Caderno -revista 7faces 7ª edição

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7faces caderno-revista de poesia

Natal – RN, Ano 4. Edição 7. Jan.-Jul. 2013 ISSN 2177 0794

© Emilio Scanavino




Obra do homenageado Poesia Poesias (1941) Novas poesias (1944) Poemas inéditos (1982) Poesia Completa (2011) Prosa Maleita (1934) Salgueiro (1935) A luz no subsolo (1936) Mãos vazias (1938) Histórias da lagoa grande (1939) Céu escuro (1940) O desconhecido (1940) Dias perdidos (1943) Inácio (1944) O escravo (1945) A professora Hilda (1946) Anfiteatro (1946) O enfeitiçado (1954) Crônica da casa assassinada (1959) O viajante (1973) Três histórias da província (reunindo Mãos vazias, O desconhecido e A professora Hilda) (1969) Três histórias da cidade (reunido Inácio, Anfiteatro e O enfeitiçado) (1969) Diário completo (1970)

Este não é um levantamento exaustivo da obra do escritor homenageado; é apenas um recorte de suas principais publicações em vida e póstumas.


7faces caderno-revista de poesia

Natal – RN



Não se ama os poetas. O que se ama é a obra deixada para especulação literária. Lúcio Cardoso



sumário Apresentação O poeta de mãos vazias 11 Por Pedro Fernandes A escrita de Lúcio: desenhando perfis e cenários 23 Por Marília Rothier Cardoso Em tom de poesia 1 39 Rosana Banharoli Leonardo Chioda 46 Lara Amaral 51 Gabriel Resende Santos 58 Alexandra Vieira de Almeida 64 Entremeio O rio transgressor de Sísifo: o absurdo nas novelas de cardosianas 68 Por Odirlei Costa dos Santos Em tom de poesia 2 107 Jairo Macedo Homero Gomes 113 Thiago de Souza 115 Mariano Tavares 119 Mario Filipe Cavalcanti 124

© Emilio Scanavino


Casé Lontra Marques 128 Ana Romano 142 Poesia Completa de Lúcio Cardoso: a edição 150 Por Ésio Macedo Ribeiro Julian Lesser 178 Paisagens aéreas


apresentação © Emilio Scanavino

O POETA DE MÃOS VAZIAS

Não é poeta aquele que não tem seus pares; e os pares hão de ser, inevitavelmente, aqueles que mais lhe oprime pela angústia de não alcançá-los. Aqueles que singularmente produziram uma revolução só comparada à força destrutiva de uma grande fúria natural. Que os pares são deuses e estão para ser destronados tão logo o aspirante poeta consiga perceber em sua estrutura uma pequena infiltração pela qual possam se por e reiniciar em silêncio, no rumorejar lento da tessitura do verso, aquela grande fúria de outros tempos. Também não é poeta quem desafina com o real a fazê-lo figuração própria para o poema. O poeta há ter lucidez suficiente para ver que o que está à sua volta não pode ser visível pelo olho comum, que esse mundo é cada vez mais mundo de aparência, e o poeta que só aparenta não é digno da confiança alheia. Não é suficiente para ele dedicar-se ao trabalho de perscrutar detalhadamente os movimentos da existência. A cópia fiel é uma tentativa fracassada. O verso há que erguer novas possibilidades de existir, como um caudaloso e perene rio universal a invadir e deslizar por entre o magma sufocador que irriga o mundo contemporâneo. A busca incessante do poeta deve ser a de se reaproximar do estágio genesíaco da poesia, quando espírito e homem comungavam reciprocidades. Mas há que cuidar para ainda que involuntariamente não voltar a torre de marfim de onde já lhe custou descer. Novamente aporta aqui a necessidade de ser limiar. Esse retorno a unidade perdida é talvez o gesto de maior valor da poesia. É por ele que somos reeducados a ver num mundo em que estivemos limitados pelas vendas das ideologias; é por ele que o poema resiste 7faces – Pedro Fernandes │ 11


