropriadamente aos acidentes. Considerem isto um exercício então. Além disso, homens e mulheres serão tratados igualmente. Não haverá vantagens para nenhum lado. Porém, eu tenho boas notícias para as mulheres. De acordo com as estatísticas do Programa, 49% dos sobreviventes anteriores foram garotas. O lema aqui é “Eu sou igual aos outros e os outros são como eu.”. Não há nada para se temer. Sakamochi fez um sinal. O trio camuflado foi para o corredor e começou a trazer grandes e negras mochilas de nylon. As mochilas formaram uma pilha logo ao lado do saco com o corpo do Sr. Hayashida. Alguns deles estavam tortos, como se estivessem contendo um objeto em forma de vara dentro tentando sair. –Nós vamos deixar vocês saírem um por um. Cada um de vocês irá levar uma dessas sacolas antes de partir. Cada mochila contém água, comida e uma arma. Vamos ver, como eu disse, cada um de vocês difere de acordo com a habilidade. Por isso estas armas irão adicionar outro elemento aleatório. Bem, isto parece complicado. Em outras palavras, isto fará o jogo muito mais imprevisível. Vocês irão terminar com uma arma selecionada aleatoriamente. À medida que saírem em ordem, vocês pegarão a sacola no topo da pila. Cada sacola também contém um mapa da ilha, um compasso e um relógio. Ah, eu esqueci de mencionar isto, mas nós estamos em uma ilha com uma circunferência aproximada de seis quilômetros. Nunca foi usada para o Programa. Nós evacuamos os residentes da ilha, por isso não há absolutamente ninguém mais. Então... Sakamochi se virou para a lousa e pegou um pedaço de giz. Ele desenhou uma forma grosseira de diamante ao lado de onde havia escrito seu nome, “Kinpatsu Sakamochi”. No lado mais alto ele desenhou uma seta apontando para cima e a letra “N”. Ele desenhou um “X” dentro do diamante, bem no centro. Com o giz ainda pressionado contra a lousa, ele se virou para os estudantes.

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–Certo então. Nós estamos na escola desta ilha. Este é um diagrama da ilha, e isso indica a escola. Entenderam? – Sakamochi bateu o símbolo com seu giz. – Eu vou ficar aqui. Estarei supervisionando seus esforços. Sakamochi então desenhou quatro formas finas espalhadas pelos lados norte, sul, leste e oeste do diamante. –Estes são navios. Eles estão lá para matar qualquer pessoa tentando escapar pelo mar. Então ele desenhou linhas paralelas horizontais e verticais através da ilha. A forma de diamante indicando a ilha parecia uma grelha torta agora. Começando do topo esquerdo, Sakamochi escreveu marcadores em cada quadrado, “A=1”,“A=2”... em ordem. Na próxima linha lia-se, “B=1”,“B=2”, etc. –Este é só um diagrama simplificado. O mapa dentro de suas mochilas vai se parecer com isso.– Sakamochi devolveu seu giz e bateu as mãos para limpar o pó. –Uma vez que vocês saibam estes fatos básicos, vocês estão livres para ir a qualquer lugar. No entanto, anúncios serão feitos para a ilha toda nos horários de doze e seis, na manhã e na noite. Isto dá quatro por dia. Eu estarei me referindo ao mapa quando anunciar o local das zonas que serão proibidas depois de um certo tempo. Vocês devem examinar seus mapas de perto e checar seus compassos com eles. Se você estiver numa zona proibida você deve sair da área tão logo for possível. Por causa... Sakamochi pôs suas mãos no púlpito e olhou para todos. –...dos colares em volta de seus pescoços. Até ele ter feito esta advertência, muitos estudantes haviam falhado em notar os colares. Eles tocaram seus pescoços e pareciam chocados. – Este dispositivo é o resultado da última tecnologia desenvolvida por nossa República. É 100% à prova d’água, anti-choque e ãh ãh, não não, não irá sair. Isto não irá sair. Se vocês tentarem afrouxá-lo...– Sakamochi tomou um breve fôlego– ...ele irá explodir. Vários estudantes que estavam mexendo em seus colares imediatamente soltaram suas mãos. Sakamochi sorriu. –O colar monitora seu pulso para verificar sinais de vida e transmite esta informação para o mainframe nesta escolha. Ela também fornece sua exata posição na ilha para nós. Agora, vamos voltar para o mapa. Sakamochi balançou seu braço direito para trás e apontou para o mapa na lousa. Este mesmo computador irá também selecionar aleatoriamente zonas proibidas. E se houver algum estudante na zona depois do tempo assinalado – é claro que estudantes mortos não contam – o computador irá automaticamente detectar qualquer um vivo e imediatamente enviar um sinal para seu colar. Então... Shuya sabia o que ele ia dizer. –O colar vai explodir. Ele estava certo. Sakamochi pausou por um momento para checar todos. Então ele continuou:

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–Por que nós fazemos isso? Porque se todos aconchegarem-se juntos num só ponto, o jogo não prossegue. Então nós faremos vocês se moverem. Simultaneamente, a área que vocês poderão se mover irá encolher. Entenderam? Sakamochi chamava isto de jogo. Não é de se estranhar. Isto era extremamente ultrajante. Ninguém disse uma palavra, mas todos pareciam ter entendido as regras. –Tudo bem, então isto significa que esconder-se em uma construção não será bom. Mesmo se você se esconder em algum buraco que cavar no chão a transmissão irá te encontrar. Ah, a propósito, vocês estão livres para esconder em qualquer lugar, mas não serão capazes de usar o telefone. Vocês não poderão contatar seus pais. Vocês têm que lutar sua luta sozinhos. Mas de qualquer forma, é assim que o jogo da vida é. Agora eu disse que o jogo irá começar sem zonas proibidas, mas há uma exceção: esta escola. Vinte minutos depois de sua saída esta escola se tornará uma zona proibida. Por isso, por favor, primeiro saiam fora desta área. Vejamos, vocês devem estar a duzentos metros. Entenderam? Agora, em meus anúncios eu também irei ler os nomes daqueles que morreram nas seis horas anteriores. Cada anúncio será feito regularmente em intervalos de seis horas, mas eu também irei contatar o último sobrevivente pelo anúncio também. Ah... e mais uma coisa. Há um limite de tempo. Ouçam bem. Um limite de tempo. Um monte de gente morre no Programa, mas se ninguém morrer dentro de doze horas então seu tempo acaba, e não irá importar quantos estudantes sobraram... Shuya sabia o que ele ia dizer. –O computador irá detonar os colares dos estudantes restantes. Não haverá vencedor. Novamente ele estava certo. Sakamochi parou de falar. A classe toda tinha ficado em silêncio. A sala ainda estava cheirando com o odor forte do sangue de Yoshitoki Kuninobu. Todos continuavam em seu topor coletivo. Eles estavam amedrontados, mas esta situação, onde eles estavam prestes a ser jogados em um jogo de matança, parecia além de sua compreensão. Como se respondesse ao seu estado mental geral, Sakamochi bateu as palmas. – Bom, eu já cobri todos os tediosos detalhes. Agora eu tenho algo mais importante para contar a vocês. Um pequeno conselho. Alguns de vocês devem estar pensando que matar seus colegas de classe é impossível. Mas não se esqueçam que há alguns querendo fazê-lo. Shuya queria gritar “já chega disso!”. Mas com o incidente da Fumiyo-Fujiyoshi-executadapor-cochichar há apenas alguns momentos, ele ficou quieto. Todos continuaram em silêncio, mas algo subitamente havia mudado e Shuya sabia disso. Todos estavam olhando em volta, espiando nos rostos pálidos dos outros. Toda vez que seus olhares se encontravam, seus olhos nervosamente voltavam na direção de Sakamochi. Isto só aconteceu dentro de alguns segundos, mas suas expressões eram exatamente as mesmas: eles estavam tensos e duvidosos, imaginando quem já estava pronto para tomar parte do jogo. Só poucos, como Shinji Mimura, permaneciam calmos. Shuya trincou seus dentes de novo. “Vocês estão caindo na armadilha deles! Pensem nisso, nós somos um grupo. Não tem jeito de nos matarmos uns aos outros!”

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– Certo então, eu preciso ter certeza de que vocês prestaram atenção. Vocês encontrarão alguns papéis e lápis em suas carteiras. Todos timidamente tiraram seus papéis e lápis. Shuya não teve escolha senão seguir suas instruções. –Então agora, eu quero que vocês escrevam. Para memorizar algo, o melhor é escrevê-lo. Escrevam isto: “Nós vamos matar uns aos outros.”. Escrevam três vezes. Shuya ouviu os lápis rabiscando contra o papel. Noriko também segurou seu lápis, olhando raivosamente. Enquanto Shuya escrevia este lema insano, ele olhou para o corpo de Yoshitoki, que continuava deitado entre as carteiras. Ele se lembrou do sorriso empolgado de Yoshitoki. Sakamochi continuou: –Certo então.“Se eu não matar, eu serei morto.”. Escrevam isto três vezes também. Shuya também olhou para Fumiyo Fujiyoshi. Seus dedos brancos saindo das mangas de seu uniforme de marinheiro delicadamente formavam uma cunha. Ela era a ajudante da enfermeira. Ela calada, mas muito atenciosa. Então ele olhou para Sakamochi. “Maldito bastardo, eu vou te apunhalar no peito com este lápis!” 40 estudantes restantes.

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6 –Então agora, vamos ver, a cada dois minutos um de vocês irá deixar a sala. Assim que vocês saírem por esta porta e virarem à direita no corredor, vocês encontrarão a saída da escola. Vocês devem sair imediatamente. Qualquer um vadiando no corredor será imediatamente morto. Agora, com quem nós começamos? De acordo com as regras do Programa, quando determinarmos a primeira pessoa, o resto da ordem irá corresponder aos seus lugares na chamada da classe. Homem, mulher, homem, mulher. Entenderam? Assim que chegarmos ao último número, nós voltamos ao primeiro número. Então... Neste ponto Shuya lembrou que o número de Noriko era 15. Era o mesmo que o dele. Isto significava que ele e Noriko poderiam sair quase simultaneamente (a menos que ela fosse escolhida por primeiro, que significava que ele seria o último a sair). Mas... Noriko podia andar? Sakamochi pegou um envelope do bolso interno do casaco. –O primeiro estudante é escolhido por sorteio. Esperem um segundo... Do seu bolso, Sakamochi tirou uma tesoura rosa e cerimoniosamente cortou a borda do envelope. Foi quando Kazuo Kiriyama falou. Como Shinji Mimura, ele também parecia calmo. Mas sua voz parecia fria com um tom áspero. –Estou curioso sobre quando o jogo começa. Todos olharam de volta à última fileira, onde Kiriyama estava sentado. (Shogo Kawada foi o único que não virou. Ele só continuou a mastigar seu chiclete.) Sakamochi fez um gesto com a mão: –Assim que vocês saírem daqui. Por isso vocês vão querer se esconder para preparar suas próprias estratégias... como já é noite agora. Kazuo Kiriyama não respondeu. Shuya finalmente confirmou que era meia noite, ou 1h– não, já era quase 1:30. Depois de cortar o envelope, Sakamochi tirou um pedaço de papel branco e desdobrou. Sua boca formou um “O” e ele disse: –Mas que coincidência! É o estudante No.1. Yoshio Akamatsu. Ao ouvir o anúncio, Yoshio Akamatsu, que se sentava na fileira da frente da coluna próxima das janelas (placas de aço), pareceu chocado. Ele tinha 180 centímetros de altura, pesava 90 quilogramas, por isso era largo, mas não podia nem pegar uma bola no ar, nem correr uma volta inteira ao redor da pista de corrida. Yoshio estava sempre tropeçando na aula de educação física. Agora seus lábios estavam pálidos e azuis. –Ande logo, Yoshio Akamatsu. – disse Sakamochi. Yoshio pegou a sacola que ele preparou para a viagem de estudos e ficou de pé. Ele caminhou para frente e recebeu o kit de sobrevivência do trio camuflado, que agora levavam seus rifles na cintura. Ele parou na porta aberta e encarou a escuridão. Então olhou de volta para todos com um rosto aterrorizado, mas então um momento depois ele desapareceu além da porta. Dois ou três passos logo se tornaram o som da batida de sua

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corrida, que então desapareceu. Parecia que ele caiu uma vez, mas então ele voltou a correr novamente. Na silenciosa sala, vários estudantes tomaram um fôlego longo e contido. –Agora nós vamos esperar dois minutos. Então a próxima será Estudante Feminina No. 1, Mizuho Inada... Esta rotina continuou brutalmente desta maneira. Mas havia algo que Shuya notou quando a Estudante Feminina No. 4, Sakura Ogawa, levantou-se para sair. Sakura sentava-se dois assentos atrás de Shuya, na última fileira. Quando ela fez o caminho para a saída, ela tocou a mesa de seu namorado Kazuhiko Yamamoto e deixou um pedaço de papel para ele. Ela pode ter deixado uma mensagem naquela folha de papel em que eles foram instruídos a escrever “Nós vamos matar uns aos outros.”. Shuya deve ter sido o único que viu isto. Pelo menos Sakamochi não pareceu ter notado. Kazuhiko pegou o pedaço de papel e apertou-o com força sob sua carteira. Shuya sentiu uma onda de alívio. Eles ainda não foram todos consumidos por esta insanidade. Os laços de amor ainda não haviam sido cortados. Mas... qual era a mensagem? Shuya imaginou quando ela deixou a sala. Talvez – ele olhou para o mapa que Sakamochi rabiscou na lousa – ela teria escolhido uma direção ou distância geral. Além disso, o fato de que eles queriam se encontrar secretamente só significava que eles não confiavam em ninguém mais e eles estavam certos de que os outros tentariam matá-los. Que no final significava que eles estavam caindo na armadilha de Sakamochi. Shuya pensou, “Eu não tenho nenhuma idéia do que se esconde além desta sala, mas eu posso ao menos ser capaz de esperar fora e conversar com os estudantes depois de mim. Nenhuma das regras de Sakamochi me proíbe de fazer isto. Todos podem estar entrando em pânico por causa da suspeita, mas se nós pudermos ficar juntos e discutir a situação então tenho certeza de que nós podemos encontrar um plano.” Além disso, Noriko era quem viria imediatamente depois dele (ela podia andar?). Shinji Mimura também vinha depois dele. No entanto, Hiroki Sugimura iria antes dele... Shuya considerou passar uma mensagem para Hiroki, mas seu assento era muito longe. Além disso, se ele tentasse qualquer coisa ele iria acabar como Fumiyo Fumiyoshi. Hiroki Sugimura era o próximo. Seus olhos encontraram os de Shuya brevemente logo antes de sair através da porta deslizante... mas isso era tudo. Em sua mente, Shuya suspirou profundamente. Ele só podia ter esperança de que Hiroki tivesse tido a mesma idéia e que estaria esperando do lado de fora. Se ele pudesse falar com os outros para esperar também... Na frente e atrás dele, os calados, Shogo Kawada, Kazuo Kiriyama e Mitsuko Souma, saíram um a um. Mascando seu chiclete, Shogo saiu com um olhar indiferente em seu rosto, ignorando completamente Sakamochi e o trio camuflado. Kiriyama e Souma foram da mesma maneira.

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Está certo. Quando Sakamochi disse “Há outros querendo fazê-lo”, o resto da classe deve ter imediatamente suspeitado destes três estudantes. Porque eles eram “delinqüentes”. Eles não pensariam duas vezes em matar os outros para sobreviver... Mas Shuya duvidava que Kazuo Kiriyama pudesse entrar nessa. Kazuo tinha sua própria gangue. Além disso, a gangue dele era muito mais restrita que um grupo típico de amigos. Hiroshi Kuronaga, Ryuhei Sasagawa, Sho Tsukioka e Mitsuru Numai. As regras do jogo transformavam todos em seu inimigo, mas os cinco deles matando uns aos outros era inimaginável. Além disso – Shuya tomou nota cuidadosa disso – quando ele saiu, seus rapazes pareciam perturbadoramente calmos. Está certo, Kazuo provavelmente passou uma mensagem aos outros. Ele está provavelmente planejando uma saída para os cinco deles. Kazuo era mais que capaz de se desvencilhar do governo. É claro, isto também significava que Kazuo não confiaria em ninguém além de sua gangue. Mitsuko Souma tinha um tipo de grupo parecido. Seu assento estava muito longo das outras, Hirono Shimizu e Yoshimi Yahagi, para ela ser capaz de passar notas a elas. Mas... Mitsuko Souma era uma garota. Não há como ela jogar este jogo. Shogo Kawada era o único que preocupava Shuya. Shogo Kawada não tinha grupo. Na verdade ele nem mesmo tinha um só amigo. Desde que ele foi transferido para a escola deles, ele raramente falava com alguém da classe. Além disso, havia algo evasivo em Shogo. Mesmo se ele ignorasse os boatos, havia aqueles ferimentos cobrindo o corpo inteiro dele... Poderia ser que... Shogo fosse um dos que participariam do jogo? Era certamente possível. Mas Shuya sabia que no momento em que ele suspeitasse, estaria cedendo ao governo, então ele imediatamente se livrou da idéia... apesar de ter tido problemas em se livrar completamente do pensamento. O tempo passou. Muitas das crianças estavam chorando enquanto saíam. Apesar de parecer incrivelmente rápido, uma hora deve ter se passado de acordo com seus cálculos (é claro que com Yoshitoki Kuninobu o tempo passado foi reduzido por dois minutos). Estudante Feminina No. 14, Mayumi Tendo, sumiu no corredor, e Sakamochi chamou :– Estudante Masculino No. 15, Shuya Nanahara. Shuya agarrou sua mochila e se levantou. Ele pensou “ Eu fiz todo que podia antes de sair da sala.” Em vez de ir direto para a saída, ele pegou o corredor à sua esquerda. Noriko virou e viu Shuya se aproximando dela. Sakamochi ergueu sua voz, “Shuya”, e apontou sua faca. –Direção errada. Shuya parou. Os três soldados ergueram suas espingardas. Sua garganta endureceu. Então ele disse nervosamente: –Yoshitoki Kuninobu era meu amigo. O mínimo que eu posso fazer é fechar seus olhos. De acordo com a política educacional do Grande Ditador, nós devemos respeitar os mortos.

