MAGAZINE SYNAPSIS INVERNO 2022

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sYnapsis! Inverno


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Índice

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3 FICHA TÉCNICA 4 EDITORIAL João coelho

COMIDA PAPAROCA

6 A 8 Comemos para viver ou a vida é uma grande farra? Elisabete Caramelo 9 Comer com os olhos António Manuel dos Santos 10 A 18 Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro 19 E 20 COLOCA MAIS UMA CADEIRA À MESA João Coelho 21 A 24 POESIA E COMIDA Isabel Melo

RECEITUÁRIO

25 E 26 A História de um Melão José Alex Gandum 27 Receita de Açorda à Alentejana José Alex Gandum

28 CARTOON ALBERTO PEREIRA 29 A 35 PORTEFÓLIO ALEXANDRE MURTINHEIRA / TEXTO SALVADOR PERES 36 A 38 AO SERÃO SALVADOR PERES 39 A FECHAR ELECTRA 40 ÚLTIMA PÁGINA


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Ficha Técnica

Edição n.º 21 - Inverno 2021 Propriedade: sYnapsis! Coordenação Editorial:

Salvador Peres e João Coelho Equipa Editorial: Alberto Pereira, Eduardo Carqueijeiro, Elisabete Caramelo, Isabel Melo e José Alex Gandum

Design Gráfico: Alberto Pereira Composição Gráfica: Salvador Peres

Colaboram nesta Edição: Alberto Pereira, Alexandre Murtinheira, António Manuel dos Santos, Eduardo Carqueijeiro, Elisabete Caramelo, Isabel Melo, José Alex Gandum, João Coelho e Salvador Peres

Imagens de: Alberto Pereira, Alexandre Murtinheira, António Manuel dos Santos, Eduardo Carqueijeiro, Elisabete Caramelo, Isabel Melo, João Coelho, José Alex Gandum e Salvador Peres

Email: synapsis11@gmail.com Facebook: synapsis setúbal

Blogue: synapsis-synapsis.blogspot.com

Imagem de capa: pintura de Jacob Jordaen

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Editorial

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Apesar da temperatura amena que se tem feito sentir neste inverno, o clima actual no mundo é muito frio e desconfortável, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, precipitando uma guerra na Europa, com desfecho e

consequências globais, seguramente gravosas, e que ainda não conseguimos antever completamente. Não nos é lícito alhear desta situação, mas também devemos, até porque estamos finalmente a conseguir algum alívio no estrangulamento causado pela pandemia, fazer um esforço para retomar as nossas actividades, projectos e sonhos, na busca, neste mundo insano, da normalidade possível, que não seja panglossiana. O Sy-

napsis tinha este magazine já em fase final, e para este número tínhamos escolhido como tema principal “A Comida”. Na ficção científica somos muitas vezes confrontados com um cenário em que a alimentação futura é feita, de forma instantânea, apenas ingerindo uma pílula. Não existindo o sentido do cheiro, do gosto e do olhar, nem a convivialidade à mesa que nos é, a nós portugueses, tão grata. O passado não foi assim, e hoje continuamos ainda muito longe desses tempos adivinhados. A comida, para além da sua função básica de sobrevivência, continua a ser parte significativa da nossa memória, da nossa identidade e peça fundamental do nosso equilíbrio e bem-estar. Alimenta generosamente os nossos sentidos, e inspira, sendo a culinária uma arte, também as outras artes, sobretudo a poesia e a pintura. Diferentes, mas estimulantes abordagens sobre A Comida, seguramente parciais num tema tão vasto, é então o que servimos no menu principal deste número do magazine Synapsis (número 21 – Inverno 2021).

Bom proveito!

João coelho

Van Gogh - Natureza morta


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COMIDA

PAPAROCA Comemos para viver ou a vida é uma grande farra? Elisabete Caramelo Comer com os olhos António Manuel dos Santos Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro

COLOCA MAIS UMA CADEIRA À MESA João Coelho POESIA E COMIDA Isabel Melo

RECEITUÁRIO A História de um Melão José Alex Gandum Receita de Açorda à Alentejana José Alex Gandum

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Comemos para viver ou a vida é uma grande farra? CONSIDERAÇÕES ERRÁTICAS SOBRE O GRANDE PRAZER DE COMER Elisabete Caramelo Em 1988, um singelo filme dinamarquês, assinado por Gabriel Axel, venceu o óscar para o melhor filme estrangeiro que vimos por cá, a partir de 1989, com o título A Festa de Babette, fazendo jus ao original Babette’s Feast. Baseado num conto da escritora dinamarquesa Karen Blixen (a mesma de África Minha), o filme mostra-nos como a comida pode ser importante para a união dos espíritos e a criatividade das almas.

Numa modesta vila situada no litoral norueguês, em pleno século XIX, vivem duas irmãs que seguem a pisada de seus pais e os costumes locais, sem nunca se interrogarem ou pretenderem fazer as coisas de forma diferente. A chegada de uma francesa, de quem nada se sabe, parece não causar grande sobressalto até ao dia em que ela ganha algum dinheiro na lotaria. Para apaziguar vozes discordantes e maledicências várias, nascidas de tanta religiosidade e controlo das vidas uns dos outros, Babette oferece um banquete. Então, a vila vai ver o que nunca viu e experimentar iguarias com que nunca sonhou. E o espectador fica a saber que Babette é afinal uma chef francesa de primeira água, que um dia decidiu abandonar tudo. Apesar do choque da experiência, o banquete demonstra a esta pequena comunidade que há mais vida além das obrigações e do corpo mortificado. Ou melhor, que o alimento da alma pode ser a religião, mas que o corpo existe e tem necessidade de prazer.

A história é simples, mas o que fica nas entrelinhas é o que conta para este texto que começa por uma enorme interrogação. Como e para que comemos? Em primeiro lugar - apesar de alguns místicos se terem alimentado de sol e água durante anos e da dieta da moda se chamar jejum intermitente -, comemos porque o corpo precisa de nutrientes para resistir e sobreviver. Mas, e depois? O que sobra após o cumprimento desta tarefa de nos alimentarmos obrigatoriamente? Ainda no filme, as irmãs Martine e Filippa também cozinhavam diariamente o seu peixe sensaborão e as sopas, sempre iguais ao longo dos séculos, para não acordar o pecado do prazer. Ao mesmo tempo, desistiam das suas paixões humanas e convicções em nome da obediência religiosa e do afastamento das tentações. Tal como diria Oscar Wilde, podemos resistir a tudo, menos à tentação. Se o corpo necessita de alimento porque não responder a essa necessidade com a consciência de que o ato pode ser pleno de prazer e de descoberta, dos sabores às texturas e até à experiência de novas geografias?


