Cartas a um amor irreal peça Renato Gabrielli

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Cartas a um amor irreal (Lettere alla fidanzata) Texto original de RENATO GABRIELLI. Rubricas e movimentos anotados para a direção de Maurício Paroni de Castro Nota importante: Até antes do “debate”, Ophelia vê somente Fernando Pessoa. Ouve os outros poetas, que representam a seu lado, sem um “corpo”. Após, vê-os de frente, mas deslocados em uma linha paralela. A atmosfera deve ser surreal, dissociada do realismo, porém o estilo de representação será híper-realista. Na mise-en-scène italiana, foram cortadas as primeiras três cenas do texto original de Gabrielli, bem como as rubricas do autor não foram seguidas, senão pelas intenções dos atores, razão pela qual não estão presentes neste copião.

OPHELIA: Quando conheci Fernando, tinha vinte anos e era a caçula de uma família que estava bem de vida. Eu mesma estava bem, mas queria trabalhar. Como estudava línguas e sabia datilografar, fui por aí a procurar emprego em várias firmas. A Felix & Valladas comercializava furadeiras. Não era um trabalho ruim, mas a firma era fraca; deixei-a dois meses depois. Fernando lá dentro tinha uma posição subalterna mas digna, ideal para um poeta. Naturalmente, no começo, eu não sabia que Fernando fosse um poeta. Mas assim que o vi achei-o tão engraçado... É comum que os homens ponham as calças embaixo das polainas, mas ele fazia isso de um jeito fantástico. Mais o bigode, aqueles óculos, e seu comportamento esquisito...não se poderia dizer que fosse o tipo de namorado que agradasse a meus pais. Para não falar da idade: era doze anos mais velho que eu. De resto, eu o entendia, e ele me entendia... ou, se não me entendia, pelo menos me amava... eu acho. Não há nada de mau em certas bizarrias; aliás, com o tempo, se olharmos para trás, o que fica são as pequenas coisas que fogem da normalidade; quanto ao sofrimento, para que se lembrar? – além disso, há sempre o perdão dos cristãos. Fernando era muito bom comigo, principalmente nos primeiros tempos. Gostava de fazer pequenos presentes de surpresa, ou me surpreendia com improvisas explosões de paixão; às vezes dizia frases desconexas, sem dúvida por amor... eu acho. Também era ciumento e se considerava mais velho e doente do que realmente era, mesmo sabendo que eu não o teria trocado por qualquer outro. Acho que o amor autêntico é exclusivo e duro. Por isso, eu tolerei aquilo que


outras mulheres jamais teriam tolerado. E não me arrependo. Quando se ama, tudo parece um quarto com muros de seda...povoado de fantasmas. Fernando tinha dentro de si outros poetas, parecidos mas diferentes, que aos poucos me apresentava, não dava para distinguir a verdade da mentira, a loucura da lucidez. Eu não estou louca e me lembro deles como se estivessem vivos – e estivesse vivo ele também, é lógico; Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, e os outros. Hoje em dia fico sempre em casa. Meu sobrinho Carlos Queiroz também é poeta, mas não bebe. Gosto de fazer tricot perto da sacada, olhar pela janela e pensar que a rua é sempre a mesma rua, que o ar do oceano é sempre o mesmo ar do oceano, e que quando eu estiver morta ficará o meu tricot. Saio tão pouco que começo a não sentir as estações. Não tenho vontade de ler ou ouvir rádio. Mais cedo ou mais tarde deixarei de comer: a dieta perfeita. Mas é preciso fazer alguma coisa, mesmo sendo velha. Eu passo o tempo parando o tempo. Revejo os meus vestidos de mocinha, e a minha pele ainda branca. Não aconteceu nada, nada; mas não foi suficiente, é preciso não nascer para ficar imaculada. Então, eu decidi ficar imóvel. Reduzo ao mínimo até os movimentos dos dedos, paro minhas pálpebras na enquadratura de alguma rua de Lisboa – é só esperar e não fechar os olhos. Até que o olhar e a rua virem a mesma coisa. ***** PESSOA: É, a senhorita sabe das coisas. OPHELIA: Que coisas? PESSOA: Que na rua um sujeito caminha em frente e os afetos param na calçada ao lado. OPHELIA: Senhor Fernando, o senhor sempre diz coisas que não entendo. Porque são profundas, acho. PESSOA: A senhorita nunca encontrou um? Um afeto? OPHELIA: Claro que sim. É normal. PESSOA: Ali, parado, com os pés de chumbo e a cabeça queimando?


OPHELIA: O que é isso, Fernando? Posso saber? PESSOA: Não é nada, Ophelia, nada. Estava somente tentando imaginar esse Senhor Afeto: os cabelos ruivos...um tipo persuasivo, inevitavelmente imortal, mesmo que mude sempre o seu rosto. OPHELIA: Perdão, mas se você precisa imaginá-lo, quer dizer que não o conhece em pessoa. Seria possível? O senhor é tão sensível! Posso perguntar-lhe uma coisa? PESSOA: Tudo o que quiser. OPHELIA: É casado? PESSOA: Não me aconteceu. OPHELIA: Sinto muito. Desculpe. PESSOA: Nada de grave. OPHELIA: Desculpe a indiscrição, mas já nos conhecemos há muito tempo. Não podemos continuar a falar dos preços das furadeiras. PESSOA: A senhorita não se sente bem, temo, neste trabalho. OPHELIA: Não é bem assim. É menos tedioso que ficar em casa. PESSOA: No que me toca, penso que para um poeta não seja danoso fazer contas, ou escrever cartas comerciais. Serve para ter um certo equilíbrio – entende? OPHELIA: Mas, então, como vive um poeta? PESSOA: Um poeta é um sujeito que, apesar de ser poeta, deve fazer a barba de manhã. OPHELIA: Não me caçoe – estou só curiosa! PESSOA: Um poeta é um sujeito que é muito só.


OPHELIA: Verdade? PESSOA: A senhorita me emociona com essas perguntas. Ninguém jamais me fez perguntas assim. OPHELIA: Que estranho. PESSOA: Muitas vezes acontece de passear em volta dos problemas, sem perceber. A senhorita, pequena Ophelia, encontra-se no centro dos problemas. OPHELIA: Obrigada, mas eu digo simplesmente o que me passa pela cabeça. Sou uma moça simples. PESSOA: Não são todas as moças simples que são simples assim. Existe uma falsa mocidade, um embonecamento insuportável. Eu aprecio na senhorita uma qualidade despida de artifícios, à qual dou nome de pureza. Faço mal? Não me dê importância: sou só um pobre velho. OPHELIA: Fernando, não seja ridículo. Com trinta anos se podem fazer muitas coisas ainda. PESSOA: Cada um tem a idade que merece. Esqueça a idade do Registro Civil. Eu sou como um general preguiçoso, que esperou muito pela guerra, e a pólvora acabou por mofar-se. No máximo posso disparar algum tiro de rojão. De resto, a senhorita saberia dizer-me alguma coisa que não fossem palavras? OPHELIA: Eu empregadas.

não

desprezo

as

palavras

quando

são

bem

PESSOA: No entanto, seria bom falar além das palavras. Até no pensamento há um excesso de matéria. Ophelia, eu sonhei com a senhorita, sabia? OPHELIA: Comigo? PESSOA: Exatamente. E não estou certo de que fosse um sonho.