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Sakamochi hesitou por um momento, mas então ele sorriu e abaixou sua faca. –Você é tão atencioso, Shuya. Tudo bem então. Shuya tomou um breve fôlego, então deu um passo à frente. Ele parou na frente da mesa de Noriko, onde o cadáver de Yoshitoki estava deitado. Apesar de ter reclamado o direito de fechar os olhos de seu amigo, ele não podia evitar ficar paralisado. Agora que ele estava próximo ele viu, cortesia do frívolo, carne vermelha fresca e algo branco no cabelo curto ensopado de sangue de Yoshitoki. Ele percebeu que era osso. Graças às balas alojadas dentro de sua cabeça, os grandes olhos de Yoshitoki saltavam ainda mais. Ele parecia estupefato com os olhos voltados para cima de um refugiado esfomeado esperando para ser alimentado. Líquido rosado e viscoso consistindo de sangue e saliva escorria de sua boca, levemente aberta. Sangue escuro saía de suas narinas. Ele descia pelo seu queixo e caía na poça de sangue que saía de seu peito. Era horrível. Shuya largou sua bolsa perto dele e se inclinou. Ele ergueu o corpo de Yoshitoki, que estava deitado virado para baixo. Quando Shuya o levantou, sangue saiu do peito do uniforme escolar escurecido dele, que estava perfurado em três pontos, e espalhou pelo chão. O magro corpo dele parecia incrivelmente leve. Era por causa de todo o sangue que foi drenado de seu corpo? Segurando o leve corpo de Yoshitoki, a cabeça de Shuya esfriou. Mais que tristeza ou medo, era ódio que o inundava. “Yoshitoki... Eu vou vingar sua morte. Juro pra você que vou.” Não havia muito tempo. Ele limpou o sangue do rosto de Yoshitoki com a palma da sua mão, então gentilmente fechou seus olhos. Ele deitou seu corpo no chão e cruzou suas mãos no peito. Então como se fingisse tatear procurando sua mochila, ele se inclinou na direção de Noriko o mais próximo que podia e rapidamente sussurrou:“Pode andar?”. Aquilo foi suficiente para provocar o trio camuflado a pegar as armas, mas Shuya conseguiu obter um aceno de Noriko. Shuya se virou para Sakamochi e o trio, cerrou sua mão para Noriko ver, e apontou seu polegar para a saída para indicar: Estarei esperando. Eu esperarei lá fora. Shuya não olhou de volta para Noriko, mas do canto dos olhos ele olhou além da carteira de Yoshitoki, onde Shinji Mimura olhava para frente, sorrindo frouxamente com seus braços cruzados. Ele deve ter visto o sinal de Shuya. Shuya se sentiu muito mais aliviado. Era Shinji. “Se Shinji estiver do nosso lado, nós podemos escapar, sem problema.” Mas... Shinji Mimura pode ter estado mais ciente da condição deles que Shuya. Ele pode ter dito com o sorriso “Bem, isto será um adios amigos, Shuya.”. Porém o pensamento não ocorreu para Shuya naquele momento. Ele continuou andando. Ele parou um momento para pensar antes de receber sua bolsa negra e fez o mesmo quando se aproximou do cadáver de Fumiyo Fujiyoshi, cerrando seus olhos. Ele queria ter removido a faca da testa dela, mas decidiu por não fazê-lo.

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Quando ele pisou fora da sala de aula, ele sentiu uma pontada de arrependimento, desejando ter removido a faca por ela. 40 estudantes restantes.

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7 O corredor estava com as luzes apagadas. Apenas a luz da sala de aula brilhava nas tábuas do chão. As janelas do lado do corredor também estavam fechadas com placas de aço. Elas davam proteção contra estudantes revoltados como Shuya que poderiam decidir escapar do jogo. Claro, quando fossem retiradas, esta área já seria proibida. Ele olhou para direita. Havia outra sala, então outra, ambas idênticas à sala que ele acabara de sair. E então, no final do corredor escuro, havia o que parecia uma saída de porta dupla. No fim do corredor havia outra sala à esquerda. Era a sala dos professores da escola? As portas estavam abertas e as luzes estavam acesas. Shuya olhou através da porta, onde uma legião de soldados das Forças Especiais de Defesa estava sentada em cadeiras dobráveis de aço atrás de uma grande mesa. Vinte ou trinta? Não, havia tantos soldados quanto havia estudantes. De fato, Shuya esperava que se seu kit de sobrevivência viesse equipado com uma arma (era possível, junto com “ferida de faca” e “asfixia”, “ferida de tiro” estava listada como causa da morte nos relatórios do Programa), ou se alguns dos outros esperando por ele estivessem equipados com armas, então poderiam usar contra Sakamochi e seus homens antes que a escola se tornasse uma zona proibida. Mas esta esperança foi imediatamente apagada. Os três homens com Sakamochi não eram os únicos acompanhando ele. Claro, isto não era nem um pouco surpreendente. Um dos soldados inclinou sua cabeça e olhou do canecão em sua mão para Shuya. Como os rostos do trio na sala de aula, o dele também não tinha nenhuma expressão. Shuya pisou nos calcanhares e se apressou para a saída. Ele correu impacientemente. Então agora... agora a única coisa que eles poderiam fazer era se unirem. Mas... talvez houvessem outros soldados parados do lado de fora para impedi-los de esperar um pelo outro? Mas... Shuya correu rapidamente através do corredor escuro e passou pelas portas duplas. Ele desceu vários degraus. Sob a lua, um campo de atletismo vazio do tamanho de três quadras de tênis se estendia atrás do prédio. Havia árvores atrás do campo. À sua esquerda havia uma pequena montanha. Seu campo de visão expandia à direita. Uma escuridão negra se espalhava – o mar. Pequenos pontos de luz brilhavam além do mar. Devia ser o continente. O Programa oficialmente se realizava dentro da prefeitura do colégio escolhido. Às vezes o local era uma montanha cercada por grades de alta voltagem, ou prisões abandonadas que ainda não foram demolidas, mas para a Prefeitura de Kagawa, o Programa era geralmente realizado em uma ilha. De acordo com os relatórios de notícias locais que ele já havia visto (claro, em todos os casos o local só seria anunciado depois que o jogo tivesse terminado), todo jogo em Kagawa foi realizado em uma ilha. Esta vez não era exceção. Sakamochi não mencionou o nome da ilha, mas uma vez que Shuya checasse o formato no mapa ele poderia dizer. Ou talvez um prédio pudesse revelar o nome da ilha. A brisa suave soprou. Não havia nenhum soldado, mas Shuya estava desapontado por não encontrar nenhum de seus colegas de classe ali. Como Sakamochi havia antecipado, todos estavam

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se escondendo. Até mesmo Hiroki Sugimura não estava lá. Só a suave brisa misturada com o odor do mar vinha através do campo de atletismo. “Diabos.” Shuya fez uma careta. “Se nós nos espalharmos assim, vamos cair na armadilha do governo. Pode estar certo formarem grupos com seus amigos. Sakura Ogawa e Kazuhiko Yamamoto devem estar se encontrando em algum lugar, assim como a gangue de Kazuo Kiriyama. Mas qualquer um escondido sozinho pode eventualmente entrar em confronto com alguém... Quem pode saber o que resultaria deste tipo de caos? O caos não era essencial para o progresso do jogo?” “Está certo. Bom, pelo menos eu vou esperar aqui pelos outros. Primeiro eu tenho que esperar por Noriko..” Shuya olhou de volta para o interior escuro do edifício da escola. Eles disseram que qualquer um vagando no corredor seria imediatamente alvejado, mas os soldados na sala no fim do corredor não prestaram nenhuma atenção especial a Shuya. Eles não estavam exatamente fazendo uma tempestade num copo d´água. Eles só estavam sentados, desarmados. Shuya lambeu os lábios e decidiu que era melhor ele sair da frente da porta. Então ele olhou para fora de novo. Foi quando ele notou. Não tinha visto isto da última vez porque estava preocupado demais com a visão geral, mas desta vez ele viu algo que parecia um saco de lixo jogado aos seus pés. Shuya imaginou que era o kit de sobrevivência de alguém, caído por acidente, mas então seus olhos arregalaram. Não era um saco de lixo, nem o kit de sobrevivência de alguém. Havia cabelo humano saindo de uma ponta. Cabelo humano. Era um ser humano. Vestindo um uniforme escolar de marinheiro. O corpo estava em formato V, deitado de lado, cabeça para baixo. O rabo de cavalo único com um grande laço parecia familiar. Não admira. Ele acabou de vê-la saindo só três minutos atrás. O corpo enrijecido pertencia à Estudante Feminina No. 14 Mayumi Tendo. Logo ao lado de seu cabelo trançado em forma de lagosta, rígida, prateada, uma vareta de vinte centímetros saía das costas de seu uniforme, diagonalmente, como uma antena de rádio portátil. Havia quatro pequenas abas parecendo a cauda de um avião de guerra no fim da vareta. Que... diabos era isso? O que ele deveria ter feito era imediatamente procurar abrigo. Em vez disso, Shuya ficou parado lá, em estado de choque. Ele lembrou da resposta de Sakamochi a Kiriyama, que perguntou quando o jogo começava: “Assim que vocês saírem daqui.”. Era inacreditável... quem poderia ter feito isto? Alguém voltou para matar Mayumi Tendo no momento em que ela saiu da escola? Shuya parou de especular e cuidadosamente abaixou-se e checou o local. Por alguma razão... não havia sinal do atacante. Nenhuma flecha voou em sua direção enquanto ele esteve confuso parado. Por quê? Satisfeito em ter matado apenas Mayumi Tendo, o

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assassino deixou o local? Ou... isto era alguma “provocação” planejada? Será que os soldados no fim do corredor mataram ela para convencer a todos que alguns de seus colegas de classe já estavam jogando o jogo? Mas se fosse este o caso... Subitamente Shuya percebeu que Mayumi Tendo poderia ainda estar viva. Ela poderia estar inconsciente do choque do tiro. De qualquer modo, ele deveria vê-la. Se ele não tivesse percebido algo estranho e não tivesse contido um passo a frente, uma fração de segundos depois ele teria sido retirado do jogo mais cedo. Em outras palavras... Um objeto prateado sibilou em frente aos olhos de Shuya. Sim... ele veio para baixo, de cima. Outra antena estava plantada no chão. Shuya estremeceu. Se ele não estivesse parado na saída esperando por Noriko, ele teria sido derrubado imediatamente. O assassino estava no topo do prédio. Shuya cerrou os dentes, pegou a flecha e correu para a esquerda. Ele se moveu impulsivamente, mas de uma forma errática que confundiu o atacante. Ele se virou e olhou para cima. Sob a turva luz da lua, uma grande e escura sombra agitava-se sobre o teto do prédio de único andar da escola. Podia ser que... não Shogo... Ele não teve tempo de pensar. A sombra apontou a arma para ele. Apenas para surpreendê-lo, Shuya arremessou a flecha na sombra. Mas graças ao dom de Shuya como o estrela entre-bases, a flecha voou a uma incrível velocidade e traçou um belo arco direto para a sombra. A sombra gemeu, segurou seu rosto, arqueou-se e então começou a balançar. Então ela caiu. Shuya foi para trás e observou a sombra cair de uma altura de quase três metros e aterrissar com uma pancada no chão. O objeto na mão do assassino caiu com um ruído metálico. Luz saía através da saída do prédio. A grande sombra estava deitada com a barriga para baixo, vestindo um uniforme escolar. Era Yoshio Akamatsu. Ele agora não se movia, talvez porque estivesse inconsciente. Um híbrido entre arco e rifle– eram eles chamados bow gun10?– estava caído em sua mão. O kit de sobrevivência que caiu aos pés de Yoshio estava semi-aberto. Shuya viu uma pilha de flechas prateadas dentro. De repente Shuya sentiu um calafrio. Era verdade. Ele estava participando! Yoshio Akamatsu estava no jogo. Yoshio pegou sua arma, voltou aqui e matou Mayumi Tendo! Alguém estava vindo detrás. Shuya se virou. Era Noriko, que entendeu a situação e segurava o fôlego de surpresa. Os olhos de Shuya foram do rosto de Noriko a Mayumi Tendo – ele correu até Mayumi e tocou seu pescoço para checar o pulso. Ela estava morta. Não havia dúvidas. Seu cérebro parecia um fusível faiscando. Outros podiam estar no mesmo estado mental que Yoshio. E um deles pode ter voltado subitamente neste momento, talvez com uma arma de fogo. Shuya não tinha escolha senão mudar sua atitude em relação ao jogo agora. Então era assim. Quando Sakamochi disse “Tão logo vocês saiam”, era isto que ele queria dizer. 10

Bow gun é uma versão moderna das bestas medievais. É um tipo de rifle que atira flechas.

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Shuya se levantou e correu até Noriko. Ele pegou a mão dela: –Nós vamos correr! Esforce-se, você tem que correr! Shuya começou a correr, quase arrastando, Noriko, cuja perna estava ferida. Que caminho seguir? Ele não podia se permitir ponderar suas decisões. Ele se virou na direção do bosque. Primeiro eles iriam se esconder no bosque, então eles poderiam, não... ele desistiu da idéia. Dada a condição de Noriko, eles estavam indefesos contra qualquer ataque. Ficar perto da área era perigoso. Esperar na frente do prédio pelos outros estava completamente fora de questão. Ele apressou Noriko e eles entraram no bosque. Árvores altas estavam misturadas com baixas e o chão estava coberto de samambaias. Shuya virou-se para gritar algum aviso para os onze estudantes restantes que sairiam (em sua classe de vinte e dois pares de rapazes e garotas, havia doze estudantes depois dos números de Shuya e Noriko, Mas Fumiko Fumiyoshi teve que ser descontada), mas ele desistiu da idéia. Shuya forçou a conclusão de que eles provavelmente não eram tão estúpidos quanto ele, por isso eles fugiriam no momento que saíssem do prédio, especialmente uma vez que enxergassem o cadáver de Mayumi Tendo. Por um momento ele pensou em Shinji Mimura, mas desistiu desta idéia também. Mais uma vez ele se forçou a acreditar que eles iriam se encontrar. De qualquer modo, eles tinham que ir. Segurando Noriko Nakagawa com força, ele aleatoriamente conduziu seu caminho pelo bosque. Um pássaro piou “cau, cau” e bateu suas asas voando longe. Ele não o viu, mas não importava. De qualquer forma, ele não tinha tempo para observar. 39 estudantes restantes.

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8 Yoshio Akamatsu recuperou a consciência quase imediatamente, mas por ter sido nocauteado por um golpe em sua cabeça, ele se sentia como se estivesse saindo de um sono profundo. Ele primeiro notou que sua cabeça estava latejando. Caiu por causa disso. O que acontecera? “Foi de jogar vídeo game ontem até depois da meia noite? ...o que significa que ontem foi sábado, ou foi domingo? ...então hoje deve ser segunda, o que quer dizer que eu tenho que ir à escola... mas que horas são... ainda está escuro... eu posso dormir um pouco mais...” Quando ele se sentou, o céu e a terra giraram noventa graus, um campo vazio inesperadamente se abriu na sua frente. Havia uma montanha além do campo, com o formato arqueado, mais escuro que o céu noturno. Subitamente tudo retornou de uma só vez. Sakamochi, o cadáver do Sr. Hayashida, a partida de Yoshio, a descoberta do bow gun em seu kit de sobrevivência assim que ele encontrou abrigo em uma pequena cabana, seu retorno até aqui, observando Takako Chigusa (Estudante Feminina No. 13), cujo rosto era sério, mas belo, observando tensamente a melhor corredora do time de corrida saindo rapidamente na velocidade máxima, lutando contra a fina escada de aço do lado do prédio para chegar no teto. Então como devido à dificuldade de carregar o bow gun com uma flecha, Sho Tsukioka (Estudante Masculino No 14) também conseguira escapar. E então... Ele se virou e viu uma garota em uniforme de marinheiro deitada ali. Não foi exatamente uma surpresa para Yoshio. O que ele sentia agora era em conjunção com sua memória não era culpa por ter matado uma de suas colegas de classe, o sentimento mais forte era o medo. Ele parecia um gigantesco quadro de avisos parado no meio da desolação em sua mente. No quadro havia letras em sangue que diziam: “Vou te matar!”. No fundo seus colegas de classe portavam armas como machados e pistolas, atacando Yoshio, que estava parado na frente do quadro como se estivesse num filme 3D. É claro que matar um de seus colegas de classe é errado. E, além disso, uma vez que o tempo de jogo acabasse, iriam todos morrer de qualquer maneira, então era um absurdo lutar. Mas tudo aquilo era racional demais. O fato era que Yoshio simplesmente não queria morrer. Ele ficava petrificado com qualquer um de seus colegas de classes que pudesse mostrar os dentes a ele. Só pense nisso, você está cercado por uma multidão de assassinos. Por isso sua escolha de reduzir “o inimigo” tão eficientemente quanto possível não foi motivada por pensamentos racionais, mas por um profundo e primário medo da morte. Não havia necessidade de discernir aliados de inimigos. Todos deveriam ser inimigos. Afinal, quando Ryuhei Sasagawa costumava atormentá-lo, todos olhavam para o outro lado. Yoshio lutou pra ficar de pé. “Primeiro, Shuya Nanahara, com quem estava de frente. Onde ele foi? O bow gun. Eu tenho que pegar o bow gun. Onde ele...?” Yoshio sentiu uma pancada contra sua nuca como se tivesse sido golpeado por um porrete.