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Comemos para viver ou a vida é uma grande farra? CONSIDERAÇÕES ERRÁTICAS SOBRE O GRANDE PRAZER DE COMER Elisabete Caramelo Conheço muitas pessoas que me dizem “como apenas por necessidade”, o que me leva sempre a dizer para os meus botões “nunca conheceram a Babette”. E, imaginando sempre que a Babette entrará, um dia, nas suas casas, desejo ardentemente que descubram um dos grandes prazeres de estar vivo e as vantagens de usarem pelo menos um dos nossos cinco sentidos, tantas vezes embotados.

A famiglia à mesa Mas a comida não é apenas gosto e olfato. Continuando a socorrer-me do cinema (grande alimento da minha formação), vejo que ao lado da galeria destes personagens austeros de Blixen/Axel, começa a despontar Don Corleone, o todo-poderoso personagem de O Padrinho. Representante máximo da sagrada famiglia mafiosa, reunia à mesa os seus correligionários e unia-os pela celebração da comida. Ele sabia, como bom italo-americano - numa época em que Nova Iorque ainda tinha Little Italy -, que só à mesa se fazem bons negócios e se resolvem as piores contendas. Tenho para mim, que se Putin tivesse arranjado umas vitualhas para aquela mesa descomunal em que reuniu com Macron, o mundo estaria hoje mais sossegado. A reunião à mesa é muito típica dos países do Sul, como Portugal. Se Itália ainda preserva intensamente esta tradição, podemos dizer que a democratização do uso dos meios como a televisão e o telemóvel veio criar algumas dificuldades à comunicação nas famílias. Como comunicar no meio de refeições instagramáveis e de likes consecuti-

vos em competição? Como conversar no meio do Jornal da Noite ou do Big Brother? Tudo fica com muito menos sabor quando não há regras em prol da verdadeira atração que é a reunião à mesa. Este lado convivial, e até ritual, da comida, é algo irrepetível relativamente a outros momentos da nossa existência. É algo que aprendemos em família e vamos repetindo ad eternum pela nossa vida fora. Terminados estes rituais, onde vamos encontrar tempo e espaço para trocarmos ideias sobre os assuntos que nos unem ou que nos desunem? É na mesa que colocamos as nossas ideias e que esgrimimos argumentos e mostramos emoções, sempre em conjunto. Desenganem-se os que pensam que a partilha começou com uma rede chamada Facebook!


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Comemos para viver ou a vida é uma grande farra? CONSIDERAÇÕES ERRÁTICAS SOBRE O GRANDE PRAZER DE COMER Elisabete Caramelo

La grande bouffe Um dia perguntaram a um lorde inglês como gostaria de morrer e ele respondeu “afogado em vinho da Madeira”. Se nos fosse dado escolher, o que diríamos? Mastroianni, Tognazzi, Piccoli e Noiret não tiveram dúvidas no filme La grande bouffe (A grande farra, em português); os quatro decidem acabar a vida a comer, desmesuradamente e sofregamente, até ao último suspiro. O filme de Marco Ferreri, datado de 1973, serve de inspiração para a magna questão: comemos para sobreviver ou vivemos para comer? Se Babette nos impulsiona a retirar todo o prazer e vantagens da comida, o que fazem estes quatro durões a comer até à morte? Eles são o produto da abundância e da proliferação do consumo do século XX. E eis que esta sociedade de consumo, voraz e impiedosa, nos mostra a face mais sombria da comida: primeiro foi o fast food, depois o low fat e agora o bio organic. Há de tudo, como se falássemos da moda que vamos vestindo nas mudanças de época. E parece que o controlo da pequena vila dinamarquesa continua sobre as nossas cabeças. Quando chegará a Babette, livre de obrigações e com mão de cozinheira? Por tudo isto, não posso deixar de dizer que, para mim, a comida faz parte de um caminho de autodescoberta, em busca de um tempo de memórias plenas de cheiros e de sabores, de tempos já perdidos que vão da infância à idade adulta, revividos em lembranças de convívios familiares ou amicais, mas também da busca da novidade. A comida propicia o encontro e o desencontro, a frustração e a beleza da experiência única. Comer é um prazer essencial, sinónimo de bem-estar pessoal e um exercício de escolha individual. E tal como dizia Fernando Pessoa: “A fome só se satisfaz com a comida e a fome da imortalidade da alma com a própria imortalidade. Ambas são verdadeiros instintos”.


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Comer com os olhos António Manuel dos Santos

(Tivera eu sido projetado Deus e usurparia cada recanto da paisagem)

Comer com os olhos Ah! Se te conhecesse, se ao menos soubesse onde estás – escondida ou não – neste horizonte imenso (sejas ervas ou flor, árvore ou mulher ou pedra parideira), poderia ter-me apaixonado por ti e então comerte sem ser só com os olhos da imaginação, esses olhos que são, nos botequins, despertos quando a garrafa de vinho ameaça esgotar-se. Há tantas formas de mitigar a fome, ainda que se cegue… Hei de um dia, enfim, conseguir que a História permita que me baste com os Olhos-da-Memória! Salivo, num espasmo em que me devolvo só, anónimo, quase omisso. (Surges-me em pesadelos; gosto disso) António Manuel dos Santos


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro

Torna-se difícil abordar este tema, desde logo pelas centenas de boas referências e de excelentes pinturas, que ao longo dos séculos foram produzidas sobre o tema da comida, ou do comer. Mas, ainda recordado pela visão das avassaladoras alegorias que o flamengo Jacop Jordaen pintou, não tive dúvidas que, se alguém tem que figurar nesta apresentação, Jordaen é fundamental. Comecemos, então, com Jordaens (Antuérpia, 1593 – 1678), pintor barroco. O principal pintor flamengo após a morte de Rubens e Van Dyck. Da sua autoria pinturas (grandes) sobre o prazer da comida, algumas exploradas sob a forma de alegorias, ou recriação de temas clássicos específicos, como o conto de Esopo, O Sátiro e o Camponês, a cornucópia e a fertilidade, bacanais…


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro

Mas recuemos… A comida sempre desempenhou um papel na arte. Na arte rupestre já se usavam líquidos e óleos vegetais e gorduras animais como ingredientes de ligação nas pinturas, e os egípcios esculpiam pictogramas de colheitas e pão nas suas mensagens hieroglíficas. No Renascimento, Giuseppe Arcimboldo, pintor da corte dos Habsburgos em Viena e, mais tarde, da corte real de Praga, pintou retratos “quebra-cabeças” extravagantes, nos quais as características faciais eram compostas por frutas, peixes, vegetais e flores.


