Suplemento 107

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PERNAMBUCO, JANEIRO 2015

CAPA JANIO SANTOS

“O Pantanal – pensei na minha pressa de jornalista – é Manoel”

As tentativas de encontrar o gigantesco mundo criado por Manoel de Barros José Castello

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O destino do poeta Manoel de Barros, sina que ele mesmo ajuda a tramar e da qual tira bom proveito, é ser confundido com seus versos. Lemos os poemas de Manoel e, pouco a pouco, nos convencemos de que ele é um homem que não é. Mas, tomado pelo que não é, ele pode, enfim, realizar o sonho que constitui a poesia: ser apenas verbo. “Não saio de dentro de mim nem para pescar”, ele escreveu no Livro sobre nada. No mesmo livro, porém, também está escrito: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.” A qual dos dois poetas seguir? Ao Manoel que jamais sai de si, sempre concentrado no que é, ou àquele que, além de estar ausente, desmanchando o mundo na borra das palavras, escreve sobre coisa alguma? A melhor solução, no caso de Manoel de Barros, é não excluir nenhum dos dois. Melhor solução, mas também a mais difícil, como costuma sempre ser. A pressa e a aflição em fixar classificações levaram Manoel de Barros a ser tratado, em geral, como “o poeta do pantanal”. Logo o imaginamos, em consequência, com os pés afundados no charco, caminhando entre bois sonolentos numa paisagem úmida, um chapéu de couro e um cigarro de palha deslizando à frente do horizonte. Manoel vive em Campo Grande, a capital do Mato Grosso do Sul e do pantanal mato-grossense. Herdou uma fazenda na região do pantanal e é de sua exploração que, hoje, sobrevive, e não dos versos. Se falamos com Manoel

por telefone, encontramos um homem avaro nas palavras, retraído, quase paralisado pelo pudor; e se o provocamos com o convite para uma entrevista, ele se esquiva com delicadezas assim: “Não vale a pena, você vai voltar de mãos vazias.” É o nada, ele adverte, que iremos encontrar. É difícil não concluir que se trata de um homem arredio, que prefere ficar escondido no pântano a se expor às grandes luzes; e que, se escreve poesia, é só para externar essa inapetência para o mundo dos homens, pois parece se sentir muito melhor entre as coisas imóveis e os bichos tristes que entre os seres falantes. Quando lhe pedi pela primeira vez uma entrevista, Manoel tentou me desencorajar. “Você erra em esperar coisas de mim. Sou só um bugre perturbado”, ele me assegurou, e parecia estar sendo mesmo sincero. As palavras lhe pesavam, sua voz era um fio a se perder naquele interurbano, e eu imaginei um homem magro, de calças arregaçadas, pés atolados na terra, preso à linha de um telefone que ele arrastava, como um bicho sujo, até o quintal. Eu o vi agachado entre passarinhos, os pés metidos em chinelos de couro, o chapéu torto recortando a testa, a mastigar um toco de raiz, uma folha verde e amarga, ou a chupar jabuticabas, enquanto falava cheio de medo. Um homem em sua varanda, entre trepadeiras, moringas e espreguiçadeiras antigas, ou no fundo de um quintal, entre galinhas, cachorros alvoroçados e um cheiro de feijão a escorrer de dentro da casa.

22/12/2014 11:00:51


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