OPHELIA: Como eu era? PESSOA: Ruiva, com um olhar líquido. Diria lacustre. OPHELIA: Talvez fosse outra. Ou se era eu, não se parecia comigo. PESSOA: Na imagem interior, sim. Mas a senhorita acha que em todos estes dias eu tenha notado só o seu aspecto físico, mesmo que seja muito agradável? OPHELIA: O senhor é muito gentil. PESSOA: Gentil não, sincero. Eu vou lhe dizer a verdade, uma entre mil, mas a verdade. Eu a amo, Ophelia. OPHELIA: Não sei o que responder. PESSOA: A senhorita é tão diferente das outras mulheres que eu não lhe daria um sexo. OPHELIA: Estou lisonjeada. É um elogio? PESSOA: Você está em meu caminho. Pode preferir ficar de lado ou encontrar-me. OPHELIA: E para o senhor, o que faria uma moça de bem? PESSOA: Não tenho a mínima idéia. OPHELIA: O senhor é um tipo engraçado. PESSOA: Repugnante, pode dizer, mas apaixonado. OPHELIA: Todos dizem a mesma coisa. PESSOA: Ophelia, do que estamos brincando? OPHELIA: Desculpe, Fernando. Estou tão confusa! Na verdade, nunca achei que fosse ficar noiva. Concretamente.


PESSOA: E nesse caso preferiria um gostosão. OPHELIA: Oh, não, detesto os gostosões. PESSOA: Não a censuro. OPHELIA: O senhor precisa de afeto, é inteligente demais para ficar sozinho. Enganei-me? É estúpido isso? PESSOA: A senhora, você...a senhorita...você entendeu tudo. Como entendeu tudo! OPHELIA: Eu preciso de você. Eu me sentia tão perdida. Eu preciso de um guia. Eu confio em você. Além disso, Deus nos protege. PESSOA: Estou feliz; a escuridão da noite caiu-me dos braços. Agora posso abraçá-la. Posso beijá-la. OPHELIA: Não ainda, por favor, não estou pronta. PESSOA: Quando, então? OPHELIA: Daqui a dois minutos. PESSOA: É muito. OPHELIA: Um minuto. Meio... PESSOA: É um tempo infinito. OPHELIA: Agora, Fernando, agora. *** CAMPOS: Se quiserem trepar, usem preservativos. Se quiserem ter filho, usem preservativo do mesmo jeito, e comprem um menor excluído. Ensinem-no a usar preservativos. Isso é política demográfica. Isso é progresso.


CAMPOS: Poeta! PESSOA: Engenheiro! CAMPOS: Posso perguntar – perdoe a expressão – como vai a vidinha? PESSOA: Como uma bola de bilhar direto na caçapa. CAMPOS: Isso, em geral. E nos pormenores? PESSOA: Acordo às sete e meia e tomo um café. Durante o banho e a barba, especulo sobre problemas teosóficos, cujas soluções estão ligadas ao perfeito escanhoar da minha barba. É o melhor momento do dia para penetrar nos mistérios deste mundo material, que, como você sabe, não é nada mais que uma brincadeira do Espírito. CAMPOS: Uma brincadeira de mau gosto. PESSOA: Gasto o resto da manhã em poesias herméticas de importância secundária. Não falemos do almoço. Antes de sair, ajeito meu bigode diante do espelho, a fim de exibi-lo na rua aos estetas lisboetas, enquanto não chegar ao escritório. Quanto ao que ocorre de noite, você e as garrafas de vinho se lembram melhor que eu. CAMPOS: Este relatório não me deixa satisfeito. PESSOA: Paciência. CAMPOS: Faltam pontos fundamentais: os pormenores picantes. PESSOA: Não entendo de certas coisas. CAMPOS: Não enrole! Também nós, poetas, somos dotados de sentido. PESSOA: Se você entende tanto da coisa, porque me pede para


falar? CAMPOS: Antes de mais nada, porque somos amigos; e em segundo lugar porque a sua virgenzinha não é nada mau. PESSOA: O nome dela é Ophelia. CAMPOS: Ophelia? E sabe nadar? PESSOA: O que quer dizer com isso? CAMPOS: Quando você largar dela, é provável que ela se jogue no lago para manter a fé no próprio nome. PESSOA: O cadáver dela será menos frio que as suas tiradas. CAMPOS: Você se esquenta assim por uma mulher? PESSOA: Nunca. Mas eu gosto da Ophelia e não é o caso de brincar assim. CAMPOS: Estou preocupado seriamente... PESSOA: Tenho já uma certa idade. É hora de colocar a cabeça no lugar. CAMPOS: Não estou mais preocupado; estou alarmado. PESSOA: Não quero continuar sozinho. É tão estranho isso? CAMPOS: Não estou mais alarmado; estou angustiado. PESSOA: Inveja tua. CAMPOS: Escuta aqui, Fernando; um poeta fica sempre sozinho. Qualquer homem fica sempre sozinho. A única diferença é que um poeta ao menos sabe disso. PESSOA: Isso quer dizer que eu também ficarei sempre sozinho; mas sozinho com ela.


CAMPOS: Não se pode conciliar o lar com a poesia. PESSOA: Por que não? CAMPOS: “Oi meu bem”, dirá a virgenzinha não mais virgenzinha. “Meu bem você recebeu o aumento?” “Meu bem, você nunca me dá flores.” “O nosso filhote vomitou, dá para limpar, que eu estou ocupada, meu bem?” Você vai encontrar a sua máquina de escrever lambusada de papinha. PESSOA: Isso são aspectos secundários. O casamento tem também muitos prazeres. CAMPOS: Você está com a mente embaçada com os eflúvios da Grande Vagina. PESSOA: É, mas não se pode dizer que não sejam eflúvios perfumados. CAMPOS: A Grande Vagina é onde acaba de ponta-cabeça qualquer pensamento que vale a pena ser pensado, qualquer sentimento bom e puro, qualquer palavra dotada de sentido. Basta enfiar um dedo, e a Grande Vagina te engole a cabeça. PESSOA: Estamos falando de mulher ou de tubarão? CAMPOS: São os idiotas que pensam que devemos agradecer às mulheres o parto. Além do fato de a vida incluir a morte no contrato, diga-me: seríamos mais infelizes nascendo de um tubo de ensaio? PESSOA: Não. CAMPOS: O que conta, Fernando, é a ejaculação. Numa privada ou num ventre, qual é a diferença? PESSOA: Não gosto de privadas, obrigado. CAMPOS: Você está dando regras as tuas sensações!


PESSOA: Se há regras, goza-se mais. CAMPOS: Nasça como homem de bem e morra como poeta! PESSOA: A poesia, caro Álvaro, a minha poesia, não é uma torta de emoções; não é onanismo; não é bebedeira. Existem, no caos deste mundo, rastros de uma harmonia superior: é disso que eu me ocupo. CAMPOS: Muito bem. Mas se eu vejo areia, toco a areia e a chamo de “areia”: isso é areia. Que mais existe de superior? PESSOA: Entre o céu e a terra existem mais coisas do que você vê. CAMPOS: Se não as vejo, é como se não existissem. PESSOA: Você é monótono Campos. CAMPOS: Você também, Fernando. Quando é que me apresenta? PESSOA: Quem? CAMPOS: A tua vaquinha. PESSOA: É muito fácil ser misógino, engenheiro. É como prever que vamos morrer. Isso todos sabem. Mas enquanto não morremos, o que fazemos? ***