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro De facto, quando exploramos a matéria da comida na arte, as belas e minuciosas naturezas-mortas da idade de ouro flamenga sobressaem. Cada superfície, desde as penas luminosas dos faisões, as bandejas de prata brilhante, a pele orvalhada de frutas e bagas, o marisco com as suas cores, texturas e brilhos, tudo é cuidadosamente apresentado, para criar a ilusão de que o banquete se perspetiva bem na nossa frente e que, nós observadores, iremos fazer parte dele. Os alimentos retratados tinham significados simbólicos muitas vezes relacionado com textos bíblicos, e a forma como os objetos eram dispostos, e quais haviam sido consumidos, transmitia uma mensagem não sobre a abundância, o pecado da gula, mas sobre a natureza fugaz do tempo ou a necessidade de recolhimento.


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro

Muitos e bons exemplos poderíamos referir neste contexto, mas antes de passar muito rapidamente ao seculo XX e aos nossos tempos, a representação na pintura da comida ou da arte de comer estaria sempre incompleta se não se referisse Caravaggio (1571-1610). Famoso pela teatralidade, pela construção das suas pinturas, muito baseadas na profundidade dada pelo claro-escuro, pela luz cénica, pelos tons de terra e acentos de vermelho, as suas pinturas ficaram para a posterioridade, não em número, mas em seguidores e admiradores.


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro O exemplo de A Ceia em Emaús, retrata em tudo, o que é dito: a teatralidade dos gestos exagerados e demonstrativos da enorme surpresa dos discípulos no instante em que reconhecem Cristo, jovem e sem barba, que abençoa o pão. Os braços abertos do peregrino à direita, o cotovelo com a manga rota, o admirável cesto de frutas em desequilíbrio à beira da mesa, a garrafa que filtra a luz, o frango assado… Todos os elementos sobressaem do quadro, convidando o observador a participar. Caravaggio mergulha a cena numa sombria sala de uma hospedaria, sem a decoração que o tema sagrado exigiria, mas com revolucionária adesão à realidade e às vivências da época. Mas avancemos, referindo a importância que o ato de comer e a comida teve no período e para os pintores impressionistas e seus continuadores. Deixo um exemplo, o famosíssimo Le Déjeuner sur l'herbe (1863) de Manet. Aqui, o pequeno-almoço é peça secundária, mas fundamental. Rejeitada pelo júri do Salão de 1863, Manet exibiu a pintura sob o título O Banho no Salão dos Recusados, iniciado nesse mesmo ano por Napoleão III, onde se tornou a principal atração, gerando tanto riso e escândalo, inclusive da imperatriz, tendo sido mesmo considerada pelo imperador como um atentado ao pudor. Não pelo nu da mulher, mas pelo facto inusitado de estar nua no bosque, em conversa com dois homens bem e inteiramente vestidos. Édouard Manet deixou nas suas memórias a confissão de que esta obra Le déjeuner sur l'herbe deve tudo, ou quase tudo, a uma sua curta estadia no Palácio das Necessidades, em Lisboa, em 1859, por motivos que o pintor deixa por esclarecer, em cujos jardins da Tapada das Necessidades se davam famosos piqueniques…


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro

Referencia, ainda, a um dos meus pintores favoritos desta época: Pierre Bonnard. Nascido em 1867, Bonnard foi, com Henri Matisse, um dos maiores coloristas do início do século XX. Bonnard, pintor tardio, juntava uma observação simplificada ao trabalho posterior de memória, capturando imaginativamente o espírito de um momento e expressando-o através de seu manuseio único de cores e senso de composição inovador. Os dois exemplos que vos trago, retratam bem esta simplificação, mas, ao mesmo tempo, um trabalho minucioso de memória, de recriação de atmosferas e sentimentos.


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro Abro agora um parenteses para referir os naturalistas portugueses, com destaque para a fulgente pintura Os bêbados ou festejando o São Martinho (1907), uma obra do pintor José Malhoa que mostra os festejos desse dia numa taberna de Figueiró dos Vinhos, vila onde se estabeleceu em 1883.

Na pintura, num ambiente de taberna, vêm-se seis homens em volta de uma mesa, com sobras caóticas de sardinhas, couves e castanhas, “celebrando” o São Martinho com muito vinho. Pelo estado sonolento, pelas cores das faces e pela desarrumação festiva, mas sombria, a celebração já vai longa. Malhoa retratou o mundo rural e urbano da Monarquia e da Primeira República Portuguesa, mas conseguiu não expressar nas suas obras convicções ideológicas ou políticas. Ao escolher como motivos os temas rurais e as festas populares religiosas ou pagãs, Malhoa conseguiu que “o português” se identificasse, admirasse e comentasse as suas obras, tornando-se um pintor conhecido e verdadeiramente popular.


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro

Quase a terminar esta brevíssima resenha sobre comer e comida, há que falar de Andy Warhol e da sua Campbell's Soup Cans (1962). Esta obra marcou o início da Pop Art. A combinação do processo semi-mecanizado, a ausência aparente do traço do pincel e o tema marcadamente publicitário, causaram um choque inicial, pois a sua natureza comercial, publicitária e mundana ia contra a técnica e a filosofia do expressionismo abstrato dominante na época.

Consiste em 32 quadros, com a pintura de cada uma das variedades da sopa enlatada Campbell que a companhia vendia na época. As pinturas individuais foram realizadas com um processo de serigrafia e acrílico. Warhol imitou a repetição e a uniformidade da publicidade, reproduzindo cuidadosamente a mesma imagem em cada tela individual. Variou apenas o rótulo na frente de cada lata, distinguindo-os pela sua variedade. Warhol apropriava-se de imagens conhecidas da cultura do consumidor. Nesta obra retratou uma sopa enlatada amplamente consumida, afinal, também aqui, um exemplo da sociedade onde estava inserido. Quando expôs as “Latas de Sopa Campbell”, em 1962, as 32 telas foram expostas juntas em prateleiras, como produtos num corredor de supermercado.


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Comer é uma arte Eduardo Carqueijeiro Termino com uma instalação do artista britânico-nigeriano Yinka Shonibare e a instalação de 2013 Last Supper (After Leonardo). O trabalho de Shonibare explora questões associadas ao colonialismo, raças e classes, através de uma variedade de medias que incluem pintura, escultura, fotografia, arte de instalação e, mais recentemente, filme e performance. As suas obras focam-se na matéria da construção da identidade e o complicado relacionamento entre África e a Europa, através das perspetivas histórias, económicas e políticas.

No caso da presente instalação, os manequins encontram-se decapitados e recorda-se as naturezas mortas flamengas, as casacas europeias, as vibrantes cores dos tecidos africanos, tudo numa colagem de influências e miscelânea cultural, tão comum afinal nos nossos dias. --Vimos nesta apresentação, necessariamente curta, um conjunto de exemplos de obras de séculos diferentes, cuja função, para além da sua natureza realista ou figurativa, e estando carregadas de simbolismo, foi retratar, à sua maneira, as suas diferentes épocas, bem como os conceitos estéticos e mentais subjacentes às mesmas. Um deles, sem dúvida, é chocar e/ou fazer o observador refletir. Afinal, muito mais que apenas passivamente observar… Bom proveito!