e é cada vez mais matéria necessária a refiguração do ser, situado que estamos num mundo cuja existência foi subvertida a ponto de ser transformada em coisas entre coisas. No caso de Lúcio Cardoso é possível admitir pela extensa vivência com palavra o caráter do poeta contemporâneo, ainda que ele esteja em igualdade com muitos nomes de seu tempo dito modernista. Encontramos o autor a se debruçar entre a prosa – o lugar textual com o qual primeiro obtivemos contato – para somente depois compreendê-lo como ser de poesia; esse depois apenas se restringe à produção do poema, que veio depois da prosa, mas ultrapassa todo lugar anterior não apenas quanto ao número de textos do gênero (são aproximadamente 547 poemas), mas porque a melhor parte daquele primeiro lugar é também invadida sem nenhuma licença poética por esta. Produto, certamente, de sua tentativa formal e que o distingue entre os vários nomes da cena contemporânea: Lúcio foi, com Clarice Lispector, um dos precursores no Brasil do romance de fluxo de consciência. No caso aqui – na poesia – não há espaço para o experimentalismo gratuito a ponto de por em risco as potencialidades do gênero. Lúcio, o poeta, buscou revestir o poema da natureza mais humilde da palavra sem fazê-lo num dizer pobre ou num dizer situado no mais alto alcance do homem erudito. A erudição do poeta é uso de uma dicção capaz de reinventar sem que a reinvenção esteja exposta como um destaque visto propositalmente ao olho nu ou visto ainda naquela fronteira onde só os docilizados pela matéria da erudição fabricada estão suscetíveis de alcançar. Porque poeta, de fato, é quem ultrapassa o comum e o usual com a mesma força que do comum e do usual, não quem se propõe a uma farsa barata com a linguagem. O poeta é que de mãos vazias arranca novas possibilidades de dizer.

Pedro Fernandes Poeta e editor da ideia

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Lúcio Cardoso (1912-1968)

Lúcio Cardoso em 1930. Arquivo da Revista de História da Biblioteca Nacional (reprodução)


o homenageado © Emilio Scanavino

Dentro de mim, sombra – mas fria e calma. Fora, sombra onde cumpro os gestos que todos sabem. O que aprendemos, é como nos ocultar de um modo banal, como toda gente mais ou menos se oculta. O que ocultamos, é o que mais importa, é o que somos. Os loucos, são os que não ocultam mais nada – e em vez dos gestos aprendidos, traduzem no mundo exterior os signos do mundo secreto que os conduz. Lúcio Cardoso, Diários

Lúcio Cardoso (1912-1968) foi um multiartista. Não se restringiu às experiências com o romance e escreveu peças para o teatro, crônicas, contos, roteiros para o cinema, diários e poemas; além de uma intensa vivência com a pintura e o desenho, tendo realizado quatro exposições individuais em galerias de arte do Rio de Janeiro e de São Paulo. Como já bem terá lido a crítica de sua obra poética, ela é síntese de uma geração inquieta. Sua poesia revela a melancolia de um mundo íntimo, isolado e em decadência. Está no limite do transcendente, do metafísico, do imaginário. José Paulo Paes, por ocasião de uma edição de poemas inéditos de Lúcio editada em 1982 situa o poeta entre dois expoentes da literatura moderna portuguesa, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Como o primeiro poeta, ele se viu seduzido pela ideia do fingimento, esconder-se para revelar-se; como o segundo, Cardoso tratou sobre dois temas caros a sua poesia, o amor interdito e a loucura. Deixou mais de cinco centenas de poemas em que se experimenta dentre os vários motivos poéticos, estes apontados por Paes.



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Amanhecer

A noite está dentro de mim, girando no meu sangue. Sinto latejar na minha boca, as pupilas cegas da lua. Sinto as estrelas, como dedos movendo a solidão em que caminho. Logo o perfume da poesia sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados, ouço a música das coisas que acordam sobre o corpo negro da terra e a voz do vento distante e a voz das palmeiras abertas em raios e a voz dos rios viajantes. E a noite está dentro de mim. Como um pássaro, meu sonho ergue as asas no coração da sombra. Ouço a música das flores que tombam, o tropel das nuvens que passam e a minha voz que se eleva como uma prece na planície solitária. Então sinto a noite fugindo de mim, sinto a noite fugindo dos homens e o sol que avança na garupa do mar e as nuvens curvas que enchem o céu como grandes corcéis de fogo cor-de-rosa desaparecendo sugadas pela treva.

Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.218-19.


Instante

Entre quatro tempos azuis. lagoa de olhos claros e algas morrendo na tarde. De ti veio o estremecimento e o primeiro assomo de frio: o tempo urgia. No entanto, só a pedra enorme fitava o verde - e repousava. Seria inútil gritar outra coisa pois a vertigem sobre e somos a mesma coisa: lentas, as casas nos odeiam. Exausta, a paisagem se abre à fúria da noite: solidão, aqui estou.

Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.615.