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Ele caiu para frente com o golpe. Seu corpo girou na forma de um V e seu rosto arranhou o chão úmido. A pele de sua testa e bochechas descascaram, mas isto não importava mais pra ele. Ele já estava morto no momento em que caiu. O mesmo tipo de flecha prateada que ele havia atirado em Mayumi Tendo estava agora plantada na parte de trás de seu pescoço. 38 estudantes restantes.

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9 Kazushi Niida (Estudante Masculino No. 16) emergiu do prédio dois minutos depois de Noriko Nakagawa. Ele parou na entrada por um tempo, tremendo. O bow gun caído perto do corpo de Yoshio Akamatsu estava ainda carregado com uma flecha. Apesar de Kazushi pegá-lo, ele não tinha intenção de atirar em Yoshio. Mas no momento em que Yoshio de levantou, ele reflexivamente puxou o gatilho. Kazushi fez o que pôde para superar o seu pânico. Está certo, a primeira coisa a fazer era sair daqui. Esta era a prioridade. O que ele deveria ter feito em primeiro lugar era ignorar completamente Yoshio Akamatsu e Mayumi Tendo e correr para longe. Dadas as circunstâncias, ele não teve escolha senão matar Yoshio. Yoshio Akamatsu obviamente tinha matado Mayumi Tendo. Então Kazushi não tinha feito nada errado. Kazushi era muito bom em inventar desculpas. Assim que ele pensou isso o topor em sua cabeça começou a sumir. Quando abaixou o bow gun, ele automaticamente pegou o kit de sobrevivência de Yoshio, que estava carregado com flechas. Logo antes de começar a se mover ele parou e pegou o kit de sobrevivência de Mayumi Tendo também. Então ele correu. 38 estudantes restantes.

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10 Eles já estavam correndo por dez minutos? Com seu braço ainda envolvendo Noriko, ele sinalizou que eles podiam parar, e ambos pararam. Sob a bruma da luz da luz brilhando através dos galhos acima, Noriko olhou para ele. Sua respiração pesada ecoava como uma barreira gigantesca de som, mas Shuya fez o possível para ouvir além da barreira, procurando outros sons na área coberta pela escuridão. Ninguém parecia estar seguindo-os. Eles tinham muito pouco fôlego para poder suspirar, mas agora eles podiam descansar um pouco. Quando ele jogou suas bolsas, uma dor aguda correu pelo seu ombro direito. Ele estava em péssima forma. Uma guitarra elétrica era mais pesada que um bastão, mas não era algo que você balança por aí. Depois de pôr as bolsas no chão, ele pôs as mãos nas coxas e tentou descansar. Shuya levou Noriko para sentar no bosque escuro. Depois de checar novamente por quaisquer outros ruídos suspeitos ele se sentou ao lado dela. A grama grossa sob eles fazia um barulho alto ao ser esmagada. Ele sentia que eles cobriram uma boa distância, mas dado como estiveram ziguezagueando e como perderam todo o senso de direção subindo a montanha, eles podem estar apenas a algumas centenas de metros longe da escola. Pelo menos a luz saindo do prédio não era mais visível. Mas isso pode ter sido por causa da densidade do bosque ou pelas pequenas ladeiras. Sua decisão foi impulsiva, mas ele estava certo de que era mais seguro que a grande praia aberta. Shuya olhou para Noriko e sussurrou: –Você está bem? Noriko murmurou: –Sim.– ela acenou levemente com a cabeça; Shuya queria ficar ali por um tempo, mas aquela não era uma opção. Primeiro ele abriu o kit de sobrevivência. Ele procurou dentro e encontrou um objeto que parecia uma garrafa d’água. Shuya o tirou. O estojo parecia couro e um suporte de couro saiu dele. Era uma faca do exército. Era isso? Ele vasculhou a bolsa um pouco mais, mas nada mais parecia uma arma. Apenas uma sacola que parecia conter pão e uma lanterna. Ele desafivelou o estojo e removeu a faca. A lâmina tinha aproximadamente quinze centímetros de comprimento e depois de checá-la ele a devolveu ao estojo e enfiou sob o cinto de seu uniforme escolar. Ele desfez o último botão em seu uniforme para tornar a faca rapidamente acessível. Shuya pegou o kit de sobrevivência de Noriko e abriu o zíper. Ele sabia que não devia mexer nas coisas de mulheres, mas Noriko não havia feito esta mala. Ele encontrou algo estranho. Era um bastão curvo de aproximadamente quarenta centímetros. Tinha a textura de madeira lisa e dura. Era o que eles chamavam de bumerangue? Uma arma usada para lutar e caçar por tribos primitivas. Um herói de vilarejo aborígine podia ser capaz

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de causar ferimentos em um canguru vagante com isto, mas que uso possível isto teria para eles? Shuya suspirou e devolveu-o ao kit de Noriko. Eles finalmente pararam de respirar como vítimas de afogamento respirando profundamente por ar. –Você quer um pouco de água?– Shuya perguntou; Noriko fez um aceno com a cabeça e disse:– Só um pouco. Shuya tirou a garrafa plástica de seu kit de sobrevivência, rompeu o lacre da tampa de rosca e cheirou o conteúdo. Ele derramou um pouco em sua mão e lambeu cuidadosamente. Depois de tomar um gole, tendo certeza de que não houve nenhuma reação anormal, ele passou para Noriko. Ela pegou a garrafa e só engoliu um pequeno bocado. Provavelmente ela sabia que água era preciosa. Cada garrafa continha aproximadamente um litro e eles só tinham dois. Sakamochi disse que eles não teriam acesso a telefones, mas e o sistema de água? –Deixe-me ver sua perna. Noriko acenou ao pedido de Shuya e esticou sua perna direita, que estava dobrada sob sua saia. Shuya tirou a lanterna de seu kit de sobrevivência. Ele a cobriu cuidadosamente com a palma da mão para impedir que sua luz escapasse e então apontou para a perna machucada. A ferida estava na panturrilha externa. Uma parte de carne de aproximadamente quatro centímetros de comprimento e um de profundidade tinha sido retirada. Um pequeno fio de sangue ainda saía da ponta da carne rosada do machucado. Parecia que ela precisaria receber pontos. Shuya rapidamente desligou sua lanterna e apanhou sua mochila esportiva. Ele pegou a garrafa de uísque e dois lenços limpos que ele havia embrulhado para a viagem. Ele destampou a garrafa. –Isto vai doer. –Ficarei bem. – Noriko disse, mas assim que Shuya inclinou a garrafa e derramou o uísque para desinfetar o machucado, ela deixou escapar um pequeno grito. Shuya pressionou um lenço em sua perna. Ele abriu o outro, dobrou, e então começou a enrolá-lo firmemente em torno da perna como uma faixa. Isto pararia o sangramento por hora. Depois de enrolar a perna, ele puxou as duas pontas do lenço com força, amarrou e murmurou:“Diabos...” Noriko sussurrou: –É sobre Nobu? –Yoshitoki, Yoshio. Todos e tudo. Eu não vou cair nessa. Eu não estou mesmo nessa. Quando ele moveu as mãos, Shuya olhou para Noriko. Então ele olhou para baixo e terminou de fazer o nó. Noriko agradeceu e encolheu a perna. –Então Yoshio foi quem matou...– sua voz estava tremendo– ...Mayumi? –É isso. Ele estava em cima da porta de saída. Eu joguei uma flecha nele e ele caiu. Agora que ele pensou sobre isso, Shuya percebeu que ele não tomou cuidado com Yoshio. Ele instintivamente assumiu que Yoshio ficaria inconsciente por um tempo, mas até onde sabia,

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Yoshio deveria ter acordado logo depois. Isto significava que ele pode ter pegado seu bow gun, subido no telhado e continuado seu massacre. “Eu fui muito ingênuo de novo? Eu não devia tê-lo matado logo ali?” Com este pensamento Shuya checou seu relógio sob a luz da lua. O velho, domesticamente manufaturado, relógio de mergulho de edição limitada Hattori Hanzo (que junto com a maioria de seus pertences havia sido doado à Shuya através do orfanato) marcava 2:40. Todos deveriam ter saído agora. No máximo havia dois ou três estudantes faltando, sem considerar o estado de Yoshio Akamatsu. Shinji Mimura já tinha... Shuya estava quase certo que Shinji poderia escapar facilmente de Yoshio... Neste momento ele já teria saído também. Shuya sacudiu sua cabeça. Agora ele se sentia ridículo acreditando que eles podiam se unir contra essa situação. –Eu nunca imaginei que alguém como ele poderia realmente tentar matar todos os outros pra sobreviver. Eu entendo as regras, mas eu não achava que alguém realmente participaria. –Você pode estar errado sobre isso.– Noriko disse. –Ahn?– Shuya olhou para o rosto de Noriko, muito escuro para enxergar sob a luz da lua. Noriko continuou: –Você sabe como Yoshio sempre foi tímido. Eu acho que ele estava assustado. Deve ter sido isso. Digo, você não tem idéia de quem pode se virar contra você. Ele deve ter se convencido de que todo mundo iria atrás dele. E que se ele não fizesse alguma coisa ele poderia acabar... morto... Shuya sentou encostado no tronco da árvore mais próxima e esticou suas pernas. Aqueles que estavam apavorados poderiam tentar matar uns aos outros... A mesma idéia ocorreu a Shuya, mas ele também imaginou que os que estavam assustados iriam basicamente se esconder. Mas se eles estivessem aterrorizados até o fundo da alma, realmente iriam tomar sua própria iniciativa. –Entendi. –Sim. – Noriko acenou com a cabeça. – Mas ainda é horrível que ele tenha começado a matar indiscriminadamente. Eles ficaram em silêncio por um tempo. Então Shuya veio com uma idéia. –Ei, você acha que se ele tivesse visto nós dois juntos ele não teria nos atacado? Isto não provaria que nós não estamos jogando o jogo? –Bem, sim, talvez. Shuya começou a pensar. Se como Noriko disse, Yoshio tivesse sido subjugado pela paranóia... Aquele momento lá atrás foi quando ele percebeu que alguém estava querendo jogar. Foi por isso que ele fugiu. Mas talvez estivesse errado. Como eles poderiam se matar uns aos outros? Era ultrajante. Então e se ele tivesse deixado Yoshio de lado e esperado pelos outros? De qualquer forma, já era tarde demais. Todos já teriam saído agora, mesmo se eles voltassem. Além disso, Yoshio fizera aquilo só por causa do medo?

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Ele estava ficando confuso. –Ei, Noriko. Noriko ergueu o rosto. –O que você acha? Eu fugi do terreno da escola no momento em que eu percebi que poderia haver outros como Yoshio. Mas... se ele realmente fez aquilo por medo... em outras palavras, você acha mesmo que algum de nós poderia mesmo participar? É o que eu quero dizer... Estou pensando em juntar todo mundo para escapar deste jogo. O que você acha? –Todo mundo? Noriko ficou em silêncio e escondeu seus joelhos sob a saia. Então ela disse: –Talvez eu não seja tão generosa. –Ahn? – Eu não poderia suportar alguns deles. Eu poderia confiar nos meus amigos... – Noriko mencionou o nome de sua representante de classe, Yukie Utsumi. Shuya conhecia Yukie deste o primário. – Como Yukie. Mas eu não acho que poderia confiar nas outras garotas. Não há como eu estar com elas. Não acha? Eu não tenho idéia do que se passava pela cabeça do Yoshio, mas eu também estou com medo de todo mundo. Eu não sei quem eles realmente são. Quero dizer... ninguém consegue ler a mente dos outros. “Eu não sei nada sobre ninguém.” “Ela está certa”, Shuya pensou. “O que eu sei sobre este grupo com o qual passo o dia na escola?” Ele subitamente sentiu como se houvesse um inimigo lá fora. Noriko continuou: –Por isso e-eu teria dúvidas. A não ser que fosse alguém em quem eu realmente confiasse, eu suspeitaria da pessoa. Eu teria medo de que eles pudessem querer me matar. Shuya suspirou. O jogo era horrível. Mas também parecia infalível. No final, era uma idéia ruim convidar todo mundo indiscriminadamente para formar um grupo a não ser que você estivesse certo sobre eles. E se (vamos só supor) eles traíssem uns aos outros? Não era apenas sua própria vida que ele colocaria em perigo, mas a de Noriko também. Sim, era natural que os outros antes dele tivessem imediatamente escapado do local. Aquilo era mais realista. ... – Espere um segundo. – disse Shuya. Noriko olhou para ele. – Então isto significa que nós estarmos juntos não prova necessariamente que somos inofensivos. Os outros podem suspeitar que eu planeje te matar em algum momento. Noriko concordou. –Sim, eu também suspeitaria, assim como você. Um colega de classe poderia nos evitar ao nos ver juntos, mas eu também acho que qualquer um que convidemos irá se afastar. Eu acho que dependeria de cada pessoa. Shuya segurou sua respiração. –Seria assustador.

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–Sim, muito assustador. Então aqueles que fugiram do terreno da escola estavam corretos. Mas o que importava pra ele era proteger Noriko Nakagawa, a garota que Yoshitoki adorava. Talvez ele devesse ter se contentado com o fato de que pelo menos Noriko Nakagawa estava a salvo agora. Ele tinha feito a coisa mais segura. Mas... – Mas – ele disse – pelo menos eu queria que Shinji se juntasse a nós. Eu acho que ele encontraria um plano realmente bom. Você não se incomoda com Shinji, certo? Noriko concordou e disse: – É claro. – Dado o número de vezes que ela falava com Shuya na escola, ela teve muitas chances de falar com Shinji Mimura... Além disso... Shuya se lembrou de como Shinji a ajudou e como sinalizou para ele ficar calmo. Ele percebeu agora que se Shinji não tivesse feito aquelas coisas, ele e Noriko teriam ficado em estado de choque e teriam sido mortos da mesma forma que Yoshitoki. Como se ela estivesse pensando pela mesma linha de raciocínio que levava ao inevitável, ela olhou para baixo e disse baixinho: –Então Nobu se foi. –Sim,– Shuya respondeu baixo, como se fosse um fato bizarro.– Acho que sim. Então eles ficaram quietos de novo. Eles poderiam ficar relembrando, mas agora não era o momento. Além disso, Shuya não podia se permitir ficar passeando no beco das memórias com Yoshitoki. Era duro demais. –Me pergunto o que devíamos fazer. Noriko apertou os lábios e concordou com a cabeça, sem uma palavra. –Eu acho que deve ter um jeito de juntar aqueles em quem nós confiamos. –Isso é... – Noriko levou isso em conta, então ficou em silêncio de novo. Era verdade, não havia saída. Pelo menos por enquanto. Shuya suspirou profundamente de novo. Ele olhou para cima e viu através dos galhos o céu cinza da noite brilhando fracamente sob a luz da lua. Então era isso que significava estar em uma situação de “não vencedor”. Se eles simplesmente quisessem juntar todo mundo, tudo que eles teriam que fazer era andar e gritar. Mas isto seria um convite aberto para serem mortos por qualquer um de seus inimigos. É claro que ele esperava que não houvesse inimigos, mas... no final, ele tinha que admitir que também estava amedrontado. Este pensamento o levou a uma idéia. Shuya se virou para ela e perguntou: –Mas você não está com medo de mim? –O quê? –Você não se pergunta se eu não tentaria te matar? Sob a luz da lua ele não podia enxergar direito, mas os olhos de Noriko pareciam estar um pouco maiores. –Você nunca faria algo tão horrível.

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Shuya pensou um pouco mais. Então ele disse: –Mas você não pode saber o que os outros estão pensando. Você mesma disse. –Não.– Noriko sacudiu a cabeça.– Eu só sei que você nunca faria isso. Shuya olhou diretamente para o rosto dela. Ele provavelmente parecia confuso. –Você pode... saber? –Sim... eu posso... Eu... – Ela hesitou, mas então continuou. – Eu estive observando você por um longo tempo. Ela teria dito estas palavras com mais força em uma situação normal, ou pelo menos uma que fosse um pouco mais romântica. Foi assim que Shuya se lembrou da carta de amor anônima que ele recebera escrita em caneta marcadora azul claro. Alguém havia colocado embaixo de sua carteira em um dia de Abril. Não foi a primeira carta de amor que o antigo entre-bases estrela e atual auto-proclamado (às vezes também pelos outros) estrela do rock´n´roll do colégio Shiroiwa recebeu, mas produziu uma impressão suficientemente forte em Shuya para que ele a guardasse. Havia uma qualidade poética na carta, que o emocionou. Estava escrito: “Mesmo se for mentira, mesmo se for um sonho, por favor, olhe pra mim. Seu sorriso em um dia qualquer não é uma mentira, não é um sonho. Mas tendo ele para mim, será a minha mentira, o meu sonho. Mas o dia em que você chamar por meu nome, não será uma mentira, não será um sonho.”. E então:“Nunca foi uma mentira, nunca foi um sonho que eu te amo.” Era Noriko quem enviou aquela carta? Ele se lembrou de ter observado como a escrita parecia com a dela e como o estilo poético também era similar... Mas então... Shuya pensou em perguntar a ela sobre a carta, mas decidiu não fazer. Não era o momento certo. Além disso, ele não tinha o direito de fazer isso. Apesar de tudo ele estava afim de uma outra garota, Kazumi Shintani, quem nunca (usando a frase daquela carta de amor) olharia para ele. Outras garotas e aquela carta de amor tinham pouca importância para ele em comparação. A coisa mais importante agora para ele era proteger “a garota que Yoshitoki Kuninobu adorava” e não descobrir “quem estava afim dele”. Então ele se lembrou do olhar embaraçado que Yoshitoki deu a ele quando eles tiveram aquela conversa. “Ei, Shuya, eu estou gostando de alguém.” Noriko perguntou: –E você, Shuya? Não está com medo de mim? Não, espera, então por que você me ajudou? –Bom...– Shuya pensou em contar a ela sobre Yoshitoki. Olha, meu melhor amigo gostava de você. Então se eu vou ajudar alguém, que seja você, não importa por que. Quero dizer, de verdade, olha só. Ele decidiu não fazer isto também. Seria melhor eles discutirem isso mais tarde, quando eles tivessem tempo para isso, assumindo que eles teriam algum tempo mais tarde. –Você estava machucada. Eu não podia deixá-la sozinha. E, além disso, eu confio em você. Eu seria idiota se não confiasse em alguém tão bonita como você.