PESSOA: Era uma vez a Idade Média: uma época em que os homens tinhas as idéias claras (ou não as tinham). Se não morriam de fome, construíam igrejas. Era a única coisa que sabiam fazer. De fato, faziam-nas muito bem. Os arquitetos, os pedreiros e os aprendizes, reunidos em corporações, passavam de pais para filhos os segredos da construção, segredos ignorados pela massa de fiéis – porque o modo com o qual rezavam era construir. Hoje não se constroem mais boas igrejas, assim com a Religião Católica é só a sombra de si


mesma; mas a sabedoria dos antigos mestres, desvinculada das exigências práticas, continua a revelar fragmentos da grande arquitetura do mundo. É uma pia ilusão pensar que os homens sejam todos irmãos. Até mesmo os irmãos de sangue freqüentemente não se comportam como tal; e nos basta o exemplo daqueles dois do Gênesis. Na verdade, a fraternidade autêntica não deriva da natureza, mas do livre arbítrio. Só os animais amam-se espontâneamente e sem discernimento: ao contrário, quem ama a sabedoria, cuidará para não se misturar com a massa ferina e imbecil. O invólucro desta carne é muito mais fino do que as pessoas comuns e ingênuas imaginam. Essas pessoas caminham diretamente para o caixão, e nem chegam a esbarrar no degrau mais baixo da Escada Luminosa. Entre a matéria e a mente pura existem mil estágios intermediários. Não é fácil subir se quem está nos degraus de cima não ajuda. E essa pessoa que ajuda chama-se mestre. Não, o amor não serve para entender; para entender é necessário...entender. A luz passa, quando já estamos desesperados, por uma fissura secreta do crânio. Não está nas bancas do mercado, nas reuniões políticas, nos amontoados religiosos. Eu sempre tive visões. Desde que pertenço à Fraternidade, tenho desenvolvido os instrumentos necessários para decifrá-las. Encontro principalmente os mortos, que estão mais vivos que os vivos: eu mesmo, morto, por exemplo. Ou todos os poetas que têm o meu mesmo rosto, mas nomes diferentes. (Não há prisão pior que a própria assinatura). Eu mesmo negro, eu mesmo mulher, cão, pingüim. Eu omelete...a saúde mental é um limite; é preciso olhar com coragem os mil espelhos nos quais se reflete um único sol. O Paraíso será um olhar despudorado – e mil mestres me refinarão o olhar; mas os degraus da sabedoria terrena, antes da morte, são somente trinta e três.

(Durante a cena seguinte, diz em voz baixa) Aprendiz Colega Mestre


Mestre secreto Mestre perfeito Secretário íntimo Preboste e juiz Intendente dos edifícios Cavaleiro eleito dos Nove Cavaleiro eleito dos quinze Sublime cavaleiro eleito Grão mestre arquiteto Real arco Grande eleito perfeito e cavaleiro maçon Cavaleiro do oriente ou da espada Príncipe de Jerusalém Cavaleiro do Oriente e do Ocidente Soberano Príncipe Rosacruz Grande Pontífice ou Sublime Escocês Venerável Grão-mestre de todas as Lojas Noaquita ou Cavaleiro Prussiano Cavaleiro do Machado Real ou Príncipe do Líbano Chefe do Tabernáculo Príncipe do Tabernáculo Cavaleiro da Serpente de Bronze Príncipe de Compaixão Grande Comendador do Templo Cavaleiro do Sol ou Príncipe Adepto Cavaleiro de Sto.André da Escócia Cavaleiro de Kadosh Inquisidor e Comendador Sublime Príncipe do Real Segredo Soberano Grande Inspetor Geral Quem subir todos os degraus desta escada, se se jogar no vazio não cairá.

*** (RICARDO se lamenta) CAMPOS: Olá, Ricardo.


REIS: Boa noite. CAMPOS: Dormiu bem? REIS: Não muito. CAMPOS: Bem que ouvi suas lamentações. REIS: Sonhei que estava num lugar cheio de caixas de papelão, xepas de verdura, pneus velhos e merdas várias, e que alguém me batia na cabeça. Que alegria acordar aqui. CAMPOS: Ouça Ricardo, eu o estimo muito, mesmo que não concorde consigo. Pensando melhor, você também é um intelectual. REIS: Um o quê? CAMPOS: Ora, você é uma pessoa inteligente....entendeu? REIS: Não. CAMPOS: Você está querendo dizer que não é um intelectual? REIS: Não. CAMPOS: Mas não entendeu ainda? REIS: Não. CAMPOS: Olha, não suporto mais ver você neste estado. Nós, intelectuais fomos feitos para a ação, para a sensação e para a reação. Não podemos deixar que o mundo inteiro vá para o brejo num lento apocalipse. E você está atolado nesse brejo até o pescoço. Já se olhou no espelho? Dá nojo. REIS: Eu me amo. CAMPOS: É preciso resistir às derrotas e continuar a combater pelo gosto do combate.


REIS: Eu estou bem aqui.

CAMPOS: Está mentindo.

REIS: Está certo, houve, sim, uma fase na qual eu também acreditei que podia mudar a sociedade. De resto, todos nós acreditávamos – que mais se podia fazer? Até que me diverti, mas depois tive muitas desilusões, principalmente do ponto de vista sentimental. Todos os meus ex-amigos acabaram se inscrevendo na Fiesp, e a minha exnamorada acabou no anúncio de uma marca de whisky. Mas não me arrependo. CAMPOS: Não lhe peço que mude a sociedade; mas que se mexa um pouco, ou pelo menos mude de roupa. REIS: A minha roupa é branca e pura. CAMPOS: Duvido. REIS: Ouça. CAMPOS: Que foi? REIS: O sussurro de um riacho. CAMPOS: Ouço só barulho de ratos. REIS: Mas não está ouvindo a flauta que a ninfa do riacho toca docemente? CAMPOS: Que ninfa? REIS: Aquela. CAMPOS: Não estou vendo nenhuma ninfa aqui. REIS: Aposto que também não está vendo este céu azul e selvagem, e nem ouve o seu sorriso.


CAMPOS: Vejo e ouço que você está me gozando. REIS: Não é verdade. CAMPOS: E você não tem motivos para me gozar porque - coloque isso em meio ao lixo que tem na cabeça – eu sou duro na queda e você um fracote. REIS: Exatamente. CAMPOS: Eu sou um herói e você uma bicha triste. REIS: Mas eu só me divirto! CAMPOS: Não! Você só se aborrece! REIS: Tudo bem, eu só me aborreço. E também me divirto me aborrecendo. Ou então, me aborreço e basta. Ou não me aborreço e não me divirto. Mas sou eu quem decide. CAMPOS: Mas decide o quê? REIS: Caro Álvaro, você ainda não entendeu como é lindo fechar tranqüilamente os olhos, os ouvidos e o nariz. Para um poeta, antes vêm os substantivos e depois as coisas. Qualquer homem é o deus de si mesmo quando fala. CAMPOS: Deus! REIS: Basta-me pronunciar o seu nome, e sou já um criador. CAMPOS: Ricardo, vou diretamente ao assunto. Esta noite faremos um debate no Fernando. Você vem? REIS: Nem sonhando. CAMPOS: Não quer sair daí de dentro. REIS: Venha você aqui.


CAMPOS: Você é um maricas, Ricardo. Um comunista sodomizado, um hebreu nazista aposentado, uma dona-de-casa frustrada.

REIS: Adeus, Campos.

PESSOA: Quero esclarecer uma coisa: o principal compromisso que tenho comigo mesmo é o de ser apenas um poeta. Isso requer que eu também escreva poesias de amor. Num certo sentido, para tal finalidade, o amor me é indispensável, se bem que a mulher desapareça completamente quando lhe escrevemos tais coisas. (Tira bombons do bolso, desses que têm uma poesia-surpresa dentro. Não satisfeito com a qualidade das poesias, lê-os um atrás do outro. São as “Quadras ao Gosto Popular”, a escolher. Nesta peça, deverãoi ser os únicos textos de autoria real de Fernando Pessoa.) Isto posto, só me resta esperar na piedade feminina, que como sabem aqueles que a provaram, é um buraco sem fundo.

*** OPHELIA (Não vê Reis, apenas fala com ele): Caro senhor – permitame chamá-lo de senhor, porque somos todos irmãos, nós, filhos de um Único Pai –, eu não estou envergonhada por falar com o senhor. Mesmo que o senhor seja um excluído, não há de ser nada. REIS: Quê? OPHELIA: Caro senhor, o senhor não se deve envergonhar por ser como é, mas se tivesse vontade de mudar de vida, saiba que há seres humanos prontos para ajudá-lo. REIS: Não estou entendendo. Mas continue... OPHELIA: Enfim, eu – não eu exatamente, mas a minha Paróquia através de mim... Permita-me contribuir modestamente para a satisfação de suas necessidades (como definí-las?) físicas.


