Suplemento Literário de Minas Gerais (Número 1377)

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Belo Horizonte, Março/Abril de 2018 Edição nº 1.377


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tarefa de fazer falar o escritor Luis Fernando Verissimo, que prefere se expressar através de seus textos e traços — que lhe valeram o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura-2009 pelo conjunto da obra —, coube ao jornalista João Pombo Barile. O resultado, que mostra a força de suas poucas mas exatas palavras, está na entrevista que abre esta edição. Outro destaque fica por conta da extraordinária tradução feita por Rosa Freire d'Aguiar da obra clássica do Marquês de Sade, Os 120 dias de Sodoma, recentemente reeditada no Brasil e da qual publicamos dois trechos, exemplos do trabalho demolidor que há dois séculos desafia a moral da arte, se é que isso existe. Joaquim Branco disserta sobre o escritor Rosário Fusco, destaque do movimento Verde, de Cataguases, marco do modernismo em Minas Gerais. As relações do cineasta Ingmar Bergman com a modernidade são estudadas pelo crítico Mário Alves Coutinho, e Rafael Zacca apresenta sua análise do novo livro de poemas de Mônica de Aquino, Fundo Falso. Temos ainda os contos de Rosângela Maluf, Lúcia Freitas, Luis Alberto Brandão e Edgard Pereira, e os poemas de Anelito Oliveira — cujo livro Traços é resenhado por Flávia Figueirêdo —, Adriano Wintter e Gabriel Leite. A capa presta homenagem a uma das mais importantes artistas plásticas brasileiras, a litógrafa Lótus Lobo, que foi professora de Litografia da Escola Guignard e participou da oficina de litografia da Escola de Belas Artes da UFMG. Seus trabalhos ilustraram contos e poemas na fase inicial do nosso Suplemento Literário, na década de 60.

Superintendente de Bibliotecas Públicas e Suplemento Literário

Lucas Guimaraens

Suplemento Literário

Diretor Coordenador de Apoio Técnico Coordenador de Promoção e Articulação Literária Escritório de Design Design Gráfico e Diagramação Conselho Editorial Equipe de Apoio Revisão

Jornalista Responsável ISSN: 0102-065x

Jaime Prado Gouvêa Marcelo Miranda João Pombo Barile Gíria Design e Comunicação Carolina Lentz - Gíria Design e Comunicação Humberto Werneck, Sebastião Nunes, Eneida Maria de Souza, Carlos Wolney Soares, Fabrício Marques Jane Mendes, Rosângela Caldeira, Flávia Figueirêdo, Rui Coutinho Flávia Figueirêdo

Marcelo Miranda – JP 66716 MG

Textos assinados são de responsabilidade dos autores Acesse o Suplemento online: www.bibliotecapublica.mg.gov.br

Ilustração de capa: Lotus Lobo

Suplemento Literário de Minas Gerais Praça da Liberdade, 21 – Biblioteca Pública – 3º andar CEP: 30140-010 – Belo Horizonte, MG – 31 3269 1143 suplemento@cultura.mg.gov.br


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Deixa o

Verissimo falar Quieto

A falsa ideia, entre meus amigos, de que eu falo pouco se deve ao fato de que entre eles eu não tenho oportunidade. Eu não sou quieto, sou é muito interrompido.

Depoimento a João Pombo Barile

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ara não correr o risco de ficar maior do que as respostas, o abre de uma matéria com Luis Fernando Verissimo deve ser curto. Mestre da concisão, LFV é homem de poucas (e precisas) palavras. Em 2016, com a publicação de Verissimas: frases, reflexões e sacadas sobre quase tudo, essa genialidade foi definitivamente consagrada. Um mestre do aforismo: do quilate de Nelson Rodrigues e Millôr Fernandes. Se a concisão é mesmo sua grande marca, Verissimo, porém, não concorda com a fama de caladão. “Não sou eu que falo pouco, os outros é que falam muito”. E pensando bem, até que ele falou muito. Vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, em 2009, na entrevista que o leitor lê a seguir, o mais importante cronista em atividade no país conversou sobre sua grande paixão, o jazz, lembrou do pai, o grande Erico Verissimo, da amizade de sua mãe, dona Mafalda, com Clarice Lispector. E até do sinistro momento da vida pública nacional. “Chegamos ao fundo do poço. Quer dizer: a metade da viagem”. Mas chega de conversa. Deixa o Alfredo, ou melhor, deixa o Verissimo falar.


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O que mudou na sua vida ter visto Federico Fellini filmar A Doce Vida, com Anita Ekberg? Assisti à filmagem da cena na Fontana di Trevi, por acaso. Não posso dizer que mudou minha vida, mas o decote da Anita Ekberg não me sai da lembrança até hoje.

No início de sua carreira, você foi revisor de jornal. Lê jornal com olhos de copidesque, procurando erros? Não fui exatamente revisor, copidesque era uma espécie de pré-revisor. Foi meu começo no jornalismo. Não leio jornais com olhos de copidesque, a não ser nos casos chamados de “erros gritantes”.

E ter visto Charlie Parker tocar ao vivo? Eu gostava muito do jazz tradicional, de Nova Orleans. Com Charlie Parker descobri o jazz moderno. Só o vi tocar, ao vivo, uma vez, mas foi o bastante para me tornar fanático.

O que pensa da qualidade dos jornais brasileiros? Nossa imprensa é pior do que a europeia a norte-americana? Tecnicamente, os maiores jornais brasileiros não devem nada a jornais como El Pais, Guardian, Le Monde, New York Times, Washington Post e outros. Já quanto ao conteúdo e o ímpeto investigativo, a comparação não nos favorece. Mas acho que, de qualquer maneira, não temos do que nos envergonhar.

Numa entrevista sua em que participei uns anos atrás, tive a impressão de que, quando o assunto era literatura, você não se interessava muito. Já quando o papo era jazz, você ficava muito atento e feliz. Falar de literatura é chato? Eu não entendo muito de literatura, no sentido teórico, de ser um crítico relevante. Alia-se a isso certo pudor de alardear opiniões sobre um assunto que não domino — embora, como colunista, eu não faça outra coisa. Ainda tem a mania de entrar em livraria? Ou a internet mudou esse hábito? Não frequento a internet, a não ser para o básico, como e-mails e acessos ao Google. Nada continua substituindo o prazer do livro impresso, e entrar em livrarias continua a ser uma mania saudável.

Qual é a primeira imagem que lhe vem à mente quando se lembra do seu pai, o escritor Erico Verissimo? A imagem de um homem decente, em todos os sentidos. No livro Conversa sobre o Tempo, com Zuenir Ventura e Arthur Dapieve, você lamenta não ter conversado mais com seu pai. Vocês dois foram sempre caladões. O que diria a ele se pudesse encontrá-lo? Hoje, mais velho, a conversa renderia mais? Já vivi dez anos mais do que meu pai, que morreu um mês antes de fazer 70. Se nos encontrássemos hoje, por alguma mágica do tempo, o mais velho seria eu. Penso que conversaríamos sobre o que ele poderia


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ter produzido se vivesse até a minha idade. Mas penso que não seria uma conversa lamuriosa. Dos romances do grande Erico, você já disse que O Continente é o que mais gosta. Ainda relê o livro? Acho que O Continente é o melhor livro dele sim, e já o li mais de uma vez. Você herdou o gosto de viagens dele. Ainda gosta de viajar? Que país gostaria ainda de visitar? É, viajar foi um dos gostos que herdei. Infelizmente, não tenho mais a mobilidade de antes. E ainda falta conhecer tanto mundo! Durante um dos períodos em que sua família morou nos EUA, sua mãe, dona Mafalda, ficou amiga de Clarice Lispector. Poderia falar dessa amizade? Não poderia haver pessoas mais descomplicadas e complicadas do que minha mãe e a Clarice. No entanto, se deram muito bem. Acho que minha mãe foi, para a Clarice, uma espécie de refúgio das frescuras da vida diplomática que ela, cujo marido servia na embaixada brasileira em Washington, era obrigada a aturar. Qual foi a importância dos jornalistas José Onofre e Armando Coelho Borges na sua vida? Eles foram mesmo seus dois maiores amigos? O Zé e o Armando foram dois grandes amigos, companheiros de arquibancada no futebol e de comidas e bebidas. Os dois já morreram, o que foi uma grande sacanagem comigo. Gostaria de saber sobre suas relações com os escritores gaúchos da sua geração, como o Moacyr Scliar, e da geração imediatamente mais nova, como Sergio Faraco, Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll. Você tem, ou tinha, contato com eles? O Moacyr foi outro grande amigo que me levaram. Convivi pouco com os outros, mas admirava o Caio e o Noll. E considero o Faraco, que ainda vive, o grande contista brasileiro que o Brasil ainda não descobriu. Dos novos, gosto muito do Milton Hatoum, do Daniel Galera e do Michel Laub, mas, em matéria de contemporâneos estou um pouco desatualizado. Você sempre foi um grande leitor de literatura em língua inglesa. Quais são os autores que ainda gosta de ler e reler? Já li tudo do (John) Le Carré. Li muito Graham Greene, Conrad, Nabokov, Saul Bellow, Fitzgerald... Estou esquecendo meia dúzia.

honestidade

É tão fácil roubar no Brasil, são tantas as tentações e tão poucas as probabilidades de castigo que só um caráter incomum explica a honestidade de quem não rouba.


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socialismo

Tenho certeza de que meus filhos ainda viverão sob o socialismo. Em Paris, às minhas custas.

Tem algum livro que relê sempre? De vez em quando releio o Pale Fire (Fogo Pálido), do Nabokov. Inglês sempre foi a língua mais frequente das suas leituras? Leio mais em inglês do que em português, mas não tenho preconceito. O estilo da sua escrita é seco, direto, sem rodeios. Ler em inglês, durante toda vida, foi determinante para a criação do seu estilo? Eu me alfabetizei em inglês e sempre fui muito ligado na cultura anglo-saxônica, dos quadrinhos às coisas mais sérias, ou pelo menos mais adultas. A influência era inevitável. Mas gosto de pensar que uma influência grande também foi dos cronistas brasileiros, da era Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antonio Maria, aquela turma. Que autor, em língua inglesa, mereceria ser mais traduzido no Brasil? Talvez o Saul Bellow. Você já disse que, de todos os cronistas que gosta (Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos), o mais completo é o Antônio Maria. Por quê? O Antonio Maria fazia humor e fazia coisas mais sérias, podia ser lírico ou sarcástico e, na minha opinião, era o mais criativo deles. Mas é preciso dizer que, como o Maria, todos também eram bons humoristas.

kafka

O termo “kafkiano” já perdeu qualquer contato com a literatura que lhe deu origem e é usado por gente que nem sabe quem foi Kafka – o que não deixa de ser meio kafkiano.


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estilo

A má literatura é a literatura em estado Você lê mais ficção ou ensaio? Ensaio. Lê poesia? Quem? Li os poetas obrigatórios, Drummond, Bandeira, João Cabral, Quintana. Não é minha praia. Mas sabe qual é a melhor poesia que li, ultimamente? A da Martha Medeiros. Que, infelizmente, não exerce mais. Suas crônicas são cheias de ironia. Você tem muitos problemas com os leitores que não entendem ironia? Com o aumento do politicamente correto, a ironia ficou mais perigosa? Pois é, para a ironia funcionar precisa ser lida com ironia, e nem todos estão dispostos. Eu comecei a publicar no Brasil do Médici, na chamada “época brava”, quando certos assuntos eram proibidos, ter opinião era perigoso e ser irônico era arriscado. Quem passou por aquilo não pode se queixar dos riscos de ser incompreendido, hoje. Se bem que estou dizendo isso antes de saber que rumo vai tomar o minigolpe militar, no Rio. [O autor refere-se à intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro iniciada em fevereiro de 2018.] Na sua crônica “Diferenças de estilo” (do livro Eterna Privação do Zagueiro Absoluto), você escreveu sobre o perigo do escritor se tornar paródia de si mesmo. Você tem um estilo inconfundível. Tem problemas com isso? Ou sempre consegue escrever o texto “estilo Verissimo” sem dificuldades? Quando eu fazia parte da equipe de criação da série de TV Comédia da Vida Privada o diretor do programa, Guel Arraes, às vezes devolvia um texto meu dizendo que estava “pouco Verissimo”. O que quer dizer que nem eu conheço o meu estilo e seus defeitos. Depois que a política brasileira polarizou-se entre “coxinhas” e “petralhas”, você já foi hostilizado na rua por alguém por causa de suas crônicas? Não. Fora um ou outro comentário ouvido de passagem, as manifestações costumam ser carinhosas. Durante o governo FHC, você foi uma das vozes mais críticas a ele. Seu livro A Versão dos Afogados é um importante registro do que foram aqueles anos. O que pensa hoje da figura de FHC? É uma figura respeitável, o presidente mais elegante que o Brasil já teve. Uma bela fachada para um governo neoliberal que ainda teve a sorte de governar antes que começasse a cruzada anticorrupção. O ex-ministro Jacques Wagner, ao analisar os anos da esquerda no poder, disse que “quem não come melado, quando come, se lambuza”. A esquerda se lambuzou? Vamos dizer que, em certos casos, o olho foi maior que a barriga.

puro, intocada por distrações como estilo, invenção, graça ou significado, reduzida apenas ao ímpeto de escrever.

erico verissimo

Não sei quem me influenciou. Talvez meu pai, que foi um dos primeiros a escrever com a informalidade que também busco.

eua

Os americanos salvaram o mundo... E ficaram com ele.


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privilégios

Você já escreveu que “no Brasil, o fundo do poço é apenas uma etapa”. Em qual etapa estamos agora? Chegamos ao fundo do poço. Quer dizer: a metade da viagem.

Confundir ordem e

Seu romance O Opositor é uma referência a O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Por que a escolha? Gosta especialmente do Conrad? Gosto muito do Conrad. E seu O Coração das Trevas é um libelo terrível contra o colonialismo.

normalidade com seus próprios privilégios é um velho habito de qualquer casta dominante.