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Noriko deu um leve sorriso. Shuya fez o melhor para retornar o sorriso. Eles estavam em uma situação horrível, mas ele sentiu um leve alívio em formar um sorriso. Shuya disse: –De qualquer modo, nós temos sorte. Pelo menos estamos juntos. Noriko concordou:– Sim. Mas... o que eles deveriam fazer agora? Shuya começou a fazer sua mala. Se eles iam descansar para planejar uma estratégia, iriam precisar encontrar um lugar que oferecesse visibilidade. Novamente, eles não tinham idéia do que os outros estavam fazendo. No mínimo eles teriam que ser extremamente cautelosos. É o que significava ser realista em relação às horríveis circunstâncias. Ele manteve o mapa, compasso e lanterna ao seu lado. Este era o pior jogo de localização do mundo. –Você ainda pode andar? –Eu estou bem. –Então vamos andar um pouco mais. Nós temos que achar um lugar pra descansar. 38 estudantes restantes.

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11 Mitsuru Numai (Estudante Masculino No. 17) seguiu cuidadosamente entre o bosque e a estreita praia banhada pela luz da lua que tinha aproximadamente dez metros de largura. Ele estava carregando seu kit e sua própria mochila no ombro. Ele segurava uma pequena pistola automática em sua mão direita. (Era uma Walther PPK 9mm. Comparada às outras armas que tinham sido preparadas para o jogo, esta tinha um alto valor. Entre a maioria das armas usadas no Programa, este modelo de produção em massa foi importado bem barato dos países de Terceiro Mundo que tinham permanecido neutros em relação a ambos, a República da Ásia do Leste Maior e o Império Americano e seus aliados). Mitsuru estava familiarizado com a versão do modelo de arma da pistola, por isso ele não precisou do manual que o acompanhava. Ele até sabia que não havia necessidade de engatilhar a pistola antes de puxar o gatilho. Ela veio com um cartucho de munição que ele já carregou na arma. A arma em sua mão o fez se sentir, de alguma maneira, seguro, mas ele carregava algo ainda mais importante em sua mão esquerda, o compasso fornecido. Era o mesmo modelo barato de lata que Shuya tinha, mas ele fazia o serviço. Quarenta minutos antes de sua partida da classe, seu grande líder, Kazuo Kiriyama (Estudante Masculino No. 6) passou uma mensagem para ele: “Se nós estamos mesmo numa ilha, então estarei esperando na ponta sul.” É claro... todos eram inimigos neste jogo. Esta era a regra fundamental. Mas os laços na “Família Kiriyama” eram absolutos. Não importava se eles eram chamados de valentões. Eles eram fortes como gatunos. Mais que isso, o laço entre Mitsuru Numai e Kazuo Kiriyama era especial. Porque... de um certo modo foi Mitsuru quem tornou Kazuo Kiriyama no que ele é hoje. Se havia algo que ele sabia, que os outros estudantes mais certinhos como Shuya Nanahara não sabiam, era o fato de que até onde Mitsuru sabia, Kazuo Kiriyama, pelo menos até a sexta série, não era nenhum “delinqüente”. Mitsuru havia sido um valentão desde a escola elementar. Mas ele nunca foi cruel sem motivos. Educado em uma família genérica, ele não era particularmente brilhante, nem mostrava quaisquer outras qualidades. Brigar era a melhor coisa que ele podia fazer para se provar. “Força” era a única meta que ele tinha, e ele nunca sentiu falta dela. Então foi inevitável, em seu primeiro dia na sexta série, ele faria o melhor para desencorajar quaisquer competidores vindos de outras escolas elementares11 no seu distrito. É claro, ao julgar pela força das crianças que ele encontrou nos lugares comuns, ele sabia que as crianças de outras escolas elementares dificilmente representariam ameaça. Porém nem todos devem ter ouvido falar dele. Deveria ter apenas um rei, que era a melhor maneira de manter a ordem. Claro que ele não pensaria em por desta forma, mas sabia que isto era o que estava acontecendo.

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Como existe no Japão a diferença entre escola elementar (shougakkou) e “junior high” (chuugakkou), quando se passa da quinta para a sexta série, às vezes é necessário mudar de escola.

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Como esperado, havia dois ou três competidores. Tudo aconteceu depois da cerimônia de entrada e das aulas de introdução, depois das aulas, quando ele estava no processo de tomar conta do último. No corredor deserto da sala de artes, Mitsuru agarrou o garoto pelo colarinho e o pressionou contra a parede. O garoto já estava machucado sobre o olho. Seus olhos estavam brilhando com lágrimas. Ele agarrou com força. Só havia tomado dois socos. –Entendeu? Então não se meta mais comigo. O garoto acenou freneticamente com a cabeça. Ele provavelmente só estava pedindo para ser liberado, mas Mitsuru queria confirmação verbal. –Estou perguntando! Você entendeu? Ele deu um empurrão no corpo do garoto com seu braço esquerdo. –Me responda. Não sou o pior cara nesta escola? Não sou? Mitsuru ficou irritado por seu oponente não responder. Ele o ergueu mais alto quando subitamente sentiu aquele olhar sobre ele. Ele deixou o garoto ir e se virou. O garoto caiu no chão e se afastou, mas de maneira alguma Mitsuru iria atrás dele agora. Ele estava cercado por quatro caras mais altos que ele. Os crachás em seus uniformes gastos indicavam que eles eram estudantes da oitava série. Podia-se dizer imediatamente o que eles eram. Eles eram exatamente como ele. –Ei, moleque. – o que tinha o rosto coberto de espinhas e um sorriso apavorante disse. – Você não devia atormentar os mais fracos. Outro com cabelos até os ombros, pintados de laranja, franziu os lábios grossos e continuou: –Você foi desobediente. Sua voz “afeminada” fez os quatro deles caírem de rir “HEHEHE”, como se eles fossem todos loucos. –Nós temos que ensinar uma lição pra você. –Sim, temos. Então eles guincharam de novo “HeeHee!” Mitsuru tentou um chute surpresa na frente daquele com a cara cheia de espinhas, mas foi imediatamente jogado pelo garoto à sua esquerda. Tão logo ele caiu, o de rosto de espinhas chutou-o no rosto, acertando seus dentes da frente. A parte de trás de sua cabeça bateu contra a parede em que ele esteve ocupado usando contra seu colega de classe. Ele sentiu tonturas. Algo quente escorreu da parte de trás da sua cabeça. Mitsuru tentou se erguer contra os quatro, mas então o que estava à sua direita chutou-o no estômago. Mitsuru gemeu e vomitou. Um deles disse: “Mas que bagunça.” “Diabos”, ele pensou. “Bastardos... Covardes malditos... Eu podia pegar qualquer um deles se fosse um contra um...”

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Mas não havia nada que ele pudesse fazer agora. Apesar de tudo, foi ele quem escolhera de propósito um lugar deserto para intimidar seu colega de classe. Não tinha como um professor aparecer ali. Eles prenderam seu punho direito contra o chão. Um deles cuidadosamente puxou o dedo indicador de Mitsuru e pôs debaixo do sapato de couro. Pela primeira vez na vida Mitsuru experimentava medo real. “Não... Não pode ser.” Mas era. A sola do sapato desceu e o dedo de Mitsuru fez um som horrível de estalo. Mitsuru gritou. Ele nunca sentira tanta dor. Eles continuavam rindo “Hee Hee Hee!” Mitsuru pensou.“Estes bastardos... eles são loucos... eles não são como eu... são malucos...” Eles estavam preparando o dedo do meio. –P-pára... Sem nem uma pitada de orgulho sobrando, Mitsuru suplicou por piedade, mas eles ignoraram seu pedido. O mesmo barulho de estalo veio. O dedo médio de Mitsuru estava arruinado agora. Mitsuru gritou de novo. –Vamos fazer em mais um então. Foi então que aconteceu. A porta da classe de artes subitamente se abriu. –Vocês podem ficar quietos?– A voz era tranqüila. Por um momento Mitsuru pensou que era um professor. Mas um professor teria intervindo muito mais cedo e, além disso, um pedido pra ficar quieto pareceria muito estranho. Com suas costas ainda presas contra o chão, Mitsuru olhou para a porta. Ele não era muito grande, mas tinha uma aparência muito boa. Estava segurando um pincel. Ele tinha o visto na aula de introdução. Era um dos colegas de classe de Mitsuru. Sua família parecia ter de mudado recentemente aqui. Ninguém sabia quem ele era, mas como era quieto e parecia obediente, Mitsuru não prestara muita atenção nele. Dado como sua aparência era refinada, ele provavelmente viera de uma boa família. Alguém como ele faria o possível para evitar brigas, por isso ele não era alguém que trouxesse preocupação. Mas o que ele estava fazendo na sala de artes? Provavelmente pintando, mas não era um pouco estranho no primeiro dia de aulas? O rapaz com espinhas foi até o garoto. –Quem diabo é você? Ele parou na frente do garoto. –Quem diabo é você? Sexta série? Que droga você está fazendo aqui? Heim? Que foi que você disse? Ele derrubou o pincel da mão do garoto e tinta azul escura se espalhou no chão. O garoto lentamente ergueu os olhos para o rapaz com espinhas. O resto precisava de pouca explicação. O pequeno garoto derrotou os quatro estudantes de oitava série. (Eles estavam todos deitados no chão, completamente paralisados).

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O garoto aproximou-se de Mitsuru. Depois de olhá-lo ele só disse: –Você deveria ter sua mão examinada num hospital. E então ele voltou para dentro da sala. Mitsuru olhou para os quatro corpos caídos no chão. Ele estava completamente chocado com esta coisa totalmente sem precedentes. Ele sentiu um respeito pelo garoto, como um boxeador amador caído na mediocridade após encontrar um campeão mundial. Mitsuru vira um gênio. Daquele ponto em diante Mitsuru serviu aquele garoto, Kazuo Kiriyama. Ele não precisava admitir. Kazuo Kiriyama derrotara quatro rapazes de uma vez quando Mitsuru só poderia tê-los enfrentado um a um. Deveria haver só um rei, e aqueles que não o fossem deveriam servi-lo. Ele tirara esta conclusão há muito tempo atrás. A idéia provavelmente veio do seu mangá shounen12 favorito. Kazuo Kiriyama era um mistério. Quando Mitsuru perguntou como ele conseguiu lutar tão cruelmente, ele só respondeu: –Eu aprendi. Kazuo ignoraria quaisquer outras tentativas de saber mais. Mitsuru então tentaria coagir mais dele sugerindo que ele deveria ter tido uma reputação na escola elementar, mas Kazuo negou. Então talvez ele fosse um campeão mundial de caratê ou algo assim? Kazuo negou isso também. Mais um ponto estranho, que Mitsuru descobriu depois, era o fato de que Kazuo havia invadido a sala de artes no dia em que eles se encontraram. Quando Mitsuru perguntou o porquê, Kazuo apenas respondeu “Eu só quis fazer.”. Era assim que a estranha personalidade de Kazuo contribuiu para que Mitsuru fosse atraído para ele. (Além disso, a qualidade da pintura que descrevia uma visão tirada a partir daquela sala do pátio vazio excedia em muito o nível de sexta série, mas Mitsuru nunca viu esta pintura porque Kazuo havia jogado no lixo depois de completá-la.) Mitsuru mostrou as redondezas a Kazuo. A pequena cidade, incluindo o café onde seus amigos se encontravam, o lugar onde ele guardava coisas roubadas, o suspeito negociador que fornecia produtos ilegais. Os talentos de Mitsuru eram só de briga, mas ele fez o melhor para mostrar a Kazuo todos os lugares que conhecia. Kazuo sempre parecia calmo. Ele foi junto talvez por curiosidade. Eventualmente ele cuidou de estudantes de séries superiores além daqueles que ele derrotara, encrenqueiros de outras escolas, ou alguns estudantes de colegial. Sem exceção, Kazuo os fez se contorcerem instantaneamente no chão. Mitsuru estava entusiasmado com Kazuo. Talvez não fosse diferente da alegria que um treinador sente em treinar um campeão mundial de boxe. Porém Kazuo não era unicamente forte. Ele era esperto. Simplesmente ele se sobressaía em tudo. Quando eles invadiram a loja de bebidas, foi Kazuo quem veio com um plano brilhante. Kazuo salvou Mitsuru de muitas enrascadas em que se meteu. (Desde que se meteu com Kazuo, Mitsuru nunca foi preso pela polícia). Além disso, seu pai parecia ser o presidente de uma grande corporação na prefeitura. Não, em toda a região de Chugoku e Shikoku. Ele não tinha medo.

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Mangá shounen é um tipo de mangá com tema voltado para garotos.

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Mitsuru acreditava que algumas pessoas estavam destinadas à grandeza. Ele pensava: “este cara será alguém tão extraordinário que eu nem posso imaginar o que vai se tornar”. Mitsuru o tornou líder de sua gangue, que continuou a espalhar problemas. Mitsuru só se perguntou uma vez se era correto envolver Kazuo. Kazuo proibiu estritamente (ele nunca disse, mas era a sensação que ele deixava) Mitsuru e os outros de visitá-lo em sua casa (na verdade, era mansão), então Mitsuru nunca pôde dizer se os pais de Kazuo estavam cientes da situação de seu filho. Ele estava preocupado que sua gangue poderia ser uma má influência em Kazuo, que fora obviamente bem educado. Depois de pensar muito sobre isto, Mitsuru finalmente compartilhou suas preocupações com Kazuo. Mas Kazuo apenas disse: –Eu não ligo. Isto também é divertido. Mitsuru decidiu que então estava tudo bem. E então, ele e Kazuo passaram por muitas coisas juntos. O rei e seu leal conselheiro. Mesmo que eles estivessem agora em uma condição extrema, explicava porque, enquanto matar outros colegas de classe fosse possível, estava fora de questão quando se tratava dos membros da Família Kiriyama. Apesar de tudo, o próprio Kazuo já planejara uma estratégia para lidar com a situação. Ele iria passar a perna em Sakamochi e então escapar. Se ele realmente quisesse, Kazuo Kiriyama poderia enfrentar o governo todo, sem problemas. Estes eram os pensamentos de Mitsuru quando ele deixou a escola e andou por aproximadamente vinte e cinco minutos em direção ao sul. Ele viu apenas uma pessoa o tempo todo. A figura que sumiu na área residencial ao sudeste da escola era provavelmente Yoji Kuramoto (Estudante Masculino No. 8). Aquilo deixou Mitsuru nervoso, é claro. Ele já havia encontrado os cadáveres de Mayumi Tendo e Yoshio Akamatsu deitados do lado de fora da escola quando ele saiu. O jogo estava seguindo seu rumo. A prioridade de Mitsuru era chegar ao local combinado por Kazuo tão logo fosse possível. Os outros eram irrelevantes. O que importava era como seu grupo escaparia daqui. Quando ele foi pro sul, Mitsuru ficou cada vez mais tenso quando quaisquer abrigos que ele pudesse pegar ficaram mais esparsos. Sob o uniforme escolar, seu corpo todo estava molhado em suor frio. Suor escorria de seu cabelo curto e cacheado e caía pela sua testa. Um pouco mais adiante a costa fazia uma curva para a direita e esquerda e em algum lugar no meio desta curva um recife rugoso se estendia do lado leste da encosta e mergulhava no oceano como um dinossauro enterrado revelando apenas suas costas. O recife era mais alto que Mitsuru, bloqueando sua visão além dele. Olhando para o mar, ele viu pequenas luzes que indicavam um grande pedaço de terra além da escura e vasta extensão horizontal de água. Isto devia ser uma ilha no mar interno de Seto. Tinha quase certeza. Assim que inspecionou a área, Mitsuru cruzou a borda entre a praia e a floresta. Expondo-se sob a luz da lua, ele caminhou em direção ao recife. Ele se segurou na rocha escarpada e começou a subir. A pedra estava dura e lisa e como sua mão direita segurava uma arma e suas mochilas estavam penduradas em seus ombros, não era uma subida fácil. Depois da subida ele viu que o

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recife tinha aproximadamente três metros de largura e a praia se espalhava além das rochas. Quando se preparou para descer o outro lado do recife, uma voz subitamente se dirigiu a ele: –Mitsuru. Mitsuru quase saltou. Ele se virou e ergueu sua pistola. Ele suspirou de alívio. Então baixou sua arma. Kazuo Kiriyama estava na sombra de uma saliência de rocha. Ele estava sentado em uma pedra proeminente. –Chefe...– disse Mitsuru aliviado. Mas... Mitsuru notou três blocos deitados aos pés de Kazuo. Seus olhos se espremeram na escuridão... mas então eles imediatamente se alargaram. Os blocos eram humanos. O que estava virado para cima, olhando para o céu, era Ryuhei Sasagawa (Estudante Masculino No. 10). O que estava deitado ao seu lado, encolhido, era Hiroshi Kurogawa (Estudante Masculino No. 9). Sem dúvidas eram eles, os outros membros da Família Kiriyama. O terceiro estava vestindo um uniforme de marinheiro e por seu rosto estar virado para baixo era difícil dizer, mas ela parecia Izumi Kanai (Estudante Feminina No. 5). E... lá estava uma poça sob seus corpos. Parecia preto, mas Mitsuru sabia claramente o que era. Se o sol estivesse brilhando sobre eles agora, a cor da poça teria sido idêntica à cor da bandeira nacional da República do Leste da Ásia Maior, vermelho rubro. Completamente confuso, Mitsuru começou a tremer. O que era... O que significava isto? –Esta é a ponta sul. – sob seu cabelo puxado para trás, os eternamente calmos olhos de Kazuo olharam para Mitsuru. Ele vestia seu casaco sobre os ombros como um boxeador vestido com seu roupão após uma luta. –Q-Qu-Que..– a mandíbula tremendo fazia sua voz vibrar.– O que está acontecendo aqui... – Você quer dizer isto? – Kazuo cutucou o corpo de Ryuhei Sasagawa com a ponta de seu simples (mas bonito) sapato de couro de bico fino. O cotovelo direito de Ryuhei, que estava deitado em seu peito, traçou um arco e caiu sobre a poça. Seu dedo mindinho e seu dedo anelar desapareceram dentro da poça. –Todos eles tentaram me matar. Kuronaga e Sasagawa... ambos. Então eu... os matei. Não podia ser... Mitsuru não podia acreditar. Hiroshi Kuronaga era um zé ninguém que andava junto com o grupo, por isso ele era muito mais leal a Kazuo. Ryuhei Sasagawa era mais arrogante, sempre afrontando (às vezes ele era uma briga pará-lo de importunar Yoshio Akatmatsu), mas Ryuhei havia estado extremamente grato desde que Kazuo puxou algumas cordas para impedir os policiais de prenderem seu irmão mais novo por roubo. Aqueles dois nunca trairiam Kazuo...