REIS: Você é maravilhosa. OPHELIA: O senhor provavelmente sofreu violências quando criança, ou tinha pais frios, ou distantes, e é por isso que agora se droga, ou não toma banho. REIS: Você é uma mulher ou uma Deusa? OPHELIA: Veja, trouxe balinhas e bolo de chocolate. REIS: Você é uma criatura do riacho. OPHELIA: Trouxe guardanapinhos de papel também. REIS: Você se chama Cloe. OPHELIA: Hã? Não, não... (perturbada) O senhor precisa se alimentar, precisa de uma dieta equilibrada.. Por isso, não se deve viciar em chocolate. Pode ser perigoso. Uma amiga, a irmã Adriana, vai lhe trazer verduras. REIS: O Cloe, a tua respiração é um alívio para a minha nuca. OPHELIA: (alterada) Já lhe disse que não me chamo Cloe! Bom, de resto o nome não tem importância, mas as obras de caridade, mesmo as mais insignificantes. Vou lhe fazer um agasalho de tricot. REIS: No tecido dos pensamentos, você, lâmina incandescente, oh, fria Cloe... OPHELIA: Qual a sua cor preferida? REIS: Você, fria Cloe, friamente corta... OPHELIA: Vermelho. REIS: O amor leva mel à gengiva... OPHELIA: O senhor fala de um modo estranho. Por acaso é de cor?


REIS: Eu sou um poeta. OPHELIA: O senhor também? REIS: Na verdade, era um poeta. É coisa de adolescente. Um dia parei, e nem percebi. Encontrei-me aqui, neste exílio dourado. Passo o tempo conversando com fantasmas. OPHELIA: O senhor não se droga? REIS: Não. OPHELIA: O senhor não é preto? Reis: Não. OPHELIA: O senhor não foi exilado político? REIS: Eu bem que tentei, mas ninguém exilou. OPHELIA: O senhor não é uma pessoa séria. REIS: Ai de mim. OPHELIA: Devolva as balinhas. Fique com o bolo de chocolate, já os sujou. REIS: Eu sou uma pobre alma abandonada entre as flautas e você é a Virgem que eu adoro, engolindo algas. OPHELIA: Mas o senhor não percebe que está ocupando uma sarjeta sem motivo? O senhor é mais detestável que um rato – no fundo, até o rato tem a função de rato. REIS: Não seja cruel, oh Cloe. OPHELIA: Vou procurar excluídos de verdade. REIS: Eu vou atrás de você onde estiver, como num filme, oh, minha


Luz, oh, alma escondida em mim! OPHELIA: Há bons maneiras até para merecer a Caridade. Cristo não suportava os soberbos. REIS: Não se vá. Oh, Cloe, meu cérebro tem numa auréola esperma: está tudo branco, contornos surreais; etc. ..

de

***

PESSOA: Campos, o que me diz disso? Estou tão apaixonado que não me lembro nem de quando fiquei apaixonado. Ao mesmo tempo, não estou apaixonado. Não, não estou apaixonado. Mas está envolvida uma mulher real, em carne e osso, com uma biografia banal. CAMPOS: Eu pensei que jamais poderia perdoar esta sua paixão vulgar, parcial, de consumidor de chocolate. Como somos amigos, pode desabafar comigo, mas não espere que eu venha te salvar. PESSOA: Não quero ser salvo. Gostaria somente de entender o que me está acontecendo. Se eu te apresentar Ophelia, você a tratará com gentileza? CAMPOS: Quem você acha que sou? Eu adoro as mulheres. PESSOA: Observe-a. Poderá parecer banal, escolhida numa feira por acaso. Mas não é assim; se fosse assim, não a amaria. Quer dizer, não consigo encontrar um motivo. CAMPOS: Não preciso de instruções. PESSOA: Por favor, seja educado. OPHELIA: Olá, Fernando. PESSOA: Senhorita, boa tarde.


OPHELIA: Boa tarde senhor Fernando (não vê Campos, mas percebe que Pessoa, quando este fala, é outro) PESSOA: Querida Ophelia, apresento uma pessoa na qual sempre lhe falei: o engenheiro Álvaro de Campos. OPHELIA: Ah.... CAMPOS: (agressivo) Não esperava, senhorita, que eu fosse tão lindo, não é verdade? OPHELIA: ...Eu também sou agradável.... CAMPOS: Prazer em conhecê-la! PESSOA: O senhor Campos não é só engenheiro; óbvio que é também um poeta. OPHELIA: É óbvio. PESSOA: É forte fisicamente e é um psicólogo refinado. OPHELIA: Verdade? CAMPOS: O senhor Pessoa me lisonjeia. OPHELIA: Ultimamente, freqüento mais poetas que cabeleireiros. PESSOA: Mas Álvaro é um poeta especial. É perfeitamente adequado às sensações. CAMPOS: Melhor: são as sensações que se adequam perfeitamente às minhas palavras. OPHELIA: Qual a diferença? CAMPOS: Fundamental: a diferença entre a criação e a projeção. OPHELIA: Não entendo dessas coisas.


PESSOA: Não é necessário; você é tão graciosa... CAMPOS: Pessoa hoje espalha frasezinhas emplumadas. Falemos claramente: ninguém disse que o melhor amigo de um sujeito e a mulher do sujeito devam se dar bem. OPHELIA: O senhor é o melhor amigo de Fernando? CAMPOS: A senhora é a ... PESSOA: Basta! CAMPOS: do meu amigo? OPHELIA: Oh, não importa – o seu melhor amigo está só brincando. PESSOA: De vez em quando você exagera, Álvaro. CAMPOS: Eu amo a verdade. E quando a verdade se endurece entre as pernas, a língua se afrouxa. OPHELIA: (escandalizada) Que conceito finíssimo. CAMPOS: É bom sinal que a senhorita goste desse conceito. Se quiser pode tocá-lo, o conceito. PESSOA: (de joelhos) Ophelia, perdoe-me tais vulgaridades. OPHELIA: (sempre olhando Pessoa) O senhor Campos não precisa ser perdoado. Basta olhá-lo para ter pena. CAMPOS: Tem pena de mim? OPHELIA: O senhor é um indivíduo tímido e inseguro, que precisa da agressão para sentir-se vivo. CAMPOS: Que asneira. OPHELIA: No fundo, no fundo, o senhor é meigo.


PESSOA: Está dizendo que você é meigo. Não está ofendendo. CAMPOS: Meigo, para mim, é uma ofensa. OPHELIA: (para enciumar “Campos”) Vim para me despedir do senhor. Estou deixando a “Félix e Valladas”. PESSOA: Ah, a senhorita vai para a firma “Dupin”, onde terá um salário mais decente. CAMPOS: O magnetismo demonstrado pela ciência.

entre mulheres e dinheiro já foi

OPHELIA: Eu gostava deste escritório. É triste, mas agradável. Não tive tempo nem para alegrá-lo com flores. Que pena. CAMPOS: Que nojo. OPHELIA: A única coisa que me consola é que continuarei a encontrar só o Fernando. PESSOA: Com certeza. Eu a acompanharei ao trabalho todas as manhãs. Estudei os caminhos melhores. CAMPOS: Caminhos melhores? PESSOA: Para passear com a senhorita por mais tempo. Já tenho aqui a planta. OPHELIA: Devo ir. Espero você amanhã de tarde, sob o balcão. PESSOA: Por favor, não finja que não me vê. CAMPOS: A senhorita tem um balcão? E não se joga lá de cima? Para que serve, então? OPHELIA: Adeus, senhor Álvaro, foi muito divertido conhecer o senhor. CAMPOS: Tome cuidado senhorita.


