Suplemento Pernambuco 73

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PERNAMBUCO, MARÇO 2012

CAPA

A caminho da carne, da alma e de nós

A obra seminal de Hermilo Borba Filho desafia limites entre memória e ficção Carolina Leão

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Não existe vida social sem estereótipos. Somos reduzidos, sintetizados, estigmatizados e amaldiçoados pelas caricaturas que nos atribuem indiscriminadamente e ressaltam os elementos da personalidade com os quais nos disfarçamos, ocultamos ou nos lançamos ao convívio humano. Como poderíamos esconder o corpo marcado pela herança genética ou a modificação social e os caminhos seguidos, muitas vezes sem rumo, outras tantas intencionalmente? A vida escolhida fala, mesmo quando silencia. Hermilo Borba Filho foi um dos alvos dessa estereotipia. O rótulo de escritor maldito ressoa até hoje quando se fala no pernambucano de Palmares, cuja fortuna crítica está sempre associada à do anárquico Henry Miller e a Lawrence Durrel e seu O quarteto de Alexandria – inspiração original da tetralogia de Hermilo, lançada timidamente pela Editora Bagaço, no final do ano passado. Comparações são inevitáveis. Na literatura também. Mas, como índices, elas apenas apontam. Como placas no caminho, elas sempre mostram para onde se deve ir, não como chegar lá. Racionais, impedem que nos percamos no trajeto quando precisamos economizar tempo e dinheiro; não nos garantem, porém, se che-

garemos no referencial desejado. É natural que muitos leitores tenham encontrado Hermilo pela associação ao libertino e libertário Miller – Hermilo fez do sexo, como Nelson Rodrigues ou Marquês de Sade, matéria-prima criativa. A tetralogia Um cavaleiro da segunda decadência mostra, no entanto, fôlego suficiente para Hermilo ser referência absoluta de sua própria literatura e obra intelectual. E muito mais. Pontuada por suas referências modernistas, Lorca principalmente, e de sua própria história pessoal, marcando a linguagem intertextual com digressões sensuais, filosóficas e surreais, Um cavaleiro da segunda decadência é composta de uma narrativa memorialística que revela mais do que detalhes da vida pessoal do escritor. Ela cobre um período que compreende o seu nascimento no interior do estado (Margem das lembranças), sua chegada ao Recife (A porteira do mundo), o exílio político e cultural em São Paulo (O cavalo da noite) e a volta para a capital pernambucana (Deus no pasto). Isso quer dizer a memória de três décadas, nas quais o homem Hermilo se transforma no artista e intelectual. Isso quer dizer a memória passada e passada

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