Você já disse que gostaria um dia de tomar um café com Alan Bennet. Já conseguiu? Com o Alan Bennett ainda não, mas conheci o Tom Stoppard em Parati. Prefere Ernest Hemingway ou F. Scott Fitzgerald? Fitzgerald, disparado. Você fala pouco e suas respostas são sempre curtas. As pessoas falam mais do que precisavam ou deveriam? Falam.

gramática

A gramática precisa

Em 2016, você teve uma pneumonia e ficou internado. A proximidade com a morte mudou alguma coisa? Tem medo da morte? A gente nasce com medo da morte. Faz parte do nosso kit de sobrevivência.

apanhar todos os dias para saber quem é que

honra

manda. Todo mundo é honrado até prova em contrário, e no Brasil nunca aparece a prova em contrário.

joão pombo barile

paulista de Campinas, é jornalista e Coordenador de Promoção e Articulação Literária do Suplemento Literário de Minas Gerais.


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o que dizer deste amor?

três poemas de

Anelito de Oliveira

anelito de oliveira

A MORADA DE UM GRITO Envolto nele, há o Mundo, seu limite Ou seu princípio de Angústia. Ao abraçá -lo, ele desaba na Ausência que anuncia Sua condição precária. O homem é um caso De insuficiência. Solto, Diante da amplidão, Quer voltar pra casa, Mesmo sabendo o quê O espera. Que nada o Espere, que não haja Espera, que tudo Seja infinitamente Bastante – como o Desespera! Um Homem é a morada De um grito, a parte Dilacerada que não Coube lá fora – um Conflito.

mineiro de Bocaiúva, é autor de Lama (2000) e Mais que o fogo (2012), entre outras coletâneas de poemas.

Um homem não tem muito Aonde Ir. Pode morrer a qualquer instante. Às vezes, já está morto. Quando sou eu este homem, perto, perante. Um homem não tem muito O que dizer, mesmo quando fala, Se o obrigam a falar. Nada tem A dizer, nada de compreensível. Um Homem é o homem tal e qual: Intangível. Sempre escondido, sempre com medo de aparecer. À sua Volta, tudo O denuncia, todos o Querem morto. O que dizer deste Amor? Exausto, desamparado, ei-lo a caminhar.

ELE SE SENTA A SENTIR O OCO Tudo já foi dito Sobre ele, e se insisto Em dizer é porque não Escuto bem, porque já Me esqueci do que se Trata. Um homem é aquilo Que resiste à inteligibilidade, Tudo aquilo, isso tudo, Que está escuro, mesmo à Luz elétrica, onde a luz se apaga, Ele se senta a sentir O oco. Talvez – penso -me a pensar – não Seja ele mais que o Eco desse sentimento Aberto ar escapando Por todos os lados. E vem o desejo de Correr, de fugir desse Terror, deixar de ser, Mas um homem é, Assim mesmo: Prisão de medo


As ruínas do que me rói ou os traços de Traços,de

Anelito de Oliveira Flávia Figueirêdo O poeta e ex-editor do Suplemento Literário Anelito de Oliveira, nascido na cidade mineira de Bocaiúva em 1970

“Sou um guardador de rebanhos, e os rebanhos são meus pensamentos e os meus pensamentos são todos sensações” (1), isso posto, Traços (Editora Patuá, 2018), de Anelito de Oliveira, só me serve, porque de seus poemas me ficaram essa natureza de sensações. Chamou-se experiência de quase morte um conjunto de visões e sensações frequentemente atreladas à ocasião de morte iminente. Quem os relatam aos fenômenos são pessoas então declaradas clinicamente falecidas. Sua manifestação é insabida cientificamente. O fio vermelho de Akai Ito (2) que existe entre Traços e a experiência de quase morte inicial é mesmo a similaridade de sua sensação. Mas, ao contrário de seus relatos, Traços não parece ter sido motivado da imprevisão, do susto; mas sobremaneira inversamente de um precavimento, de uma ruminação de Bernardo - lesma, de um boitempo. O rastro que fica de Traços é de um eu lírico que vem se preparando vagarosamente para os fins que são certeiros, sempre certeiros. É como se uma série de solidões se permitissem mais rizomáticas do que o habitual, ou seja, em vez da autocomiseração não comunicativa de uma lírica depressiva, essa melancolia se desprendesse do corpo do texto e se nos alcançasse, se nos compartilhasse. É com pés, com mãos, com narizes, bocas e sobrancelhas que leio Traços. Penso que esse Traços é mesmo rizomas que nos agarram, pois, seu discurso tão antes e tão disseminadamente aconteceu que não se sabe ao certo quando e como se deu a preparação do quando

seu poema começou a andar, e dessas coisas que fatalmente se falecem; penso assim, afinal, ninguém é deleuziano. (3) Seu ethos é desgostoso, é moroso, é hipotenso. Parece uma Ariadne pós pós-fio (4), ou seja, a quem não mais implodem nem a paixão nem a desolação, quem não mais peleja. De modo que em vez de uma experiência de quase morte quando da deflagração da possibilidade da morte, a temos quando sua constatação se vivo, demasiadamente vivo. Esses versos apequenados, esses haicais desanimados, esses (anti) aforismos se dão, regularmente, no espaço-tempo dos sonos, das quedas, dos desmaios, dos suspiros, da noite, dos afundamentos, da desmemória, da morte do outro, do abandono (compulsório e não compulsório) do outro, do sumiço do outro; esses mesmos espaços-tempos que ambientam a quase morte em que venho insistindo. Há sempre nas suas personas direta ou indiretamente interrogativas, “Vivo?” a admissão do lugar do (des) desejante, do que está enfiado e encharcado de “um grito sem fim, de um grito que ninguém ouvirá.” e, há também a sensação da impossibilidade de que com algo se interlocucione, quando para vozes não há ouvidos, os segredos não são sabidos, o longe se discerne do perto e a felicidade é somente no esquecimento do eu, se está sozinho. Estruturalmente também é tudo das ordens das implosões. O amiudamento da forma somente ratifica que a poesia é mesmo essa vida berrada debaixo d’água. Em quase morte só consigo


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operar entre os comparativos, assim Traços tem o mesmo silêncio cheio do deserto de Anfion de João Cabral, aquela coisa encorpada que fica, mas sobre a qual não sabemos ao certo como dissertar. É um esporro anterior à bala do tiro, uma areia movediça que come vagarosamente um corpo se afundando, a rapidez paralisante de uma queda suicida de um prédio ou dos segundos que antecedem um acidente automobilístico na estrada. Pois é depois desses episódios que um corpo se estabaca no asfalto ou que a física age implacavelmente, amassando duas máquinas previamente projetadas para os menores danos, arrancando-nos uma série de piedades que não sei vêm de onde, mesmo quando sabemos que a morte já se deu no susto do meio da queda ou no impacto primeiro da batida que já havia interrompido os corações. Não sendo, pois, em todos os casos, o fim a via mais frugal, e sim os caminhos que se lhe conduziram, os afetos que se lhe atravessaram, que tornaram Kevin, Kevin (5). Traços é uma via sacra em que as imagens avultadas são menos de grandes feitos e seus alardeamentos e mais de um slow motion mentado, arrastado, doído, “... o que não se move, o não movimento, o riomesmo.”, um não saber “aonde vou chegar, quando.” A reflexão sobre um pertencimento natural às coisas da vida e à volta das flechas que foram lançadas vem imediatamente acorrentada à constatação de que sua morte está acontecendo desde a primeira hora, e que essa hora nem cabe nas medidas do “mundo administrado” de Andre Breton. De modo que,

além de viver ser perigoso (Guimarães Rosa) ou de viver ser viver entre (João Cabral), viver é também um pouquinho de morte, é a morte, é a morte. A dinâmica da vida e da morte coube então no espaço-tempo do poema, essa espécie de prisão, de sol imóvel, de repetição, de imobilidade, de distância mesma da morte, apesar de; onde “morremos presos”, de onde se (des) deseja o lado de lá, o outro mundo, a outra corda, onde se parece querer atalhar a lerdeza com que a morte chega, uma ode à além- morte, a onde “os elefantes estão.” A imagem da lâmina fria encostando o coração quente em Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, é algo que nunca deixa de me aparecer à mente. É uma atividade sinestésica essa, pois sempre que engatilhada, é possível sentir o impacto no chão do peito mesmo. Nesse contexto, Traços se acomodaria no rol das premonições, mas não daquelas mistificadas, em que se jogam búzios ou se dispõem cartas; mas daquelas lúcidas e desoladamente conformadas, como uma prévia do frio no quente, do metal quando quase na carne. O arrebatamento que fazem desses poemas, poemas, consiste na sensação de que há um sangue sendo jorrado de dentro pra fora irreversivelmente, como uma hemorragia interna que vem matando e que por ora se finge inexistir. Já que não é corriqueiro que elucubrações que mais nos pendam a uma atmosfera do marasmo e da prostração que em vez de nos adormecer entre as letras, nos desloquem para um lugar de reflexão, uma comoção, uma máquina de (co)mover (6).

Sempre que um sentimento ou constrangedor ou fatalista ou letárgico excede a borda da ponta de um verso é chegada a hora. A hora do pescoço quebrado no enforcamento, a hora do afogamento no redemoinho de um rio aparentemente raso, hora do hímen sendo rompido, hora imediatamente depois da quentura que sobe no rosto pós-tapa de mão aberta. Em Traços toda hora é uma hora dessas, e há sempre nisso certa valia, não da ordem dos julgamentos de valores, mas da ordem da sensação proporcionada, sempre. É como se aquele corpo (des) desejante pudesse ser desassociado de seu lugar original e passasse a vislumbrar suas andanças, seu poema-andante, diante de si paulatinamente ao acontecimento dessa vida, é como se esse corpo se estendesse a nós e, por conseguinte, suas atribuições, a tal da (co)moção Disso, entramos na esfera dos gerúndios, e da capacidade de que o modo que é tanto verbo quanto substantivo se incorpore no espaço-tempo da poesia minguada, mas espadaúda em sentidos, em meditações, nos aconteceres acontecendo. Traços é sobre a premissa de que a quase morte se atrela tão necessariamente à quase vida que isso não pode ser dito pelas histerias, pelos sensacionalismos ou pelas boquiabertas; mas pelos suspiros, pelas interrogações enviesadas ou declaradas, pelas parcimônias, pelas reticências ou pelos reticentes e pelos bufamentos de que comumente nos apercebemos no corpo da letra do texto. Penso, depois de Traços, que a vida é mesmo uma morte. É certo: esses traços pinicam.

1 Versos de “O Guardador de Rebanhos” (1911-1912), de Poemas de Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa. 2 Akai Ito é uma lenda de origem chinesa sobre um fio vermelho invisível amarrado pelos deuses ao tornozelo dos mortais, unindo pessoas e fatos que estão predestinados a se encontrarem, e isso independe de espaço e de tempo, mas os transcende. O mito diz que esse fio nunca se parte, ele se estica, se embola, mas nunca se parte. Na cultura japonesa, esse fio está atado no dedo mindinho de casais que são almas gêmeas. 3 Referência a uma entrevista concedida por Suely Rolnik, cujo cerne é o entendimento de que a leitura de Deleuze só é possível quando aplicada às próprias idiossincrasias de que o lê, tendo não um leitor deleuziano, mas um leitor que aplica sua própria leitura de mundo às teorizações de Deleuze. 4 Quando apaixonada por Teseu, Ariadne conduz o fio que o guia para fora do labirinto de Minoutauro. Até esse ponto da lenda mitológica, a expressão “fio de Ariadne” é vulgarmente utilizada ao se referir à resolução de problemas a partir de uma série de fatores que se relacionam e, logo, corroboram essa solução. Na filosofia, ele se vincula à condução do homem a uma jornada interior de autoconhecimento. Depois desse ponto da história, há algumas versões sobre o destino de Teseu e Ariadne, uma delas é que Teseu a teria abandonado na ilha de Naxos, apesar de toda sua devoção, cumprindo ordem de Atenas; compadecida, Afrodite teria lhe dado o amor de Dionísio, o deus do vinho que, em Nietzsche, junto a Apolo, é retomado em repensação da sociedade ocidental moderna. 5 Referência ao personagem do livro e filme de mesmo nome Precisamos falar sobre Kevin (2012), que, a meu ver, é uma a história da tentativa de um resgate do tempo e do espaço em que algo se perdeu, não se trata de onde, mas de quando. Quando um afeto se circunscreveu tão radicalmente que Kevin tornou-se. Embora haja inúmeras possibilidades de interpretação e de conexões a serem feitas sobre sua história, a mais relevante e taxativa é a ideia de que há coisas cujas interseções e desfechos simplesmente nos escapolem. É um dos casos graves de imprevisibilidade dos frutos a serem gerados pelos afetos. Para mim, o grande desespero dessa história é exatamente saber que certas coisas simplesmente escapam. 6 Mesma expressão de Le Corbusier que é epígrafe de O engenheiro (1943), de João Cabral de Melo Neto, “... machine à émouvoir...”, quando posta a ideia de co-mover, mover junto, deslocar.

Flávia Figueirêdo

mineira de Montes Claros, é doutora em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora.