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COLOCA MAIS UMA CADEIRA À MESA João Coelho

A comida diz de nós, muitas vezes mais do que queremos e até sequer do que nos apercebemos. Na escolha do restaurante, nos pratos que preferimos, e também nas bebidas com que acompanhamos. Até na maneira como nos sentamos,

ou como olhamos para os diferentes utensílios à mesa num jantar mais sofisticado. O que comemos e os nossos comportamentos e gestos à mesa, provavelmente sempre foram, de forma consciente ou não, “entendidos” como pistas para a nossa personalidade e identidade social. Jean Anthelme Brillat-Savarin (17551826), que além de ter sido advogado e político foi um dos mais eminentes epicuristas e gastrónomos franceses, escreveu numa das suas obras mais famosas (“Physiologie du goût, ou méditations de gastronomie transcendante” publicada em 1825) uma das frases, ainda hoje mais conhecidas e citadas, neste entendimento “Diz-me o que comes, dir-te-ei o que és”. Obviamente que a situação económica e os costumes, sempre condicionaram, e condicionam, as opções e as escolhas alimentares, e também o tempo e formalismo que é dedicado à refeição, o local, mais ou menos humilde ou faustoso, onde a mesma é desfrutada. Hoje, no entanto, pela força do critério científico de saudável e porque os ideais de beleza também mudaram significativamente, sendo até a obesidade, no mundo ocidental, encarada como um dos maiores problemas de saúde pública, apesar de haver maior abundância e possibilidade de acesso aos produtos, privilegia-se uma dieta menos rica, com menor utilização de carne e mais consumo de peixe e vegetais. Também os ritmos actuais, frenéticos e devoradores de tempo, e o afrouxamento dos laços sociais e familiares, tem retirado força à convivialidade tradicional à volta da mesa, de refeições mais longas e cozinha mais elaborada.


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COLOCA MAIS UMA CADEIRA À MESA João Coelho

A comida é seguramente uma forma de partida, saborosa, para se conhecer e entender melhor os “outros”, com as suas diferentes culturas e religiões. Este entendimento dos seus hábitos e costumes, da sua história, surge através dos produtos que utilizam, ou proíbem, no modo como os preparam ou até, pelo formalismo que colocam na partilha da refeição e utensílios de que se servem, essencialmente nas épocas festivas. O sucesso que as diferentes “cozinhas do mundo” desfrutam e a sua ampla disseminação, deve-se assim muito a esta curiosidade pelos outros, sua história e cultura, e simultaneamente também, à facilidade, por esta via, em satisfazer essa curiosidade.

A importância cultural da comida reflecte-se claramente na classificação atribuída à dieta mediterrânica. Em 2010 a “dieta mediterrânica” foi considerada, pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), Património Cultural Imaterial da Humanidade, para Espanha, Itália, Grécia e Marrocos, tendo em 2013 passado a incluir também Portugal, Chipre e a Croácia. Considera-se que estes países, localizados na bacia do mar Mediterrâneo, partilham, além da afinidade geográfica, uma identidade cultural comum, promotora de um estilo de vida saudável, incluindo-se nesta apreciação, não só os alimentos, produtos típicos, receitas e formas de cozinhar, mas também os costumes, símbolos e tradições. De notar que a convivialidade à mesa (familiar ou de grupo) é tida como um dos elementos mais distintivos e benéficos da dieta mediterrânica porque promove o diálogo e a aproximação das diferentes gerações e grupos. Das nossas boas memórias quantas, memórias familiares ou outras, se passaram em conversas à volta da mesa, no restaurante ou em casa? E quantas novas construímos rememorando à volta da mesa? Por isso, sintamos orgulho da nossa dieta mediterrânica, dos nossos costumes e identidade, e lutemos pelos bons hábitos portugueses de convivialidade à mesa!

Coloca mais uma cadeira à mesa!


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POESIA E COMIDA INSPIRAÇÕES QUE SE ALIMENTAM Isabel Melo A Comida e Poesia estão numa relação de alma para o corpo. E é nesta relação improvável que muitos se inspiram para dar o alimento à vida, nesta simbiose perfeita de corpo e alma. Comida, alimentação, culinária e gastronomia, aliados à poesia, têm percorrido os tempos, não só pela sobrevivência, como pela própria essência espiritual de ser humano. O mesmo despertar dos sentidos encontramo-lo nos alimentos, tal como o encontramos num poema. Rão Kyao dizia num seu concerto que tocava para os pássaros e eu arriscava a loucura de dizer que também lhes poderia dar felicidade ao ler-lhes um poema. Tanto a comida, como a poesia despertam prazeres e saciam necessidades. Tem razão Agostinho da Silva,

sende serviu para alertar para a mudança de hábitos culinários portugueses com a importação de produtos do Oriente, tal como se lia nas trovas. E Sá de Miranda conta o perigo da canela como uma ânsia desmedida “Temo-me de Lisboa/Que, ao cheiro desta canela, /O Reino nos despovoa”.

A quem faz pão ou poema Só se muda o jeito à mão E não o tema.

Os gregos e romanos invocaram, na sua poesia e prosa, a abundância dos alimentos e o prazer dos vinhos, e nestes, estão as metáforas que nos legaram através dos deuses da agricultura, da caça, do vinho e da colheita. Desde os princípios da nossa era, e agraciados na Bíblia, são recorrentes e fundamentais as referências à comida, desde logo a cena bíblica da Última Ceia, donde partem os exegetas para a interpretação da Palavra. Também nos primórdios da escrita da língua portuguesa, o tema da comida em versos, aparece nas cantigas de escárnio e maldizer e perpassa as crónicas de Fernão Lopes e autos de Gil Vicente. No tempo das navegações era frequentemente narrado nos escritos, a importância do comércio das especiarias, fundamentais para a riqueza do império português. O Cancioneiro Geral de Garcia de Re-

Em Luís de Camões é essencial recordar que frequentava o “Mal cozinhado” e os conhecidos Cantos IX e X d´os “Lusíadas”, em que narra o banquete oferecido por Vénus a seus protegidos portugueses, como prémio “bem merecidos dos trabalhos tão longos e dos feitos imortais e soberanos” aos “Varões que esforço e arte/divinos os fizeram”, são servidos “altos manjares excelentes, iguarias suaves e divinas em pratos de fulvo ouro”. Uma das curiosidades que nos pode assolar é precisamente tentar saber o que comeriam os povos, principalmente nos tempos mais remotos, e isso podemos sabê-lo, muitas vezes, pela literatura e pelos poetas. Nesse âmbito, existe uma iniciativa da Casa da Escrita em Coimbra, cujo objectivo é um jantar à volta de um poeta “Sabores da Escrita”, sendo que já se sentaram à mesa com Luís de Camões, tentando retratar um jantar que poderia comer, enquanto escrevesse os Lusíadas. Dizia Maria Helena Coelho desse projecto, que o poeta “haveria de ter comido muita comida oriental” e assim, à mesa de jantar, esteve escabeche de peixe, caldo de peixe e desfiado de borrego, só não podia estar a batata, porque “aclimatou-se” em Portugal pelo século XIX. Do mesmo modo, no âmbito das Comemorações Bocagianas 2021 em Setúbal, se promoveram “Os sabores contemporâneos de Bocage”, numa parceria da Câmara Municipal e da Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal.


