Cine Bijou de Mário Viana

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CINE BIJOU de Mário Viana Personagens: PANFLETO –cerca de 60 anos. Zelador de um cinema decadente na Praça Roosevelt. CELSO – 45 anos, bancário. Morador do centro. RIBA – 20 anos. Maranhense, fala com sotaque, mas sem folclorismo. Jeito de rapaz honesto.


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O cenário é a platéia de uma sala de cinema. Cadeiras de madeira. Está vazio. É madrugada. Dos fundos, entram Panfleto, Celso e Riba. Panfleto vem falando para Celso, que finge prestar atenção. Riba olha em volta, meio sem entender. PANFLETO (indicando): Olha aí. É como eu disse. Maior tranqüilidade. Vocês podem ficar à vontade aqui dentro. CELSO: Quanto tempo? PANFLETO: O quê? CELSO: Quanto tempo a gente pode ficar aqui? PANFLETO: Ah! Normalmente, uma hora. Mas hoje o movimento tá fraco. Acho que vou deixar vocês ficarem duas horas. CELSO: Duas horas? PANFLETO: Pelo preço de uma! Isso é que é mais-valia, hein? Duas horas! Aliás... (estende a mão; Celso tira uma nota do bolso e lhe dá) Duas horas dá pra muita coisa. (embolsa o dinheiro e sorri) Divirtam-se. Panfleto está saindo, mas pára um instante. PANFLETO: Se precisar de qualquer coisa, é só chamar. Meu nome é Panfleto. RIBA: (estranha muito) Sério? PANFLETO: Não. Panfleto é apelido. O nome mesmo eu nem lembro. Panfleto sai. Celso e Riba ficam de pé, sem jeito. CELSO (sorri): Enfim, sós. (senta-se e chama o rapaz) Vem cá. RIBA (tempo): Pra quê? CELSO: Senta aqui. Vamos conversar. RIBA: A gente já conversou lá na praça. CELSO: Você não ouviu o que o cara falou? Fica à vontade. Desconfiado, Riba senta-se na mesma fileira que Celso, mas com alguns bancos de separação. Olha em volta. RIBA: Isso aqui era um cinema?


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CELSO: Ainda é. Decadente, mas funciona. Nunca veio ao Cine Bijou? RIBA: Faz tanto tempo que eu não sei o que é cinema... CELSO: Nesta sala eu assisti tantos filmes de arte! RIBA: Que que é isso? CELSO: Um tipo de cinema... diferente. RIBA: Tipo filme pornô? CELSO (ri): Às vezes. (levanta-se e senta-se duas poltronas mais perto de Riba) Você tem um sotaque tão gostoso de ouvir. De onde você é mesmo? RIBA: Maranhão. CELSO: Ah é, você falou. São Luiz, não é? RIBA: Perto. De São José do Ribamar. Por isso que eu tenho esse nome. CELSO: Que nome? RIBA: Ribamar. No Maranhão, toda família tem um José de Ribamar. Na minha, calhou de ser eu. Mas todo mundo me chama de Riba. CELSO: (saboreando o nome) Ribamar... RIBA: Riba. É mais curto. E o senhor? CELSO: Celso! (estende a mão, aproveita e pula mais uma cadeira) Muito prazer. Riba cumprimenta, sempre desconfiado. Levanta-se. CELSO: Onde você vai? RIBA: Esticar as pernas. (pausa) O senhor faz o quê da vida? CELSO: Bancário. RIBA: Que legal. CELSO (irônico): Nossa, demais! RIBA: Será que tem emprego lá no seu banco pra mim? (Celso ri) Eu faço qualquer coisa. Faxina, segurança...