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MEU AMIGO "B" Conto de Rosângela Maluf ilustrações sebastião miguel

Mas sabe que olhando no espelho me dou uma Fico daqui pensando porque você não me quer de pince-nez e olhar por cima das lentes. Da rua vem um Djavan berrando num carro com o som dar atenção... idade bem menor? Uns Escrevo e-mails, envio mensagens idiotas, às mais distorcido que já ouvi. Não combina mesmo! vezes alguma coisa inteligente, mas você não liga, Djavan tem que ser ouvido baixinho, apreciado, dez anos menos. Talvez não dá a menor bola para o que mando ou deixo saboreado. E eu aqui, verificando a minha caixa de mandar. Via Internet tento retomar o que nem postal. Nenhuma resposta ao cartão bem humoporque sou miúda, bem começamos: um novo papo, novos escritos, rado que lhe enviei. Sabe de uma coisa? Em outra dizem que mulher perguntas tolas, como é que está o tempo aí, o que época já teria chutado você para escanteio mas você tem feito de bom, tem ido ao cinema? Uma hoje, aos 40 anos de idade, penso que não custa grande envelhece mais. ligação, é isto! Uma telefonadinha! Só para saber, insistir um pouco mais, dar uma pequena chance se você está ou não em casa numa hora dessas. à sorte. Quem sabe? Tudo é possível e eu não me Muito osso, muita Domingo, no horário do chato do Faustão. Ou não? esqueço, uma noite sequer, de rezar para São Judas Tadeu. E tem mais, acendo velas- velas e incenso Melhor não! carne, faz muita "spiritual guide", para que os bons fluidos embaAinda ontem o que se passava era exatamente vista. Por outro lado, lem meu sono. o contrário: minha caixa repleta de e-mails seus, poesias, versos, textos lindos, artigos, dicas de Mas ando com insônia, sabe...A vida não anda as menorzinhas ficam fácil para ninguém. Minhas amigas dizem a mesma compras, roteiros de viagens, e eu ali, lendo (e gostando). Respirava fundo, fechava os olhos, penali, aquelas coisinhas, coisa. Daí, se arrumar um homem já está difícil o sando em você, depois relia tudo, arquivava, lia de que dirá de se arrumar um daqueles de boa situanovo, mas nem sempre respondia. Às vezes me ção, sem filhos, se possível; viúvo (por medida de murchando aos poucos, segurança) e disponível para uma solteirona como chegava uma foto. Eu olhava, admirava as mãos sem assustar. brancas, ficava imaginando mil coisas. Se aquelas eu? A idade do lobo? Nessa altura da vida todos mãos fumavam, contavam dinheiro, acariciavam só querem comer chapeuzinhos vermelhos. Sobra ou agrediam, escreviam, tocariam algum instrumento, talvez pintassem mesmo pouca chance para nós. Mas sabe que olhando no espelho me dou telas cheias de sol e de flores. Um sorriso, o que haveria por trás daquele uma idade bem menor? Uns dez anos menos. Talvez porque sou miúda, sorriso tão monalisa? Na verdade nem era assim tão misterioso mas me dizem que mulher grande envelhece mais. Muito osso, muita carne, faz despertava muita curiosidade. O proibido, o oculto, o desconhecido tal- muita vista. Por outro lado, as menorzinhas ficam ali, aquelas coisinhas, vez. Telefonar eu não telefonava, vozes trazem perigo, sempre! E se fosse murchando aos poucos, sem assustar. a voz do Neil Diamond cantando no Jonathan Livingston Seagull? Aquela Será que você, meu amigo B, vai desaparecer como todos os outros? voz que me fez chorar quando fui ver o Fernão Capelo Gaivota. Ah, a Será que conseguiu alguém que lhe dê mais receitas, lhe envie temperivoz do Neil Diamand Glory, glory, day...era um filme tão lindo que eu nhos exóticos e aí não fala mais comigo, nem deixa recados. Estou penpoderia contá-lo inteirinho para você, poderia até cantar alguns trechos. sando em desistir de você. Seriamente decidida. Nos falamos há algumas Escanear fotos de cenas do filme. Ai, que horror, cantar e contar um filme semanas, assuntos sem muita importância, mas eu sempre querendo tão antigo. Aí é que você não apareceria mesmo, nunca mais! mais de você. Quando desligo o computador fico com a impressão de Meu caro amigo B... Bernardo? Benito? Bruno? Bento? Ah, Bento não, que poderia ser mais incisiva, mais assertiva, não divagar tanto. Você, não gosto do nome, me faz pensar em professor de matemática, daqueles por outro lado, também se mantém distante, intencional ou não, o fato


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é que isso não nos aproxima. De você, sei menos do que gostaria. Olho por repetidas vezes a mesma foto antiga. Só de rosto, bem de pertinho, onde se vê claramente o verde escuro de uns olhos grandes, por detrás das lentes grossas. E monalisa ainda lá, naquele sorriso pouco revelador. Já fomos mais frequentes em nosso falar. Tínhamos quase um compromisso vespertino de entrarmos no mesmo horário na sala 19, aquela do bate papo do pessoal da culinária, lembra? Eu que nunca gostei de cozinhar, achava aquilo uma chatice, mas ia mesmo assim. Vocês falavam dos peixes, das ostras, lulas e camarões e eu ficava mareada só de ler tudo que todos escreviam. Mas se houvesse um convite mais expresso, um jantar, por exemplo, eu bem que aceitaria, mareada e tudo. Mas ...que jantar ? Estou mesmo louca! O telefone toca. Nunca atendo da primeira vez. Gosto de dar a impressão de que estou muito ocupada e só na 5ª

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chamada digo:- Hello!! Ninguém responde. Alô!! Alô... Desligo. Um frio na barriga... e se for ele? Ah, que pena, eu não tenho bina...e se tocar de novo, pergunto ? - É você, B...meu amigo? Mas não, o telefone não toca mais. Acho que fiquei irritada e logo eu, que parei de fumar, acendo um lápis imaginário e faço rodinhas de fumaça no ar. Em algum lugar da minha agenda do ano passado, tenho o seu telefone. É o cúmulo, vasculhar agenda para encontrar um telefone antigo. Que bobagem, se eu ligar o que de mais poderá acontecer? Você poderá dizer que nem me reconhece a voz. Peço desculpas, foi engano, desligo. Pode se mostrar indiferente, o que será ainda pior, faço de conta que me sinto desinteressada também, me desculpo mas desligo primeiro. Melhor não. Dona Cocó dizia lá na minha cidade do interior: mulher correndo atrás de homem é igual linguiça atrás de cachorro. Eu ficava imaginando a cena. Dona Cocó me repreenderia e ajeitando seu chapéu imaginário e


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arrastando roupas de princesa pelas calçadas afora, diria: homens, eca! D. Cocó era louca, mas sábia. Sabia inventar histórias, relatava fatos estranhos, contava mentiras, relatava sonhos premonitórios e nem sei por que penso nela agora. Quero voltar a pensar em B. Desejaria tanto ter continuidade com ele. Chega de bilhetinhos, conversinhas, e-mails pra lá e pra cá. Me falta coragem! Goiânia é tão longe de São Luiz e eu fico daqui, indo e voltando para a Secretaria de Saúde onde, por detrás da mesa, fico vendo a tarde passar com preguiça, lá fora. Nem mar eu vejo, nem palmeiras ao vento eu tenho. Tenho sim, um computador só pra mim, uma sala grande com uma chefe mal humorada e mais dois funcionários, peixinhos do secretário, daqueles que nada fazem, sabe como é... No final do expediente, faço de conta que estou atrasada com o serviço e entro na sala 19, para falar de culinária e conversar no reservado com B. Meu coração dispara quando vamos para o reservado. Nada de mais se passa ali, mas fico imaginando que estamos a sós e isso sim, me esfria a barriga. Fico tímida, envergonhada, que boba eu sou. B. nunca me disse seu verdadeiro nome e para ele, sou Linda Flor! Ele mais fala do que me escuta, talvez por ser muito inteligente, tem muita história para contar. Até conhece Minas Gerais! Mandei para ele umas receitas de comida mineira. Por que passei em concurso público e estou morando em São Luiz do Maranhão, mas sou mineira, do interior, do Vale penoso do Jequitinhonha e nem assim gosto de cozinhar não! Fico pensando nas minhas prosas com B. Penso que tudo pode ser mentira, mas que também pode ser verdade. E se ele viesse ao Maranhão, eu pensei: posso convidá-lo, seria tão bom conhecê-lo de verdade, ver ao vivo o sorriso monalisa, constataria a brancura de suas mãos, poderia

mostrar a cidade, levar a restaurantes, arroz de cuxá. Visitar os Lençóis. Lençóis? Será? Outros lençóis estariam nos planos de B? Djavan já não berra mais, o vizinho aqui do lado resolveu desligar o som. A tarde já se vai, sopra um ventinho bom e daqui a pouco volto para casa. Antes preciso digitar umas coisas e esperar que B. dê sinal de vida na telinha do meu computador. Enquanto isso todos os outros se preparam para sair. Você não vem, B? Logo hoje, 6ª. Feira, eu queria tanto falar com você. Fico esperando, esperando, esperando. Nada. Todos chegam e nada de B. Não tenho o que fazer em casa mas essa espera me deixa ansiosa. Eu que não fumo mais, agora mastigo a ponta da minha bic preta e coloco, de uma só vez, 3 caixinhas de chicletes na boca. B não vem mais. Amanhã tento de novo, se bem que aos sábados o pessoal da culinária não aparece na sala 19. Já aconteceu de B aparecer por lá, mas é sempre muito rápido. Desligo o computador, ajeito minha mesa, enfio o que posso nas gavetas, pego minha bolsa e saio. No elevador encontro Ben, um colega que trabalha aqui, numa sala bem ao lado da minha. Fico olhando para ele, aquelas mãos brancas, um sorriso de monalisa, sempre tão animado, alegre, leve, suave, de bom humor. Penso que sua companhia me poderá fazer bem... Aceito seu convite para um chopinho, afinal hoje é sexta feira!

Rosângela Maluf

é mineira, pós-graduada em Marketing, professora universitária e consultora de empresas.


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O APÓSTOLO ROSÁRIO FUSCO Joaquim Branco

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assaram-se mais de 40 anos da morte de Rosário Fusco (1910-1977), e só agora, após a leitura d’O livro de João, pude concordar com o que o nosso autor me confidenciou certa vez: “este é o meu melhor livro”. Composto de 31 capítulos em 272 páginas, edição da Epasa em 1944, confesso que comecei mal a leitura do 1º capítulo. Só fui me interessar mais lá pelo capítulo IV, página 44, e apenas me entusiasmei na metade do romance, quando descrições e reflexões surgiam mais amiúde e alternadamente penetravam na trama. “Vinha com ele [o vento] um cheiro de mato, cheiro rural de chácaras e pastos orvalhados, que o olfato identificava no espaço e a memória situava no tempo. A meninice voltava, por instantes, nas asas da manhã.” João, o protagonista-narrador, conta a história ora em 1ª pessoa, ora em 3ª, como melhor convinha à narrativa. Como nesta 3ª pessoa: “E João arrumava as malas, pregava suportes na parede”, que admite a introspecção: “Hoje, o jantar será especial, João. [....] tens que te preparar para a infalível exibição.” Ou nesta 1ª pessoa: “Cada palavra dela me caía no ouvido como uma pedrada – mas as pedras transformavam-se em sons e os sons compunham a valsa vienense do restaurante.” A impressão que me ia ficando da ‘convivência’ de alguns dias com João, Moreira e Carmélia – o triângulo amoroso e centro das ações – era de que ali estava o romancista pronto aos 34 anos, totalmente consciente do manejo ficcional, em seu segundo romance. Gira o enredo em torno de um casal – Moreira (fotógrafo meio malandro) e Carmélia – que acolheu João

(funcionário de um laboratório) em sua casa num subúrbio de uma grande cidade (certamente o Rio de Janeiro). Os demais personagens vão rareando quando a trama começa a se concentrar no trio principal. Os bondes, o trânsito, as distâncias, os cafés, as praias, casas de prostituição identificam a ambiência de uma metrópole brasileira dos anos 40, como se pode perceber neste fragmento em que o narrador aponta o dedo para a obviedade, mas com sentido de descoberta: “(...) o subúrbio não era abandonado, era uma positiva mentira o conforto da cidade, a sedução do centro. Não se mora nos jardins, nas lojas de luxo, nas praias: mora-se num quarto, numa sala, numa casa.” De repente senti que o romance se escrevia sozinho – me lembrando uma observação de Hemingway – para um leitor atônito ante exposição tão crua e verdadeira da natureza humana ficcionalizada com maestria: “Só me satisfaz uma morte que abale a terra, escureça o sol, rasgue o véu do templo”. “Nas guerras morrem milhões: sem rezas, sem arrepios, sem comoções dos presentes, sem ao menos um pregão anunciando algo – ‘morreu por isso ou por aquilo.'" Sucedem-se a cada capítulo, ora em monólogo interior, as vozes individualizadas do protagonista e do narrador, ‘dividindo’ o mesmo personagem: “Fuja do jamais, João, não há jamais. Sim, não há jamais porque o tempo é meu, mora em mim, dentro de mim, num lugar onde não existem paredes separando o presente do passado e o passado do futuro, onde tudo se liga, porque tudo nasceu ligado com o mundo, antes das coisas terem nomes, antes das eras, antes da história, milênios antes de nasceres, João, se te satisfaz participares nominalmente do mistério.”

Vinha com ele [o vento] um cheiro de mato, cheiro rural de chácaras e pastos orvalhados, que o olfato identificava no espaço e a memória situava no tempo. A meninice voltava, por instantes, nas asas da manhã.

O livro de João me lembrou, pelo título, desde o princípio da leitura, um outro romance de Rosário Fusco – Dia do Juízo –, publicado em 1961, quase 30 anos depois. Portanto, fiquei como que esperando o que viria, e na página 116 encontro: “Coincidira aquele momento com o Juízo Final cotidiano a que estamos sujeitos? [....] Não há nada que se faça, de bom ou de mau, sem consequência. Se não a percebemos não quer dizer que não exista. Todo caminho começa por um passo. Dou o passo, mas não vejo o que piso, o que tenho debaixo dos pés.”