OPHELIA: Tchau, Fernando. ***

DEBATE CAMPOS: É sempre a mesma coisa. PESSOA: Ou seja? CAMPOS: Ela está largando você e você se apaixona. PESSOA: Está me largando? E como você percebeu? CAMPOS: Você já foi a uma praia? PESSOA: Raramente. CAMPOS: Tem milhões daquelas lá. ( com uma rosa na mão ) PESSOA: Ricardo Reis! CAMPOS: Eis um poeta! PESSOA: Você está um pouco abatido, meu amigo! CAMPOS: Veio, enfim, para o debate? PESSOA: Você não está apresentável, permita-me que o diga. Cheira a remorso. CAMPOS: Está tudo bem. Faz parte do jogo que um artista seja nojento. ( Reis procura Ophelia, está ausente todo o tempo). REIS: Onde está ela? PESSOA: Quem?


REIS: Cloe. PESSOA: Como disse? REIS: Cloe. CAMPOS: É uma marca de detergente. REIS: Perfumei as minhas feridas, tomei soro e arranquei o câncer da minha garganta. Fiquei lindo como um deus pagão, para seguir a minha mulher. PESSOA: Não conheço uma mulher chamada Cloe. CAMPOS: É loira ou morena? REIS: Imersa na luz. PESSOA: Então é uma santa? REIS: Um anjo, uma santa, e muito mais. PESSOA: E o seu sorriso? REIS: Sorri como uma furadeira. CAMPOS: (tenta disfarçar o interesse por Ophelia) Passemos a um assunto mais interessante. O tema do nosso debate é: “O papel do intelectual no Portugal de hoje, na Europa de hoje, no Mundo de hoje”. A introdução estará a cargo do professor Fernando. O professor Ricardo está convidado a sentar-se na mesa dos trabalhos, depois de tirar o pó de suas calças. O professor Ricardo no ilustrará o conteúdo do seu mais recente ensaio, intitulado “O Fim da Ideologia e a Tristeza Individual”. REIS: Nem pensar. PESSOA: Professor, não nos negue um pouco da sua cultura. CAMPOS: Rogamos ao ilustre professor.


REIS: Eu não sou um professor e o meu mais recente ensaio, “O Fim da Ideologia e a Tristeza Individual”, não tem conteúdo. CAMPOS: É um ensaio niilista? REIS: Não é um ensaio. É uma gozação que fiz de mim mesmo, e da qual tenho vergonha. Tenho vergonha de qualquer coisa que não seja louvar os olhos da minha amada. CAMPOS: (tenta continuar) É um ponto de vista interessante. Passemos agora ao professor Fernando. PESSOA: A mim parece impossível analisar o tema em questão sem colocar-se algumas questões preliminares: o que é um intelectual? O que é Portugal? O que é a Europa? O que é o Mundo? Iniciemos com sinceridade e rigor: séculos de religião e de filosofia nos deram apenas respostas contraditórias. Não havia necessidade de agitar-se tanto assim: comunico-vos, senhores doutores, que o mundo é uma bola redonda e que, doa a quem doer, os homens são triângulos isósceles. Quanto à Europa, esta geladeira quebrada dentro da qual estão derretendo todos os cérebros que se quer conservar, quanto à Europa, prossigo, estamos à espera de que algum robusto excluído negro a jogue de uma vez no oceano. Portugal está na vanguarda; está já meio afogado. Quanto ao intelectual, com o seu crânio, quero dizer, o ângulo agudo do triângulo isósceles, ele apenas faz cócegas na redondeza da pança indiferente do Mundo. Está à procura de faíscas: este é o seu papel. Unido a outros intelectuais – não através de vínculos acadêmicos ou do papel de embrulho chamado jornalismo – por uma afinidade inefável, quer começar uma viagem da qual não pode comprar a passagem. Não há dólar, cartão de crédito ou Chivas Regal que pague o degrau mais baixo da Sabedoria. O truque é muito simples. Basta seguir o caminho que, aparentemente, roda em círculo, mas, na verdade, vai em linha reta. Basta caminhar com os olhos fechados e enxergar. É muito simples, mas poucos o fazem. Enquanto isso, o poder terreno permanece apanágio das bestas e dos animais. REIS: Ela passou por aqui! PESSOA: Quem?


REIS: Reconheço o seu perfume. Vocês a viram. Para onde foi? PESSOA: Ouça, Ricardo... REIS: Só quero que me digam: para a direita ou para a esquerda? CAMPOS: (envolvido no debate, esquece Ophelia) Quero fazrr uma observação. Aliás, algumas observações. Aliás, quero fazer um longo discurso. A introdução do professor Fernando, como qualquer coisa que saia da sua mente sutil e temerosa, não pode satisfazer o sentir viril de quem pensa profundamente. Fala muito bem, muito elegante, o nosso poeta: “o intelectual procura faíscas”, “afinidades inefáveis”. Mas espreme, espreme, o suco dessas palavras – velhas peruas refeitas para esconder o bolor -, nos revelam apenas uma só penosa e obscena banalidade... REIS: Se há perfume de rosas, e não se vêm rosas, quer dizer que ela esteve aqui. CAMPOS: O professor Fernando, no final das contas, está apenas dizendo.... PESSOA: O amor te perturba os sentidos, Ricardo. REIS: Seguirei o seu rastro como um cão de caça. (fica de quatro) CAMPOS: Professor Ricardo, levante-se! PESSOA: Você é bípede e bacharel, Ricardo – não pode ficar de quatro. CAMPOS: Continuando: no final das contas, o professor Fernando quer nos dizer: “Caros intelectuais, este mundo é uma coisa muito ruim; e é bom que fiquemos em nossas casas e rebatizemos como Sabedoria as nossas punhetas”... PESSOA: Não é verdade! Tal interpretação não é correta! CAMPOS: Ah, não, Caro Fernando, eu o desafio a manter a dignidade


do intelectual. PESSOA: Mas não precisamos mais da dignidade. CAMPOS: A dignidade do intelectual é também a dignidade do resistente e do combatente! E as armas são os cinco sentidos! PESSOA: Não vejo mais inimigos a combater. Mexer as mãos no vazio eu sugiro aos adolescentes. REIS: (se levanta) Senhores! Acabei de apurar que todos os cantos desta sala estão impregnados de Cloe. Visto que pressinto que a sua alma tenha já voado para o céu, esconjuro-vos a devolver ao menos o seu amado corpo. CAMPOS: Reis, porque não vai procurar o teu cérebro? Você deve têlo esquecido na lata do lixo. PESSOA: Álvaro, você é cruel. REIS: Engenheiro, o senhor não sabe o que é o Amor. CAMPOS: Não é questão de saber. Eu provo o amor. PESSOA: No espelho? CAMPOS: (enfurecido) O degrau mais baixo dessa sua Sabedoria dos quatro elementos, Fernando, é também o mais alto. Eu já cheguei nele, e nele eu amo, amo e amo – esta terra gorda, a água infida, o fogo esguio e o ar virginal, da ponta do nariz até o cú, vinte e quatro horas por dia, e mais um minuto ainda! REIS: A mim tudo isso me parece um pouco vago. Não se pode amar nada além de uma mulher. PESSOA: Na mulher, se ama uma sobra da Sabedoria Oculta. REIS: Não. Na mulher se ama a mulher. CAMPOS: Senhores, quero fazer uma colocação: isto aqui é uma


reunião intelectual ou um consultório sentimental? REIS: Para mim este é um porto triste, como quando a noite ou a névoa confundem o mar e o céu nas tintas do desespero maior. Mas a esperança me trará uma aurora vívida; e estou zarpando com ela. CAMPOS: Para onde? REIS: Que me importa? Encontrarei o caminho navegando por entre os dedos de um anjo; de resto, não tenho destino fixado. Qualquer lugar em si é bom. Ir de um ponto ao outro, mesmo sofrendo, é humano. A existência é mais um bem que um mal. Ademais, findas as coisas, ficam os nomes, a flutuar no vazio. (vai embora) CAMPOS: Desejo ao professor Ricardo Reis que as palavras que impropriamente lhe escaparam da boca, voltem para ele através do orifício que merecem. PESSOA: Deve ter mais respeito por Ricardo. CAMPOS: Não merecem respeito. Nem ele, nem você. Que vocês sejam uns fracos, passe. Mas vocês têm orgulho da vossa fraqueza. Desfilam com ela por aí e infectam as pessoas. Vocês parariam a rotação da Terra só para descansar e refletir. Assim as mentes promissoras dos jovens se apodrecem: office-boys disfarçados de banqueiros dirigem a farsa da economia e da política. É uma grotesca corrida aos dividendos da bolsa; e os personagens dessa farsa são interpretados por essas putas velhas e gordas chamadas Democracia, Sindicato, Liberdade de Imprensa. PESSOA: Não entendi o que você quer de mim. CAMPOS: Que perceba e acorde. Você está acometido do que eu chamo de namoro soporífero. Combata ao meu lado, enquanto não ficar louco de vez. Não tenha medo de ser forte. Não somos nós os fortes? Não somos nós os melhores? Não há do que nos envergonhar. O Mundo não é uma planície: é cheio de montanhas; quem estiver no alto delas o verá e o dominará. O nosso domínio sobre ele será feroz e doce ao mesmo tempo. Ninguém nos entenderá, e podemos ser nós mesmo a lei.


