Catálogo com amostra dos trabalhos de Clarice Lispector em artes plásticas

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aparecem a figurar a escrita, são sobretudo visíveis em Água viva ou Um sopro de vida, em muitos outros textos, embora mais esparsamente, podem encontrar-se reenvios (apontem-se exemplos do plano vocabular) que provêm do universo das artes plásticas; é o se que verifica, por exemplo, com o título de um dos capítulos de A cidade sitiada: “Esboço da cidade”. Talvez se possa então inferir algo acerca da influência do pintor Giorgio de Chirico sobre Clarice Lispector. Em A cidade sitiada o recorte das cenas, com a imobilização das personagens (vd. o capítulo “A estátua pública”) e do tempo, facilmente leva a que se aproximem essas descrições dos cenários entrevistos nos universos pictóricos. A maior parte das vezes encontramos neste livro “quadros” com duas personagens que se defrontam, ou uma só,5 as praças, o jardim, a estátua, ou então a acumulação dos objetos. Em de Chirico, na chamada fase metafísica, a arquitetura está quase sempre ao serviço dos espaços vazios, de áreas desabitadas, mas nos quadros sem perspectiva também vamos encontrar a acumulação de coisas que são descritas com uma impassível minúcia: objetos de uso corrente colocados num complexo espacial e temporal que lhes é totalmente alheio. Ao interpretarmos as esculturas gregas e as figuras mitológicas que convocamos a partir do texto de A cidade sitiada, pensamos igualmente na presença dessas figuras no mundo do pintor italiano – a atualidade de um universo onde se encontra a memória do mundo clássico em forma de reconstruções cenográficas. Entre as suas primeiras obras, lembrem-se “Luta entre lapitas e centauros” (1909) e “O centauro ferido” (1909). A procura de uma linguagem faz-se a partir da reunião de elementos de diferentes origens e da representação de visões oníricas como evasões do fluir do tempo. Há outro nome que podemos igualmente convocar a partir da sua pintura e dos seus desenhos, como também dos textos teóricos ou das páginas do diário que escreveu. Trata-se de Paul Klee. O nome deste pintor surge como título de um dos fragmentos de Para não esquecer (PNE, p.16). Curiosamente o diálogo estabelecido nesse fragmento não vem de uma qualquer aproximação aos aspectos pictóricos da obra de Klee, mas apresenta, a partir de um quadro do pintor, uma reflexão sobre um dado tema decisivo, aliás, na afirmação da poética clariciana: a liberdade. Contudo, em Para não esquecer vamos encontrar outros textos que explicitamente refletem sobre a pintura. O primeiro fragmento deste livro intitula-se justamente “O pintor” e pode dizer-se que funciona como um texto crítico à volta dessa expressão artística. Começa por Estados Unidos. Numa curiosa crônica publicada no Jornal do Brasil de 12 de setembro de 1970 e intitulada “Das vantagens de ser bobo”, refere-se ao pintor nestes termos: “Bobo é Chagall que põe vaca no espaço, voando por cima das casas”. E no livro publicado no anterior, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, quando se fala na noite em que Lóri e Ulisses se amam, a intensidade do encontro, que na perspectiva do homem via da delicadeza à voracidade, culmina num mondo singular de a personagem feminina se encarar. Aí se lê: “Ela se sentiu perdendo todo o peso do corpo como uma figura de Chagall” (ALP, p.163). Ainda a propósito de traduções, lembre-se que o nome da escritora aparece associado à tradução do O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1974). 5 Ver como nos textos de Lispector são exceção as cenas com muitas pessoas; quase sempre aparecem apenas duas ou uma.


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