Fotos: Arquivos pessoas

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Os escritores Vinicius de Moraes e Rosário Fusco e a atriz Gessy Gesse

Não só esse, mas os motivos bíblicos ‘perseguem’ o narrador: “Como o paralítico do Novo Testamento, eu carecia da palavra, de uma palavra – tácita ou expressa num gesto – para caminhar. Não basta traduzires, João, nem indicares traduções a serem feitas.” Na página 252, leio o complemento na mesma tecla, em vozes que se alternam: “Não colocava o pecado sob o signo do imprevisto: marcava-lhe data, hora e lugar, porque só está fora do tempo e do espaço o Dia do Juízo. Pode ser agora, no momento em que escrevo, pode ser

joaquim branco

O jovem Rosário Fusco, autor de Carta à Noiva e O Livro do João, entre outros

logo mais, talvez amanhã, acaso daqui a milhões de séculos. O relógio que o apontará não fica na parede, nem no bolso, nem no pulso, nem na mesa da cabeceira, nem na escrivaninha do laboratório, nem na torre da igreja, nem na coluna do abrigo de bondes, nem no alto da estação: está dentro de ti, João, dentro de todos, pingando como a torneira da casa do fotógrafo, sem te encher, como a chuva não enche o mar e o volume deste é sempre igual, receba ou não as águas de todos os rios da terra.” No espaço destas breves considerações, não

é possível mostrar integralmente a grandeza desta obra de Rosário Fusco, mas por suas últimas palavras – poéticas, demiúrgicas – pode-se entrever o que deixei de anotar: “Eu estava solto nos topos da terra, entre gases desconhecidos e poeira, paralelos e meridianos, arranhando a cabeça nas constelações. Testava as mãos nos trópicos e andava de patins nos fios de círculos polares, íntimo dos astros, sem testemunhas e sem ligações. Mas os espíritos dos meus mortos – amigos e conhecidos – não me fiscalizariam porventura?”

mineiro de Cataguases, é poeta, crítico, professor de literatura. Doutor em literatura comparada pela UERJ. Publicou, entre outros, os livros Passagem para a Modernidade, Jogo de palavras, Janelas de leitura.


março/abril 2018

Clara e os gatos Conto de Lúcia Freitas Clara não sabia como fora. Por onde tudo se passara. Nem mesmo sabia se passara. Sobre a margem da mesa, os frios longos lírios de cera de procissão esperavam uma decisão sobre amar ou não. Todas as mulheres da casa esperavam a decisão que viria daquele silêncio na cozinha. Clara nunca soube se depois do silêncio teria havido uma resposta. Não entendia se podia haver uma resposta. Os gatos ainda estavam no porão. Um calor sufocante vinha de lá... maiô de lã, a caixa d’água no telhado do terceiro andar da casa, o vento lá em cima, a malandragem de Clara e seus olhos na escadaria vermelha, no chão de tijolos, quando vomitava. Tantos sinos tocando o cinza, a paralisia, o prato de folha colhendo o sangue da garganta da ave que nunca devia ser a sua. Em cima, a família, Clara e vestidos marfim, batons, colares, sapatos de salto. Não havia nada que definisse seus hábitos. Adorava, às vezes, ver seu pai gritando para ver-lhe a língua vermelha fazendo malabarismos diabólicos no limite dos lábios finos e escuros e os lábios esbranquiçados da mãe, de quem nunca vira a língua nessas horas de dentes cerrados, braços se debatendo no ar, a carne branca aparecendo aqui e ali. Logo tampava os ouvidos e fechava os olhos repetindo, eu não sei, eu não sei, eu não sei, e saía pra rua – quem vai morrer dessa vez, vou saber por que dessa vez? Naquela manhã, a casa ofegava. Eram os gatos no porão que se apossavam do escuro. Estavam lá. As pulgas não paravam nos seus pelos e passeavam pela intimidade do segundo andar. Só Clara não via as pulgas. Não sentia coceiras e não sabia dos gatos. Uma de suas irmãs catava pulgas nas dobras do cobertor à noite toda. Apertava alguma coisa estalante entre as unhas, e continuava a catar e a achar mais pulgas e pulgas e a matá-las entre as unhas. Não dormia mais. A mãe decretara guerra. Clara se levantou. Ainda de camisola e descalça correu ao terreiro, no fundo dele, pisando no podre do chão do galinheiro, patinando na lama escura de estrume, terra e restos de comida. Quis pegar duas galinhas. Corria no galinheiro imenso, tentava alcançar os poleiros, as aves ágeis e Clara ágil de deslizar descalça até que se deparou com o velho armário de livros que despencou sobre ela. Estava no chão, o cheiro de esterco ácido colado em seu rosto, a camisola branca úmida e pastosa, a lateral dos braços naquele frio mole, coração aos pulos, a dor sobre ela. Conseguiu livrar-se do jugo do peso, temendo ser vista no que achava ridículo. O armário avançara sobre ela. Clara o levantou assustada e o colocou, ainda bamba do esforço, junto ao muro lateral, úmido das chuvas. Jamais se esqueceu em toda a sua vida do primeiro aviso que recebera. Conseguiu enfim as duas galinhas. Foi ao tanque, no patamar superior do terreiro, encheu-o de água e testou a morte. Pegou as galinhas pelos pés e as afogou aguardando o tempo de darem o último repuxão de asas. Aí as retirou e deixou que recuperassem o fôlego. Em seguida, as enfiou no tanque e começou tudo de novo, quatro, cinco vezes. Depois as soltou de volta ao galinheiro e foi para os tambores de água ao lado do tanque. Enfiou sua cabeça neles – o cheiro de ferro e zarcão na água – e ficou ali inerte, por muito tempo, até se sentir tonta a ponto de desmaiar. Retirou a cabeça da água, apoiou-se nos tambores com os dois braços e começou tudo de novo, quatro, cinco vezes. Terminado, entrou no tanque e lavou-se, roupa e tudo, enrolou-se num lençol, subiu pela janela do último andar, pelo telhado em cima da garagem, entrou em seu quarto e tirou o vestido da gaveta do camiseiro. Calçou seus chinelos, caminhou andar abaixo onde o barulho de água na pia da cozinha era o que se ouvia. Ela ainda se lembra do escuro que fazia naquela manhã, a cozinha com um único basculante grande no canto esquerdo, que dava para o terreiro, sobre uma pia redonda que nunca se soube para que servia. Por que sua mãe sempre parecia uma

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as curvas da escada quase de quatro, batendo as mãos nas duas cantoneiras de madeira na primeira quina, passando seu anel de lata no corrimão de ferro. Pararam no alto e mal conseguiam respirar. Eles se olhavam assustados e Clara não sabia o que dizer. Ele a olhava; por que o segredo? Clara não conseguia responder. Temia invadir aquele escuro e lhe contou sobre o circo que viria no outro dia na cidade, e dos leões e tigres que poderiam se soltar das jaulas durante a exibição. Desceram as escadas e Pedro sabia que o segredo era maior: Não entre lá, fique na porta do depósito; e lhe deu a mão, como iria acontecer muitos anos mais tarde, várias vezes entre eles, que os olhos e as mãos de Pedro inundam Clara do primeiro afeto de sua vida. Não havia possibilidade. Clara lembrou-se da porta amarelada de madeira vagabunda do depósito. Sempre entreaberta. Sem chave, empenada. Aqueles gatos eram o demônio, poderiam ser, ela desconhecia essas coisas. Não sabia que eles estariam tão fortes, que eles se pareceriam tanto com os demônios que habitavam aquela casa, de dia e de noite, tanta água benta em todos os cantos, como era invocado ali, como tudo estava impregnado dele, e como seu pai gritava e sua mãe gritava e todos gritavam quando se falava dele, do diabo, da fera, do Besta. Também não sabia da mutação dos gatos em fera, conhecia seres ou feras, não sabia que se transmudavam, nunca vira bebês crescerem, não se via crescer, sempre se achando igual a cada dia, todos iguais a cada dia, só se espantava de ver a negra batendo claras molengas e transparentes até virarem neves brancas, de uma consistência que nunca conseguiu nomear. Não eram duras, nem firmes; as claras em neve nunca tiveram nome próprio: sempre foram claras em neve, e claras não são como neve; podem parecer espuma, que tem nome, mas são claras brancas, e sua consistência nunca se nomeou, nunca se soube. Nunca achou que se podia dizer firmes as claras em neve; era próximo, mas essencialmente diferente, nem duras, forte demais para as claras. Portanto, a única coisa que espantava Clara era ver transformarem-se em sua frente, nas batidas de garfos duplos pelas mãos, as claras, e disso, quando transformava, ela nunca soube o nome. Então, suas pernas foram ao patamar debaixo da escada, suas mãos usaram a escova em seus dentes, a espuma branca descendo ao estômago, seus olhos procurando um reflexo de Clara na parede branca, cheia de pregos para dependurar as escovas pelo cabo e em seus ouvidos entraram os gritos. Não se lembra de como caminharam para lá. A lembrança dos gritos na porta e o escuro imenso fugindo de dentro e entrando pela sua boca, pedindo silêncio e segredo enquanto lhe escancarava a boca e a garganta, a olhava de forma feroz amendoada e negra, e com as garras deslocava seus maxilares, tudo dentro de Clara, de uma só vez. Esteve frente a frente com um deles e teve medo de nunca mais parar de gritar. Os irmãos estavam cegos e desgovernados, batendo no escuro, gritando com o escuro. Só ela esteve no ponto de vê-los, só ela viu os olhos que não a deixavam mais dormir sem muitos sonhos. Nunca soube o que teria compreendido para sempre. A família deu tudo por acabado. Lúcia Freitas é mineira de Belo Horizonte. Formou-se em Direito

lúcia freitas

é mineira de Belo Horizonte. Formou-se em Direito pela UFMG. Seu primeiro livro de contos, Quase terno, foi lançado este ano.


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a modernidade de Ingmar Bergman Mário Alves Coutinho Essencialmente, (...) todos seus filmes são sobre ele mesmo. Peter Harcourt, Six european directors I Ao começar a caracterizar a modernidade de Ingmar Bergman, entro logo de início numa contradição radical, pois o primeiro signo desta modernidade, para mim, é exatamente o quanto o diretor sueco é o herdeiro de toda uma arte clássica. Modernidade, classicismo e tradição: ele procurou e tentou insistentemente, repetidamente, fazer uma releitura da arte clássica, romântica, naturalista. Ou então, numa outra chave, tratar dos mesmos temas, procedimentos e conclusões. Mais do que qualquer outro cineasta (com a possível exceção, ironicamente, de Jean-Luc Godard), ele afirmou a tradição, as grandes obras teatrais, literárias, poéticas, musicais e mesmo filosóficas da história e cultura humanas. A propósito de tudo isso, escreveu Peter Harcourt: mais do que qualquer outro diretor, a obra de Bergman está enraizada no passado. Seus primeiros filmes (...) invariavelmente se preocupam com temas tradicionais. II Classicismo, tradição e modernidade: os grandes autores modernos não são todos eles descendentes de obras clássicas? James Joyce, ao criar o romance moderno por excelência, Ulisses, não usou como esquema de referência a Odisséia, de Homero, uma epopeia com mais de dois mil anos de existência? Marcel Proust, ao escrever Em busca do tempo perdido, não usou alguns autores da literatura clássica francesa, particularmente um Montaigne, o moralista e Saint-Simon, o cronista de uma sociedade decadente, como definiu Otto Maria Carpeaux? Outro gênio modernista, Hermann Broch, ao escrever A morte de Vírgilio, não examinou as últimas 18 horas de vida do poeta do Império Romano, Vírgilio, e não usou estruturalmente alguns de seus poemas? E quanto aos pós-modernistas, que transformaram a citação, o intertexto, a cópia e o plágio de qualquer obra, de qualquer estágio da cultura, em esquema (estrutura) de criação? Poderíamos perfeitamente definir Bergman como também pós-moderno, mas sejamos mais modestos e fiquemos, apesar de tudo, somente com a modernidade de Ingmar Bergman... III Nesse sentido, poderíamos nos lembrar da apropriação que faz Bergman da história da arte ocidental. Alguns poucos exemplos poderiam ser lembrados (outros serão dados no decorrer deste texto). A mãe de Alexander, que é atriz de teatro, em Fanny e Alexander, diz para o menino: “não banque o Hamlet comigo, seu padrasto não é o rei e onde vivemos não é nenhum castelo”. Ora, apesar da negação da personagem, Fanny e Alexander é exatamente isto: uma releitura de Hamlet, de


Ingmar Bergman usou vários códigos artísticos, criou em várias linguagens e, na verdade, é um artista verdadeiramente multimídiático, o que é um fenômeno moderno por excelência. Ele se iniciou como diretor de teatro, sua primeira atividade no campo cultural.

O diretor sueco Ingmar Bergman (1918-2007), um dos realizadores mais influentes do cinema


março/abril 2018

Shakespeare (ironicamente, o pai do menino, também ator de teatro, morre enquanto está ensaiando e encenando o papel do fantasma, do pai, em Hamlet...). Ou a filmagem que Bergman realizou, de A flauta mágica, originalmente, uma ópera de Mozart. Ao se transformar no herdeiro, comentador e intérprete do que de melhor a cultura humana produziu, Bergman simplesmente repetiu os grandes modernistas. IV Ingmar Bergman usou vários códigos artísticos, criou em muitas linguagens e, na verdade, é um artista verdadeiramente multimidiático, o que é um fenômeno moderno por excelência. Para começo de conversa, ele se iniciou como diretor de teatro, sua primeira atividade no campo cultural: a quantidade de autores que encenou é enorme e reveladora (nos deteremos em alguns, posteriormente). Depois, escreveu peças de teatro, que ele mesmo encenou. No cinema, começou escrevendo roteiros para outros diretores (Alf Sjoberg, Gustav Molander). Dirigiu 67 filmes que, na sua grande maioria, foram escritos por ele próprio. Também dirigiu filmes para a televisão, alguns deles registrando as encenações que havia feito no teatro. Dirigiu peças de teatro em programas de rádio. Escreveu livros: sua auto-biografia, ensaios, romances e roteiros. Dirigiu nove comerciais para o sabão Bris. Dirigiu duas óperas: A flauta mágica, de Mozart e Rake´s progress, de Igor Stravinsky. Um criador em várias linguagens artísticas, portanto. V Ingmar Bergman, no cinema, primeiro e antes de tudo, usou o vasto repertório teatral que ele encenou e/ou conhecia. Sorrisos de uma noite de amor não é uma releitura de peças de Shakespeare (que ele encenou repetidamente: Rei Lear, Macbeth), e particularmente A midsummer night’s dream (Sonhos de uma noite de verão, que ele não encenou, mas certamente leu). Gritos e sussurros, que poderia se chamar, muito apropriadamente, As três irmãs, não poderia ser uma alusão e/ou releitura de As três irmãs, de Anton Tchekhov, peça esta encenada por Ingmar Bergman? Os quatro atores/ personagens (Max Von Sydow, Erland Josephson, Bibi Anderson e Liv Ullmann) que são entrevistados em A paixão de Ana (1969): não poderia este filme ser chamado de quatro atores em busca de um diretor, lembrando o Seis personagens em busca de um autor, de Luigi Pirandello, que Bergman encenou por duas vezes (em 1953 e em 1967)? Não se encontrariam reminiscências de O primeiro Fausto, de Goethe e O Castelo, de Franz Kafka, ambos encenados na década de cinquenta, em A hora do lobo (filmado em 1966)? Nos filmes em que ele faz metacinema (Persona, Prisão, A paixão de Ana, A hora do lobo) não estaria ele usando o distanciamento, método criativo do pensador e escritor Bertolt Brecht, do qual ele dirigiu em 1950 A ópera dos três tostões? Prisão (1949) não teria sido feito depois de uma leitura de Entre quatro paredes (Huis Clos), peça de Jean-Paul Sartre, que ele não encenou, mas que devia conhecer? Bergman encenou Calígula, de Albert Camus, em 1946; em todo caso, a frase mais conhecida de Huis Clos, “o inferno são os outros” não seria o resumo mais bem acabado deste filme, e de quase toda obra bergmaniana? Evidentemente, acho eu, se concordássemos, ao mesmo tempo, que o paraíso, também, são os outros... Mais alguns autores encenados por Bergman: Tennessee Williams, Edward Albee, Jean Anouilh, Molière, Peter Weiss, Yukio Mishima, Witold Gombrowicz, e tantos outros... Quanto ao seu compatriota August Strindberg, do qual encenou muitas peças, e seu quase compatriota, o norueguês Henrik Ibsen, poder-se-ia fazer cursos de literatura comparada cotejando exatamente algumas peças de algum destes dois autores, e um determinado filme de Bergman, tal o parentesco destes três autores escandinavos. Foi pensando

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24  Inicialmente um herdeiro das artes clássicas e, no nisto que Peter Harcourt escreveu que Morangos Silvestres tem muitos temas em comum com as últimas peças de Ibsen, com John Gabriel Borkman [que Bergman encenou] e quando despertamos de entre os mortos.... Poder-se-ia também, facilmente, escrever livros, mostrando a influência do filósofo escandinavo Sören Kierkegaard na obra de Ingmar Bergman...

interior da criação cinematográfica, um pesquisador dos recursos expressionistas,

dos homens, a não ser quando as encenações são filmadas, o que Bergman realizou em alguns casos). Nos seus filmes, pois, Bergman foi também um herdeiro do que melhor havia sido feito – mas também do que estava sendo realizado naquele momento, como se verá – no cinema.