PESSOA: Substituir-se a Deus é um achado vulgar. CAMPOS: Deus é um termo adequado a coisas demais. Eu prefiro dizer: Homem. PESSOA: Com essa calvície insipiente, super-homem não lhe cai bem CAMPOS: Pantufas e mulher é que não lhe caem bem. PESSOA: Estou farto de fascistas como você. CAMPOS: Você me secou, Fernando. De agora em diante não dependo mais de você. Respondo a mim mesmo. PESSOA: Você não pode se perguntar sem mim. responder nem de si e nem a si mesmo. CAMPOS: Vá falar com a tua virgem. PESSOA: Com quem? CAMPOS: Você ouviu muito bem. PESSOA: O que? CAMPOS: O que eu disse. PESSOA: A quem? CAMPOS: O que? PESSOA: A quem? CAMPOS: O que? PESSOA: Ah? CAMPOS: Ficou surdo?

Ergo não pode


PESSOA: Ficou surdo? (silêncio)

REIS: Eu não freqüento mais nenhum ambiente. Mas quando eu era jovem, em certos ambientes se dizia que a ordem melhor era como uma montanha de lixo espalhada ao acaso. Eu sempre fui míope – hoje perdi a vista e as ambições. Só o amor me move; sou o cão do amor. De vez em quando sinto um aperto no pescoço. Significa que devo olhar para trás. É o caso de obedecer; não é tão ruim assim ser um escravo (é melhor a coleira que continuar sozinho; olhos brancos de cão, num espelho branco). Sei que isso é uma impertinência, e que se espera mais de um homem no final das contas ainda jovem, potencialmente brilhante, filho de boa família. Mas, sabem como é, quando uma geração é derrotada, há quem compre um carro novo, mas algumas cabeças ficam a pé. Assim, não me resta nada além de dançar com a Virgem Maria, nas praças de uma Belém perene e cristalina. Irresponsabilidade? Não, sobrevivência. Por dez anos eu fiz política. Pensava que qualquer coisa que acontecesse fosse comigo. Hoje já não suporto as notícias. Saber sob qual patrocínio as pessoas se matam ou se roubam é uma cultura angustiante...certas palavras bonitas e sedutoras ao ponto de corar os séculos... palavras fáceis de se empunhar, mas impiedosas como uma lâmina...quantas cabeças cortadas dizendo a palavra “comunismo”...enquanto o nome de Cristo é uma marca garantida para esquentar poltronas... Não, não. As palavras boas para mim estão no ar que respiro e na mulher que desejo. Quem quer mais do que isso! Ouçam bem: talvez eu tenha perdido a moral, mas quem tiver uma moral, jogue-a aqui, por favor. Poderemos costurar essa moral numa imensa bandeira, com milhões de narizes e milhões de órbitas de olhos vazios. Juntando cartões postais, refaremos o mundo. E daí? O que vamos conseguir? Ah, eu deixo para lá, sigo mudando de canal, nem vejo o jornal na TV. Vou


mudando: e o que encontro no fim? Ela, ela, o meu rosto de poeta romântico de bolso, para sempre encerrado num cubo congelado e colorido! Com a certeza do fim, sou pego por um raptus de verdade televisiva e grito: -Cloe! Minha ninfa fugitiva, minha deusa loira impossível! Aproveito pelo tempo que você me concede para dirigir-lhe um apelo emocionado. Trago aqui um pouco de terra do Paraíso. Um oásis com dois cômodos, onde lhe servirei néctar, ambrosia e Coca-Cola bem gelada. No começo você vai estranhar, vai ver só ferro velho e plástico e vai pensar que o meu perfume é fedorento. Depois, vai concordar comigo: esta cela de carne e osso é melhor que as Bahamas. Desça, desça, venha cá. Desça do seu balcão. A tua ausência acaba com os meus nervos. Já estão estourando, em breve eu murcharei como um balão vazio. Por favor, prolongue-me a agonia, torne doce a minha morte, lendo as minhas rugas precoces com a tua mão, endireitando a minha espinha com o seu abraço letal e saudável. (silêncio) Não quer? Tudo bem. A corda não vai fugir do pescoço. Nem a faca vai fugir veia. Espero por você, meu amor.

*** CAMPOS: (com rosa na mão) É tão evidente que não se percebe e acabamos enganando a si mesmos nos momentos de distração. Eu, por exemplo, com esta porcaria na mão. Não sei nem de onde venho. Maldita a hora em que pensei em me abrir a esse monstro que defino de “meus sentimentos”. OPHELIA: Essa é a utilidade de se ter um balcão. Lisboa é cheia de tipos estranhos com rosa na mão. CAMPOS: Nunca me envergonhei tanto. OPHELIA: Engenheiro! Que faz por aqui? Mas que rosas lindas! CAMPOS: Eu...São lindas porque são caras. OPHELIA: O senhor não gosta delas?


CAMPOS: São sufocantes. OPHELIA: Engenheiro, sabe se passará por aqui o meu caro Fernando? Pensei que fosse encontrá-lo. CAMPOS: Não diga esse nome, por favor. Quem perde a minha amizade é abolido da minha conversação. OPHELIA: Sim, mas como sou amiga de Fernando, posso dizer o seu nome. Fernando Pessoa. Soa tão bem, não? CAMPOS: Não senhorita. Essa é uma péssima música. Desculpe o ouvido. A senhorita está se relacionando com um indivíduo que do artista possui só o egoísmo. Mas o ama realmente? OPHELIA: Logicamente; é o meu noivo. CAMPOS: Mas o que ele tem a ver com a senhorita? OPHELIA: Engenheiro, não lhe parece estar sendo um pouco abelhudo? CAMPOS: A senhorita diz: o meu noivo. Mas ele não chega a ser um homem. Fecunda idéias somente. Tem medo das mulheres. OPHELIA: Comigo é diferente. CAMPOS: A senhorita pensa: ele vai se casar comigo. Não se iluda! Sabe porque ele respeita a sua virgindade? Porque ele a despreza! Ele teme a mordida das suas coxas, coisa que eu tanto desejo. OPHELIA: Senhor Campos, não aceito conselhos. Fernando e eu estamos muito próximos um do outro. Não é um problema físico. CAMPOS: É sim! A senhorita tem um corpo, Ophelia, não pode negar. Eu o vejo, sinto o cheiro dele, quero tocá-lo. OPHELIA: Esqueça. CAMPOS: Com vinte anos não é possível saciar-se só de poesia. Mas