São Nomes do Amor, os da Carícia

São nomes do amor, os da carícia, são nomes do amor os do desejo. São nomes que falamos úmidos e mortais, entregue à faina de criar o deus que nos vive e nos faz arder na sua elástica chama. (Depois é que os deuses se transformam e em lugar da maravilha adolescente, são monstros de carvão que nos procuram, egos e impotentes, do fundo do passado). São nomes do amor, os da fome, que faz errar as nossas mãos ambiciosas ao longo das fitas e cetins. São nomes do amor os da sede, da inútil repulsa, do ciúme e da insolência. São nomes do amor os que voam dos nossos lábios e são vermelhos e pálidos, porque contêm todo o nosso sangue, e volteiam, e sussurram, e deslizam, cisnes, estrelas ou rosas verdes. São nomes do amor todos os que nos queimam e nos fazem esquecer a identidade do mundo e nos embriagam, nos tornam ácidos, etílicos, gelados e evanescentes como donzelas martirizadas. São nomes do amor, são nomes, são nomes e legiões de nomes, e sempre nomes, que povoam a terra da repetição e do olvido: porque todos os nomes do amor são um único nome e mudos, esquecemos os nomes das outras coisas, porque só compreendemos e só nascemos para um único, o nome que te dei, amor.

Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.872-73.


Poema Aventureiro

Urgente, o demônio das piscinas! A carne, sob a água mole dos chuveiros, é pálida e mansa como um lírico, um punhado de feno ou de algodão. Quero a túmida semelhança de brancos girassóis passados contra o verde iluminado contra o continuamente angustiado das emoções e dos pressentimentos. Nasci para o inferno e o áspero dos mal-entendidos. Sempre que de mim esperam um crime, um poema toma forma.

Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.828.



A escrita de Lúcio: desenhando perfis e cenários Por Marília Rothier Cardoso


Nos anos trinta, quando começou a publicar seus romances e novelas, Lúcio Cardoso, assim como seus companheiros de vida artística e literária, estava fascinado pelas imagens. A abrangência crescente do circuito do cinema e a abertura de possibilidades estéticas, operada pelas vanguardas, aproximavam os experimentos com a técnica de filmagem da inventividade nas artes plásticas. Se a escrita parecia uma prática indispensável, as palavras não se continham nos limites da convenção verbal e buscavam ritmos inusitados, articulando efeitos de luz e sombra, cor e movimento. Persistente no exercício diário com a linguagem, o escritor construía sua carreira aventurando-se pelas outras artes. Frequentava pintores, cineastas e críticos, a cujo projeto cosmopolita não interessava nacionalizar as vanguardas; por isso, aí, investigavam-se outras formas de ser contemporâneo da modernidade.

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Um testemunho valioso dos rumos projetados pela arte e pensamento de Lúcio e seu grupo é a longa carta de Mário Peixoto, datada de fevereiro de 1937 e guardada no arquivo do primeiro. Mais próxima da crônica lírica do que da comunicação de notícias pessoais, dá conta de exercícios de observação estetizante, que deveriam ser comuns aos correspondentes. Assim, mesmo que a resposta tenha-se perdido, é fácil rastrear, hoje, no intercâmbio entre os amigos, o empenho extremo em transmitir nuances complexas de sensações. O remetente se descreve desempenhando a atividade que lhes parece decisiva: Separo instintivamente as coisas mais próximas a mim e que me rodeiam opressivamente, numa ânsia de passar-me com elas para você, como num jogo de desafio (PEIXOTO. In: LC-170, cp, 170). Fica evidente que se serviam das cartas, do diário (talvez também de notas e croquis ao acaso) para ganhar potência na caracterização dos cenários tal como seria percebido pelas personagens e afetaria o comportamento delas. A intensidade do olhar, correspondendo aos gestos tensos das duas mulheres e do homem, limitados ao pequeno barco, nas tomadas principais de Limite, certamente resulta desse treino insistente de transformar a agudeza das percepções em linguagem. Não se trata de tarefa fácil. Mário se mostra insatisfeito com as tentativas que faz diante de Lúcio – receptor escolhido, pois afeito à mesma prática: Assim, os morros cobrindo-se de cerração, a serraria que acabou de parar, alguns pingos soltos na folha da jaqueira e as vozes apreendidas de longe... E este estúpido desespero de saber de antemão – de conhecer – o esforço vão desta maldita febre: nada se transmite integralmente! (Peixoto, In: LC – 170, cp, 170). Numerosas reflexões, que Lúcio Cardoso foi anotando, nos cadernos onde registrava sua trajetória artístico-intelectual, compartilham o “desespero” mencionado por Mário Peixoto. Atormentados pela demanda de uma linguagem de expressividade máxima, debatiam-se contra as soluções fáceis na montagem das partes de suas obras. Por isso mesmo, deixaram várias delas inacabadas e a todo momento sentiam-se perdidos entre os obstáculos da produção e divulgação de