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POESIA E COMIDA INSPIRAÇÕES QUE SE ALIMENTAM Isabel Melo A ementa constou de um caldo bocagiano, papas de milho com carapau frito, empadas de iscas e ervilhas com ovos e toucinho. Na sobremesa serviu-se arroz doce com leite de ovelha e água de laranjeira. A finalidade de ambas as iniciativas, é exatamente divulgar duas formas de expressão cultural: literatura e gastronomia. Mas nas várias épocas, a descrição de comida na poesia, tem-nos ajudado a retratar esse período, em termos culturais e costumes gastronómicos. No período barroco estão espelhadas algumas características da época na própria comida e foi o caso de Jerónimo Baía em “Menino Deus em metáfora de doce”, em que mostra os requintes culinários da doçaria tradicional: “Quem quer fruta doce?/Mostre lá! /É doce coberto; /É manjar divino. Que é manjar dos Anjos, dizem/Talentos mui fidedignos/Por ser pão-de-ló, que aos Anjos/Foi em figura oferecido”. Os árcades setecentistas, perseguindo o ideal clássico do despojamento, enaltecem a frugalidade pastoril, a exemplo de Cláudio Manuel da Costa, nos versos “O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado, /…a fresca coalhada, os moles queijos, /Nem faltarão medronhos e castanha”. Correia Garção fala no “louco dia no bule fumegante” e Filinto Elísio cria uma écloga “A invenção do açúcar”, sobre a lenda do surgimento da cana-de-açúcar num cenário metafórico grecolatino. No Romantismo, Almeida Garrett em “Os cinco sentidos” louva a amada e diz “E eu tenho fome e sede… sequiosos, /Famintos meus desejos/Então…mas é de beijos”.

Também a comida na sua ausência ou com escassez de qualidade tem sido retratada, desde tempos imemoriais, para exprimir a falta de dignidade e humanismo de quem tem fome, muitas vezes contraposta com o exagero e des-

perdício de comida. Estes alertas sociais sempre preocuparam poetas. Desde logo, Luís Vaz de Camões que faz alusão à carência e fomes e “até mesmo de compreensão e sede de conhecimento”. O poeta Manuel Maria du Bocage animava o Botequim Nicola e outros e frequentava casas nobres, para em troca de seus sonetos, confortar, ora o estômago com um simples jantar, ora o palato com um manjar mais distinto e requintado. Cesário Verde ocupa-se tanto de comida, como da sua escassez. Em “Contrariedades”, a vizinha que ”mal ganha para as sopas e mantém-se a chá e pão” e depois “num bairro moderno…reluzem, num almoço, as porcelanas”, ou “a metamorfose das frutas, verduras e legumes na composição poética-pictórica de figura humana gigantesca”.

Um poema de VInicius de Moraes “Um bife e um queijo forte, e Parati/ E eu morrerei feliz do coração/De ter vivido sem comer em vão”, deu origem à resposta de Vasco Graça Moura “pois eu gosto de lombo e feijoada, /fama e grão, e tudo o que indigesto/me faz sentir um cidadão honesto/na hora prandial e bem regada”. Logo estes dois poemas serviram de rábula (ou de mote) a outros dois, um de António Dias e outro de Luís Filipe de Castro Mendes “Resposta a António Dias da parte das vítimas da fome”. “Poetas são pessoas de alimento, deem-lhes de comer, façam favor! / Não cortem a raiz ao pensamento, que a comer ganha asas o amor”. Também Bertolt Brecht diz “O Horror de ser pobre!” “…As couves aguadas destroem planos que fazem/ forte um povo/…abrem-lhe buracos/no prato da comida…” Ou “Reparaste o bife queimado? O piano ruim e a comida pouca…” E ainda com Vitorino Nemésio “Ali visita teria por obra de misericórdia, embora comida fria…”.


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POESIA E COMIDA INSPIRAÇÕES QUE SE ALIMENTAM Isabel Melo Temos um cardápio rico de poemas sobre comida, escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores conhecidos. Desde sempre se aliou o saber ao sabor e Roland Bartles em “O Prazer do Texto” faz muito bem a ligação entre esses dois conceitos. Do mesmo modo, o fazem Eugénio de Andrade em “Flores e Frutos” e António Gedeão, que muito bem faz a fusão entre ”saber e sabor”. E que dizer de Bulhão Pato, ele próprio uma fusão de gastrónomo e poeta, que nos deixou a célebre receita de “Ameijoas à Bulhão Pato”? Na gastronomia ou na alimentação, buscam-se esses sabores e fruição de pratos e saberes e apetites de conhecimento. Os cânones culturais são frequentemente traduzidos pela culinária e poucos poetas resistem à tentação de cozinhar um poema, de ingredientes poéticos.

Ai, os pratos de arroz-doce Com as linhas de canela! Ai, a mão branca que os trouxe! Ai essa mão ser a dela! Esses instintos básicos e necessários à vida, não escapam aos poetas, não escapam a Fernando Pessoa.” A fome só se satisfaz com/ a comida e a fome de/imortalidade da alma/ com a própria imortalidade. Ambas são verdadeiros instintos”. Imortal, continua Fernando Pessoa sentado à mesa do café “A Brasileira do Chiado”. Também de instintos fala Miguel Torga “Onde caiu agora a minha vida…/Nem um desejo, ao menos! Só instintos pequenos: Apetite de cama e de comida!” Hoje existem várias formas de pôr a poesia à mesa, quase seguindo o repto de Natália Correia “Ó subalimentados do sonho! A poesia é para comer.”

“Comamos, bebamos e amemos”, dizia Fernando Pessoa, traduzindo um dos mais fiáveis lemas do povo português. Seguidor fiel da culinária portuguesa, tanto comia uma sopa, os seus célebres ovos com chouriço ou uns pastéis de bacalhau sempre na mesma mesa do Martinho da Arcada ou se deleitava com um bom cozido à portuguesa ou uma dobrada à moda do Porto, a que dedicou um poema. Pessoa não se abstinha de registar nos seus versos costeletas de porco, figos, nozes, bolos, queijos e sardinhas. Também lhe ficou o gosto pelas especiarias aquando da sua passagem, na adolescência, por África do Sul, sendo a galinha com caril um dos pratos que mais apreciava. E na sobremesa?