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Mitsuru captou um cheiro no ar. Era sangue. O cheiro de sangue. O odor era muito mais intenso que o cheiro do sangue de Yoshitoki Kuninobu na classe. A diferença estava na quantidade. Havia sangue suficiente espalhado ali para encher uma banheira. Esmagado pelo cheiro, o queixo Mitsuru caiu. Pensando bem... era impossível saber os verdadeiros pensamentos de alguém. Talvez Hiroshi e Ryuhei estivessem tão amedrontados que eles ficaram loucos. Em outras palavras, eles só não conseguiram lidar com a pressão. Eles apareceram aqui no local combinado, mas tentaram emboscar Kazuo. Mas... os olhos de Mitsuru estavam colados no outro cadáver. Izumi Kanai, que estava virada pra baixo, era uma linda e delicada garota. Elas era filha de um funcionário público de uma cidade (é claro que neste tipo de sociedade ultra-centralizada e burocratizada, ser um funcionário público ou membro do conselho era só um posto honorário sem qualquer influência) e apesar dela não estar no mesmo círculo social que Kazuo ela provavelmente vinha de uma das cinco famílias mais ricas da cidade. Porém ela não era nem um pouco arrogante e Mitsuru a achava bonita. É claro, dado o quão diferentes eram suas histórias, ele não era tão estúpido para se aproximar dela. E agora ela estava... Mitsuru de alguma maneira conseguiu dizer algo: –E-Então chefe, Izumi... então como... Os olhos calmos e frios de Kazuo olhavam fixamente para ele. Intimidado pelo olhar que recebeu dele, Mitsuru procurou por uma resposta própria. –Então I-Izumi tentou te matar... também? Kazuo acenou com a cabeça. –Só aconteceu de ela estar aqui. Mitsuru hesitou, mas então se forçou a acreditar no que ele disse. Bem, talvez fosse possível. Digo, é o que o chefe disse. Ele falou apressado: – E-Eu estou bem. Eu nunca pensaria em matar meu chefe. Es-este jogo é besteira. Nós vamos acabar com Sakamochi e aqueles bastardos das Forças Especiais de Defesa, certo? Eu estou totalmente dentro... É claro que eles não poderiam se aproximar da escola agora, pois era uma zona proibida. É o que Sakamochi dissera. Mas conhecendo Kazuo, Mitsuru tinha certeza que ele já havia bolado um plano. Ele parou de falar. Notou que Kazuo estava balançando a cabeça. Mitsuru moveu sua língua, que agora estava grudenta, e continuou: –Então nós vamos escapar? Tudo bem então, vamos procurar um barco... Kazuo disse: –Ouça.– Mitsuru parou de novo. Kazuo continuou: –Por mim tanto faz.

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Apesar de Mitsuru tê-lo ouvido claramente, continuou piscando. Ele não entendeu o que Kazuo quis dizer. Ele tentou ler os pensamentos de Kazuo pela expressão em seus olhos, mas eles apenas brilhavam calmamente na sombra sobre seu rosto. –O-o que você quer dizer com tanto faz pra você? Kazuo ergueu e apontou seu queixo para o céu noturno, como se ele estivesse esticando o pescoço. A lua brilhava claramente e jogava uma sombra triste no rosto bem desenhado de Kazuo. Ele manteve esta pose e disse: –Às vezes eu não compreendo o que é certo e o que é errado. Mitsuru estava ainda mais confuso. Foi quando um pensamento totalmente diferente ocorreu a ele. Algo estava faltando. E então ele percebeu o que era. A Família Kiriyama consistia de Mitsuru, Ryuhei e Hiroshi cujos corpos estavam deitados ali, mais Sho Tsukioka, que estava faltando. Ele saiu antes de Mitsuru. Então por que... É claro que Sho Tsukioka poderia ter perdido o caminho. Ou pode ter sido morto por alguém. Mas... Mitsuru sentia que a verdade era mais nefasta que isto. Kazuo continuou: –Como agora. Eu não sei.– A visão de Kazuo falando assim parecia, estranhamente, triste. – De qualquer modo. – Kazuo olhou de volta para Mitsuru. Então, como se ele estivesse seguindo uma partitura musical que tinha subitamente mudado para um allegro, ele começou a falar rapidamente, como se estivesse além de seu controle. –Eu vim aqui. Izumi estava aqui. Izumi tentou escapar. Eu a segurei. Mitsuru segurou a respiração. –Foi quando joguei uma moeda. Se desse cara eu iria atrás de Sakamochi e... Mitsuru finalmente entendeu, antes de Kazuo terminar de falar. Não... Não podia ser... Ele não queria acreditar. Era inacreditável. Kazuo era o rei e ele era seu leal conselheiro. Era para ser quase absoluto, lealdade e serviço eterno. É verdade... até o penteado de Kazuo. Na época que os dedos de Mitsuru estavam curados, foi ele quem insistiu com Kazuo. –Parece legal. Você parece bem mal, chefe. Kazuo manteve o estilo de penteado depois disso. Era um detalhe besta, mas para Mitsuru simbolizava o quão próximo eles eram. Mas... Mitsuru finalmente percebeu que talvez tivesse brigado demais para que Kazuo mudasse o penteado. Ele podia ter estado muito mais preocupado com outras coisas para se preocupar com o cabelo. Então havia outras coisas que ele percebeu. Mitsuru acreditava firmemente que seu relacionamento com Kazuo estava centrado em torno de um espírito de time sagrado, quando na verdade Kazuo pode ter entrado nessa só pra contrariar ou talvez apenas – é isso, apenas uma experiência– só para experimentar, sem envolver sentimentos com isto, seja o que fosse. Kazuo uma vez havia dito:“Isto também é divertido.”

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De súbito a coisa que havia perturbado Mitsuru mais cedo voltou com força total. Mitsuru não pensava que era grande coisa, por isso fez o melhor para ignorar desta vez: Kazuo Kiriyama nunca sorriu. O próximo pensamento de Mitsuru parecia estar se aproximando da verdade: “E sempre parecia que havia muitos pensamentos em sua cabeça. Era provavelmente este o caso. Mas talvez haja algo incrivelmente sombrio passando na mente de Kazuo, algo tão sombrio que está além da minha imaginação? Talvez nem seja tão sombrio, talvez apenas uma ausência, um tipo de buraco negro...” E talvez Sho Tsukioka já tivesse sentido isto sobre Kazuo. Mitsuru não tinha mais tempo para pensar. Ele estava completamente concentrado em seu dedo indicador (isso mesmo, um dos dedos quebrados naquele fatídico dia) no gatilho do Walther PPK em sua mão direita. Então uma brisa passou, misturada com o crescente cheiro da poça de sangue. As ondas continuavam batendo. A Walther PPK na mão de Mitsuru tremeu levemente, mas o casaco escolar pendurada sobre as costas de Kazuo já estava se movendo. Houve um som docemente confortável de estouros. Claro, era diferente, mas algo na rajada das 950 balas disparadas por minuto parecia o barulho de digitar numa antiga máquina de escrever que você encontraria em uma loja de antiguidades. Izumi Kanai, Ryuhei Sasagawa e Hiroshi Kuronaga foram todos apunhalados, então estes foram os primeiros sons de tiro a ecoarem pela ilha desde que o jogo começou. Mitsuru ainda estava de pé. Ele não podia ver claramente sob seu uniforme, mas havia quatro buracos da grossura de dedos de seu peito até seu estômago. Por alguma razão suas costas tinham dois buracos da grossura de uma lata. Sua mão direita que segurava a Walther PPK estava tremendo em sua mão. Seus olhos estavam virados para cima, fitando a Estrela do Norte. Mas como a lua estava brilhando forte esta noite, a estrela provavelmente não estava visível. Kazuo segurava uma caixa de metal grosseira que parecia uma lata de sobremesa com um cabo. Era uma submetralhadora Ingram M10. Ele disse: –Se desse coroa na moeda, eu decidi que tomaria parte no jogo. Kazuo Kiriyama ficou sentado por um tempo. Então ele se ergueu e se aproximou do cadáver de Mitsuru Numai. Ele tocou suavemente o corpo atravessado por balas com sua mão esquerda, como se estivesse checando alguma coisa. Não havia nenhuma resposta emocional. Ele não sentia nada, nenhuma culpa, nenhum pesar, nem pena... nem uma simples emoção. Ele simplesmente queria saber como um corpo humano reagia depois que levava tiros. Não, ele meramente pensou:“Pode não ser uma má idéia saber.” Ele removeu sua mão e tocou sua têmpora direita; para ser mais preciso, um pouco mais atrás de sua têmpora. Qualquer estranho poderia ter pensado que ele estava apenas ajeitando seu cabelo.

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Mas não era isso. Ele fez isto por causa de uma sensação estranha que tinha; não dor, não coceira, mas algo evasivo e raro, ocorrendo apenas poucas vezes por ano, quando ele reflexivamente tocava o ponto onde, assim com a sensação, se tornou bastante comum para Kazuo. Os “pais” de Kazuo haviam dado a ele uma educação especial. Mas apesar de ter aprendido tudo o que havia para saber sobre o mundo em uma idade tão baixa, o próprio Kazuo não tinha idéia do que causava esta sensação. Era inevitável. Quaisquer traços do dano haviam desaparecido completamente quando ele tinha idade suficiente para se reconhecer no espelho. Em outras palavras, ele não sabia nada: o fato de que ele quase morreu de um acidente incomum que causou o dano quando ele ainda estava na barriga de sua mãe, é claro, o fato de que sua mãe fora morta pelo acidente, a conversa que seu pai e um médico de grande reputação tiveram a respeito do estilhaço entrando em seu crânio antes de seu nascimento, o fato de que nem seu pai e nem o médico que comemorara que a operação havia sido um sucesso sabiam que o estilhaço havia arrancado um pedaço frágil de células nervosas. Cada um destes fatos era de uma outra época. O médico morrera de um problema no fígado, seu pai, ou mais precisamente, “seu verdadeiro pai”, também morreu de doença. Então não havia ninguém sobrando para compartilhar estes fatos com Kazuo. Uma coisa era absolutamente certa: isto foi dado a Kazuo. Apesar dele não ter percebido claramente, ou mais apropriadamente, talvez porque ele fosse incapaz de perceber tal coisa, foi isto que aconteceu: ele, Kazuo Kiriyama, não sentia nenhuma emoção, nenhuma culpa, nenhuma mágoa e nenhuma piedade em relação aos cadáveres, incluindo Mitsuru; e isto aconteceu desde o dia em que ele foi jogado neste mundo. É assim que ele sempre foi; ele nunca sentiu nem uma única emoção. 34 estudantes restantes

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12 No lado norte da ilha, oposto de onde Kazuo e os outros foram, um penhasco íngreme pairava sobre o mar. Tinha mais de vinte metros de altura. No penhasco havia um pequeno campo com uma coroa de grama. As ondas batiam conta o penhasco e explodiam em uma névoa que era levada pelo vento suave. Sakura Ogawa (Estudante Feminina No. 4) e Kazuhiko Yamamoto (Estudante Masculino No. 21) estavam sentados juntos na beira do penhasco. Suas pernas estavam penduradas na beirada. A mão direita de Sakura segurava suavemente a mão esquerda de Kazuhiko. Seus kits de sobrevivência, junto com seus compassos, estavam espalhados em torno deles. Assim como Kazuo havia combinado de encontrar os outros na ponta sul da ilha, Sakura havia rabiscado “na ponta norte” no pedaço de papel (logo depois de “Nós vamos matar uns aos outros”) que ela passou para Kazuhiko. Pelo menos eles tinham sorte suficiente para se encontrar em algum lugar que não coincidiu com o local de encontro de Kazuo. Apesar das circunstâncias, eles tiveram sorte suficiente para passarem mais tempo sozinhos. Havia uma Magnum Colt .357 enfiada sob o cinto de Kazuhiko, mas ele já sabia que não a usaria. –Está quieto.– Sakura murmurou. Sob seu cabelo, que era curto para uma garota, seu belo perfil, começando por sua testa larga, parecia estar formando um sorriso. Ela era alta, por isso parecia magra, e como sempre, ela se sentava reta. Kazuhiko só havia chegado recentemente. Quando se abraçaram, o corpo dela tremia levemente, como um passarinho ferido. –Sim, é mesmo.– Kazuhiko disse. Tirando o seu nariz, que era levemente largo, ele tinha uma boa aparência. Ele desviou o olhar dela para observar a paisagem. O mar escuro se espalhava sob a luz da lua, o esboço negro das ilhas espalhadas, e além delas havia terra. As luzes estavam brilhando forte nas ilhas e parecia ser a ilha principal de Honshu mais distante. Era um pouco antes das 3:30. Entre aquelas luzes flutuando na escuridão a maioria das pessoas dormia tranquilamente. Ou talvez houvesse crianças como ele estudando até tarde da noite para os exames de admissão do colegial13. Não parecia terrivelmente distante, mas agora era um mundo além de seu alcance. Kazuhiko confirmou a existência de um pequeno ponto a aproximadamente duzentos metros no mar. Parecia ser um dos navios “lá para matar qualquer um que tentar escapar pelo mar” que Sakamochi mencionou. Apesar do Mar Interno de Seto sempre estar ocupado com tráfego de barcos, mesmo à noite, nenhum navio passava mostrando suas luzes. O governo proibira todo tráfego aqui. Estava congelando. Kazuhiko tirou seus olhos do ponto negro. Ele havia visto os corpos de Mayumi Tendo e Yoshio Akamatsu quando ele deixou a escola. Ele também ouviu o som de tiros à distância antes de chegar aqui. O jogo havia começado, e continuaria até o fim. Ele e Sakura já sabiam disso, e isto também não parecia mais importar. 13

Muitas escolas de segundo grau do Japão fazem uma espécie de “vestibular”, pois são bastante concorridas por causa de sua qualidade de ensino superior.

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–Muito obrigada por isto. – Sakura esta olhando para o pequeno buquê de flores em sua mão esquerda. No caminho pra cá Kazuhiko encontrara várias flores parecidas com trevos que ele juntou. No topo dos longos cabos as pequenas pétalas estavam juntas com pompons de líder de torcida. Aquele não era o conjunto mais impressionante de flores, mas foi tudo que ele pôde encontrar. Kazuhiko olhou para baixo, para o pequeno buquê, então finalmente disse: –Então nós nunca vamos poder ir pra casa juntos. Nós não vamos poder passar tempo juntos andando pela cidade, tomando sorvete e fazer qualquer outra coisa. –Bom... Sakura interrompeu Kazuhiko. –É inútil resistir. Eu devia saber. Eu ouvi que meu pai era contra o governo e então um dia... Kazuhiko podia ver pela mão dela que ela estava tremendo. –A polícia veio e matou meu pai. Sem aviso, sem nada. Eles entravam sem falar uma palavra e atiraram nele. Eu ainda posso lembrar claramente. Nós estávamos na cozinha. Eu ainda era pequena. Eu estava sentada à mesa. Minha mãe me abraçava forte. Então eu cresci e comi minhas refeições naquela mesma mesa. Sakura se virou para Kazuhiko: –Não adianta resistir. Foi a primeira vez que ela havia contado a ele sobre o incidente, mesmo eles estando saindo juntos há dois anos. Na primeira vez que eles dormiram juntos, apenas um mês atrás na casa dela, ela não mencionou isto. Kazuhiko sentiu que ele tinha que dizer algo, mas tudo o que ele pôde pensar lhe parecia vulgar: –Puxa, deve ter sido difícil. Mas Sakura deu um sorriso: –Você é tão gentil, Kazuhiko. Você é tão gentil. É isto que eu gosto em você. Se ele não fosse tão inarticulado, Kazuhiko teria dito muito mais. Como as expressões dela, a palavras, os modos gentis e a alma pura dela significavam para ele. Resumindo, o quão importante a existência dela era para ele. Mas ele não era capaz de transformar em palavras. Ele era apenas um estudante de oitava série, e pior ainda, redação era uma de suas piores matérias. –Bem.– Sakura fechou seus olhos e respirou profundamente, como um pequeno alívio. Então ela exalou.– Eu queria muito ter certeza de te ver. Então ela continuou – Coisas horríveis vão acontecer. Não... de acordo com o que você disse, já começaram. Ontem mesmo todos éramos amigos. E agora nós vamos matar uns aos outros. Pondo seus pensamentos em palavras, ela tremeu de novo. E de novo Kazuhiko podia perceber pela mão dela.

