Pernambuco 162

Page 20

20

PERNAMBUCO, AGOSTO 2019

PERFIL GABRIELA MATOS

da capital, com suas toponímias normativas e sua mentalidade ordenadora que a República viera dar forma – ou ainda, citando o poema de Mário, com sua “luta pavorosa entre floresta e casas”. Mais do que propor uma interpretação cerrada do poema, no entanto, Wander Melo Miranda propõe, com o estilo dinâmico e enxuto que caracteriza sua escrita, uma “configuração constelar” ao fazer raras associações entre a Belo Horizonte modernista de Mário com outras duas: a cidade “real e fantástica” que Pedro Nava encontra poucos anos antes, em 1921, quando chega à capital mineira para cursar Medicina, conforme relata em um de seus livros de memórias, Beira-mar; e a capital repleta de contradições entre o moderno e o arcaico presente na obra de Drummond, captada, por exemplo, em uma cena do poema Encontro, que comunga o espaço rural violentado pelo artificialismo do processo de modernização: “Vi claramente visto, com esses olhos/ (...) o carro de bois subir, insofismável/ esta soberba Rua da Bahia”. ORA (DIREIS) PUXAR CONVERSA! Para esclarecer parte das operações e dinâmicas críticas que Wander Melo Miranda parece operar neste conjunto de ensaios, sobretudo no que diz respeito às leituras da literatura brasileira do século XX, seria preciso, finalmente, considerar o longo diálogo que mantém com Silviano Santiago – com quem neste livro Miranda “puxa conversa” em pelo menos dois ensaios, ambos publicados originalmente em 2018. Em O curto-circuito da letra nos trópicos, por meio da leitura genealógica que faz dos artigos antológicos de Santiago dos anos 1970 e 1980, seria possível rastrear a trajetória e as operações crítico-teóricas que organizam o pensamento do próprio Wander Melo Miranda – pois se trata de uma perspectiva que, em um caso como no outro, “permite que o crítico escape tanto de uma abordagem estrita-

Em sua obra, Wander também atualiza as consequências políticas de ensaios famosos de Silviano Santiago mente formalista do texto literário quanto de sua redução sociológica”. O caso mais exemplar talvez consista na leitura renovada que Santiago faz do modernismo brasileiro, movimento que, para o autor de Uma literatura nos trópicos, consistiria não apenas – conforme assinala Miranda – em um “esforço conjunto e bem-sucedido de desprovincianização e atualização cultural do país”, mas principalmente em uma via de mão dupla que associa, conforme percebe Miranda, a “ruptura estética revolucionária” com “a restauração do passado e da tradição que o memorialismo busca recuperar”. Isso porque, como enfatiza Wander Melo Miranda, Santiago acaba por escolher, em ensaios como Vale quanto pesa (a ficção brasileira modernista), Fechado para balanço (60 anos do Modernismo) e A permanência do discurso da tradição no Modernismo, um veio do modernismo até então pouco explorado, mas não

menos relevante – o memorialismo. Daí entende-se, por outra perspectiva, a atenção especial que Miranda concede não apenas “às coisas antigas”, mas sobretudo aos gestos duplos, que ele rastreia nas leituras que Santiago faz de questões centrais da literatura brasileira, além de sua singular revisão do modernismo: a dependência cultural, o “cosmopolitismo do pobre” e a inserção. Nessas leituras, torna-se chave a viagem que Mário, Oswald, Tarsila e outros artistas fizeram às cidades históricas mineiras em 1924, talvez outra das obsessões teóricas de Wander Melo Miranda. Santiago lembra, por exemplo, a surpresa de Tarsila diante da pintura e escultura barrocas, e de seu desejo de voltar a Paris em busca não da última novidade vanguardista, mas para aprender a restaurar quadros. Em resumo, o que interessa para Miranda é atualizar as consequências políticas de tais ensaios de Santiago – ao argumentar, por exemplo, que “o texto descolonizado da cultura dominada passa a ter uma riqueza e uma energia imprevistas”. Pois tal debate, em suas consequências mais radicais, abriria a cena textual contemporânea para “novos protagonistas”, concluindo e ao mesmo tempo reabrindo um programa: “Abre-se caminho para uma interlocução (...) mais ampla, ao se inserir no circuito geoliterário global como outra fala que se faz ouvir desde os trópicos, disseminada numa gama infinita de tons e na qual a obra ensaística e ficcional de Silviano Santiago segue ressoando persistente”. Eis aí um dos principais desafios críticos que Wander Melo Miranda toma para si neste seu novo livro, ao procurar captar não apenas essa “gama infinita de tons” que são as vozes de uma comunidade aleatória ou inoperante, mas também a riqueza e a força imprevistas – e convulsivas, como diz sobre Machado, de Santiago – que é a literatura vista como performance, claro enigma, nos trópicos, em suma, são muitos os nomes.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.