seus trabalhos. Na segunda metade dos anos trinta, quando se correspondeu com o amigo cineasta, Lúcio já devia manter seu diário, mas essas entradas devem ter-se extraviado. No entanto, a dicção de Mãos vazias (1938) e O desconhecido (1940), primeiras novelas onde se configuravam as marcas singulares de seu estilo, evidencia um amadurecimento considerável na construção de torneios verbais provocadores de sensações. Acompanhando o olhar da personagem Ida, o narrador de Mãos vazias transmite ao leitor seu desejo de libertação indistintamente confundido com as impressões do cenário matinal que a cercava: Aquele minúsculo ponto vermelho oscilando na treva exercia agora sobre ela uma estranha fascinação. Os cantos se amiudavam, os galos pareciam se multiplicar na penumbra dos quintais. Uma vida diferente, sombria e impetuosa, começava a subir desse amálgama onde a noite palpitava (CARDOSO, 1968, p. 47). Por sua vez, o clima soturno, que tensiona a leitura ao longo de toda a extensão de O desconhecido, anuncia-se, na primeira página, também pelo olhar ansioso do protagonista em fuga, lutando contra a tempestade que o acossa: Durante um minuto tateou cegamente, à procura da porta. A chuva lhe batia em cheio no rosto, o vento agitava furiosamente as pontas do xale com que cobrira a cabeça. (...) Sentiu subir-lhe então uma onda de impaciência e golpeou duramente a madeira, até que a porta se abriu de repente e uma lanterna se inclinou para fora, projetando em círculo sua luz oleosa. Por detrás do vidro vermelho da lanterna, surgiu a cabeça da mulher que gritara (CARDOSO, 1969, p. 109) Em contraponto à fixação dessa prática descritiva, imbricada ao desdobramento das tramas ficcionais, localiza-se, por exemplo, nos registros de 1942 e 1943 – os mais antigos do diário, conservados no arquivo do escritor – uma espécie de crônica rememorativa e metalinguística, onde se acompanha um ensaio da prática mencionada:

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Primeira edição de Mãos vazias e O desconhecido


(...) tempo nublado, relva coberta de orvalho ainda. Barulho de vento nos eucaliptos, gritaria de pássaros, mugidos de gado e, vindos de longe, latidos de cães. / Queria meus pensamentos límpidos, fluentes e livres. O ar que circula aqui! / O vento soprando em mim insufla todos os sonhos de grandeza (LC – 13, pi, 161). Encontra-se, nessa “Despedida de Barbacena” inserida no diário de 1943, o mesmo empenho de Mário Peixoto em consolidar, como operador do pensamento que se constrói através da arte, a sensibilidade reelaborada pela intuição investigativa e, assim, trazer, para o campo intelectual, a percepção e o afeto que esta desencadeia. Ambos entendem que a arte se potencializa como operadora do conhecimento porque investe o corpo nas atividades de observação e julgamento. Uma frase anterior, de 1942, datilografada no mesmo conjunto, indica – a propósito da experiência de ouvir Beethoven – o nexo imediato do efeito estético com o impulso questionador. Embora lhe pareça descabido, a ansiedade do sujeito que propõe problemas não fica alheia à beleza da linguagem com que questões e impasses se apresentam: Estou certo de que amo a beleza (...) e agora confessarei um absurdo: às vezes sinto um elemento estético, uma beleza que me satisfaz nesses problemas torturantes que surgem em mim e em tantos outros (...) (LC – 13, pi, 261). Embora distante de toda a literatura programática, produzida e divulgada pelo movimento modernista, Lúcio Cardoso jamais se mostrou um artista ingênuo. Tendo mantido um “diário não íntimo” por, pelo menos, duas décadas (e continuado a grafar pequenas notas truncadas mas compreensíveis, mesmo depois que a doença lhe dificultou a escrita), legou ao futuro uma rigorosa autocrítica e os resultados instigantes de suas tentativas de politizar a seus modo as tarefas artísticas, isto é, ensaiando o entrelaçamento de estética, ética e religião. Sua trajetória, desconsiderada e esquecida pelos críticos mais influentes, passou ao largo do experimentalismo dos líderes da “Semana de 22”, que buscaram nacionalizar as manifestações culturais, quanto dos parâmetros neorrealistas do chamado romance nordestino. Leito de Nietzsche e certamente interessado nas perspectivas da