VIII Para início de conversa, Ingmar Bergman foi neorrealistas e VI certamente um herdeiro do cinema expressionista Um dos maiores signos da modernidade de alemão. Os jogos de luz e sombra, na fotografia e hollywoodianos, Ingmar Bergman é o uso que ele faz da música na composição dos planos, são partes integrais do na sua obra cinematográfica. Ela está no título de cinema de Bergman. Assim como a luta perene gradualmente, talvez muitos de seus filmes (o título, segundo o escritor entre o bem e o mal, em praticamente toda sua argentino Ernesto Sabato, é a metáfora mais imobra. E o aparecimento de algumas figuras míticas, contra a vontade, portante de uma obra): Música na noite, A flauta como monstros, demônios e anjos, importantes mágica, Sonata de Outono, Sonata fantasma; diverinconscientemente, Ingmar na imaginação expressionista e bergmaniana (A sos de seus personagens são músicos (em Música na hora do lobo, O sétimo selo e O rosto, por exemplo, noite, Rumo à felicidade e A vergonha, por exemplo). são exemplos possíveis desta característica bergBergman se transformou maniana). Já o neorrealismo italiano, cujo apaAs músicas de Bach, Mozart e Chopin, e alguns outros compositores clássicos são onipresentes nas num dos grandes cineastas recimento coincide com os primeiros filmes que Bergman dirigiu, vai também repercutir nas suas trilhas sonoras de seus filmes. Não seria Sorrisos primeiras obras. Porto e Chove sobre nosso amor, de uma noite de amor uma releitura estrutural de da modernidade, criando As bodas de Fígaro, de Mozart, mais Sonhos de uma por exemplo, com seus personagens proletários, noite de verão, de Shakespeare, e mais A regra do sua preferência por cenários reais, coincidem com um cinema propriamente jogo, de Jean Renoir? Quando Bergman quer metaexatidão com alguns dos dogmas neorrealistas. forizar a decadência moral, política e ideológica do Ainda nos seus filmes iniciais, quando Bergman de invenção. começa a localizar seus personagens na sua próséculo XX, e retratar o fascismo que vive em cada um de nós, em A vergonha, sua simbolização tem tudo a ver com a música: pria classe social, e algumas vezes estabelece-os como músicos (como em o casal de músicos deste filme já tem algum tempo não consegue mais Música na noite e Rumo à felicidade), podemos perceber claramente uma praticar sua arte. Jan (Max Von Sydow), neste mesmo filme, e não por tentativa de aprender e usar uma narratividade hollywoodiana tradicioacaso, se transforma em um assassino frio, nada reconhecível para sua nal, onde, diferentemente de seus filmes mais maduros, as narrativas são mulher, pouco depois que seu violino é destruído pela guerra: a eliminação claramente resolvidas, quer de maneira trágica mas retumbante (caso de de seu meio de vida, da sua profissão e do seu instrumento destrói a ele Rumo à felicidade), quer de uma maneira mais leve e otimista (caso de próprio. Bach e algumas de suas obras (principalmente os concertos para Música na noite). Ingmar Bergman, mesmo quando adicionou a tudo isto celo) são simplesmente, em diversos filmes de Bergman (O Silêncio, Gritos sua maneira pessoal de fazer cinema, nunca deixou de lado sua herança e Sussurros, Através de um espelho, por exemplo, mas também em inúme- expressionista, neorrealista e mesmo hollywoodiana. ros outros) o que a civilização pôde produzir de melhor e mais sublime, algo que justifica inclusive a espécie e a história humanas. Como disse o IX E quanto ao estilo pessoal de fazer cinema, que Bergman começou filósofo romeno-francês Cioran, se alguém deve tudo a Bach, este alguém é Deus. Bergman acrescentaria, sem nenhuma dúvida: Deus e todos nós, a desenvolver já na década de cinquenta? Na década de quarenta, nos seus primeiros filmes, ele procurou, como vimos, aprender o cinema da seres humanos. melhor maneira possível, ao tentar usar diferentes estilos e escolas. No fim da década de quarenta e na década de cinqüenta, começam a apaVII Portanto, a arte em que ele realmente criou todo um universo pes- recer os exames existenciais de personagens e situações, numa fórmula soal, reconhecível, próprio, foi o cinema (no teatro, ao encenar inúme- que poderia ser aproximada do existencialismo (o olhar do outro me diz ras peças, ele interpretou o universo de outros autores, não criou um quem eu sou; os atos dos personagens, e não o seu discurso, os define). universo próprio, pessoal. O que havia de pessoal na encenação se per- Mas desde a década de quarenta, em Prisão, já aparece uma das marcas deu: sendo uma arte do instante, o teatro não deixa registro na memória registradas de Ingmar Bergman: o cinema dentro do cinema.


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Este filme começa com um homem (que depois saberemos ser um professor) entrando num estúdio, procurando um diretor (que foi seu aluno) e conversando com ele sobre a ideia básica de um filme: a vida humana na terra é uma prisão, na verdade, um inferno, comandada pelo diabo. Aos dez minutos, uma inovação: somente então os créditos do filme são falados por uma voz (que parece ser de do próprio Bergman), e não impresso no início do filme, como é o costume. Desde o início, portanto, e durante muitas passagens desta obra, um filme é rodado: o cinema se examina e pensa sobre si mesmo. Em Uma lição de amor, uma narrativa (e um narrador, portanto) são aludidos (e ouvidos) logo no começo; mas nenhum sinal do cinema é mostrado. Em Persona, logo nos primeiros planos, vemos um arco voltaico, isto é, dois carvões que, quando se tocam, se incendeiam, produzindo a luz que, através de um espelho, projeta o filme na tela: esta era a maneira que os filmes eram projetados, até alguns anos atrás. Logo em seguida, vamos ver duas personagens, uma atriz e uma enfermeira, que, ao se aproximarem, vão produzir a narrativa que veremos durante cerca de 85 minutos. No meio da narrativa, a projeção do filme apresenta um problema, o celulóide se rompe, e é neste exato momento que os personagens estão em luta, e a agressão é a tônica mais presente. No final, quando parece que as duas personagens se separam, os dois carvões se separam, também, a luz se extingue e o filme termina. A exibição cinematográfica metaforiza as relações entre as duas personagens. Em A hora do lobo, logo no início, nos créditos, a trilha sonora revela algumas conversas em estúdio, e a voz de Bergman. Em A paixão de Ana, os atores do filme são entrevistados, e descrevem como pensam e interpretam os personagens que representam. Como escreveu Peter Harcourt, comentários diretos dos atores sobre os personagens que eles interpretam funcionam muito bem no filme. Eles não somente nos distanciam levemente da ação numa chave brechtiana/godardiana, nos lembrando que no final das contas estamos somente vendo um filme... Inicialmente um herdeiro das artes clássicas, e no interior da criação cinematográfica, um pesquisador dos recursos expressionistas, neorrealistas e hollywoodianos, gradualmente, talvez contra a vontade, inconscientemente, Ingmar Bergman se transformou num dos grandes cineastas da modernidade, criando um cinema propriamente de invenção. Conforme a taxonomia (classificação) de Ezra Pound, continuou a ser um mestre, mas passou a ser um inventor de formas. Um pouco como Jean-Luc Godard, um dos seus discípulos mais célebres (alguns outros: Woody Allen, Robert Altman e Andrey Tarkovski; este último, ele produziu na Suécia), que desejou fazer um cinema de gênero (policial e comédia musical), mas que, devido a uma incapacidade criativa de copiar (conceito do brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes) inventou uma nova linguagem cinematográfica. X Portanto, Bergman é também um dos grandes cineastas da modernidade também pela invenção de linguagem, e pelas influências que seu cinema deu origem. Não seriam as repetidas referências ao cinema na obra

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de Godard algo que ele aprendeu com o mestre sueco? Sua conhecida tática do distanciamento – a todo instante lembrar ao espectador que ele está diante de um filme, e não da vida, como parece ser a pretensão da narrativa hollywoodiana típica – brechtiano, originalmente, não teria sido aprendida com Bergman? Ou teria sido o contrário, como comenta Peter Harcourt? Joseph Losey, um diretor que aprendeu enormemente com Bertolt Brecht, escreveu certa vez que poucos filmes eram tão brechtianos como A fonte da donzela. Mas existe algo mais. Quase no final de Monica e o desejo, a câmera fecha sobre o rosto de Harriet Anderson, e filma um longo grande plano desta atriz, onde ela olhando descaradamente para a câmera, desafia o espectador (ela está prestes a trair o herói do filme) e, ao mesmo tempo, revela uma enorme tristeza. Admirável plano, que o próprio Bergman assim descreveu: aqui está estabelecido um contato direto e desavergonhado com o espectador. Pois bem, desde o seu primeiro filme, Acossado – onde Belmondo encara a câmera, e desanca quem está vendo o filme (se dirigindo ao espectador, ele diz que se você não gosta do mar, das montanhas e da cidade, vai te foder – passando por muitos outros (em Pierrot le fou, por exemplo, Belmondo pergunta a Karina com quem ela está falando, quando ela se dirige à câmera, e ela responde: “com os espectadores”), Godard sempre fez questão de usar esta relação direta do ator com a câmera e, portanto, com o espectador. Mais um aprendizado e mais uma influência de Ingmar Bergman sobre Jean-Luc Godard. Em uma sequência de Weekend à francesa, a personagem de feminina de Godard narra e detalha para o amante um momento de sua vida no qual ela participou de uma longa e erótica cena sexual. Este filme de Godard foi realizado dois anos depois de Persona, onde Alma (a enfermeira) conta para Elisabet (a atriz) como se viu envolvida numa orgia sexual com dois jovens e uma amiga. Nos dois filmes os dois episódios são somente narrados oralmente, e não mostrados pela imagem. A força da palavra nunca foi tão grande como nestas duas obras cinematográficas. XI Jean-Luc Godard, antes de dirigir filmes, foi um importante crítico e ensaísta de cinema, na revista Cahiers du Cinéma, na década de cinquenta. E lá escreveu algumas das suas mais belas páginas exatamente sobre o cineasta sueco. E particularmente sobre Monica e o desejo: Bergman é o cineasta do instante e [Mônica e o desejo] é o filme mais original, do mais original dos cineastas. É admirável a análise que Godard faz do cinema bergmaniano: sua câmera procura uma coisa só: captar o segundo presente no que ele tem de mais fugidio, e aprofundá-lo para lhe dar valor de eternidade. Donde a importância primordial do “flash-back”, pois a força dramática de cada filme de Bergman é constituída por uma reflexão de seus heróis sobre o momento e sobre seu estado presente. A admiração do crítico Jean-Luc Godard se aprofundou quando ele se transformou em cineasta: a partir daí, como mostramos acima, ele usou táticas e descobertas originalmente bergmanianas. Pode ser dito, portanto, com igual justeza, que Ingmar Bergman, mesmo contra sua vontade – ele nunca gostou do cinema de Jean-Luc Godard – foi o mais godardiano dos cineastas (ele


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Cena de Monica e o Desejo, filme de Bergman lançado em 1953 e que lhe deu reconhecimento internacional

foi, poder-se-ia dizer, um godardiano “avant-la-lettre”), e que Godard, no outro extremo, é o mais bergmaniano dos cineastas. XII Outros signos da modernidade em Ingmar Bergman: a enorme influência sobre sua obra de dois dos pensadores mais requisitados no século passado, e também no século atual: Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud. O uso que fez Bergman de Freud foi ao mesmo tempo óbvio e peculiar. Óbvio na sua natureza: sendo um autor que nunca fez uma psicanálise com um psicanalista – segundo o próprio Bergman, um psiquiatra com o qual consultou certa vez, teria dito que ele não precisava de psicoterapia, pois desta maneira a criatividade dele como roteirista e cineasta poderia se desfazer –, na verdade ele fez uma autoanálise, quase interminável, que incluiu quase todos os seus filmes. Neles, mostrou tudo sobre si mesmo, o mais violento, o mais neurótico, o mais agressivo, o mais perverso, mas também toda a capacidade de amar, de criar o belo e ser feliz. Um livro de um autor americano, Hubert I. Cohen, sobre toda sua obra, traz um título sugestivo: Ingmar Bergman, the art of confession (a arte da confissão). Sabe-se que o silêncio do psicanalista faz o cliente falar. Sem dúvida alguma, o silêncio com que milhões de espectadores assistem a seus filmes conseguiu que Ingmar Bergman revelasse quase tudo sobre sua vida: na verdade, foram muitas as vezes em que, em cada um de seus

filmes, ele contou, em entrevistas ou textos paralelos, que muitos detalhes eram extraídos de sua própria vida: quando eu era jovem, era atormentado por sonhos horríveis: assassinato, tortura, sufocamento, incesto, destruição, raiva insana. Se não fosse seu bom gosto, sua obra poderia ser considerada o catálogo de alguns dos mais escabrosos temas da humanidade: estupros (em A fonte da donzela, uma menina é estuprada; seu pai vinga-se violentamente, matando inclusive um menino, que acompanhara e ajudara os criminosos); infidelidades, voyeurismos (o marido que vê sua mulher transando com o amante, em Morangos silvestres, 1957), homossexualidade (masculina e feminina: O silêncio trata, entre outras coisas, da paixão de uma irmã por outra) e o incesto (os dois irmãos em Através de um espelho; o menino e sua mãe em O silêncio) abundam nos seus filmes. Não se tratava, para Bergman, de somente expor as “perversões” dos seus contemporâneos, ou personagens, mas falar, também, de si mesmo. Esta autoanálise foi feita por personagens interpostos: reencarnações do seu passado, encenações dos seus problemas presentes, ou daqueles que localizava no futuro (a preparação para a morte, e o medo de morrer, de Isak Borg, 78 anos, em Morangos silvestres, quando Bergman tinha apenas 40 anos). Tudo isso magnificamente dramatizado e analisado, nunca somente o deleite narcisista consigo próprio. O Complexo de Édipo, quase sempre descoberto e interpretado por algum ensaísta examinando a obra de um autor, ou mesmo sua biografia, quando se tratou de Bergman, não necessitou tanto subterfúgio. Falando