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PAPAROCA

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POESIA E COMIDA INSPIRAÇÕES QUE SE ALIMENTAM Isabel Melo

E foi pegando nesse verso, que surgiu o título da Antologia de Poesia lusófona “A poesia é para comer”, com coordenação de Ana Vidal que venceu o Best Food Literature Book dos Gourmand Book Award 2007 e o prémio de Melhor Livro de Literatura Gastronómica 2008, pela Academia Portuguesa de Gastronomia. Numa fusão de iguarias para o corpo e para o espírito, selecionou uma série de poemas e de chefes convidados que criassem receitas para esses mesmos poemas. O seu principal objectivo era trazer novos leitores para a poesia e levar as pessoas apenas submersas “nos seus olimpos literários” até ao universo da cozinha. Assim, se degustaram poemas de autores tão díspares como Bocage, Ruy Belo, Adélia Prado, Fernando Pessoa , Cesariny, Gil Vicente ou Vinicius de Moraes, através dos serviços gastronómicos dos melhores chefes e gourmets dos dois lados do Atlântico. Neste livro ou noutras iniciativas de ligação da comida à poesia, faz-se a ligação do “alimento do corpo e do espírito”, segundo Carlos Drummond de Andrade. Sempre se criaram elos de cumplicidade, de emoções e sensações, de criatividade, de memórias e de um renascer. E em tempos imemoriais e mesmo em plena batalha, surge um poema à Padeira de Aljubarrota, Está sobre a mesa e repousa O pão Como uma arma de amor Em repouso.


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RECEITUÁRIO

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A História de um Melão José Alex Gandum

Susana Pinta pintava. Quer dizer, pinta. É pintora de quadros. Em especial de naturezas mortas, com grande apetência para frutas e legumes. Já fez, aliás, várias exposições, e até ganhou um prémio com a pintura de um quadro pincelado com nabos e a respectiva rama. O concurso realizou-se na sua terra, mas por azar a Junta de Freguesia da aldeia foi assaltada no dia anterior à entrega dos prémios, e Susana Pinta acabou por ficar sem o galardão, substituído à última da hora por um cabaz de frutas e legumes, cedido por agricultores locais, para compensar a vencedora. Susana Pinta iria participar noutro concurso. Desta vez com a pintura de um melão. Procurou durante vários dias o melão com melhor aspecto em todo o lado. Encontrou-o e reproduziu-o esmeradamente numa pintura muito autêntica. De tal maneira que, quem olhasse para o quadro, parecia só faltar o cheiro e o toque do melão. O concurso iria realizar-se numa galeria no Bairro Alto, em Lisboa. Mas Susana conhecia mal as ruas da capital. Por isso, enganou-se no caminho e em vez de chegar ao Bairro Alto pelo lado do Chiado viu-se ao fundo da mais que íngreme Calçada do Combro, no lado oposto. Mas não era uma subida íngreme e escorregadia calçada portuguesa que a faria afastar-se da candidatu-

ra a um novo prémio de pintura. Embora, desta vez, não estivesse muito confiante... Susana até confidenciou ao namorado, que a fora ajudar a carregar o quadro emoldurado, que estava com um pressentimento que "iria apanhar um grande melão" no concurso. Ao que o namorado respondia para ela ficar tranquila, que o seu sexto sentido nem sempre funcionava, e que com o seu currículo era impossível "apanhar um melão". Manuel Paquete era estafeta. Tarefeiro. Paquete, pronto! Trabalhava numa empresa no Largo do Chiado mas andava quase sempre na rua. Nesse dia já passara várias vezes em frente a uma mercearia que ficava mesmo no cimo da Calçada do Combro. Nos caixotes de fruta, havia um melão que reluzia à luz de Lisboa. Embora tivesse um ordenado muito baixo, o sexto sentido de Manuel Paquete dizia-lhe que aquele melão ainda seria dele. Tanto pensou que decidiu agir. E quando saiu do trabalho ao final da tarde, foi até à mercearia, e suspirou de alívio: "Felizmente, não o venderam!", articulou para os seus fechos-éclairs, só pensando no momento em que iria chegar a casa, pegar na grande faca que a avó lhe deixara em herança, e dar um golpe de alto a baixo ao longo daquela casca branco pérola... Apalpado o melão, e confirmada a sua aprovação, Manuel Paquete envolveu o fruto enorme com todo o carinho e com algum esforço levou-o junto da caixa. "Quer saco? São 10 cêntimos!". Ele mal pensou e respondeu de imediato que não. Levaria o melão na mão, por vários motivos: poupava o dinheiro do saco, e mostraria aos colegas e superiores que passavam por ali àquela hora que não era assim tão zéninguém, e que também sabia escolher e comprar um bom melão. Saiu da mercearia com o grande melão nas mãos. Estava uma tarde de calor. As pedras da Calçada do Combro reluziam ainda mais que a casca do melão. A Calçada à Portuguesa era linda, pensou Manuel Paquete, mas mais lindo era o melão que ele acabara de comprar. E melhor ainda seria o momento em que iria degustá-lo. A sua intuição tinha funcionado, e ele levava ali algo que tanto desejara ter.


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A História de um Melão José Alex Gandum

Por ser Verão e o Sol começar a descer lentamente no horizonte, as pedras da Calçada do Combro estavam plenamente iluminadas. De tal maneira que olhar para o chão era quase o mesmo que olhar para o Sol: ficava-se encandeado. E caminhar encandeado numa calçada íngreme como aquela não era o mais seguro. Mas o tarefeiro fazia da Calçada do Combro o seu caminho de todos os dias e até falava com as pedras, quase conhecendo-as uma a uma, sabendo onde estava uma mais saliente ou outra mais inclinada. Mas quando se carrega um objecto redondo sem pegas e com um peso apreciável, até os locais conhecidos podem pregar partidas: e foi então que Manuel Paquete tropeçou numa pedra onde um pedaço de calcário se lembrara de se lascar sem avisar, e a sola gasta do sapato comprado na loja dos chineses não foi capaz de manter o contacto permanente com o chão, deslizando alguns centímetros em parceria com outras pedras de calcário.

