Caderno05

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Dois poemas de Márcia do Canto serviram de base para o início do trabalho na escola Hermes da Fonseca:

Ninguém

Alguém (nome escolhido)

Meu nome é ninguém / Sou ninguém porque Ainda nada sou / Não tenho cabelos Nem boca nem olhos / Falta um coração para amar O que você pode me doar? / Não ando, não falo Me calo e nada escuto / Não escolhi ser assim Mas é sua escolha / Dar algo para mim Me faça alguém / Me dando o que tem Pouco ou muito /O que lhe convém!

Uma boneca contente fiquei Até um nome ganhei / Você que doou Forte assim me deixou Mas o que não pensava É que forte também ficaria Doar é um ato de gratidão A todos que participaram Obrigado/a de coração

Cultura doadora começa na escola

Doar é superar medos

“Meu cabelo é melhor que doce”, diz uma das mensagens das placas de papelão escritas a mão e mostradas com orgulho por um grupo de meninas com cabelo na altura dos ombros. Para Ana, Maria Fernanda, Isabela, Maria Julia e Mariana, que estudam na Escola Rainha do Brasil, cabelo é só cabelo, que pode mesmo dar tanto prazer para outras crianças como doce e beijinho. “Precisa de muitas mechas para fazer uma peruca”, explica Isabela, a mentora da ideia de doar para outras crianças,

Para Fernanda Minuto, 17 anos, fazer parte do projeto Cultura Doadora é tão natural como aprender Português, Matemática, História. Fernanda já fazia doações de roupas e objetos de higiene aos moradores do Asilo Padre Cacique, em Porto Alegre, atividade na qual se engajou desde a 2ª série. Com o tempo, passou a participar periodicamente de bingos e chás no local. Neste ínterim, cultivou amizades e um carinho pelas pessoas com quem interage. Este ano, entrou para o projeto de doação de sangue e medula óssea da Escola Rainha do Brasil. Quando surgiram as campanhas para doação na escola, Antonio Garavello Neto e Lucas Sica, ambos com 17 anos, logo se engajaram. “Estava no Grêmio Estudantil e resolvi participar, primeiro auxiliando com lanches, depois vi que era um gesto simples que podia auxiliar tanta gente que precisa...”, conta Antonio. “Não tem dinheiro que pague a sensação de ser solidário”, completa Lucas. “Quanto mais se falar no assunto, mais se vence os tabus”, acredita. No dia 24 de julho de 2014, Betina D’Ávila mal completou 16 anos e doou sangue pela primeira vez. Fez questão de mandar uma cópia do comprovante para a professora. “Tinha vontade de doar desde os dez anos, porque sempre fiz trabalho voluntário no colégio e sei que é um gesto pequeno, mas muito importante, salva uma vida”, argumenta. Juliana Moras, 16 anos, tinha medo da agulha. “No Hemocentro é legal, eles ficam conversando, brincando, ajudou”, conta. Ela venceu o medo e o desconhecimento.

Foto: Igor Sperotto

inspirada pela mãe, que trabalha num hospital. Dela, foram cortados 35 centímetros de cabelo. Ana Carolina Leal da Silva, cinco anos, pediu para cortar bem curtinho. No salão de beleza, outras moças viram e quiseram também doar, conta Ana, que pretende repetir no ano que vem. Maria Fernanda, dez anos, doou suas tranças de dread, feitas na viagem para Porto Seguro, na Bahia. Maria Julia La Rocca Felqe, sete anos, conclui: o mais bacana disso tudo é poder ajudar quem tem câncer.

Estudantes do Rainha do Brasil incentivaram doação de cabelos para confecção de perucas para pacientes com câncer

“Ninguém” não tinha cara, não tinha corpo, não tinha identidade. Foi sendo construído coletivamente pela professora, pelas crianças, por pais e mães que doaram um pouco de seu tempo, sua atenção, suas roupas, seus afetos. Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Presidente Hermes da Fonseca, em Novo Hamburgo, “Ninguém” era um menino e uma menina feitos de meia-calça de nylon recheada de papel que, depois de meses de construção, sendo levados para a casa de um e outro, e por votação, receberam o nome de Marina e Michel. A proposta de transformação de “Ninguém”, criada pela psicopedagoga, atriz e escritora Márcia do Canto e disponível no site da Fundação Ecarta dentro do projeto Cultura Doadora, inspirou de tal forma a professora Lisiane Hoffman Allet, que ela se emociona ao contar a experiência. “Nunca havia pensado em falar com minha família sobre doar órgãos, agora vou falar”, avisa. A emoção contagiou os familiares das crianças de sete e oito anos que adotaram os bonecos e a ideia. “Desde pequenos, eles aprendem que pequenas ações

podem ajudar o próximo”, diz Cristina Gatelli Blume, professora e mãe de Beatriz, sete anos, aluna de Lisiane que participou do projeto. Juntas, as duas fizeram o cabelo e o charmoso chapéu da boneca Marina. O nome foi sugestão de Beatriz. Ganhou na votação. Não por acaso, é também o nome de sua irmã, de um ano de idade. “O mais legal foi ver nascer, cada um colocar algo”, disse o pai, João Batista Blume. Quando Beatriz recebeu a boneca para contribuir com algo seu, ela só tinha os olhos. “Não tinha boca”, explica a menina. A ideia é justamente esta: dar (boca) e voz às crianças, observa Márcia do Canto. “Quando se trabalha regras, moral e ética, principalmente nas séries iniciais, a generosidade e a educação com o outro é sempre frisada”, explica a pedagoga. “Trabalhar de forma mais ampla a doação de uma parte nossa, como olhos e rins, é uma tema natural. Os adultos têm mais dificuldade para lidar com isso porque significa falar de morte, mas falar de morte é falar de parte da vida, também é importante conversar sobre isso com as crianças”, orienta.

Foto: Leonardo Savaris

“Ninguém” ganhou vida

Recurso pedagógico para formar consciência Um boneco que traz a voz da doação de órgãos e pele pode ajudar a levar esta discussão para as famílias. A criança introjeta a informação de forma não racional. A pedagoga propõe outras brincadeiras, como um hospital de bonecos: “Temos uma cultura de jogar fora os brinquedos estragados. Há também um ideal de um ser humano ‘perfeito’. Numa turma, começamos a consertar bonecos e a conversar sobre como é ter uma só mão ou uma perna diferente da outra. Pode-se trabalhar ética e estética”, sugere.

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