Claude Traunecker - Os deuses do Egito

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CLAUDE TRAUNECKER

Essa coerência reside no documento, única realidade antiga que ainda nos é acessível. Nessa religião sem dogma e sem livro canónico, a existência dos deuses é estilhaçada, fragmentada em tantas parcelas vivas quanto os documentos disponíveis. Estes, fixados no tempo e obra de uma pessoa ou de uma comunidade, retiram o mundo divino do lugar e do instante conforme sua conveniência e num alvo preciso. Era preciso, portanto, fazer algo: os deuses tinham necessidade dos homens, e a segurança destes dependia inteiramente da benevolência daqueles. Tal ação é o ritual: palavras e gestos eficazes, mas fugidios. Na busca dessa eficácia, o teólogo local manipulava deuses e mitos, combinava os nomes, funções e aparências de seres imaginários, conjugava as tradições ancestrais de sua cidade com os últimos achados dos colegas ritualistas da cidade vizinha, glosava um velho papiro descoberto na biblioteca do templo, à luz das ideias da época e do fim a atingir. Na edição precedente deste volume,1 o saudoso F. Daumas logrou êxito ao apresentar o conjunto do mundo dos deuses da terra do Egito adotando um esquema geográfico. Mais modestamente, gostaria de fornecer ao leitor alguns instrumentos conceituais extraídos da 'caixa de ferramentas' do velho teólogo, a fim de lhe facilitar o acesso ao imaginário dos antigos egípcios. Para comodidade do leitor, ordenamos os fatos, exemplos e regras segundo um plano que pode dar a impressão de uma sociedade divina homogénea e fora do tempo. A ilusão é perigosa, mas tal perigo é o preço a pagar se se quer penetrar nesse mundo desconcertante e orientar-se no labirinto divino do antigo Egito. Com o mesmo título e integrando a mesma coleção francesa, 1965. [N. do T.]


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