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Sakura deu a ele um sorriso cansado que mostrava medo junto com a terrível ironia do destino que os esperava. –Eu não posso suportar isso. É claro que não. Sakura era amável. Kazuhiko não conhecia ninguém mais amável. –Além disso... – Sakura disse de novo – Nós não podemos voltar juntos. Mesmo se por algum milagre um de nós pudéssemos voltar, nós ainda não estaríamos juntos. Mesmo se... mesmo se eu fosse a sobrevivente... eu não suportaria estar sem você. Por isso... Sakura parou. Kazuhiko compreendeu onde ela estava chegando. “Por isso eu vou me matar aqui. Antes que alguém me pegue. Bem na sua frente.” Em vez de terminar o que ela tinha a dizer, ela disse: –Mas você deve viver. Kazuhiko sorriu assustado, então apertou a mão dela forte e sacudiu a cabeça. –Sem jeito. Estou com você. Mesmo se eu sobrevivesse, eu não suportaria ficar sem você. Não me deixe sozinho. Lágrimas caíam dos olhos de Sakura que estavam fixos nos olhos de Kazuhiko. Sakura se virou. Enxugando suas lágrimas com a mão esquerda que segurava o buquê de floresela disse subitamente: –Você viu o episódio final de Hoje, no Mesmo Lugar, que para toda quinta às nove? Kazuhiko fez que sim. Era uma novela da TV que passava na rede nacional DBS. Era uma história de amor supérflua produzida pela Rede Televisiva da República do Leste da Ásia Maior, mas era bastante boa, chegando ao topo dos melhores da TV pelos últimos anos. –Sim, eu assisti. Você queria que eu visse. –Sim, eu queria. Por isso que eu estava pensando... Enquanto ela falava, Kazuhiko pensou: “Isto é exatamente como nós sempre conversamos.” É sempre sobre algo realmente comum e sem sentido, mas havia algo bastante agradável nessas conversas que eles tinham. “Sakura quer que a gente fique do jeito que sempre estivemos.” O pensamento subitamente fez Kazuhiko querer chorar. –Bem, por mim ficaria legal os dois personagens principais acabarem juntos. É como deveria acontecer. Mas eu não sei sobre a amiga da Miki, Mizue, aquela interpretada pela Anna Kitagawa. Como Mizue poderia desistir do rapaz que ela ama? Pelo menos eu teria ido atrás dele. Kazuhiko sorriu: –Eu sabia que você diria isso. Sakura riu timidamente. –Não posso esconder nada de você. – Então ela disse contente. – Eu ainda lembro de quando nós viramos colegas de classe no primário. Você era alto e bonito, claro, mas a coisa que me impressionou foi o que eu senti: ‘Este rapaz me entenderia, ele poderia me compreender até o fundo da minha alma.’ –Eu não sei como dizer isso bem, mas– Kazuhiko enrolou a língua um pouco, pensou por um momento e então continuou– Eu me senti da mesma maneira.

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Ele disse bem. Então ele se inclinou um pouco na direção de Sakura. Com sua mão esquerda ainda apertando a mão direita dela, ele envolveu seu outro braço pelo ombro dela. Eles se abraçaram nesta posição e trocaram beijos. Foi só por alguns segundo? Foi por um minuto? Ou era uma eternidade? De qualquer modo, o beijo terminou. Eles ouviram o som de algo se arrastando. Eles sentiram alguém nos arbustos atrás deles. Este era seu sinal: todos a bordo. O trem está partindo, então é melhor embarcar. Eles não tinham mais nada para dizer. Eles podiam ter lutado contra o intruso. Ele podia ter tirado sua arma e mirado na pessoa atrás deles. Mas ela não queria aquilo. O que ela queria era deixar este mundo em paz antes que eles fossem engolidos por este horrível massacre. Nada era mais importante a ele do que ela. Não havia porque discutir. Se isto é o que a alma abalada dela queria, então ele a seguiria. Se ele fosse mais eloqüente, poderia ter descrito seus sentimentos como “Eu vou morrer em respeito profundo por ela.” Seus dois corpos dançaram no ar além do penhasco, com o mar negro ao fundo, suas mãos ainda estavam juntas. Yukie Utsumi (Estudante Feminina No. 2) ergueu um pouco sua cabeça dos arbustos. Ela segurou a respiração e os vigiou. Ela não tinha nenhuma intenção, qualquer que fosse, de causar mal a ninguém, então ela não tinha idéia de que o barulho que ela fez sinalizou a partida deles. Ela estava simplesmente atordoada pela visão do casal No.1 da classe desaparecendo além do penhasco gramado. O som das ondas calmamente batendo contra a face rochosa escarpada continuava e os pequenos trevos que Sakura derrubou permaneciam caídos sobre a grama. Até mesmo quando Haruko Tanizawa (Estudante Feminina No. 12) se aproximou dela por trás e perguntou “O que está havendo, Yukie?”, Yukie continuou parada ali tremendo. 32 estudantes restantes

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13 Megumi Eto (Estudante Feminina No. 3) estava sentada na escuridão, abraçando seus joelhos enquanto seu pequeno corpo tremia violentamente. Ela estava dentro de uma casa um pouco afastada da área mais populada da ilha na borda leste. As luzes poderiam estar funcionando, mas Megumi nem tentou ligá-las. A luz da lua entrando através da janela não alcançava sob a velha mesa de jantar em que ela estava se escondendo. Estava quase totalmente escuro, por isso ela não conseguia ver o relógio, mas duas horas provavelmente se passaram desde que ela se sentou ali. Era provavelmente quase 4h. Já fazia uma hora desde que ela ouviu aquele som distante, apagado, que parecia fogos de artifício? Não, Megumi não queriam nem pensar sobre o que aquilo era na verdade. Ela ergueu o rosto e viu a silhueta sob a luz da lua do armário e da chaleira em cima da pia. Ela estava ciente de que o governo provavelmente havia realocado os moradores da ilha para alguma unidade de habitação temporária, mas os traços restantes da vida de alguém nesta casa eram anormais e horripilantes. Isto a lembrou da história de fantasmas que ouviu quando era criança, sobre o navio Marie Celeste cuja tripulação inteira desapareceu no meio do nada, deixando pra trás apenas suas refeições e coisas usadas. Megumi ficou ainda mais aterrorizada. Logo depois de partir, ela não tinha nenhuma idéia de onde ela estava indo. A única coisa que ela sabia era que estava no meio desta área residencial. O primeiro pensamento que ocorreu a ela foi de que não havia muitos estudantes fora ainda. Ela foi a sexta a sair da escola. Cinco já estavam fora... mas apenas cinco. Havia cinqüenta ou sessenta casas nesta área, por isso as chances de encontrar algum deles era quase nula. E enquanto ela trancasse a porta e ficasse naquele lugar... ela poderia estar segura pelo menos até que tivesse que se mover. O colar que podia explodir se ela ficasse em uma das zonas proibidas era opressivo, mas não havia nada que ela pudesse fazer sobre isto. Sakamochi já avisara “Se vocês tentarem abrir, vai explodir.”. De qualquer modo, o importante era se certificar de que ela pudesse ouvir o anúncio de Sakamochi da hora e local de cada zona proibida. Por isso Megumi tentou entrar em uma casa, mas a primeira estava trancada. A segunda também. Ela foi para os fundos da terceira e quebrou a vidraça com uma pedra que encontrara no chão. Fez um barulho tão grande que ela se abaixou atrás da varanda. Apesar disso, não parecia haver ninguém na área. Ela entrou. Não tinha sentido trancar a porta de tempestade depois disso. Ela teve que fechar a porta de vidro cuidadosamente. Assim que estava fechada, o local dentro ficou totalmente escuro e ela sentiu como se estivesse andando por uma casa mal assombrada. Ela conseguiu tirar sua lanterna e examinar a casa. Ela pegou duas varas de pescar e as usou para prender a porta de tempestade. E agora ela estava sob a mesa da cozinha. Matar um ao outro estava fora de questão. Mas e se... e se só se esta área (checando o mapa, ela descobriu que toda a área estava quase completamente dentro do setor H=8) nunca se tornasse uma zona proibida, ela poderia acabar sobrevivendo.

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Mas... Megumi continuava a tremer enquanto continuava a pensar. Isto era terrível. Claro, de acordo com as regras do jogo, todo mundo era seu inimigo, por isso você não podia confiar em ninguém. É o porquê de ela estar tremendo agora... mas, mas mesmo se o jogo terminasse e ela saísse como a única sobrevivente, então isto significaria que todos os outros haviam morrido: suas amigas (como Mizuho Inada e Kaori Minami), assim como Shuya Nanahara, que fazia o coração dela se tumultuar cada vez que pensava nele. Megumi puxou seus joelhos e pensou em Shuya e na escuridão. O que ela realmente gostava nele era sua voz. Aquela voz levemente grossa que não era nem alta e nem baixa. Ele aparentemente amava aquela música censurada chamada “rock”, por isso ele sempre parecia bem infeliz nas aulas de música quando eles tinham que cantar músicas glorificando o governo e o Ditador, mas ele cantava incrivelmente bem. O som de sua guitarra quando ele tocava passagens improvisadas era soberbo. Seu ritmo diferente fazia você querer dançar. E ainda por cima havia alguma coisa graciosa no som, não muito diferente do som de sinos soando em uma linda igreja. E então lá estava ele com seu longo cabelo ondulado (Shuya disse uma vez “Estou imitando Bruce Springsteen”, mas Megumi não tinha idéia de sobre o que ele estava falando), sem mencionar seu olhar levemente sonolento, olhos amáveis com pálpebras duplas. Ele também se movia muito graciosamente desde que ele era uma estrela da Pequena Liga na escola elementar. O tremor dela diminuiu um pouco quando pensou no rosto e na voz de Shuya. “Oh, se Shuya Nanahara estivesse comigo aqui e agora seria tão maravilhoso...” Mas então... mas então por que ela nunca contou a Shuya sobre como ela se sentia em relação a ele? Por carta de amor? Ou mandando alguém trazê-lo para que ela pudesse confessar diretamente a ele? Ou por telefone? Agora ela nunca teria a chance. Foi quando ela teve uma idéia. O telefone. “É isso. Sakamochi disse que nós não poderíamos usar os telefones nas casas. Mas...” Megumi pegou sua mochila de nylon, que estava caída perto do kit de sobrevivência recebido. Ela abriu o zíper e empurrou suas roupas e objetos pessoais. Ela tocou um objeto duro e reto e o agarrou. Era um telefone celular. Sua mão o comprara para esta viagem no caso de qualquer coisa (bem, isto não era qualquer coisa) acontecer durante sua viagem. Era verdade que ela tinha inveja dos outros dois ou três colegas de classe que tinham um, pois era uma sensação emocionante ter seu link particular, mas Megumi também pensou que seus pais estavam sendo superprotetores e que sua mãe era neurótica. Ela se perguntou “Por que um estudante de oitava série precisaria disto?” quando pôs o celular brilhante dentro da mochila. Ela havia esquecido completamente sobre ele até este exato momento. Megumi abriu o celular com suas mãos tremendo. O celular automaticamente mudou do modo de recepção para o modo de envio e o pequeno painel LCD e os botões de discagem acenderam com um brilho verde. Os seus joelhos sob a saia e

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suas mochilas agora estavam visíveis. Mas, mais importante, sem dúvidas lá estava a antena e os símbolos de ondas brilhando no painel, indicando que estava pronto para fazer uma chamada! –Ah, meu Deus... Megumi freneticamente apertou nos botões de discagem o número de sua casa em Shiroiwacho. 0, 8, 7, 9, 2... Depois de um momento de silêncio, o sinal do outro lado começou a tocar no celular em seu ouvido, e seu peito se encheu de esperança. “Um, dois, três toques. Por favor, atendam. Pai, mãe. Eu posso estar chamando em uma hora incomum, mas vocês devem estar sabendo que sua filha está em uma situação de emergência. Rápido...” O toque foi interrompido por uma voz falando: –Alô. –Ah pai! – Em sua posição encolhida Megumi fechou seus olhos. Ela pensou estar ficando louca de alívio. “Eu serei salva. Salva!” –Papai, sou eu! Megumi! Ah pai! Por favor, me ajuda! Por favor, me tira daqui! – ela gritou no celular num frenesi, mas ela voltou a si quando não houve resposta. Algo... estava errado. “O que... Por que o papai não... não, este é...” Finalmente a voz do outro lado falou: – Eu não sou seu pai, Megumi. Aqui é Sakamochi. Eu disse pra você que telefone não ia funcionar, Megumi. Megumi gritou e jogou o celular no chão. Então ela apressadamente bateu no botão “Fim”. Seu coração estava batendo freneticamente. Mais uma vez Megumi foi superada pelo desespero. “Oh não... então não deu certo.. então eu vou morrer aqui... Eu vou morrer...” Mas então o coração de Megumi disparou. ...era um som de algo despedaçando. O som de vidro quebrado. Megumi se virou em direção à origem do som. Veio da sala de estar que ela havia checado para ter certeza de que estava trancada. Alguém estava vindo. “Alguém. Por quê? De todas as casas aqui, por que justo esta?” Megumi entou em pânico e fechou o painel do celular, que estava brilhando verde. Ela o pôs no bolso, pegou a arma de seu kit de sobrevivência, e tirou a faca de mergulhador de dois gumes de seu estojo. Ela segurou com força. Ela tinha que escapar o mais rápido possível. Mas seu corpo estava congelado e ela não podia se mover. Megumi diminuiu a respiração. “Por favor, por favor, Deus, não deixe ouvirem meu coração batendo.” Ela ouviu a voz de uma janela abrindo, depois fechando. Então o som de cuidadosos e silenciosos passos. Eles pareciam estar movendo pela casa, mas então vieram diretamente em direção à cozinha e Megumi. O coração de Megumi bateu ainda mais forte. Um fino raio de luz atravessou a cozinha. O raio passou pela chaleira e o armário sobre a pia.

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Alguém suspirou de alívio e disse a si mesmo: –Que bom, não há ninguém aqui. Os passos entraram na cozinha. Tão logo Megumi ouviu a voz, ficou horrorizada. Qualquer mínima esperança que ela pudesse ter de se entender caso o intruso fosse um amigo havia sido completamente esmagada. Porque... a voz era dela, Mitsuko Souma (Estudante Feminina No. 11), a garota mais terrível de toda a escola. Mesmo ela sendo a mais bela, com o rosto mais angelical, um simples olhar dela era suficiente para intimidar qualquer professor. Mitsuko Souma era mais aterrorizante para Megumi do que qualquer um dos garotos de má reputação, Kazuo Kiriyama e Shogo Kawada. Talvez porque como Megumi, Souma era uma garota e também, é claro, porque a própria Megumi havia sido perturbada por Hirono Shimizu, que estava na gangue de Mitsuko quando elas se tornaram colegas de classe na sétima série. Se elas estivessem todas no mesmo corredor, Hirono faria ela tropeçar ou então cortaria sua saia com um estilete. Ultimamente, talvez porque ela simplesmente tivesse perdido o interesse em Megumi, Hirono parou de incomodá-la. (Porém Megumi ainda ficou desapontada quando soube que sua sala da oitava série seria a mesma que a da sétima série). A própria Mitsuko nunca atormentou Megumi, mas Mitsuko era alguém que nem mesmo Hirono podia desafiar. É isso... Mitsuko Souma saborearia matar alguém como ela. O corpo de Megumi começou a tremer de novo. “Oh, por favor, não, não trema... se ela me ouvir...” Megumi abraçou seu corpo forte com os braços para impedir seus braços de tremer. Debaixo da mesa Megumi podia ver a mão de Mitsuko segurando uma lanterna e o cinto de sua saia brilhando. Ela ouviu o som de Mitsuko esvaziando as gavetas na pia. “Por favor, vá logo... vai rápido e saia daqui. Se você pudesse pelo menos sair desta sala... é isso... então eu poderia ir até o banheiro. Eu poderia trancá-lo por dentro e escapar pela janela. Por favor, rápido...” BRRIIINNG O sinal eletrônico tocou e Megumi sentiu seu coração saltando pela sua boca. Mitsuko Souma também pareceu pular levemente. O feixe de luz da lanterna de repente desapareceu com o brilho do cinto. Ela parecia estar chegando mais perto do canto da sala. Megumi percebeu que o som estava vindo de seu bolso. Ela tirou o celular freneticamente. Sua mente estava vazia e ela automaticamente o abriu e apertou os botões aleatoriamente. Uma voz saiu: –Ei, é Sakamochi de novo. Eu só queria te avisar, Megumi, para desligar seu telefone celular. Senão, se eu te ligar como agora, todo mundo irá saber onde você está, certo? Então... Os dedos de Megumi encontraram o botão “Fim”, cortando a voz de Sakamochi. O silêncio sufocante continuou por um tempo. Então ela ouviu a voz de Mitsuko: –Megumi?– ela perguntou– Megumi? É você? Mitsuko parecia estar no outro canto da cozinha escura. Megumi cuidadosamente colocou seu celular no chão. A única coisa em suas mãos agora era a faca. Suas mãos estavam tremendo ainda mais e a faca parecia um peixe tentando escapar, mas ela apertou o mais forte que podia.