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CELSO: Você é muito novo pra ser segurança. RIBA: Se eu tivesse mais estudo, até que podia ser bancário. Pausa. Ambos não sabem o que falar. RIBA: Por que é que o senhor deu dinheiro pro cara? CELSO: Pra gente poder ficar aqui. RIBA: Num cinema desligado? Se pelo menos passasse um filminho... CELSO: Assim não tem risco de ser assaltado, nem de a polícia interromper a gente. RIBA: Oxe! E a polícia ia interromper o quê? CELSO: O que a gente estivesse fazendo de bom. (bate na cadeira do lado) Vem cá, Riba. Deixa de coisa e senta aqui. O taxímetro tá correndo. Riba hesita. Ouve-se a voz de Panfleto, lá fora. PANFLETO: Ô, dona Itália! Que bom que a senhora apareceu! Tô doido por um cafezinho. CELSO: Senta aqui logo, antes que ele volte. Vem! Sem entender o que passa, Riba senta-se ao lado de Celso. Panfleto enfia a cabeça na sala. PANFLETO: Querem um cafezinho quente? Tá fresquinho. CELSO: Agora, não. Mais tarde. Panfleto se retira. Celso olha em torno e coloca a mão na coxa de Riba, que fica tenso. CELSO: Só assim, no susto, pra você sentar aqui perto. Que que foi? Algum problema? RIBA: Não... Não, senhor. Celso sorri e alisa a perna de Riba, que fica ainda mais tenso. CELSO: (rindo) Calma... Eu não arranco pedaço. Riba tira a mão de Celso de sua perna e se levanta. CELSO: Que é que foi, menino? RIBA: Não sou qualira, não, moço.


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CELSO: Não é o quê? RIBA: Não mordo fronha. Celso ri. CELSO: Tá viajando, cara? RIBA: Não viajei três dias e três noites pra, na primeira dificuldade, deixar alguém me socar no rabo. CELSO: Ah, não? RIBA: Não. CELSO: E veio até aqui dentro comigo fazer o quê? Bater papo? RIBA: É. A conversa tava boa lá na praça, daí o senhor perguntou se eu não queria vir aqui pra esse canto. CELSO: E você veio! RIBA: Na rua tá frio demais, Deus me defenda. Não sei como vocês não vira tudo sorvete aqui em São Paulo. Pausa. CELSO: (irritado, mas conformado) Quanto? RIBA: O quê? CELSO: Quanto você cobra? Riba demora um instante pra entender, mas entende. RIBA: Já falei que não sou disso. CELSO: Tava fazendo o que lá em cima? Esperando a noite passar? RIBA: Era! Perdi o último ônibus pros meus lados, aí... Que horas são? CELSO (olha o relógio): Duas e quinze. RIBA: O primeiro ônibus sai só as cinco.


6 Ficam os dois sentados, sem assunto. Celso está irritado, Riba está com sono. Quase cochila. Celso o acorda. CELSO: Ei, não dorme, não! RIBA: Tô com um sono da porra. CELSO: Isso aqui não é dormitório. RIBA: Sei lá que diacho de lugar é esse. Só sei que eu queria dormir. CELSO: Sabe por que aquele cara cobra baratinho? Porque as pessoas não vêm aqui pra dormir. Elas vêm trepar! Sabe o que é isso? (Riba sacode a cabeça, “sim”) Só vem veado que mora com a família ou bichas sem dinheiro pra hotel. Aí, o Panfleto aproveita que o cinema tá fechado e vai ver na praça quem são os casaizinhos doidos pra dar umazinha. Por cinco mangos, os pombinhos ganham uma hora de privacidade. RIBA: Nessa sala? CELSO: Você queria o quê, cama redonda e espelho no teto? Por cincão, tá bom demais. Riba caminha pela sala e olha em torno. RIBA: Eu não curto macho. CELSO: Eu, sim. Vem cá, vem. (Riba não vai) Eu pago! RIBA: (sentando-se em outra fileira) O senhor tá maluco! CELSO: Pra começo de conversa, senhor tá no céu. Em segundo lugar... você não vai começar de novo com esse papo de que tava fazendo hora lá na praça. RIBA: Se precisar que eu jure, eu juro. Celso presta atenção no rapaz. CELSO: Você não é michê? (Riba olha espantado) Não transa por dinheiro? RIBA: Acho que eu vou embora. Levanta-se. Celso chama. CELSO: Pára com isso. Tá frio pra caramba lá fora. Riba hesita.