se assim for, eu também sou poeta. Vou lhe dar poesias também, mas só como cartão de visitas. Depois, a visitarei, e farei um bom passeio turístico. OPHELIA: Não me faça rir. CAMPOS: Está bem sou um tímido, eu devo entender isso de uma vez por todas. Estas rosas são para você. Sim, eu a chamo de você e lhe dou estas rosas: te amo, te amo...te quebro em duas! OPHELIA: O senhor está bêbado? Não quero as suas rosas, sou noiva de outro. CAMPOS: Você não sabe o que é um macho. OPHELIA: Não, mas estou curiosa. Vejamos. CAMPOS: (assustado) Vejamos o que? OPHELIA: O macho. Anda! CAMPOS: Que macho? OPHELIA: O senhor abaixe as calças, por favor. CAMPOS: Eu? Aqui? OPHELIA: Isso mesmo. CAMPOS: Mas não lhe chegam as rosas? OPHELIA: Mostra o caralho, artista! CAMPOS: Não posso! OPHELIA: (se recompõe) O senhor não pode amar, senhor Álvaro, porque é ateu. CAMPOS: (enfurecido) E você pensa que acredita em Deus só para encaixar os seus sentimentos em clichês preestabelecidos. Mas


ninguém governa o cemitério. Não existe qualquer Deus grande o suficiente para ser chamado de porco! OPHELIA: O senhor está errado, e Deus o recompensará pelo seu elogio. CAMPOS: Não tenho medo. OPHELIA: O Inferno o espera, pecador bastardo. Sabe como é o Inferno? Não se pára de morrer, numa montanha de pó. É mais frio que o frio e se sente uma sede infinita. CAMPOS: Sua vaca de presépio, ninguém vai querer se casar consigo. É uma previsão sem rancor. Afinal, é tão graciosa. OPHELIA: Vá embora! CAMPOS: Deixo aqui as rosas. Adeus. Lembre-se de mim quando rezar. OPHELIA: É um homem fascinante, mas já estou noiva.

*** PESSOA: Francamente, mesmo que eu esteja cambaleando e o meu fígado inchado, crivado de alfinetes, devesse lembrar-me a miséria da minha condição, provo ainda uma forte vaidade. Não ao espelho, onde são recompostas com fadiga os meus rastros; mas na Babel das folhas de papel, quando a minha pessoa se exalta e se despede, vira mil e fala com milhões, com uma voz que não é dela. Não é mal derramar vinho e mais vinho sobre as próprias feridas, curar as pragas do céu (ou assim acredito), fazendo com que o mesmo rode veloz, muito veloz, até que a cabeça se desparafuse e o pescoço se destape – e explode, borbulhando, uma festa de sangue azul. Há cores que se transformam em pedras; há uma lapidação do que sobra do meu corpo (um tiro ao alvo na noite), entre gritos remotos e beijos de bêbado nas paredes. Por isso - e muito mais que isso -, vocês podem


imaginar o preço afetivo quando vos pedem carinhos mas a mão teima em ficar parada. E vocês aí, correndo atrás da forma verbal, da sintaxe mais nua, da palavra indizível que faça calar – e não a encontram. Isso é loucura, mas o homem não foi criado para viver nesta Terra; se eu era lúcido, esqueci-me completamente. Continuam as marés do sangue e do vinho entre as têmporas. Choram. Para a frente. Para trás. Parece um berço, mas o nascimento abortou-se. (cai) Onde estão os meus ossos? Quem me trás de volta para a vida? (silêncio) A palavra “poeta” é boa só para ser inscrita nos túmulos. Quanto às outras, já não me interessam.

*** REIS: Cloe, desça aqui! OPHELIA: Que quer de mim? REIS: Eu sou um homem limpo, Cloe. Não a tocarei. Quero só adorála de perto. Não está apreciando a minha humildade? OPHELIA: Será melhor que me adore de longe. Eu não tenho nada contra os excluídos, mas não é o senhor a pessoa que quero encontrar neste momento. REIS: Os seus desejos não têm poder: deixe-se levar pela casualidade. Veja como estou lindo. Trago comigo um vaso cheio de pedras preciosas e mimos orientais. Não lhes sente o cheiro? Se ama outro, pare. Os meus mimos equivalem a muitas vidas. OPHELIA: Os seus mimos equivalerão a uma tijolada na cabeça. Se não for embora, eu chamo a polícia. REIS: Você está brincando, oh Cloe, está brincando, oh minha doce, doooce ninfa do campo. OPHELIA: Eu devo ter um mau-olhado para atrair tantos dementes. REIS: Falando sério, senhorita: quero convidá-la a um trekking


ecológico. OPHELIA: Falando sério, meu senhor, quero mandá-lo a um hospital psiquiátrico. REIS: Só você pode me curar. OPHELIA: Não possuo leitos disponíveis. Entendeu? Não estou dispo-ní-vel para ser a deusa, a ninfa ou a enfermeira de ninguém! Eu sou uma mulher, e além do mais estou noiva! Entendeu? REIS: Oh Cloe, que se inflama na ira. OPHELIA: Se conhece essa Cloe, vá lamber a sua xoxota, mas deixeme em paz, por favor! REIS: Como assim? Cloe não é mais a Cloe? É lógico que é. Com certeza. Basta com esta comédia de erros. OPHELIA: Basta, basta de verdade. REIS: Oh Cloe, você acha que não me ama. Quer uma última, terrível prova? OPHELIA: Oh, não, por favor! REIS: Por você me privarei de tudo. (joga fora os lixos que carrega) Estas são as jóias da rainha Teodolinda. São como lágrimas que derramei em minha alegria infantil. Tome, meu amor. (joga lixo nela) OPHELIA: Polícia! (joga tudo nela)

REIS: Você está atordoada com o meu amor. Mas isso ainda é nada... (joga mais lixo de frango) OPHELIA: Eu mando prender você.


REIS: Olhe, o meu pobre coração. Venha pegá-lo, amor, a nossa estória está no fim. OPHELIA: Para a cadeia! (joga lixo nele) REIS: Está bem, tesouro, eu vou voltar ao meu campo. OPHELIA: Morra por lá!

***

CAMPOS: Vocês! É a vocês a quem me dirijo, exército pecorino do presépio do livre-pensamento, jornalistas de bidê, padres de plástico, a vocês, críticos hermafroditas muito bem pagos! Parabéns por este desastre cinzento, por este Apocalipse idiota do qual vocês sãos os anjos! Vocês reduziram a arte a um refinado falatório: nada foge à nota de rodapé, à extensa bibliografia, à prisão ventosa das tendências. Vocês – que precisam colocar etiqueta até na mães de vocês para conseguir reconhecê-la - , vocês perderam a consciência carnal das coisas, e estão empurrando o mundo, com vórtices de retórica, no abismo de mentirinha. Ontem vocês gritavam “viva”! e hoje “abaixo!”, sem sequer somar meia ruga na boca. Mas o que foi que mudou de verdade, senão a vontade de algum Tio Patinhas, que vos enfia o dinheiro na famosa fissura, só para escutar a musiquinha preferida? Sim, porque o dinheiro gira tanto que não mais corresponde à circulação real das mercadorias; o pensamento é um mero produto da terceirização; às vezes é chic. Às vezes, pode-se conservá-lo em casa, na geladeira; quando é preciso, basta pescar nele a palavrinha escolhida, para refrescar o hálito e oxigenar o sangue. Já falamos de “Democracia”? Já gritamos “Paz!”? ou “respeito ao meio-ambiente”?