Na mão direita, amparado pela mão esquerda, o melão premiado por ele próprio oscilou, rodopiou, voltou a roçar os dedos e as linhas da palma da mão, levitou como coxas de galinha numa concentração vudu, e finalmente abraçou a teoria de Newton, entrando em contacto com as pedras quentes e reluzentes, alinhadas lado a lado. Mais rápido do que meio pestanejar, Manuel Paquete pensou que já não valeria a pena usar a faca que a avó lhe deixara como herança porque o melão iria abrir pelo lado mais fraco, poupandolhe trabalho… Mas, qual quê? Roliço, o melão, qual bola de râguebi, bateu e – sabem como fazem aquelas

pedrinhas que se mandam na praia e que vão saltitando na água? - pois, o melão começou a saltitar e, qual carrinho de rolamentos descendo uma avenida, foi tomando balanço, fintando carros e gentes, de uma maneira de fazer inveja a Cristiano Ronaldo. A começar a decalcar a Calçada do Combro vinha Susana Pinta, a iniciar a subida com o quadro emoldurado da natureza morta com que ela esperava ganhar um gostoso prémio. Resmungando com o sexto sentido de que algo iria correr mal, Susana levantou os olhos para a Calçada que não conhecia o termo horizontal, quando viu a algumas dezenas de metros um objecto que já fora perfeitamente arredondado, mas agora qual pneu branco desgovernado e deixando vestígios pelo percurso... Sabem aqueles momentos em que vamos numa rua na direcção de outra pessoa e que tanto nós como a outra pessoa querem dar passagem mas acabam por se enfeixar uma na outra, não sem antes fazerem intenção de virar para um dos lados, depois para o outro? Pois, Susana Pinta e o melão desgovernado fizeram esse jogo por brevíssimos pestanejares, mas nenhum deles se conseguiu desviar a tempo: o melão – ou o que restava das talhadas que não chegaram a ver a faca que a avó de Manuel Paquete lhe tinha deixado como herança – escarrapachou-se na cara de Susana, não sem antes ter atingido e atravessado o seu "primo" pintado. Susana caiu para trás e a moldura enfiou-se na sua cabeça, como se costuma ver nos desenhos animados. O namorado de Susana ficou em pânico, mas a pintora não se magoara. E quando lhe perguntaram como se sentia, ela simplesmente respondeu que o melão, que se escarrapachara na sua cara, tinha um sabor misto a óleo e doce... e que viesse o presunto!


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UMA Receita (ADAPTADA) de Açorda à Alentejana José Alex Gandum

Ingredientes: - Pão alentejano com dois dias - Ovos - Azeite (alentejano, se possível) - Dentes de alho, poejos e coentros - Bacalhau, bife de atum ou outro peixe - Sal a gosto - Tomate e cebola para a salada Corta-se o pão em fatias grandes (retirando a côdea se esta for muito dura) cortam-se os dentes de alho miudinhos e junta-se ao azeite num tachinho com um pouco de sal, mexe-se com colher de pau até aloirar o alho, junta-se água (pode ser a olho) até ferver.

Quando a água com azeite e alho levantar fervura, juntar os ovos (verificar antes em água se estão dentro do prazo), os quais sairão escalfados. Entretanto, ajeitam-se as fatias de pão numa tigela grande, com os poejos e os coentros espalhados pelo meio das camadas de pão. Depois da cozedura dos ovos (10 minutos no máximo) verte-se tudo sobre o pão. Bacalhau ou posta de peixe podem ter sido cozidos à parte ou na água do azeite com alho. Em qualquer dos casos, no fim juntase tudo, tapa-se a tigela grande durante uns minutos enquanto se faz a salada (com tomate olho de boi e cebola roxa se possível). O vinho é supletivo mas se for alentejano tanto melhor. Et voliá, depois de uma meia hora a ensopar, a açorda está pronta a ser degustada. Se sobrar alguma, fica muito boa para a refeição seguinte, até para o outro dia. E basta aquecer no microondas. É fácil e é barato. Quem quiser fazer, boa sorte e bom apetite.


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CARTOON PELO BURACO DA FECHADURA ALBERTO PEREIRA

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UM VOO DE GAIVOTA A DOCA DOS PESCADORES DE ALEXANDRE MURTINHEIRA FOTOGRAFIAS DE ALEXANDRE MURTINHEIRA TEXTO DE SALVADOR PERES

Tantas vezes passei por aquela doca, em manhãs de inverno, tardes de verão, noites de outono, dias radiosos de primavera. Tantas vezes olhei para aqueles barcos ancorados, testemunhas de antigas e árduas histórias de navegar, na faina do belo peixe da nossa costa.


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UM VOO DE GAIVOTA A DOCA DOS PESCADORES DE ALEXANDRE MURTINHEIRA

Tantas vezes me deixei envolver naquele leve rumor marítimo que paira sobre os barcos, só quebrado pelo grito agudo das gaivotas, que planam por sobre as mastreações, espreitando alguma embarcação, prenhe de sardinhas, que venha da foz, rio acima, até à doca.


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UM VOO DE GAIVOTA A DOCA DOS PESCADORES DE ALEXANDRE MURTINHEIRA

Tantos olhares, todos diferentes, porque cada dia oferece a luz única e irrepetível do dia primordial. Tantas aguarelas de cores esbatidas e óleos de cores vivas, oferecendo-se ao olhar de pintores e fotógrafos. Tudo isso e tudo o resto impossível de nomear é a Doca dos Pescadores. A minha Doca dos Pescadores.


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UM VOO DE GAIVOTA A DOCA DOS PESCADORES DE ALEXANDRE MURTINHEIRA

Mas o Alexandre Murtinheira foi até à doca, um dia e outro e outro, e trouxe até nós a Doca dos Pescadores dele. E na sequência de imagens que captou com a sua objectiva, eu consigo olhar, com deslumbramento, o que nunca fui capaz de ver nas minhas infindáveis deambulações. Aquela é a mesma e é outra doca.


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UM VOO DE GAIVOTA A DOCA DOS PESCADORES DE ALEXANDRE MURTINHEIRA

Num voo de gaivota, rasando o dorso manso dos barcos, o Alexandre mostra-nos, numa multiplicidade de contrastes, o que está para lá do simples olhar: mostra-nos um tempo, onde parece que o tempo parou; mostra-nos a simplicidade e a elegância que se esconde nos rostos tisnados dos pescadores e na aparente desordem de barcos, redes e remos. Mostra-nos a essência daquele lugar, que permanece, apesar da ferrugem do tempo, como um lugar de encontro com a nossa identidade de setubalenses.


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PORTEFÓLIO UM VOO DE GAIVOTA A DOCA DOS PESCADORES DE ALEXANDRE MURTINHEIRA

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PORTEFÓLIO

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UM VOO DE GAIVOTA A DOCA DOS PESCADORES DE ALEXANDRE MURTINHEIRA

Alexandre Murtinheira é professor de Artes Visuais na Escola do Ensino Secundário D. João II, em Setúbal. Artista multifacetado, desenvolve a sua atividade artística na pintura, na música, nas artes performativas e essencialmente na fotografia. Integrou o grupo e-Vox, tendo participado em muitos concertos como guitarrista. É membro fundador do grupo sYnapsis.