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da sua mãe, afirmou que sim, eu a amava.... Ela cheirava tão docemente como a baunilha: sintomaticamente, um dos filmes (14 minutos) que dirigiu (em 1986) foi Karins ansikte (O rosto de Karin), onde ele criou todo um curta-metragem mostrando diferentes retratos da sua mãe. Em Gritos e Sussurros, segundo Bergman, as quatro principais personagens são diferentes características da personalidade dela. Em outros filmes podemos ver a relação apaixonada entre um menino e sua mãe, como em Fanny e Alexander, já descrito. Em O silêncio, também, chega a ser perturbador perceber a alegria do menino, quando sua mãe o convida a lavar suas costas. Neste mesmo filme, quando a tia tenta tocá-lo, ele não aceita; ela comenta, “somente sua mãe pode, não? ” Acima de tudo, se reconheceu em todos os seres a que deu vida, mostrou e descreveu, assim como o fez Gustave Flaubert, que se viu não somente na figura de Madame Bovary, mas em cada palavra que escreveu nesta obra Bibi Andersson e Liv Ullmann em cena de Persona (1966), um dos trabalhos mais conhecidos de Bergman prima. Todas as dúvidas amorosas e religiosas a que aludiu, através de personagens, foram fruto do autoexame e da o prazer na aniquilação. Ao final de Gritos e sussurros, quando a criada lê o autoanálise. Um uso peculiar de Freud, portanto, quase nunca citado diário de Agnes, já morta, ouvimos (e vemos: Bergman faz um retorno ao diretamente nos seus filmes, mas usado até a exaustão, como o grande passado) uma frase terrível, pela sua beleza: Os seres que mais amo estão estudioso do funcionamento do inconsciente. A propósito de tudo isto, perto de mim... (estes seres são suas duas irmãs, que no período que leva a palavra final fica com sua ex-mulher e atriz, Liv Ullman, que afirmou à sua morte, revelaram um egoísmo brutal, e em alguns momentos, uma numa entrevista: Ingmar é um grande diretor de sua própria vida. E talvez certa capacidade para a beleza e Ana, sua criada, um dos exemplos mais seja nisso que tenha feito sua melhor direção. Sua vida não foi dirigida com- bem acabados da bondade e generosidade na obra de Ingmar Bergman) pletamente por deus. Ela tem sido dirigida pelo próprio Ingmar Bergman. Agora... posso degustar a plenitude. E sou grata à minha vida, que me dá tanto: ao mostrar este diário de Agnes depois que ela já se foi, o que XIII ouvimos é uma morta agradecer à vida, por artes da narrativa: existe Robin Wood, um ensaísta e crítico inglês, escreveu que [o movimento algo de mais belo e terrível e, portanto, de mais sublime? Egoísmo e descaracterístico] de um filme de Bergman é o percurso dinâmico que vai da do- prendimento, amor e ódio; os dois lados da vida humana estão sempre ença e aprisionamento em direção à saúde e liberdade, não necessariamente presentes na obra de Bergman: a maravilha e ao mesmo tempo o horror alcançadas, mas apaixonadamente procuradas. Bergman foi quase sempre que é viver. tido como o cineasta do autoexame, da análise impiedosa de si mesmo e dos outros, da destruição, doença, morte e catástrofe, temas quase constantes nas suas obras. Ele foi isso, sim, e algo mais. Seguramente, Bergman aprendeu com Nietzsche que, longe de ser somente destruição, morte e catástrofe, a tragédia é o terrível sobre a máscara do belo ou, como escreveu Roberto Machado, a tragédia é a união dos dois impulsos, das duas formas: o horror dionisíaco da natureza [morte, doença, sofrimento?] e a beleza apolínea da arte [amor, amizade, caridade, forma? ]”. Ainda segundo Nietzsche, a tragédia é o dizer-sim à vida mesma ainda em seus problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida, tornando-se alegre de sua própria inesgotabilidade em meio ao sacrifício de seus tipos Mário Alves Coutinho mais elevados (...) para além do pavor e compaixão, ser por si mesmo o mineiro de Campo Belo, é crítico de cinema e doutor em Literatura Comparada pela UFMG. eterno prazer do vir-a-ser – aquele prazer que também encerra em si ainda


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Canção de amor para

JOÃO GILBERTO NOLL [5 excertos] Luis Alberto Brandão

1. “E senti como que um grande amor pelo abandono de cada um.” Do livro Rastros do verão, de 1986.

2. Chove. Chove muito em Ouro Preto nesta noite de domingo. Não é muito tarde, talvez uma ou uma e meia da madrugada, João e eu entramos na pousada Minas Gerais, na Rua Xavier da Veiga. Caminhamos em silêncio até a escada. Estamos cansados, ambos. Quase todas as luzes estão apagadas. O seu quarto é em cima? O meu é no andar de baixo. As palavras estão meio bambas. Você viaja cedo amanhã, não é? Palavras sonâmbulas. Bom descanso. As palavras parecem dizer nada. Um aperto de mão. Um abraço rápido. João sobe as escadas e entra em seu quarto. Eu desço as escadas e entro no meu. Um pouco antes, estamos no carro que nos leva à pousada. João está sentado ao lado do motorista. Eu, no banco de trás. Ouro Preto fica mais bonita de madrugada. E ainda mais quando chove – João diz, em meio a nosso longo silêncio. Ou talvez tenha sido eu a dizer, o carro atravessando as ladeiras desertas. Não sei, não me lembro mais. Talvez ninguém

tenha dito nada durante o trajeto. Talvez só tenha mesmo havido as poucas luzes se refletindo na água lenta da chuva. Um pouco antes, estamos na ampla sacada do Grande Hotel de Ouro Preto, o hotel do Niemeyer, no jantar de encerramento do Fórum das Letras. Ele está sentado a meu lado e ao lado da querida Guiomar de Grammont. Conversamos, sim, mas a conversa parece tragada pela visão da cidade chuvosa e enevoada, todos meio hipnotizados por aquela beleza melancólica. João me pergunta o que ando fazendo com a depressão em que estou mergulhado por causa de uma brusca experiência de morte. Com certa galhofa ambígua, respondo que o que há para se fazer é seguir vivendo, ser meio insolente com a morte, apostar que é possível, sim, por que não?, viver mais que a vida. João arregala os olhos luminosos e exclama com saborosa lentidão: que interessante! Sim, por que não? Um pouco antes, estamos no palco do Cine Vila Rica. É a última atividade do Fórum das Letras deste ano de 2012. O cinema é aconchegante, nos protege da chuva e do paradeiro do domingo, como aconchegante está sendo nosso bate-papo, que gira principalmente em torno de Solidão continental, o livro dele que mais detidamente fala de velhice, de

decrepitude física, além, é claro, de solidão. João demonstra estar gostando do jeito como conduzo, ponto a ponto, a conversa, e o público reage calorosamente. Ao final, ele é ovacionado de pé. Todo mundo está emocionado. Penso em me levantar da poltrona vermelha, ir até ele e lhe dar um beijo, um abraço. Mas não vou, fico sem coragem, perco a desenvoltura. Durões. Às vezes insistimos em ser durões, não é verdade, João? Nós dois ali no palco, apenas olho aquele homem franzino e gigante. O abraço não se abre. O beijo fica congelado. Chove. João sobe as escadas e entra em seu quarto. Chove muito. Eu desço as escadas e entro no meu. Chove muito em Ouro Preto nesta noite de domingo. 3. Em uma entrevista publicada em 1997, no caderno Ideias/Livros do Jornal do Brasil, perguntaram para o João, referindo-se à sua temporada na Califórnia, na Universidade de Berkeley: – Como você descreve a experiência de um escritor que ensina literatura? Ele respondeu assim: – A experiência é fascinante. Agora vou dar novos cursos. Um de poesia, com ênfase na canção, nas letras de música, e outro sobre crônicas. Este vai começar com João do Rio e irá trilhando o caminho


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da crônica brasileira. O de poesia vai começar com Carlos Drummond, Cecília Meireles e Mário Quintana. Vou ensinar ficção e cultura brasileiras, sobretudo a canção popular e a linguagem do cinema brasileiro. Eu tenho uma formação musical forte. Comecei a cantar quando era criança. Por isso adotei um sistema que cativa os alunos: durante as aulas eu canto. 4. Do livro O quieto animal da esquina, de 1991: “parecia que de repente o meu destino tinha me ultrapassado, a mim e a todas as canções que costumavam sair de cor da minha boca.” 5. POSSÍVEL LEGENDA PARA UMA FOTO INVISÍVEL [para você, João]

havia tanta emoção havia tanta entrega havia tanto tantos possíveis havia uma canção de amor agora só há silêncio e um sorriso um sorriso bonito escondendo a dor que – agora sabemos – nunca vai ter fim O escritor gaúcho João Gilberto Noll (1946-2017)

Luis Alberto Brandão

mineiro de Divinópolis, é escritor, professor titular da Faculdade de Letras da UFMG nas áreas de estudos literários e edição e pesquisador do CNPq.


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poemas de Adriano Wintter O ABISMO a imensidade do nada rolando para os lados

antologia assim como espera da flor a esfera triunfal do fruto o mundo empurra o eu do poeta para o abismo

e vós que mordeis a polpa macia

a expansão do chão para baixo o esqueleto do tempo que a raiva arrasta entre as rochas as brasas brilhando no breu meus olhos voltados para o ápice donde o sonho tomba

nem mesmo sabeis que o verso é um compêndio de quedas e gritos

amor é quando roçando a pelúcia do sonho

como pombos os poros revoam

e os âmagos sofrem transplantes para o fundo feliz dos diamantes

sexo é quando nossos poros crispados de fome capturam à unha anjos nômades e as psiques

ancoram sua pane

no balanço feroz dos relâmpagos

adriano wintter

gaúcho de Porto Alegre, é poeta e tradutor. Integra as antologias Escriptonita (2015), Prêmio Escriba (2015) e Femup (2010). Tem outras coletâneas e traduções publicadas em revistas na Espanha, Portugal, México, Chile, Colômbia, Argentina e Brasil.


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Os cento e vinte dias de Sodoma (Fragmentos) Marquês de Sade Tradução de Rosa Freire d'Aguiar TRECHO 1: (um dos quatro libertinos reunidos no Castelo de Shilling dirige-se às mulheres e meninas presentes — suas filhas, esposas, meninas sequestradas por toda a França — para dar as orientações de como devem se comportar durante os 120 dias em que ficarão presas no castelo, à mercê das fantasias e perversões dos homens.) "Com essas providências tomadas e os regulamentos promulgados no dia 30, o duque passou a manhã do dia 31 a conferir tudo, a ordenar ensaios gerais de tudo e, em especial, a examinar com cuidado o lugar, para verificar se não poderia ser tomado de assalto ou favorecer alguma evasão. Depois de admitir que só sendo pássaro ou diabo para sair e entrar ali (no castelo de Shilling), prestou contas à sociedade de sua missão, e passou a noite do dia 31 a arengar as mulheres. Todas se reuniram, pela ordem, no salão das narrações, e depois de subir na tribuna ou na espécie de trono destinado à historiadora, eis aproximadamente o discurso que lhes fez: — Seres fracos e acorrentados, destinados unicamente aos nossos prazeres, não tiveram a ilusão, espero, de que esse império tão ridículo como absoluto que podem ter em sociedade lhes seria conferido neste local. Mil vezes mais submissas do que escravas, só devem esperar a humilhação, e a obediência deve ser a única virtude que lhes aconselho praticar: é a única que convém ao estado em que estão. Não pensem, sobretudo, em fazer nenhum comércio com seus encantos. Demasiado indiferentes como somos a tais armadilhas, bem devem imaginar que não é conosco que essas iscas podem funcionar. Lembrem-se incessantemente de que nos serviremos de todas vocês, mas que nem uma única deve se vangloriar de conseguir, nem ao menos inspirar, o sentimento da piedade. Indignados com os altares que conseguiriam nos arrancar alguns grãos de incenso, nosso orgulho e nossa libertinagem os quebram tão logo a ilusão satisfaz os sentidos, e em nós o desprezo quase sempre seguido de ódio substitui no mesmo instante o prestígio da imaginação. Aliás, o que vocês oferecem que já não saibamos de cor? Que oferecem que não pisoteássemos, em geral no próprio instante do delírio? É inútil esconder que seu serviço será rude, será penoso e rigoroso, e as menores faltas serão no mesmo instante punidas com penas corporais e dolorosas. Portanto, devo recomendar-lhes o