7 RIBA: Eu só vim pra esses lados procurar emprego. Me disseram que tinha uma pizzaria aqui na praça precisando de entregador, eu vim. CELSO: E não estavam. RIBA: Estavam. Mas queriam alguém com experiência. Me diga: que experiência precisa ter pra levar uma pizza na casa de alguém? CELSO: Não sei, eu nunca... bom, eu nunca pensei nisso. RIBA: Pra piorar, o cara da pizzaria perguntou se eu conhecia a região. Aí, danou tudo. Eu não sei nem como cheguei aqui. Quanto mais conhecer as ruas em volta. Só que o filho de uma égua só veio falar comigo depois que a pizzaria fechou. Eu cheguei às nove e ele só me atendeu depois da meia noite! Pra dizer que eu não servia! CELSO: É fogo. RIBA: Sabe lá o que é ficar três horas na porta de uma pizzaria, o estômago roncando de fome? É duro. CELSO: Não comeu nada a noite toda? RIBA: Saí com o dinheiro contadinho da passagem. Mas agora tô bem. Só um pouco tonto. Pausa. Celso está perplexo. Ouve-se um trovão. CELSO: Eu não acredito. Devia ter uns 15 garotos iguaizinhos a você dando mole na praça e eu fui pegar o único que não faz michê. RIBA: Acontece. (Celso o olha espantado) Eu acho. (outro trovão) Será que vai chover? CELSO: Era só o que me faltava. Pausa. Riba observa Celso com atenção. RIBA: Eu não me conformo. Celso olha sem entender. RIBA: Olhando pro senhor, ninguém diz. Celso suspira, incomodado. RIBA: Tanta mulher no mundo pra pirocar, o senhor vai logo atrás de macho. CELSO: Escuta, moleque. Eu te chamei pra transar, não pra me passar sermão.


8 RIBA: É que isso não tá certo. É esquisito! CELSO: Problema meu. Quer trepar, muito bem. Não quer, tudo bem também. Ninguém morre por mais uma noite de punheta. Pausa. Ouve-se um trovão. CELSO: Vai querer me convencer que você nunca fez isso? (Riba olha) Safadeza com outro moleque? Lá no interior da Paraíba? RIBA: Maranhão! CELSO: Tanto faz. Não fez, não? (Riba acena que não) Nem troca-troca? RIBA: Ave Maria, Deus me proteja! CELSO: Você foi direto da mais santa castidade pra dentro de uma xoxota? Riba fica sem jeito, encabulado. RIBA: No começo, eu comia umas cabras da roça. CELSO: Ah! RIBA: Todos os moleques comiam. As bichinhas tavam até viciadas. Viam a meninada, já iam pro barranco. CELSO: Cabras? Cabras mesmo? RIBA: Meu primo Zantônio uma vez queria me convencer a comer uma galinha da granja do avô dele. Mas na hora eu fiquei com dó da coitadinha, achei que ela não ia agüentar. CELSO: Muito delicado da sua parte. (pausa breve) Parou nas cabras ou atacou mais algum bicho das redondezas? RIBA: Deus o livre! Só uma vez eu tava querendo muito e não tinha cabra por perto... CELSO: Sei. RIBA: Fiz um buraco no tronco da bananeira. E enfiei o negócio lá. CELSO: Numa bananeira? RIBA: A gente abraçava a árvore e, se fechasse os olhos, era direitinho como se estivesse abraçando uma quenga. CELSO: Você fode uma bananeira e o esquisito sou eu?