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AO SERÃO

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O REGRESSO DAS “SEXTAS DE ARTE E CIÊNCIA” synapsis SALVADOR PERES

A ideia de recriar as tertúlias culturais surgiu após a minha admissão no Club Setubalense, em 2002, num tempo em que a oferta cultural em Setúbal era escassa. Propus a ideia à direcção do Club, que a aceitou. Os serões começaram por se chamar “Poesia à Sexta”. Uma vez por mês, sempre numa noite de sexta-feira, três convidados, os declamadores Carlos Medeiros e João Completo e o músico Nilton Esteves levavam ao público a poesia, declamada e cantada, de alguns dos maiores poetas portugueses: António Gedeão, José Régio, Almada Negreiros, Manuel da Fonseca, Bocage, Sebastião da Gama, Camões, Miguel Torga, Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, Joaquim Pessoa, David MourãoFerreira.

Seguiu-se, depois, um ciclo a que se chamou “Arte à Sexta”, no âmbito do qual se alargou o leque de temáticas oferecidas ao público. Muitos ilustres convidados passaram pelo “Arte à Sexta”, levando o seu saber e experiência a um projecto que se tornou num espaço de cultura, debate e convivência com as mais diversas formas de expressão artística. Entre outros, marcaram presença João Pinharanda, Viriato Soromenho-Marques, Eduardo Carqueijeiro, Nuno David, Rui Serôdio, Alexandre Murtinheira, José Custódio Vieira da Silva, Chocolate Contradanças, e-Vox, Maria José Brito, Conservatório Regional de Setúbal, António Laertes, Nuno Batoca, Coro de Câmara de Setúbal e João Reis Ribeiro. Em Dezembro de 2009, após 8 anos na coordenação cultural no Club Setubalense,

deixei a associação. A partir dessa data, os projectos “Arte à Sexta”, “Quatro Caminhos”, ambos criados em 2002, deixaram de fazer parte da programação do Club.


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AO SERÃO O REGRESSO DAS “SEXTAS DE ARTE E CIÊNCIA” SALVADOR PERES Os serões só voltariam sob a égide do grupo Synapsis, criado em Abril de 2010, agora com a designação de “Sextas de Arte e Ciência”. O primeiro serão synapsis, de parceria com o MAEDS, parceiro do synapsis desde a sua fundação, ocorreu em 12 de Novembro de 2010, tendo como palestrante convidado o synapsiano Luís Nunes, que levou ao público o tema “Sonho de Ícaro”. De 2010 a 2018, o Synapsis realizou 75 edições do “Sextas de Arte e Ciência”. Os serões ocorreram com regularidade mensal, tendo oferecido ao público, com a parceria do MAEDS - Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal e a Biblioteca Municipal de Setúbal, temas e convidados de reconhecido interesse e valor.

Os serões contaram, entre outros, com a presença de José Manuel dos Santos, Maria José Simas, Inês Vieira da Silva, Miguel Vieira, João Reis Ribeiro, José Alex Gandum, Francisco Borba, Alexandre Murtinheira, Viriato SoromenhoMarques, Francisco Ferreira, Barros Veloso, Carlos Sargedas, Frei Henrique Rema, João Cabeçadas, José Poças, Maurício Abreu, Pedro Ré, Pedro Castro Henriques, Frei Miguel Loureiro, António Cunha Bento, Fátima Ribeiro de Medeiros, José Luís Outono, Eduardo Carqueijeiro e Nuno David.

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AO SERÃO

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O REGRESSO DAS “SEXTAS DE ARTE E CIÊNCIA” SALVADOR PERES

A grave crise sanitária gerada pelo SARS-CoV-2, que assolou o mundo a partir de finais de 2019, acabou por afectar parte importante das actividades Synapsis, com especial incidência nas “Sextas de Arte e Ciência” e caminhadas pela natureza. Durante a fase aguda da crise pandémica, o Synapsis manteve, apesar de tudo, uma actividade intensa no plano editorial, com a publicação quadrimestral do Magazine e semanal do Blogue, produziu o filme de Alberto Pereira “A Serra de Agostinho” e realizou concertos da banda e-Vox subordinados à temática Frei Agostinho da Cruz, “Nesta Serra do mar largo cercada”. Com o aligeiramento do surto viral, o Synapsis recomeçou as suas caminhadas pela natureza em Novembro de 2021 e, no dia 4 de Março de 2022, o Synapsis voltará a integrar na sua programação as “Sextas de Arte e Ciência”, tendo como palestrante convidado o filósofo e professor universitário Viriato Soromenho-Marques.


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A FECHAR

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ELECTRA #15 PT FUNDAÇÃO EDP

Numa época numérica e digital em que a quantificação se tornou o principal instrumento de governação e de avaliação generalizada como modo de gestão dos recursos materiais e humanos, a Electra dedica o dossier da edição 15, aos Números. Aqui encontramos artigos sobre o conhecimento e a filosofia do número, a moderna governação através dos números, a história do algoritmo desde a idade média ao seu funcionamento nas redes digitais, da autoria de Dario Gentili, António Guerreiro, Keith Hossack, Matteo Pasquinelli, Alain Supiot. As imagens do dossier são da autoria de António Sena, criador de uma obra de grande coerência formal e de valiosa singularidade na arte contemporânea. Na secção “Primeira Pessoa” são publicadas duas entrevistas: de Alice Rawsthorn (pela curadora Vera Sacchetti), uma das vozes mais escutadas mundialmente no campo do design, crítica e colunista dos mais importantes jornais e revistas, com uma grande intervenção e influência nos fóruns de debate e nas redes sociais; e do fotógrafo Paulo Nozolino (pelo jornalista João Pacheco), artista de vocação nómada, atravessador de fronteiras,

e avesso aos lugares serenos e às imagens tranquilas que lhes correspondem. Ângela Ferreira é a autora do portfolio deste número. Ocupando-se, há mais de três décadas, das questões do passado colonial, do presente pós-colonial e do futuro que agora começa a desenhar-se, a artista apresenta aqui um conjunto de pinturas realizadas a partir de murais. Este trabalho é acompanhado por um ensaio da curadora e historiadora Nomusa Makhubu. O consagrado fotógrafo norte-americano John Divola preparou, para a secção “Furo”, um conjunto de trabalhos inéditos, que pertencem a uma série, ainda em curso de realização, no interior duma base aérea militar, no deserto da Califórnia. Afonso Dias Ramos apresenta o artista e a sua obra. Na décima quinta edição da Electra, é ainda publicado um diário da cantora e compositora Lula Pena; Gonçalo Vilas-Boas traça um retrato da escritora, jornalista e fotógrafa Annemarie Schwarzenbach, uma das figuras mais fascinantes da primeira metade do século XX; Antonio Montefusco lança um olhar crítico sobre o aproveitamento ideológico e político a que as comemorações oficiais dos centenários de Dante Alighieri foram submetidas desde o século XIX; a investigadora de comunicação política Susana Salgado comenta uma afirmação de Noel Gallagher, antigo vocalista dos Oasis; António Guerreiro escreve sobre a poesia de António Franco Alexandre; e Fátima Rolo Duarte fala-nos da expressão “Novo Normal”.


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