32  Se infelizmente alguma sucumbir à intempérie de nossas paixões, que aceite bravamente

esmero, a submissão e uma abnegação total de si interpretar nossos gestos, nossos olhares, nossos mesmas para escutar apenas os nossos desejos: movimentos, decifrar-lhes a expressão, e sobrea decisão; não estamos tudo não se enganar quanto aos nossos desejos. que eles sejam as suas únicas leis, que acorram neste mundo para ao encontro deles, que se antecipem e façam-nos Pois suponhamos, por exemplo, que nosso desejo nascer. Não porque tenham muito a ganhar com fosse ver uma parte de seu corpo e que viessem deexistir para sempre, e esse comportamento, mas apenas porque teriam sajeitadamente oferecer outra: sintam a que ponto o que pode acontecer de muito a perder ao não observá-lo. Examinem sua o equívoco desarranjaria nossa imaginação, e consituação, o que são, o que somos, e que essas reflesiderem os riscos que há em esfriar a cabeça de um mais venturoso a uma xões as façam tremer. Eis que vocês estão fora da libertino que, imaginemos, esperasse apenas uma bunda para esporrar e a quem viessem imbecilFrança, na profundeza de uma floresta inabitável, mulher é morrer jovem. mente apresentar uma boceta. De modo geral, ofemais adiante de montanhas escarpadas cujas pasLemos para vocês regusagens logo foram interrompidas, depois que as reçam sempre muito pouco a frente; lembrem-se transpuseram. Vocês estão trancadas numa cida- lamentos muito sensatos, de que essa parte infecta que a natureza só criou por insensatez é sempre a que mais nos dá nojo. dela impenetrável; ninguém sabe que estão aqui; e muito adequados à sua foram subtraídas aos seus amigos, aos seus pais, já E até quanto às suas bundas há precauções a toestão mortas para o mundo e só para nosso prazer mar, tanto para dissimular, ao oferecê-las, o antro segurança e aos nossos é que respiram. E quais são os seres a quem agora odioso que as acompanha, como para evitar fazerestão subordinadas? Criaturas profunda e reco-nos ver em certos momentos esse cu num estado prazeres; escutem-nos nhecidamente nefandas, que só têm como deus a em que outros desejariam sempre encontrá-lo. cegamente, e esperem lubricidade, e como leis a depravação, e como freio Devem me ouvir, e receberão, aliás, das quatro a libertinagem; uns devassos sem deus, sem prinaias instruções posteriores que acabarão de lhes tudo de nossa parte se explicar tudo. Em suma, tremam, adivinhem, evicípios, sem religião, dos quais o menos criminoso nos irritarem com seu tem, e com isso, se não forem pelo menos muito está conspurcado por mais infâmias do que vocês seriam capazes de mencionar e aos olhos de quem afortunadas, talvez não sejam totalmente infelimau comportamento. a vida de uma mulher, que digo, de uma mulher?, zes. Aliás, nada de intriga entre vocês, nenhuma de todas as que habitam a superfície do globo, é ligação, nada dessa imbecil amizade de moças que, tão indiferente quanto a destruição de uma mosca. Haverá poucos exces- amolecendo de um lado o coração, torna-o, de outro, mais intratável e sos, com certeza, que não praticamos: que nenhum as repugne, prestem- menos disposto à simples humilhação para a qual as destinamos. Pensem -se a eles sem pestanejar e oponham a todos paciência, submissão e que não é rigorosamente como criaturas humanas que as olhamos, mas coragem. Se infelizmente alguma sucumbir à intempérie de nossas pai- apenas como animais que são alimentados para o serviço que esperaxões, que aceite bravamente a decisão; não estamos neste mundo para mos, e que esmagamos aos pontapés quando se negam a isso. Viram existir para sempre, e o que pode acontecer de mais venturoso a uma a que ponto as proibimos tudo o que pode aparentar um ato religioso; mulher é morrer jovem. Lemos para vocês regulamentos muito sensatos, previno-as que haverá poucos crimes mais severamente punidos do que e muito adequados à sua segurança e aos nossos prazeres; escutem-nos este. Sabemos muito bem que ainda há entre vocês algumas imbecis que cegamente, e esperem tudo de nossa parte se nos irritarem com seu mau não conseguem admitir a ideia de abjurar esse deus infame e abominar comportamento. Algumas têm laços conosco, eu sei, que as orgulham sua religião: estas serão cuidadosamente examinadas, não escondo, e talvez e dos quais esperam indulgência. Cometeriam um grande erro se não haverá extremos de que lhes pouparemos se, infelizmente, forem contassem com isso: nenhum laço é sagrado aos olhos de pessoas como apanhadas em flagrante. Que se convençam, essas tolas criaturas, que nós, e quanto mais eles assim lhes parecer, mais o seu rompimento ex- se convençam, portanto, de que a existência de Deus é uma loucura que citará a perversidade de nossas almas. Portanto, é a vocês, filhas, espo- hoje não tem na terra inteira vinte seguidores, e que a religião que ele sas, que me dirijo neste momento, não esperem nenhuma prerrogativa invoca não passa de uma fábula ridiculamente inventada pelos velhacos de nossa parte; avisamos que serão tratadas até com mais rigor que as cujo interesse em nos enganar é atualmente mais que visível. Em suma, outras, e isso justamente para fazê-las ver como são desprezíveis aos vocês mesmas poderão decidir: se houvesse um deus, e se esse deus tinossos olhos os laços com que nos consideram talvez acorrentados a vesse poder, permitiria que a virtude que o honra e que professam fosse vocês. De resto, não esperem que sempre especificaremos as ordens que sacrificada como vai ser ao vício e à libertinagem? Permitiria, esse deus queremos fazê-las cumprir: um gesto, um olhar, muitas vezes um sim- todo-poderoso, que uma fraca criatura como eu, que diante dele não seples sentimento interno de nossa parte as advertirão, e serão tão punidas ria mais do que um ácaro aos olhos do elefante, permitiria ele, digo, que por não tê-los adivinhado e pressentido quanto seriam se, depois de no- essa fraca criatura o insultasse, ridicularizasse, desafiasse, enfrentasse e tificadas, tivéssemos sentido uma desobediência de sua parte. Cabe-lhes ofendesse, como faço com prazer a todo instante do dia?"


O Marquês de Sade (1740-1814) retratado em gravura no século XVIII

TRECHO 2: (o narrador, depois de apresentar os personagens do romance, se dirige ao leitor para lhe falar do livro que ele vai ler.) "E agora, amigo leitor, prepare o seu coração e o seu espírito para o relato mais impuro que jamais foi feito desde que o mundo existe, pois livro semelhante não se encontra nem entre os antigos nem entre os modernos. Imagine que todo prazer honesto ou aconselhado por essa besta de que você fala incessantemente sem conhecê-la, e a que você chama de natureza, imagine que esses prazeres, eu ia dizendo, serão rigorosamente excluídos desta coletânea, e que quando por ventura aqui estiverem, serão sempre acompanhados de algum crime ou coloridos de alguma infâmia. Sem dúvida, muitos desses desvios que você verá pintados lhe desagradarão, sabemos, mas haverá alguns que o inflamarão a ponto de lhe custar a porra, é disso que precisamos. Se não tivéssemos dito tudo, analisado tudo, não poderíamos imaginar o que é de seu agrado. Cabe a você pegar o que lhe agrada e deixar o resto; outro fará o mesmo; e aos poucos tudo terá encontrado o seu devido lugar. Aqui está a história de um magnífico banquete em que seiscentos pratos diferentes se oferecem ao seu apetite. Acaso você vai comer todos? Não, provavelmente, mas esse número prodigioso amplia os limites da sua escolha e, radiante com esse aumento de possibilidades, você não se atreve a ralhar com o anfitrião que o regala. Faça o mesmo aqui: escolha o que quiser e deixe o resto, sem reclamar desse resto só porque não tem o dom de agradá-lo. Pense que agradará a outros, e seja filósofo. Quanto à diversidade, esteja certo de que ela é autêntica; estude bem a diversidade das

paixões que parecem assemelhar-se a outras, sem nenhuma diferença, e verá que essa diferença existe e que, por menor que seja, só ela tem, justamente, esse requinte, esse tato que distingue e caracteriza o gênero de libertinagem de que tratamos. Aliás, fundimos essas seiscentas paixões no relato das historiadoras: é mais uma coisa de que o leitor deve estar avisado. Teria sido muito monótono pormenorizá-las de outra maneira, e uma a uma, sem fazê-las entrar no corpo do relato. Mas como um leitor pouco versado nessas matérias poderia talvez confundir as paixões descritas com uma aventura ou um simples acontecimento da vida da narradora, diferenciamos com cuidado cada paixão com uma anotação à margem, acima da qual consta o nome que é possível lhe dar. Essa marca mostra a linha exata em que começa o relato da paixão, e sempre há uma alínea onde ela termina. Mas como há muitos personagens em ação nessa espécie de drama, apesar do cuidado que tivemos de, nesta introdução, descrever e designar todos eles, vamos fazer um índice com o nome e a idade de cada ator, e um leve esboço de seu retrato. Quando o leitor encontrar um nome que lhe seja desconhecido nos relatos, poderá recorrer a esse índice e, mais acima, aos retratos extensos, caso o leve esboço não baste para relembrar o que terá sido dito."

Rosa Freire d'Aguiar

carioca, é tradutora e jornalista, tendo sido correspondente das revistas Manchete e Istoé em Paris. Sua tradução de Os cento e vinte dias de Sodoma (Ed. Penguin, SP), do qual publicamos estes dois trechos, tem lançamento previsto para o primeiro semestre deste ano.


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aranha i ne xata Delicadeza, destruição e desproporção nos poemas de Mônica de Aquino Rafael Zacca

“A fidelidade é um cão”. Com esse verso do poema “Penélope mentirosa”, Mônica de Aquino não apenas expõe que apenas Argos era fiel a Odisseu, na Odisseia de Homero, como também que o preço da fidelidade ao rei, ao patriarca, ao chefe de família (nesse caso, Odisseu) é um gesto de subserviência disfarçado de amizade. Por isso fabula, na primeira parte de seu livro mais recente, Fundo Falso, uma “Penélope mentirosa”, bem como diversas outras Penélopes, que esperam e não esperam Odisseu, o seu retorno a Ítaca depois da guerra de Troia. A multiplicação daquelas que “esperam” é a primeira estratégia de Fundo falso para ludibriar o cão da submissão. E se, na Odisseia de Homero, a grande luta que se trava é a das forças da racionalidade contra as do esquecimento, as pequenas lutas de Fundo falso são travadas apesar da memória:

Como esquecer se há o cão – sempre à porta – o cão guarda a casa – o inferno – ele é a ilha como habitar este cão sem caça (e linguagem). Odisseu é o herói astuto (o herói da métys), que não lida com as ameaças usando a sua força, mas a sua inteligência... a não ser, é claro, quando retorna à casa e humilha, massacra, tortura e mata não apenas os pretendentes de Penélope, mas também aqueles que os ajudaram, aí inclusa a


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sua criadagem, como as mulheres que penderam enforcadas no palácio. Adorno e Horkheimer elegeram o herói como a figura pré-histórica do burguês, que recalca toda a sua violência para instrumentalizar o mundo e dobrá-lo à força da razão, e que tem como cobrança o retorno do reprimido em forma de ondas massivas de destruição. Assim contam a história do Esclarecimento (da Aufklärung), que teria no nazismo não o seu ponto de desvio e regressão, mas a sua culminância. A série de recalques de Odisseu servem-lhe como reforço da identidade. O que é bastante claro no episódio em que, para escapar dos ciclopes, Odisseu disfarça-se cegando Polifemo e chamando a si próprio de “ninguém”. O que seria, a princípio, uma prática de desidentificação, retorna como método egóico, que reforça o eu, quando Odisseu grita, enquanto escapa em sua embarcação, para que os ciclopes não se esqueçam de que quem os venceu não foi “ninguém”, mas Odisseu. A razão instrumental, em outras palavras, é um pano de fundo sólido o suficiente para sustentar uma imagem nítida do herói. Muito mais turvas são as imagens de Fundo falso. A estratégia é quase contrária: afirmar uma identidade muito forte para, não com um pano de fundo, mas com um fundo falso, realizar uma desidentificação. O seu método não é o recalque, mas a ostentação da dor. Seu prêmio não é a razão instrumental e o retorno à casa, mas a faculdade da imaginação e a multiplicação do lar. O resultado não é a permanência do ser, mas a transitividade. O amor é cheio de dedos o amor é cheio de patas aranha inexata Dedos que se transformam em patas e, por fim, como que num passe de mágica, em aranha monstruosa, ou melhor, inexata, da qual não sabemos nada, apenas que mistura cuidado (dedos) e descuidado (patas que podem dar patadas) na sua desmedida antinatural. As vogais fechadas de “dedos” e as abertas de “patas” se combinam no vocábulo crescente “inexata”, levando a desproporção à escala micrológica das sílabas. Em outras palavras, o poema realiza a monstruosidade e a desproporção a partir de uma delicada arquitetura vocal. Forma e tema tensionam-se entre a delicadeza e a rigidez – mas o que promove essa tensão? O cuidado se transforma em agressividade (dedos em patas), que, por sua vez, se transforma em bicho capaz de ardil e espera (aranha): o que tensiona delicadeza e rigidez é a faculdade da imaginação, quer dizer, a capacidade de por as imagens em movimento. Um sol sem pálpebras dissolve as coisas (sempre outras, irredutíveis a si) e iguala-se:

o meio-dia simula a noite irmãos no excesso que cega as formas. Mais uma vez, desproporção e proporcionalidade se retesam em favor do movimento das imagens em direção ao absurdo. Os dois primeiros versos, de quatro sílabas, enunciam um sol/olho sempre-desperto; os últimos quatro versos, também de quatro sílabas, simulam a noite a partir do excesso “que cega as formas”. No ponto cego da sensibilidade, agredida pela violência das coisas, é que surge a imaginação, que se fertiliza na incompletude e no alijamento. No centro do poema, três versos escapam à medida das quatro sílabas: justamente os que acusam a extrema singularidade das coisas e a igualdade do meio dia e da noite. Parece ter consciência de seus métodos a poeta quando afirma, em outro poema, que “é frágil, a Delicadeza, e extrema”. É esta tensão dos extremos que move a estranha beleza de Fundo falso, filho legítimo da máxima de Francis Bacon, segundo a qual o belo se forma na desproporcionalidade das formas. Toda a força da delicadeza e da desproporção se condensam mais fortemente no poema “Penélope urgente”, que compõe a série de Penélopes que amam, ludibriam, sentem falta de, mentem para, pensam que são, urgem, e muitas outras ações com, apesar de e para Ulisses, ou Odisseu. A multiplicidade das Penélopes, o reconhecimento da dor de existir, a força destrutiva da imaginação, o amor: os principais temas de Fundo falso emergem com esta única Penélope, que começa com um verso simples: “Primeiro, desfiz a mortalha / como de hábito.” Tal gesto – que a Penélope de Homero realiza para ludibriar os pretendentes e permanecer fiel ao marido – bastaria para uma Penélope que vive para o outro, e não para si. Mas o que acontece quando é Penélope que urge? Na noite, que “ainda era vasta”, pois o trabalho de desfazer a mortalha não ocupa toda a noite, Penélope sonha que ainda há muita coisa para destruir: sonha, por um momento, que todo o quarto, e, por fim, todo o palácio, pode ser destruído. Tem, no entanto, as parcas ferramentas de costura: agulha, tesoura... isto é, tem apenas a linguagem – tem apenas as palavras: A agulha é lenta, lenta a tesoura é lenta o amor é lento destruir me rouba a noite e as estrelas. As próprias estrofes se compõem de ruínas. É o único poema de todo o livro em que o número de estrofes quase se equipara ao de versos: são 12 para 14. Quase toda estrofe tem apenas um verso, como se o próprio poder destrutivo da Penélope imaginada, da Penélope urgente, tivesse


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A poeta mineira Mônica Aquino

a força de imaginar o fim das estrofes, do poema, e, por extensão, da própria literatura. Não é à toa que a fonte de fabulação (e, portanto, de destruição) é um poema inaugural da poesia no Ocidente. Depois das Penélopes, restará à poeta o osso magro do agora, sem o apoio de toda a literatura para lhe sustentar o corpo. É por isso que na série “corpo em pausa” o tempo se converte em alternância de imagens de poder e submissão. “O hoje é um cão / com fome / que esconde o osso” e “o tempo é um cão / de três cabeças” são dois versos que preparam a existência mínima: “Ser mínima. // Cortar cabelo / unha pele / mas sem o cálculo da cutícula. // Despir-me de tudo / o que não dói.” É este talvez o preço da faculdade da imaginação hipertrofiada: a assunção de toda a dor. Isso liga Mônica de Aquino a alguns nomes contemporâneos: desde o Fábio Weintraub de Baque e Treme ainda até a Laura Erber de A retornada. Este talvez seja um dos eixos de suas coordenadas. Mas também em poéticas da delicadeza e da destruição, como as de Mariana Ianelli (em O amor e depois), Leila Danziger (em Três ensaios de fala) e Marcelo Reis de Mello (em Elefantes dentro de um sussurro)

encontramos o segundo eixo. Com bastante equilíbrio, a poeta se sustenta com Homero em uma mão e o cajado humilde do real na outra. Uma das raras figuras equilibristas no cenário contemporâneo.