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Mitsuko era mais alta que Megumi, mas ela não podia ser muito mais forte. A arma de Mitsuko (será que podia ser uma arma de fogo? Não, senão Mitsuko teria apontado e atirado.). Se Mitsuko não tinha uma arma então Megumi tinha uma chance. Estava claro, ela tinha que matar. Se ela não matasse, Mitsuko certamente a mataria. Ela tinha que matar. Houve um som de clique e novamente o feixe de luz apareceu. Ele iluminou embaixo da mesa e Megumi deu uma breve olhada. Agora era a hora, tudo o que ela tinha que fazer era de levantar e correr em direção à origem da luz com sua faca. Mas as intenções de Megumi foram abruptamente minadas por uma série de eventos inesperados. A luz da lanterna apontou para baixo e Mitsuko Souma se abaixou no chão, olhando para Megumi. Lágrimas estavam correndo pelas bochechas de Mitsuko. –Estou tão feliz... – seus lábios estremecidos finalmente se abriram e ela falou com uma voz débil.– Eu... Eu estou... Eu estou tão assustada... A voz de Mitsuko estava meio aguda. Ela levou suas duas mãos para frente, como se estivesse procurando pela proteção de Megumi. Suas mãos estavam vazias. Então ela continuou: –Eu posso confiar em você, certo? Eu posso confiar em você. Você não ia pensar em me matar, né? Vai ficar comigo, não vai? Megumi estava chocada. Ali estava Mitsuko Souma chorando. “Ela está querendo a minha ajuda...” E assim como o tremor em seu corpo diminuiu, Megumi sentiu uma emoção indescritível dentro dela. É isso. Então era assim que as coisas eram. Não importava o quão ruim era sua reputação, Mitsuko Souma era só mais uma estudante de oitava série assim como ela. Até mesmo Mitsuko Souma não podia tomar parte em algo tão horrível quanto matar colegas de classe. Era só estava sozinha e assustada. “E... Oh, que horrível... eu realmente considerei... eu pensei em matá-la. Eu sou... tão horrível.” Megumi caiu em pranto, devastada por se odiar e pela segurança que ela agora sentia por não estar mais sozinha. Ela estava com alguém. A faca escorregou das mãos de Megumi. Ela engatinhou no chão, saiu debaixo da mesa e segurou as mãos que Mitsuko oferecia. Como se uma represa dentro dela estivesse explodindo, ela exclamou: Mitsuko! Mitsuko! Ela sabia que o tremor desta vez era de um tipo diferente de emoção. Não importava. Ela estava... Ela estava... –Está tudo bem. Vou ficar com você. Nós vamos ficar juntas. –Ah-Ahã. – Mitsuko enfregou seu rosto cheio de lágrimas e apertou as mãos de Megumi de volta, concordando e repetindo:– Ahã, Ahã

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Megumi abraçou Mitusko no chão da cozinha. Ela sentiu o calor do corpo de Mitsuko e sentiu-se ainda mais culpada quando seus braços sentiam o corpo de Mistuko tremendo indefeso. “E-Eu estava mesmo pensando em fazer algo horrível... tão horrível... Eu realmente tentei matar essa garota...” –Ei...– Megumi começou a falar– E-Eu... –Ãh ?– Mitsuko ergueu seus olhos cheios de lágrimas em direção a Megumi. Megumi apertou seus lábios com força pra reprimir um choro e sacudiu a cabeça. – E-Eu estou tão envergonhada de mim mesma. Por um instante eu tentei te matar. Eu pensei em te matar. Porque eu estava... eu tava tão assustada. Os olhos de Mistuko se alargaram quando ela ouviu isso, mas ela não ficou preocupada. Todo que ela fez foi abaixar seu rosto que estava marcado pelo choro histérico. Então ela deu um sorriso gentil: –Ta tudo bem. Mesmo. Não se preocupe muito. É o que se esperava nesta situação horrível. Não fique preocupada, sério. Tá bom? Só fique junto comigo, por favor? Depois que Mitsuko disse isso, ela gentilmente segurou o rosto de Megumi com sua mão esquerda e apertou sua bochecha esquerda na bochecha de Megumi. Megumi podia sentir as lágrimas de Mitsuko. “Ah.” Megumi pensou. “Eu estava tão errada sobre ela. Acabou que Mitsuko Souma é uma garota incrivelmente amável. Ela conseguiu perdoar alguém que tentou matá-la com uma reação tão gentil. ‘Tudo bem’ Não é que nosso professor, Sr. Hayashida, que está morto, havia nos avisado de como é errado julgar as pessoas só pelas suas reputações?” Com estes pensamentos Megumi sentiu algo muito bom dentro dela de novo. Ela abraçou Mitsuko ainda mais forte. Era o que ela podia fazer por enquanto. “Sinto muito, me desculpe. Sou uma pessoa tão horrível. Eu sou mesmo...” O som de corte que Megumi ouviu parecia como um limão sendo cortado. Era um bom som. A faca devia estar muito bem afiada e o limão fresco, do mesmo jeito que se via nos programas de cozinha da TV como em “Hoje, nós cozinharemos salmão ao limão”. Levou alguns segundos para ela perceber o que aconteceu. Megumi viu a mão direita de Mitsuko no lado direito, sob seu queixo. A mão dela segurava uma faca levemente curvada, com o formato de uma banana, que refletia fosca contra a luz da lanterna. Era uma foice, do tipo que se usa para colher arroz. E agora sua ponta estava presa na garganta de Megumi... Com a mão esquerda segurando a parte de trás da cabeça de Megumi, Mitsuko enterrou a foice ainda mais fundo. Ela fez outro som cortante. A garganta de Megumi começou a queimar, mas não durou muito. Ela não conseguiu dizer uma palavra e perdeu a consciência quando seu peito ficou quente com o sangue. Ela expirou, incapaz de formar qualquer idéia sobre o que significava exatamente ter uma lâmina atravessada em sua garganta. Traída nos braços de Mitsuko, ela morreu sem quaisquer pensamentos em relação a Shuya Nanahara ou sua família.

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Mitsuko soltou Megumi, que caiu no chão logo ao lado. Ela rapidamente desligou a lanterna e levantou. Mitsuko limpou as lágrimas irritantes (que ela podia produzir a qualquer hora. Era de fato um de seus outros talentos especiais). Segurando a foice em sua mão direita sob a luz da lua, ela jogou o sangue no chão. As gotas de sangue fizeram um som de impacto contra o chão. “Nada mal pra uma iniciante”, Mitusko pensou. Ela imaginava que uma faca seria mais fácil de usar, mas acabou que uma foice não era tão ruim. Ela não fora cuidadosa o suficiente ao entrar em uma casa que já pudesse estar ocupada. “De agora em diante eu tenho que ser mais cuidadosa...” Olhando para baixo, para o cadáver de Megumi, ela disse baixo e lentamente: –Desculpe. Eu também estava tentando te matar. 31 estudantes restantes

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Parte 2

EstĂĄgio MĂŠdio 31 estudantes restantes

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14 Sua primeira noite terminou em um brilhante amanhecer. Shuya Nanahara olhou para cima e observou o céu azul ficando gradualmente branco através do bosque cerrado. Os galhos e folhas de carvalho, camélia, algum tipo de cerejeira e outros tipos de árvores balançavam em uma rede intrincada ao redor deles que os mantinham escondidos. Shuya percebeu várias coisas ao reexaminar o mapa. A ilha tinha o formato de um diamante bruto. As colinas subiam para as pontas sul e norte da ilha. Eles estavam agora localizados no lado sul da montanha ao norte, perto da ladeira no lado oeste. De acordo com as coordenadas do mapa, a localização parecia ser C=4. Seguindo as linhas de contorno, o mapa estava detalhado, incluindo a área residencial e outras casas (indicadas por pontos azuis), várias construções (há havia muito além de símbolos indicando uma clínica médica, um posto de bombeiros, um farol, também a prefeitura, a cooperativa dos pescadores; e isto era tudo), e estradas pequenas e largas, permitindo a ele onde cada área estava de acordo com as posições das formações de terreno, estradas e casas espalhadas. À noite ele já havia confirmado assim que estiveram mais alto na colina que o mapa representava fielmente esta ilha. Silhuetas de ilhas, grandes e pequenas, estavam espalhadas pelo mar negro; e como Sakamochi dissera, havia (quase ao oeste exato da ilha) a silhueta de o que parecia um barco de guarda com suas luzes apagadas. Imediatamente a oeste de onde Shuya e Noriko estavam, o bosque acabava abruptamente e era substituído por uma ladeira escarpada. Havia um pequeno campo abaixo e depois dele a ladeira continuava em direção ao oceano. Havia uma pequena cabana com o chão elevado no meio do campo pelo qual eles passaram na noite anterior. Vendo o arco Shinto14 de madeira antiga a dez metros da cabana, Shuya presumiu que fosse um templo (que também estava marcado no mapa). A porta da frente estava aberta e não havia ninguém dentro. Assim como ele fez com as outras casas, Shuya decidiu não se esconder neste templo. Pode haver outros fazendo o mesmo... e dado como há apenas uma entrada, eles estariam presos no momento em que fossem encontrados. Shuya se assentou em um lugar cercado por arbustos relativamente perto do mar, onde eles poderiam deitar e descansar. Mais acima na colina os arbustos pareciam mais espessos, mas ele imaginava que isto poderia atrair outros também e no caso de eles encontrarem alguém que fosse um inimigo, ele achou que seria melhor estar em algum lugar não muito íngreme, de onde era difícil fugir. Além do mais, a perna de Noriko estava machucada. Shuya sentou-se contra uma árvore, que tinha a largura aproximada de dez centímetros. Noriko sentou-se imediatamente à sua esquerda. Ela inclinou-se contra a árvore, sua perna direita machucada lentamente se esticou. Eles estavam completamente exaustos agora. Noriko lentamente fechou os olhos. Shuya discutiu seu curso de ação com Noriko, mas eles não conseguiram ir muito longe.

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Arcos Shinto são estruturas que representam entradas de templos shintoístas.

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Ele pensou primeiro em encontrar um barco para escapar da ilha. Mas ele imediatamente percebeu o quão inútil seria. Havia um barco de guarda no mar e além disso... Shuya lentamente tocou seu pescoço e a superfície fria “daquela coisa”. Ele já estava acostumado à sensação, mas parecia pesado, como se fosse seu destino inescapável, sufocando sua existência. Sim... aquele colar. Assim que um sinal especial é transmitido da escola, a bomba dentro do colar explode. De acordo com as regras isto aconteceria a qualquer um pego numa zona proibida, mas é claro que o mesmo poderia se aplicar a qualquer um tentando escapar pelo mar. De fato estes colares tornaram os barcos de guarda desnecessários. Mesmo se eles conseguissem pegar um barco, seria impossível escapar enquanto estes colares estivessem em seus pescoços. Por isso, a única maneira de sair era atacarem Sakamochi na escola e desabilitar as travas dos colares. Mas mesmo com isso, o setor G=7 onde estava localizada a escola era impossível de se aproximar. Além disso, suas localizações estavam sendo constantemente monitoradas. Ele continuou a pensar nisto enquanto a área era iluminada pela luz do sol. Ele imaginou que poderiam esperar de novo pelo cair da noite. Mas de novo havia outro problema, o limite de tempo. “Se ninguém morrer dentro de vinte e quatro horas.” A última vez que Shuya viu alguém morrer foi quando ele deixou a escola, que havia sido há três horas atrás. Se todos ficassem vivos, em pouco mais de vinte horas todos estariam mortos. Mesmo se eles fizessem uma tentativa de escapar, ao cair da noite já seria tarde demais para agirem juntos. Ironicamente, mais colegas de classe morrendo daria tempo para eles sobreviverem. Shuya tentou tirar isso da cabeça. Eles estavam presos. Shuya continuou desejando que eles pudessem se encontrar com Shinji Mimura. Com seu vasto conhecimento e a grande habilidade de aplicá-lo, um cara como Shinji poderia encontrar uma solução para sua situação... Ele também continuou lamentando não ter tomado o risco de esperar por Shinji depois do ataque de Yoshio Akamatsu. “Eu fiz mesmo a coisa certa? Será que eu seria atacado como inimigo ali? Talvez Yoshio Akamatsu fosse a única exceção.” Não... isso não era necessariamente verdade. Podia haver muito mais “inimigos”. Era impossível saber quem era seu inimigo, em primeiro lugar. Quem ainda era normal e quem já não era mais? “Mas... talvez nós sejamos os que já não são mais normais? Talvez estejamos loucos?” Ele sentiu que ficaria maluco. “No final nós não temos opção senão sentar aqui e ver o que irá acontecer. Mas nós conseguiremos encontrar uma solução? Se não funcionar, nós poderemos esperar até a noite por para procurar por Shinji Mimura... mas conseguiremos mesmo fazer isso? Mesmo esta ilha sendo pequena, com um diâmetro de seis quilômetros, encontrar alguém sob estas condições não seria fácil. Além disso, teremos tempo suficiente entre o escurecer e o ‘tempo limite’?”

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“Além disso... vamos assumir que por algum golpe de sorte (mas que expressão) nós terminemos junto com Shinji, ou se sobrar só nós dois, e que de alguma forma conseguirmos escapar, nós seríamos considerados fugitivos. A menos que imigremos para algum lugar, nós passaremos o resto de nossas vidas como fugitivos. E um dia nós vamos acabar sendo assassinados por um agente do governo em algum beco abandonado, deixando nossos cadáveres para os ratos gordos que aparecem e mordiscam nossos dedos.” No final seria melhor ficar maluco. Shuya pensou em Yoshitoki Kuninobu. Ele estava chocado pela morte de Yoshitoki, mas talvez Yoshitoki estivesse melhor por não ter que passar por essa insanidade. Esta situação que parecia absolutamente perdida. “Seria melhor nós cometermos suicídio. Noriko concordaria em nos matarmos?” Shuya olhou na direção dela e pela primeira vez observou de perto o perfil de Noriko sob a luz pacífica do amanhecer. Ela tinha sobrancelhas bem definidas, cílios suaves em seus olhos fechados, um belo nariz com a ponta fina e lábios cheios. Era uma garota muito bonita. Ele podia entender porque Yoshitoki era afim dela. Agora havia areia grudada no rosto dela e seu cabelo, que passava um pouco dos ombros, estava amassado. E, é claro, o colar. O colar prateado preso ao redor do pescoço dela como se ela fosse uma escrava de tempos passados. Esta droga de jogo estava tirando dela todas as qualidades atrativas. Shuya então subitamente sentiu uma onda incrível de ódio. E com isto ele voltou a si. “Nós não vamos perder. Nós vamos sobreviver. Não só isso, nós vamos contra atacar. E não vai ser só um contragolpe tosco. Eles que venham com um soco direto que nós vamos esperá-los com um bastão de baseball.” Noriko abriu os olhos. Seus olhos se encontraram e eles se encararam. Então calmamente Noriko disse: –Tem algo errado? –Nada... Bom, eu estava pensando. Shuya estava envergonhado, pois ele esteve observando Noriko e ela o pegou fazendo isso, então ele disse de uma vez: –Eu sei que parece esquisito, mas eu espero que não esteja pensando em cometer suicídio. Noriko olhou para baixo, sua expressão ambígua formava o que parecia ser um sorriso. Então ela disse: –Sem chance... apesar de que... –Apesar do quê? Noriko pensou por um momento. Então ela continuou: –Eu iria querer cometer suicídio se nós fôssemos os únicos que restassem. Então pelo menos você estaria...

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Surpreso, Shuya sacudiu a cabeça. Ele sacudiu com muita força. Ele disse a idéia por acaso e não esperava que ela respondesse dessa forma. –Não seja absurda. Nem mesmo pense nisso. Olha, você e eu, nós estaremos juntos até o fim. Não importa como. Certo? Noriko sorriu um pouco, ofereceu sua mão direita e tocou a mão esquerda de Shuya. –Obrigada.– ela disse. –Olha, nós vamos conseguir. Nem pense em morrer. Noriko sorriu um pouco novamente. Então ela disse: –Então você não desistiu, Shuya? Shuya gesticulou com força. –Claro que não. Noriko concordou e disse: –Eu sempre imaginei isso, que você sempre teve essa força positiva. –Força positiva? Noriko sorriu. –Eu não sei como dizer isto, mas você tem esta atitude positiva sobre a vida. Como agora, você está totalmente determinado a viver. E... – Ela ainda tinha um fraco sorriso no rosto quando olhou diretamente para o rosto dele.– É o que eu realmente gosto em você. Shuya sentiu um pouco de vergonha e respondeu: –É porque eu sou um idiota.– Então ele acrescentou: –Mesmo se pudéssemos escapar, você sabe, quero dizer que eu não me importaria com isso, pois eu não tenho pais. Mas, você... você não seria capaz de ver sua mãe ou seu pai... ou seu irmão.Você se sentiria bem com isso? Noriko sorriu um pouco de novo. –Eu posso lidar com isso... eu me decidi desde que... o jogo começou. – Ela pausou, então continuou.– E você? –Que você quer dizer? Noriko continuou: –Você não será capaz de vê-la de novo... Shuya hesitou. Era verdade, Noriko sabia um monte sobre Shuya. Como a própria Noriko disse:“Eu estive te observando por um bom tempo.” Ele estaria mentindo se dissesse que não importava. Ele esteve muito afim de Kazumi Shintani todo este tempo. O pensamento de não vê-la novamente era... Mas Shuya sacudiu a cabeça. –Não tem muita importância. Ele pensou em dizer “Eu só um amor unilateral mesmo.”, mas ele foi interrompido pela súbita explosão da voz de Sakamochi soando pelo ar. 31 estudantes restantes

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15 –Bom dia a todos. Era a voz de Sakamochi. Era impossível localizar os auto falantes, mas sua voz vinha alta e clara, tirando alguma distorção metálica. Os auto falantes estavam instalados não só na escola, mas também por toda a ilha. –Aqui é o seu instrutor Sakamochi. Agora são 6h. Como vocês estão? Antes que pudesse fazer uma careta, o queixo de Shuya caiu de surpresa pelo tom alegre de Sakamochi. – Bom, então eu vou anunciar os nomes dos seus amigos mortos. Primeiro, Yoshio Akamatsu. As bochechas de Shuya contraíram. Sim, era outra morte, mas o anúncio do nome de Yoshio Akamatsu também significava mais para Shuya. “Yoshio Akamatsu não estava morto naquele momento. Então... ele foi morto tentando matar mais alguém? Ou, não, ele permaneceu inconsciente, deitado ali... e então feito em pedaços por este lindo colar que nós estamos usando porque a escola agora era uma ‘zona proibida’?” Independente disso, o fato de que Shuya o deixara inconsciente não o fazia se sentir melhor. Esta linha de pensamento imediatamente se evaporou com o anúncio dos outros nomes dos mortos. –Agora, No. 9 Hiroshi Kuronaga, No. 10 Ryuhei Sasagawa, No. 17 Mitsuru Numai, No. 21 Kazuhiko Yamamoto. E então, vamos ver, as garotas, No. 3 Megumi Eto, No. 4 Sakura Ogawa, No. 5 Izumi Kanai, No. 14 Mayumi Tendo. Esta lista de nomes significava que suas chances de sobreviver foram levemente aumentadas, mas este pensamento nem mesmo ocorreu a Shuya. Ele sentia vertigens. Os rostos dos seus colegas de classe mortos passeavam em sua mente e então desapareciam. Eles foram todos mortos, o que significava que havia mais assassinos lá fora. Isto é certo, a menos que alguns deles tenham cometido suicídio. “Aquilo” estava continuando. O jogo estava inegavelmente em progresso. Uma longa procissão de funeral, uma multidão de pessoas vestindo preto. Um homem de terno negro com um rosto sombrio de quem sabia de tudo falava deles: “Oh, Shuya Nanahara e Noriko Nakagawa? Vocês dois, certo, vocês estão um pouco adiantados. Mas vocês acabaram de passar por seus túmulos bem aqui. Nós enterramos no número que vocês dois partilham, No. 15. Não se preocupem, nós estamos oferecendo um bônus especial.” –Bom começo, pessoal. Estou muito impressionado. Agora então, as zonas proibidas. Eu vou anunciar suas áreas e horas. Peguem seus mapas e marquem neles. Ainda chocado com o número de colegas de turma mortos e com raiva do tom de voz de Sakamochi, Shuya relutantemente tirou seu mapa apesar de tudo. – Primeiro, uma hora a partir de agora. Às sete, 7h no setor J=2. Saiam de J=2 às 7h. Entenderam?