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RIBA: O senhor trepa com macho! CELSO: São seres humanos. Quase todos, pelo menos. Trovão forte. RIBA: Acho que a chuva começou. Panfleto entra e senta-se na última fileira. PANFLETO: Puta que o pariu! A noite já tava um miserê. Agora, com essa chuva, ferrou de vez. RIBA: Tá chovendo muito? PANFLETO: Caindo o mundo. Bosta! Nem se apressem, viu? Não dá pra sair com esse toró. (sorri) Sortudos! Vão ganhar um monte de tempo grátis pra curtir o romancinho... RIBA: Moço, escuta... PANFLETO: Ó, podem ficar totalmente à vontade. Eu vou tirar um cochilo aqui, na boa. Barulho não me incomoda, gemido não me atrapalha. Boa noite. Panfleto ajeita-se para cochilar. Riba está impaciente. RIBA: Moço, não é isso o que o senhor tá... Eu tenho namorada! Tinha. Mas era mulher mesmo. CELSO: Deixa ele, porra. Não percebeu que ele não tá interessado nas suas explicações? RIBA: Ele vai achar que eu sou veado. CELSO: Eu também achei. RIBA: Mas eu não sou! CELSO: O homem certo no lugar errado. Ou o contrário, quem sabe. RIBA: Isso não tá direito. CELSO: Vem cá! Você tá com sono, não tá? (Riba faz gesto afirmativo) Então, fica quieto. Se não é veado, pelo menos finge. RIBA: Eu não sei fingir essas coisas. CELSO: Quando precisa, a gente aprende de tudo nesta vida.


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Pausa. RIBA: Eu só queria um trabalho. CELSO: E eu queria sexo, também não consegui. Empatamos. Panfleto resmunga, de seu canto. PANFLETO: Vocês já estão discutindo a relação, é? Faz logo um meia-nove aí, ocupa a boca e pára com esse falatório que eu tô com sono. O lumpesinato também tem direito ao descanso, porra. Pausa. Riba e Celso sorriem. Falam baixo. CELSO: Sabe porque o apelido do Panfleto é Panfleto? Porque ele vivia distribuindo panfletinho de greve geral no tempo em que o Lula era metalúrgico. Ele era famoso aqui no centro. Andava com uma sacola deste tamanho lotada de tudo quanto era tipo de panfleto. Greve geral, morte ao F.M.I., salvem as baleias, o caralho. O muro caiu e o coitado do Panfleto ficou sem ter o que distribuir. Acabou virando zelador do Cine Bijou, onde ele vinha assistir os filmes mais engajados. Z, Esse Crime Chamado Justiça, Sacco e Vanzetti... Pausa. Celso fica olhando para suas próprias recordações. RIBA: E o que isso tem a ver com os veados da praça? CELSO: O Panfleto acredita piamente que,alugando as cadeiras pros gays que querem transar e não têm onde ir, está solapando o sistema capitalista que mantém o prédio. Entendeu? Agora fica quieto e chupa meu pau! RIBA: Qual é que é, porra? CELSO: Você ouviu o que ele falou! (ordena) Senta aqui do meu lado! (Riba se senta) Me abraça. RIBA: Isso não. CELSO: Então deixa que eu te abraço. Celso passa o braço por cima do ombro de Riba e o abraça. Ficam um tempo assim. Riba, que estava tenso, cabeceia de sono. Celso fala mais suave. CELSO: Encosta a cabeça no meu ombro. RIBA: Não.


11 CELSO (puxando a cabeça dele em direção ao próprio ombro): Vai logo, menino. Tá caindo de sono. Vai, relaxa. Riba encosta a cabeça no ombro de Celso e logo começa a ressonar. Celso olha e sorri. Fala baixo, pegando a mão de Riba, que não reage. CELSO: Faz de conta que a gente acabou de transar. Faz de conta que foi uma transa boa pra cacete. A melhor, a melhor de todas as que você já teve até hoje. (olha para Riba) Pela carinha, você nem transou tanto assim... (sorri) Faz de conta que a gente gostou tanto que cochilou juntinho, como dois namorados que não querem que o dia amanheça. Riba continua dormindo, encostado em Celso. Este encosta sua cabeça levemente no outro, fecha os olhos e sorri. Panfleto continua dormindo na última fila. Luz se apaga lentamente.

Fim


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