Bem-vindos ao cinema contemporâneo - Catálogo da Mostra

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Sobre Agnès Vardà Ursula Dart Assisti a Agnès Varda pela primeira vez em Barcelona. Eu cursava um máster em Documentário de Criação na Universidad Autonoma de Barcelona. É meio piegas falar em amor à primeira vista, mas não estou encontrado outra expressão, não. Confesso. Foi mesmo. Me apaixonei por ela. Aliás, pelos olhos dela. Melhor dizendo, pelo que vi através dos olhos dela. Me encantou ver alguém se colocar na sua obra. Literalmente. Sem subterfúgios, sem receios, falando em primeira pessoa. Me encantou ver um autor despir seu objeto enquanto filmava. Foi assistindo ao seu Os catadores e a catadora (2000) que me veio (sabe quando cai a ficha MESMO?) o sentido de cinema do real e do quanto uma obra pode ser autobiográfica. Junto com esta ficha, caiu de vez no estomâgo a vontade de realizar um trabalho que eu pudesse me colocar não apenas como realizadora, mas também como protagonista (e por que não?). Daí vieram Meninos e Uma volta na Lama, mas o espaço aqui não é para falar disso, não. O espaço aqui é para falarmos um pouco da nossa Varda e da sua realidade no cinema. Em Os catadores e a catadora, Agnès faz uma leitura atual da figura dos espigadores difundida no século XIX através das pinturas de pinturas de François Millet e Jules Breton. E se nas obras do primeiro, as figuras dos espigadores tenham aparecido de forma mais documental e se no caso de Breton as figuras já tenham sido apresentadas de forma mais posada (numa espécie de valorização dos retratados), os espigadores de Varda não só foram valorizados, mas apresentados em carne e osso, com suas histórias, verdades e mentiras diante a câmera mão da diretora. Varda deslocou no tempo todos aqueles espigadores e os localizou em pleno século XX (aliás os trouxe para os dias que antecediam a virada do século – o filme foi rodado no final de 1999). Sim, ela perpassou o conceito através de 150 anos. Os espigadores que entravam nos latifúndios para colher restos que haviam sobrado da colheita em pleno século XIX, estão agora em 1999, na França, colhendo batatas, uvas, resíduos das feiras, restos deixados por outros em lixeiras. O que no século XIX era entendido ação para sobrevivência, agora acrescentamos à sobrevivência física, a sobrevivência da alma. Agora temos artistas que buscam pelas ruas materiais para suas obras e a própria Varda que busca pelo mundo imagens para a construção física de seu ponto de vista. Varda escolhe suas imagens através de seu ponto de vista pessoal. É ela que enxerga os espigadores do século XIX nos campos e nas ruas do século XX (e já XXI). E assim Varda compõe sua realidade no seu cinema. Um conjunto de imagens que corroboram seu ponto de vista numa espécie de diálogo do teimoso que confirma aquilo que já havia visto antes dos outros: “não falei que era assim?”. Varda observa o mundo, observa a si mesma, interpreta, apreende e monta o jogo das imagens. Os documentaristas puristas podem dizer que qualquer outro documentarista faz o que ela faz: enquadra o que já existe. Mas Varda não apenas enquadra. Ela enquadra com seus olhos que através de sua câmera produz um resultado tão definido que parece não haver outra possibilidade. Ela acredita, vê e nos mostra, coerentemente. Esta obra de Varda traduz um conceito bastante discutido na academia. Na época que eu estudava em Barcelona, tive acesso a alguns textos que defendiam a cunha de Cinema do Real numa tentativa de substituir o termo Documentário de Criação (este termo acabava levando os desavisados a entender que alguma coisa de ficção pairavano ar). Capturando no mundo real as imagens que vão construir seu cinema, Varda produz um autêntico Cinema do Real. No caso dela o cinema do real ainda vem com um ingrediente a mais, ele vem repleto de um delicioso autobiografismo, com um retrato pessoal (com direito a moldura e tudo). E não falo isto porque a vemos mostrar suas raízes de cabelo brancas, sua pele de suas mãos (que a fazem acreditar que seu fim está próximo), sua casa, seus gatos, mas porque ela nos deixa ver o que seus olhos realmente vêem. Ela nos coloca ao seu lado na busca do que ela acreditou que encontraria. Viajamos juntos e passamos a ver o mundo como ela o vê. Se há alguma discussão sobre a existência deste tipo de cinema, Agnes Varda está aí para provar que o cinema do real está aí para ser visto e lido.


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