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J=2 estava levemente ao oeste na ponta sul da ilha. –Depois, em três horas, F=1 as 9h. F=1 estava na costa oeste da ilha, mas era uma área remota no sul. –Depois, cinco horas mais tarde. H=8 às 11h. A maioria da área residencial da costa leste estava em H=8. –Isto é tudo por enquanto. Agora eu quero que vocês todos se esforcem ao máximo hoje... O local de Shuya e Noriko não estava nas zonas proibidas por Sakamochi. Sakamochi dissera que as zonas eram escolhidas aleatoriamente. De qualquer modo, eles tomaram a decisão correta evitando a área residencial. Mas sua localização poderia estar incluída no próximo anúncio. –Sakura e...– quando Noriko falou, Shuya virou-se para ela.– Os nomes de Sakura e Kazuhiko foram mencionados. –É...– Shuya murmurou do fundo de sua garganta.–Eu me pergunto se... eles se mataram. Noriko olhou para seus pés. – Eu não sei. Mas eles devem ter estado juntos, conhecendo aqueles dois, até o último momento. De alguma forma eles conseguiram se encontrar. Shuya havia visto Sakura passar uma mensagem para Kazuhiko. Apesar disso, ele e Noriko só estavam fazendo observações otimistas. Até onde sabiam, os dois podem ter sido mortos separadamente, em lugares distantes, por colegas de turma insanos. Afastando a imagem de Sakura deixando um bilhete para Kazuhiko quando suas mãos se tocaram, Shuya tirou sua lista de estudantes do bolso. Ela veio junto com o mapa no kit de sobrevivência. Ele se sentia mal, mas Shuya tinha que marcar a informação. Ele tirou a caneta e então quando estava prestes a marcar os nomes com X, decidiu por não fazer. Isso era tão... tão horrível. Em vez disso, ele riscou um pequeno V ao lado dos nomes. Ele também incluiu Yoshitoki Kuninobu e Fumiyo Fujiyoshi. Shuya sentiu-se como o homem de terno preto da visão que ele acabara de imaginar. “Vamos ver, você, e também você. Qual é o seu tamanho de caixão? É um número pequeno, mas nós podemos oferecer nosso popular modelo No. 8 a você por um preço especialmente reduzido.” Chega. De qualquer modo, três dos quatro membros da gangue de Kazuo Kiriyama estavam mortos. Hiroshi Kuronaga, Ryuhei Sasagawa e Mitsuru Numai. Os únicos que não foram mencionados eram Sho Tsukioka, cujo apelido era “Zuki” (ele era meio esquisito), e o próprio Kazuo Kiriyama. Ele lembrou do rosto presunçoso de Mitsuru Numai quando Kazuo deixou a sala. Shuya suspeitava que Kazuo organizasse sua gangue e tentasse escapar. Então o que estes resultados significavam? Talvez, mesmo que concordassem em se encontrar em algum lugar, eles tiveram suspeitas e se viraram uns contra os outros? Então Sho Tsukioka e Kazuo Kiriyama conseguiram escapar... isto significava que Sho Tsukioka e Kazuo Kiriyama ainda estavam juntos? Não, algo completamente diferente deve ter acontecido. Shuya não tinha idéia.

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Então ele lembrou do som fraco de armas disparando. Ele só ouviu uma única vez. Se aquilo tivesse sido tiro de uma arma de fogo, então qual dessas dez pessoas ela teria matado? Seus pensamentos foram interrompidos de súbito por um som de algo de arrastando. O rosto de Noriko contraiu. Shuya imediatamente pôs a caneta e a lista em seu bolso. Shuya ouviu de perto. O som continuava. De fato, aproximava-se deles. Ele sussurrou para Noriko: –Fique quieta. Shuya pegou seu kit de sobrevivência. Eles tinham que ser capazes de se mover a qualquer momento, por isso ele pôs tudo que precisava dentro da bolsa. Ele deixou algumas roupas em sua mochila esportiva, mas não tinha importância jogá-la fora. Noriko também fez suas mochilas da mesma maneira. Ele elevou os kits de sobrevivência até seu ombro esquerdo. Ofereceu a Noriko suas mãos para ajudá-la a se levantar. Então eles esperaram em uma posição agachada. Shuya puxou sua faca. Sua mão direita a segurava em empunhadura inversa. “Eu posso saber como segurar uma guitarra”, ele pensou, “mas eu não sei nada sobre como usar isto.”. O som de rastejar ficou cada vez maior. Estava provavelmente apenas a alguns metros de distância. Shuya estava sobrecarregado pela mesma tensão que sentiu ao sair da escola. Ele segurou o ombro de Noriko com sua mão esquerda e a puxou para trás. Ele se levantou e deu um passo para trás. Quanto antes melhor. Quanto antes possível! Eles se dirigiram através dos arbustos e saíram em uma trilha. Ela ia subindo a colina. Árvores se agitavam acima deles, galhos se misturavam e o céu estava azul. Ainda segurando Noriko, Shuya deu passos para trás por vários metros junto da trilha. O som de rastejar continuou nos arbustos dos quais eles saíram. O som aumentou e então... Os olhos de Shuya se arregalaram Um gato branco pulou dos arbustos e parou na trilha. Era malhado e seu pêlo estava amassado, mas de qualquer modo, é o que ele era... um gato. Shuya e Noriko se olharam. –É um gato.– ela disse dando um sorriso. Shuya também sorriu. Então o gato se virou para eles como se tivesse finalmente os notado. Ele olhou para eles por um tempo e então correu na direção deles. Shuya devolveu sua faca à bainha enquanto Noriko se agachou, cuidadosamente dobrou sua perna machucada e ofereceu suas mãos ao gato. O gato saltou para as mãos dela e se enroscou em seus pés. Noriko pôs as mãos sob os pés dianteiros do gato e o abraçou. – Pobre gatinho. Olha só como está magro. – Noriko disse fazendo um bico com os lábios como se fosse beijá-lo. O gato respondeu entusiasmadamente, ronronando, miau. –Deve ser um gato doméstico. É tão amigável. –Não sei.

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“O governo realocou todos os residentes da ilha por causa do jogo. (Por o Programa ser uma operação secreta até que terminasse, eles não deviam ter sido informados). Como Noriko disse, talvez este gato tivesse pertencido alguém aqui e foi abandonado assim que seu dono foi embora. Não há nenhuma casa na área, então ele se perdeu nas colinas?”, Shuya pensava enquanto ele despreocupadamente desviava o olhar de Noriko. Ele se virou... ...em choque. Lá estava alguém usando um uniforme escolar a dez metros de distância, parado na trilha como se seus pés estivessem grudados nela. Apesar de ter altura mediana, como Shuya, ele tinha uma constituição sólida de seu treinamento no time de handball. Sua pele estava bronzeada e ele cabelos curtos. Seu cabelo se erguia na frente. Era Tatsumichi Oki (Estudante Masculino No. 3). 31 estudantes restantes

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16 Noriko seguiu os olhos de Shuya e se virou. Seu rosto subitamente ficou tenso. É verdade... o que havia com Tatsumichi? Ele era um inimigo ou não? Tatsumichi Oki parou ali, olhando para eles. Shuya sentiu seu campo de visão estreitar pela tensão (assim como um carro em grande velocidade), mas do canto dos olhos ele podia ainda enxergar a machadinha na mão direita de Tatsumichi. Shuya reflexivamente ergueu a mão na direção da faca enfiada em seu cinto. Aquilo foi o estopim. A mão de Tatsumichi, aquela que segurava a machadinha, estremeceu, e então ele começou a correr na direção deles. Shuya empurrou Noriko, que ainda estava segurando o gato, nos arbustos. Tatsumichi já estava bem na frente dele. Shuya rapidamente ergueu seu kit de sobrevivência. A machadinha entrou nela, abrindo-a de maneira que seu conteúdo se esparramou no chão. Água espirrou para fora da mochila, da garrafa de água quebrada. A lâmina alcançou o braço de Shuya. Uma dor abrasadora correu por sua pele. Ele jogou o kit de sobrevivência destruído e pulou para trás para ganhar alguma distância. O rosto de Tatsumichi estava tão contorcido que o branco de seus olhos formava círculos em torno de suas pupilas. Shuya não podia acreditar nisso. Sim, eles estavam em uma situação horrível e Shuya por um momento também teve suspeitas, mas como ele podia...? Como podia Tatsumichi, aquele cara alegre, legal, fazer tal coisa? Tatsumichi rapidamente olhou para onde Noriko estava, nos arbustos. Seguindo seu olhar, Shuya também olhou para Noriko. O rosto e lábios de Noriko petrificaram com o olhar de Tatsumichi. O gato já havia ido a algum outro lugar. Subitamente Tatsumichi se virou para Shuya e girou sua machadinha lateralmente. Shuya foi de encontro com o golpe usando a faca que ele tirara do cinto. Infelizmente ainda estava dentro da bainha de couro, mas de qualquer maneira, houve um som de travamento. Ele conseguiu parar o golpe a quase cinco centímetros de sua bochecha. Shuya podia ver as ondas azuis na lâmina da machadinha provavelmente formadas quando ela foi forjada. Antes que Tatsumichi pudesse retornar o golpe, Shuya jogou sua faca e agarrou o braço direito de Tatsumichi, que estava segurando a machadinha. Mas Tatsumichi forçou um giro, que, apesar de ser lento, conseguiu atingir o lado direito da cabeça de Shuya. Alguns dos longos cabelos ondulados sobre sua orelha direita caíram e uma fina gota caiu do lóbulo de sua orelha. Não doeu muito. Um pensamento bobo e inapropriado ocorreu em sua mente: “bem, não é grande coisa, Shinji teve sua orelha furada, apesar de tudo.” Tatsumichi girou a machadinha de sua mão direita para a esquerda, mas antes que pudesse atacar de novo, Shuya arrastou sua perna esquerda sob os pés de Tatsumichi. As pernas de dele se inclinaram, estava quase caindo!

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Mas ele conseguiu continuar de pé balançando-se e então girando. Ele caiu em cima de Shuya, que recuou para os arbustos. O som de galhos quebrando os cercou. Shuya continuou a se mover para trás. Forçado pela incrível força de Tatsumichi, ele estava agora praticamente caindo pra trás. O rosto de Noriko estava sumindo de sua vista. Nesta situação irreal, outro pensamento absurdo cruzou sua mente. Ele se lembrou dos treinos da Pequena Liga. “Shuya Nanahara, o campeão de corrida de costas, isso aí!” Então seus pés ficaram estranhos. Ele subitamente se lembrou que havia uma descida íngreme em direção ao campo com o templo. “Estou caindo!” Ambos então caíram descendo a ladeira coberta de arbustos. O claro céu da manhã e a vegetação giravam em volta. Mas ele ainda conseguiu se segurar no pulso de Tatsumichi. Ele sentiu como se tivessem caído de uma grande altura, mas foi provavelmente em torno de dez metros. Seus corpos bateram com uma pancada estrondosa e eles ficaram parados. A área estava banhada com luz do sol. Eles caíram no campo. Shuya estava esmagado sob Tatsumichi. Ele tinha que se levantar antes que Tatsumichi pudesse. Mas foi quando Shuya sentiu algo estranho. Apesar de Tatsumichi ter vindo para cima dele com a força de um compressor de ar, a força em seus braços tinha sumido. Eles estavam frouxos. Com o rosto sob a parte inferior do peito de Tatsumichi, Shuya viu o porquê, quando olhou para cima. Logo acima dele, a machadinha estava alojada no rosto de Tatsumichi. Metade da lâmina estava saindo de seu rosto como a camada superior de um bolo de chocolate. A machadinha estava enterrada em sua testa, dividindo perfeitamente o olho esquerdo (um líquido viscoso saía junto com sangue), e uma luz azul pálida refletia-se da lâmina para dentro de sua boca. Tatsumichi ainda segurava a machadinha, mas Shuya era quem segurava seus punhos. Shuya sentiu uma sensação terrível correndo a velocidade da luz do rosto de Tatsumichi aos seus punhos. Como se traçando o curso desta sensação, sangue descia da lâmina, fluindo de Tatsumichi às mãos de Shuya que seguravam os pulsos de Tatsumichi. Shuya deixou escapar um gemido baixo, soltou as mãos e saiu debaixo do corpo de Tatsumichi. O corpo rolou, com rosto para cima, sua expressão terrível de morte invadia a luz da manhã. Bufando e soprando, Shuya sentiu uma compulsão de vomitar. O horror incomparável do rosto de Tatsumichi não era algo trivial, mas para Shuya era algo ainda mais importante para si mesmo. Ele havia matado alguém. Pior ainda, um colega de classe. Não adiantava tentar se convencer se que era um acidente. No final, ele havia feito tudo que pôde para desviar a lâmina e então dirigi-la na direção de Tatsumichi ao torcer seus pulsos para trás tanto quando possível. Ele sentiu uma náusea incrivelmente grande.

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Mas Shuya engoliu em seco e segurou a ânsia de vômito. Ele ergueu a cabeça e olhou para cima da ladeira que ele acabara de descer rolando. Ele não pôde ver além dos arbustos cobrindo a ladeira. Ele havia deixado Noriko sozinha. Está certo, o mais importante era proteger Noriko. Ele não tinha tempo de vomitar. Ele tinha que voltar para Noriko, Shuya dizia a si mesmo enquanto estes pensamentos o acalmavam. Ele se levantou e olhou para o rosto de Tatsumichi e a machadinha por um momento. Ele hesitou, mas então cerrou os lábios e tirou os dedos de Tatsumichi do cabo da machadinha que dividia seu rosto. Ele não podia deixar Tatsumichi daquele jeito. É claro que ele não podia enterrá-lo, mas o rosto de Tatsumichi com a machadinha já era demais. Ele não podia suportar. Ele segurou o cabo e tentou puxar a machadinha do rosto de Tatsumichi. O rosto estava preso a ela como se ele fosse sair junto com a machadinha. A machadinha estava enterrada tão fundo que ficara presa. Shuya tomou um fôlego profundo. “Oh Deus.” Então ele pensou sobre isto. “Não. Que negócio de Deus é esse? Srta. Anno era uma cristã devota, mas mesmo assim ela terminou estuprada pelo Sakamochi. Ah, claro, louvai o Senhor...“ Shuya sentiu outra onda de raiva. Ele cerrou os dentes e se ajoelhou ao lado da cabeça de Tatsumichi e pôs sua mão esquerda que estava tremendo na testa de seu colega de classe. Com sua mão direita ele puxou a machadinha, que fez um som horrível de esguicho quando sangue espirrou do rosto de Tatsumichi e a machadinha se soltou. Shuya se sentia como se estivesse num pesadelo. Quebrada ao meio, a cabeça de Tatsumichi estava agora assimétrica. Parecia irreal demais. Parecia até uma falsificação de plástico. Shuya percebeu pela primeira vez na vida o quão maleável e frágil é o corpo humano. Ele desistiu de fechar os olhos de Tatsumichi. Seu olho e pálpebra esquerdos estavam cortados. A pálpebra estava tão inchada e encolhida que mal podia ser fechada. Seu olho direito provavelmente estava normal, mas quem iria querer um cadáver que pisca? Era de muito mau gosto, dadas as circunstâncias. Ele se sentiu mal de novo. Mas então se ergueu e se virou. Para retornar até Noriko ele teria que pegar o caminho mais longo através da trilha. Os olhos de Shuya se arregalaram novamente pois... ... ali estava um garoto vestindo um casaco escolar no meio do campo, o representante masculino da classe, Kyoichi Motobuchi. E este representante estava segurando uma pistola. 30 estudantes restantes

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