Rafael zacca

carioca, é poeta, crítico e oficineiro. Coarticulador da Oficina Experimental de Poesia (RJ).


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a estátua

desmontada

conto de edgard pereira

O

centro histórico de São João del Rei preserva, com pouca alteração, o perfil de cidade setecentista: espraia-se num vale, onde corre um ribeirão canalizado, com pontes, uma delas projetada com arcos romanos, passarelas e ruas de comércio intenso. Alguns sobrados coloniais impõem-se pela arquitetura imponente e solene, ao lado de outros mais modestos, mas igualmente autênticos representantes de um passado opulento. As igrejas barrocas são um espetáculo à parte, altares de beleza indescritível, profusão de adereços dourados, em especial a de São Francisco, a Basílica Nossa Senhora do Pilar e a de Nossa Senhora do Carmo. Por sinal, o que torna uma cidade viva e dinâmica é a efetiva circulação de ventos, carros, pessoas. Nada mais tedioso do que uma cidade fantasma, estática, parada no tempo, hierática em seus frios monumentos de pedra. Uma cidade em que ressoa em tudo a impressão de ruína intocada. São João del Rei apresenta essa mistura de tempos e cores, o passado nos envolve em fortes piscadelas, um detalhe arquitetônico surpreende aqui, outro vestígio chega a inquietar, quase nos tira o fôlego, mas alguns poucos quarteirões à frente, retomamos a respiração; um cartaz, um nome de rua, uma garagem comum nos trazem de volta ao presente. Faltava visitar o museu. O Museu Regional ocupa um prédio de três andares, característico da arquitetura imperial brasileira, com janelões de sacadas gradeadas. Tinha terminado a visitação, quando me dei conta de que não vira a réplica de um profeta de Aleijadinho que faz parte do acervo. Indaguei a um dos guardas, aquele que me pareceu mais maduro dos três que estavam de plantão, parecia ser o chefe dos outros. “Como sabe do Profeta?”, perguntou. “Há referências em vários livros sobre a réplica desse Profeta. Sabe-se que existe uma réplica do profeta Baruc em São João del Rei. Num desses livros”. Diligente e gentil, o chefe dos guardas explicou que o Profeta fora retirado, encontrava-se na reserva técnica, para dar espaço à montagem de uma exposição temporária a ser aberta dali a dois dias. Diante da impossibilidade de ver o duplo da estátua de Aleijadinho, entristeci-me. Para não me decepcionar, no desejo de ver a famosa estátua, ia propor um pacto. Faria três perguntas, caso eu acertasse, estaria habilitado para ver a peça, mesmo desmontada. Concordei no ato. A primeira pergunta: Como se chama o profeta representado na estátua que o Museu Regional expõe? Concentrei-me, o rol dos nomes de alguns profetas passou em minha mente: Daniel, Joel, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Jonas. Embatuquei, nenhum desses me dava firmeza. Até que um nome estranho aflorou em meus lábios: Baruc. “Certo”, ele falou. Segunda pergunta: Cite o nome de mais cinco profetas representados em Congonhas. “Tiro de letra”, falei, repetindo os nomes que antes tinha lembrado: Daniel, Ezequiel, Joel, Jonas, Isaías, Jeremias. “Aprovado”, retrucou o policial. “Ultima pergunta: qual o nome do entalhador responsável pela moldagem do profeta Baruc, exposta neste Museu?” Procurei nos lugares mais recônditos de minha memória o nome do entalhador, certo de que ignorava o autor do entalhe. Arrisquei alguns nomes: Padre João de Faria Fialho, Manuel Garcia, Duarte Lopes, Edson Motta, Rodrigo Mello Franco de Andrade. Nenhum estava correto. Os três primeiros eram nomes históricos, ligados a bandeirantes paulistas que descobriram as primeiras pepitas douradas em Ouro Preto. Edson Mota fora um professor carioca ligado às restaurações artísticas realizadas em Ouro Preto, na década de 50 do séc. XX. Rodrigo Melo Franco de Andrade foi o fundador, no final da década de 30 do mesmo século, do Instituto do Patrimônio Histórico


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A condição inevitável de ser objeto criado para ser visto, forma trabalhada em gesso branco, forma talhada para ocupar um lugar no espaço – esse devaneio me envolvia à medida que procurava reconstruir a unidade, a inteireza da estátua. A vontade de tocar, sentir vestígios do toque primeiro, criador. Não que tencionasse transferir para os fragmentos os conceitos de diversidade, dualidade, que vieram junto ao devaneio.

Artístico Nacional, o IPHAN, importante órgão de proteção e preservação dos monumentos históricos e artísticos. “Nenhum deles”, ele disse após a enumeração isolada dos nomes. “Não sei”. “Então, saiba que as moldagens em gesso reproduzem fielmente as peças originais. O primeiro entalhador encarregado de reproduzir em gesso as obras barrocas de Aleijadinho, contratado por Rodrigo Melo F. de Andrade, foi Eduardo Bejarano Tecles.” Mesmo sem acertar a última pergunta, fui considerado merecedor de visitar a sala da reserva técnica. E desde então compreendi que as reproduções em gesso de obras de arte são tão importantes quanto as originais. Esta convicção acompanha-me até hoje. “Mostre-lhe onde está a estátua”, dirigiu-se o chefe da guarda a um companheiro de farda e ofício, mais novo, igualmente gentil e atencioso, como foi possível apurar. Fui, assim, conduzido à sala da reserva técnica do museu, enquanto meus familiares aguardavam no andar de baixo, nas imediações da saída do prédio. Retornamos à escada que dá acesso ao segundo pavimento, o guarda mais novo e eu, dobramos à esquerda num corredor, sem mais estávamos diante de um cômodo fechado. O guarda, então mais identificado a um guia do museu, abriu uma porta centenária, de madeira: uma sala escura e povoada de sombras foi-se clareando parcialmente. Adentrei apenas um passo, objetos espalhados no chão impediam adiantar mais. Em estante comprida e larga, ou espalhadas no piso de madeira, quedavam-se várias peças antigas, entre elas – peanhas, oratórios, teares, liteiras, candeias, canastras. Solícito e diligente, o guarda indicou onde estava a estátua do profeta, na verdade, as duas partes da estátua, uma vez que fora desmontada, não se sabe se antes ou após o transporte até aquela sala. C o n t r o l e i - m e para não fazer perguntas inúteis. Dividida em dois blocos, a estátua do profeta Baruc, clonada do original existente no adro da igreja de Bom O escritor Erico Veríssimo de metaJesus degaúcho Congonhas, ou(1905-1975), melhor, autor as duas clássicos O Tempo e o Vento e Incidente em Antares des dacomo estátua postavam-se bem à entrada da sala. Por ser moldada em gesso, pareceu-me

exageradamente cinza, mas procurei explicar a mim mesmo que deveria ter passado por uma pátina de finíssima areia cinza, razão de sua coloração mais escura. Exilados do local de exposição, os dois fragmentos do profeta restavam mudos, informes, privados do toque genial que Aleijadinho imprimira na estátua que ornamenta o adro da igreja de Congonhas, destituídos de qualquer ideia de unidade e completude. As duas partes de uma estátua não formam obviamente uma estátua. Era incômodo vê-lo mutilado, refiro-me ao profeta Baruc, despido de qualquer fantasia de unidade ou certeza identitária que pudesse ter. O ombro pousava na madeira do piso, deixando visível o ângulo direito do rosto, envolto numa fria expressão de imaterialidade, angustiada mas serena, a face macerada pela poeira do tempo. Revestida da habitual grandiosidade de obras de Aleijadinho, a cabeça levemente inclinada para a frente, os braços caídos ao longo do corpo, de alto porte, os lábios meio entreabertos, ali estava a estátua de Baruc, recriado pelo mestre Aleijadinho Vê-lo assim em pedaços, quando nem estava preparado para ser visto, era burlar o seu direito ao isolamento, seu efêmero descanso. A parte de baixo, a parte de cima. Os dois pedaços estirados na sala. Meus olhos, que num primeiro instante, diante da agourenta visão, sofreram a privação da imagem inteiriça e perfeita, ameaçavam devassá-la. Uma atmosfera hierática e misteriosa pairava na sala. As duas partes separadas transmitiam uma imagem destroçada do profeta. Os pedaços da estátua faziam renascer em mim lembranças de passagens da infância, passatempo com bonecas de porcelana, entre primos, meninos e meninas. A condição inevitável de ser objeto criado para ser visto, forma trabalhada em gesso branco, forma talhada para ocupar um lugar no espaço – esse devaneio me envolvia à medida que procurava reconstruir a unidade, a inteireza da estátua. A vontade de tocar, sentir vestígios do toque primeiro, criador. Não que tencionasse transferir para os fragmentos os conceitos de diversidade, dualidade, que vieram junto ao devaneio. Não tinha sentido acreditar que houvesse sopro, ânimo, vida na estátua, ainda mais destroçada. Isto seria


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aventar o impossível. As pessoas, quando se põem a olhar um objeto, elaboram uma imagem daquele objeto: no caso, a imagem do homem real, que teria sido o profeta, que teria vivido mais de mil anos atrás. Aquele Baruc desmontado devolvia-me do nada a ideia de dualidade. A experiência do diverso, do contraditório, o liso e o áspero, o bonito e o feito, o mole o duro, o macho e a fêmea, o branco e o negro, a noite e o dia, o sagrado e o profano, o seco e o molhado, o alto e o baixo, todas essas ideias vieram junto com o devaneio diante dos fragmentos. Veio-me à mente uma lembrança de quando lecionava em colégio. As relações opositivas são um recurso geralmente usado para caracterizar a arte barroca. E o tema era apropriado diante da estátua barroca de Aleijadinho. “Macho ou fêmea?” Indagou um aluno assustado, assim que enumerei o sistema opositivo na arte

barroca. “O que isso tem a ver com o Barroco?” Os professores sempre se deparam com alunos impertinentes e detalhistas. Até hoje ignoro o motivo da perplexidade do garoto. No caso, compreender se a categoria de gênero constitui de fato um polo opositivo do outro, em tempos de diluição dos limites. Vai saber, do jeito que as coisas andam. Muito mais do que a dualidade presente nas coisas do mundo, assaltava-me a ideia de que, mais do que o eixo da oposição, a linha do complemento importava mais, a necessidade de uma coisa se encaixar na outra, a compreensão de que, na mecânica de fluidos e sólidos, as coisas necessitam de uma certa oleosidade, para se completarem. Restavam, reduzidas à ruína, as partes destroçadas diante de mim, em sua abstrata falta de sentido, numa sala pejada de estranhos objetos, inertes, condenados a inexorável abandono, ao convívio inglório com asquerosos

edgard pereira

insetos, osgas, lacraias. No semblante impassível da parte da estátua que representava o rosto do profeta, composto de inúmeros cortes, ranhuras e reparos, acumulavam-se vestígios decadentes de objetos para sempre destituídos de qualquer uso e serventia. Mais tarde, assimilei alguns dados relativos ao profeta Baruc. Seu nome, em hebraico, significa “bendito”; teria sido companheiro inseparável de Jeremias, desde o ano de 604 a.C.; segundo se supõe, descendia de origem nobre. Na cartela que acompanha a estátua, lê-se em latim uma síntese da pregação de Baruc, anunciando os últimos tempos do mundo. “Perdoe o incômodo. Obrigado pelo atendimento”. Satisfeita a curiosidade, cumpria agradecer e reencontrar o meu grupo. O guarda que me conduzira à sala da reserva técnica, além de cortês e gentil, acabava por se mostrar também risonho.

é ficcionista e ensaísta, professor de Literatura Portuguesa no ensino superior. Publicou, entre outros livros, Outono atordoado (romance, em 2001) e, recentemente, o diário Dias portugueses e outros (2017).


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não mais De um lado Uma pele escura Uma curva fechada Estrada sem retorno

que nada

Do outro um poço Familiar e fundo Delicado e imundo De sentido único Estou entre a cruz e a espada E até você do alto do seu saber Há de saber não mais que nada Há de pedir de novo aos deuses E de joelhos, que te escutem

gabriel leite

Mas a noite é vácuo E a manhã maldita Para sair sem deixar rastro Deixei metade de um dia Carrego nos olhos O escuro da noite Que perdi e ganhei Sem pedir nem querer Sem ouvir nem saber Dos conselhos bem-vindos Dos trechos grifados Das bruxas, dos homens, Da sorte e do fado Tenho um pouco de fumo Um sol por nascer Um menino sem rumo Não tenho você

Sebastião Miguel

gabriel leite

mineiro de Belo Horizonte, é estudante do curso de Letras da Universidade de Brasília (UnB). Está lançando, de forma independente, pela Amazon, seu primeiro romance.


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