Já? Temos ainda outros truques para nos sentirmos bons? Eu não sou um provocador: busco só um mínimo de verdade em meio a esta baderna, entregando-me ao próprios sentidos. A Verdade, porém, goza de quem ama; e a visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato viram véus que me isolam o cérebro – e me sinto só a ponto de chegar ao espasmo feroz de destruir tudo o que encontro pela frente; de matar o que vai morrer de qualquer jeito: tetos, rabanetes, poodles bem cuidados e respectiva dona, janelas cegas de castelos, meninos loiros sorridentes, instituições de caridade, jogadores de cricket e sovacos cansados de bancários. Que há de mal nisso? Mudará alguma coisa? Eu vos lanço um manifesto mudo, e vos desafio à darme uma resposta. (silêncio) *** OPHELIA: Boa noite, senhor Pessoa. PESSOA: Boa noite, senhorita Queiroz. OPHELIA: Já não esperava que passasse. PESSOA: A senhorita parece bonita daqui debaixo. Passou bem o dia? OPHELIA: Tive uma certa dor de cabeça. Sabe, freqüentando poetas... PESSOA: Entendo perfeitamente. Eu mesmo me canso de me freqüentar. OPHELIA: E assim vai por aí fora de si, para distrair-se – não é assim? PESSOA: Pode acontecer. OPHELIA: Eu já vi o senhor transformado em pelo menos duas pessoas diferentes. Quando é que se transformará num bom marido, Fernando? PESSOA: Nunca, meu amor. Em primeiro lugar, não tenho intenção de parar de fumar. Em segundo lugar, chega de dar presentinhos. Tenho


mais de trinta anos. Em terceiro lugar, tenho mais de trinta anos; devo pensar em minha obra poética. Senão, no que é que devo pensar? OPHELIA: Tem razão, no que é que deve pensar, não é? PESSOA: Não sei. OPHELIA: Faça pensar?

um esforço de imaginação. No que é que deve

PESSOA: O nosso amor foi, e ainda é, alguma coisa luminosa. É comovente, se penso nele. Mas me canso, também. OPHELIA: É inútil dizer que você pode tranqüilamente continuar a fumar, e que não tenho interesse nos presentinhos, bombons e flores. Tenho interesse por você. PESSOA: Você ainda é uma menina e merece uma pessoa melhor que eu. OPHELIA: Você sabe que eu não consigo. PESSOA: Mas você tem toda a minha estima. OPHELIA: E o que eu faço com ela? PESSOA: Mulheres...quentes em baixo e ocas em cima. Com o tempo, esfriando essa raiva de agora, entre nós ficará um profundo, magnífico e distante respeito. OPHELIA: Qual é a personagem farsesca que me está dizendo isso? Não me diga que você se chama Fernando. Não me diga que é você. Eu teria pena. PESSOA: Vou revelar algo que deveria esconder: somente a massa dos profanos acha que pode ter vontade e decidir o destino; quem realmente chegou à Sabedoria, sabe que o destino nos manobra com linhas finíssimas e tensas; a parte mais nobre de minha alma, ainda encerrada nesta alma vulgar, escrava do corpo, tem que se refinar na disciplina involuntária, a fim de triunfar na totalidade da iluminação.


OPHELIA: O que você está dizendo? PESSOA: Eu já calculava que você não teria entendido. Não tem importância. De resto, o meu destino está cada vez mais subordinado à obediência, a mestres que não permitem, nem perdoam. (silêncio) OPHELIA: Fernando, ontem à noite tive um sonho. Posso contá-lo? PESSOA: Diga, querida. OPHELIA: Lembro só que estava parindo no escuro. Você não estava. Estava só a parteira. Depois do parto, ela disse: “Tome cuidado com esta criança, senhora. Nunca se sabe hoje em dia. Esconda-a”. Então, pensei: “Ninguém vai matar o meu filho. Devo ser forte, devo protegêlo”. Coloquei-o num bercinho no canto do quarto, e saí para fazer compras. Comprei um agasalhinho azul, para vesti-lo; leite de mãe, para nutri-lo; um brinquedo de cubos e esferas, para deixá-lo inteligente, luvinhas e sapatinhos. Tinha as mãos cheias de embrulhos. Suava. Foi quando percebi que estava fora de casa já há seis meses. Largo os embrulhos e corro para casa. Do berço gotejava uma substância preta. Ninguém havia cuidado da criança por seis meses. O bercinho está cheio de excrementos. Tiro a criança de lá e a ponho embaixo da torneira; lavo; tiro as crostas, passo talco, troco a fraldinha dela. Visto o agasalhinho azul. Olho para a criança, mas vejo que ela está morta sufocada, com a boca cheia de merda. (silêncio)

REIS: A linha esticada que liga as costas ao buraco do céu a linha, a linha e a corda (ai de mim) que sobre o peito depõe um colar de pérolas vermelhas discretamente descem braços e pernas relutantes. A guerra é finda.


CAMPOS: Onde puseste, amor, meu crânio? Há que se controlar pó misto ao cuspe apoia-se sobre a madeira digna, suspiro do verme Seja tu o meu epitáfio, honra-me em lágrima alugada escreve-me e jogue o que recorda.

PESSOA: e abaixo, abaixo, abaixo o caixão desce, grave nas asas da multidão morta e leve – não te arrepende: sente o ar que vibra. É nossa casa, esta terra não podemos fugir.

OPHELIA: Não cabe a mim nem julgar, nem justificar o que aconteceu. Cada amor tem o seu próprio modo de acontecer. Depois que nos deixamos pela primeira vez, Fernando e eu não nos vimos por nove anos. Tinha notícias indiretas dele. Um dia, mandou-me uma fotografia sua, tirada em não sei qual taverna. Voltamos a nos encontrar. Eu já não esperava salvá-lo da sua obra. Ele ficava cada vez mais gordo e nervoso. Dizia constantemente que era louco – e de fato mandava cartas delirantes, às quais acabei por não mais responder. Não obstante, continuamos em boas relações e até a sua morte nos mandamos telegramas de fim de ano. Quanto às crise hepáticas, não podia ter ido embora de outra maneira. Amar um homem assim não foi em vão. Fazendo as contas, acho que


fui correspondida. Ele se contentava com o essencial para viver. O resto lhe era indiferente. Não tinha qualquer ambição ou vaidade. Era simples e leal. Dizia: “Não conte a ninguém que eu sou poeta. Escrevo, no máximo, alguns versos”.

(Tradução de serviço de novembro de l999, por Mauricio Paroni de Castro, para o Português Brasileiro)

Letras das musicas a serem cantadas entre algumas cenas “Mal-me-queres, bem-me-queres Tenho eu no meu jardim Bem-me-queres, acabaram Mal-me-queres, não têm fim” “ ‘Inda que o fogo se apague Na brasa fica o calor ‘Inda que o amor se apague No coração fica a dor” “Meu amor, Quando morreres Deixa aberta a tua cova Que vou logo atrás de ti.”

Algumas Quadras sugeridas: Cantigas de portugueses


São como barcos no mar Vão de uma alma para outra Com riscos de naufragar. Tens o leque desdobrado Sem que estejas a abanar. Amor que pensa e que pensa Começa ou vai acabar. Deixe que um momento pense Que ainda vives ao meu lado... Triste de quem por si mesmo Precisa ser enganado! A terra é sem vida, e nada Vive mais que o coração... E envolve-te a terra fria E a minha saudade não! Morto, hei de estar ao teu lado Sem o sentir nem saber... Mesmo assim, isso me basta P’ra ver um bem morrer

Não sei se a alma no Além vive... Morreste! E eu quero morrer! Se vive, ver-te-ei; Se não, Só assim te posso esquecer.

Toda a noite ouvi no tanque A pouca água a pingar. Toda a noite ouvi na alma Que não me podes amar Teus olhos tristes, parados, Coisa nenhuma a fitar... Ah meu amor, meu amor,


Se eu fora nenhum lugar!

Poesias de Gabrielli na cena: Botão de rosa menina Tenra, pequenina Corpinho tentador, Vem morar em minha vida, Oferece em ti suave abrigo Ao meu coraçãozinho...

Beija-me, beija-me muito Quem venceu nos teus encantos Prisioneiro do teu abraço, Que eu não sinta a minha própria vida Nem a minh’alma, ave perdida No amor azul dos teus céus

Quando passo um dia inteiro Sem ver o meu amor Cobre-me o frio de Janeiro No Junho do meu sentir

Minhas pombinhas, minhas pombinhas Que não têm mais o ninho junto a mim: Assim são os meus sentimentos Morrem todos assim


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