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psicanálise, integrou-se à modernidade pela via cosmopolita dos pensadores católicos, do cinema expressionista e de um resgate particular – e ainda pouco discutido – o da linhagem melodramática. Importa, aqui, destacar, como índice dessa tendência, a cena-clímax de O desconhecido, onde a violência do assassinato, que o protagonista cometeu tomado de paixão, transmite-se ao leitor, numa espécie de choque sensorial, resultante da exacerbação das imagens visuais e táteis: Então as trevas se converteram em vermelho, um vermelho ardente, oleoso que o sufocava. Tomou a enxada, levantou-a no ar, vibrou no amigo dois golpes furiosos. (...) / E, sem mais saber realmente o que fazia, dominado por aquela onda vermelha que lhe afogava a alma, continuou a desferir golpes, até que, exausto, ouvido o corpo tombar pesadamente” (CARDOSO, 1969, p. 235). Só quando se desvencilhar de vez dos critérios modernistas de economia e funcionalidade é que a crítica dará a devida atenção à perspicácia de Lúcio ao apropriar-se do melodrama e valorizar-lhe os elementos de sedução do público heterogêneo, sem repetir seu esquema maniqueísta. Consumidor, ele próprio, do melodrama cinematográfico, capaz de reconhecer a força do enredo para estímulo da atenção problematizadora, o romancista importa os resíduos arcaicos da necessidade trágica e a disposição que desconstrói a dúvida moderna, fazendo uma aposta consistente nas possibilidades da retomada de um melodrama-em-diferença. Entre certa superestetização da escrita descritivo-narrativa das novelas dos anos trinta e quarenta, onde se encontra, por exemplo, a transformação do “desconhecido” num protagonista desconcertante – porque passa de vítima a algoz numa simples virada da intriga – até a arquitetura requintada e harmonizadora de excessos, que se depreende da Crônica da casa assassinada (1959), vai um laborioso aprendizado. Algumas das etapas desse trabalho persistente têm registro esclarecedor no diário, outras podem ser acompanhadas na leitura comparada das narrativas e na análise dos fragmentos de obra preservados no arquivo. Praticante contumaz da escrita, Lucio Cardoso perseguiu, nas mais variadas vertentes da linguagem, uma qualidade de que talvez ele próprio não tenha se dado conta – a sedução, característica da arte popular, desviada para um convite irresistível, uma tomada de posição crítica

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diante do bom senso. Enquanto os regionalistas depuravam o romance oitocentista dos rastros de melodrama e os adeptos da vanguarda (até mesmo Nelson Rodrigues dos contos e crônicas) parodiavam os enredos intrincados e lacrimejantes, Lucio teria tomado a decisão de levar a sério as paixões dramáticas, estuda-las para explorar a força de sua vitalidade. Em contraste com a imaginação visual e verbal de Mario Peixoto, avessa ao encadeamento de tramas, Lucio Cardoso não desprezava a ação com seus momentos de suspense. Ainda que, como amigo, admirasse o cinema expressionista, divulgado pelo grupo do Chaplin Clube, sob a liderança de Octavio de Faria, seu apego ao cinema vinha da infância, certamente dos dramas mudos de Griffith, centrados em heróis corajosos e mocinhas indefesas: Lembro-me do monte de revistas cortadas, os desenhos, os programas, que inventei, as telas improvisadas... Na Tijuca, no porão de uma casa onde moramos, havia uma cidade inteira de cinemas (CARDOSO, 1970, p.11). A montagem de Limite (1931) expõe uma evidente fuga da narratividade; captam-se momentos intensos da vida das personagens, sem apoio numa cadeia de causas e consequências. O filme trata as imagens como a pintura que desfigura seus objetos-tema, afastando-se dos nexis da representação. De modo menos radical, o romance, O inútil de cada um (1933), também privilegia fragmentos de cena, retratos psíquicos das personagens, com lances de uma trama rala que não quer empolgar o leitor. De seu lado, Lúcio resistiu à ruptura com o enredo. Seu conforto com a linearidade figurativa dava-se pelas estratégias de entrelaçar vários fios narrativos e abandonar a verossimilhança, situando as tramas para além da fronteira com o mítico e o fantástico. Nas anotações dos anos quarenta, que não foram incluídas nem no Diário I, publicado por Lúcio, nem no Diário completo, que Octavio de Faria editou postumamente, há muitos comentários a partir de leituras de Nietzsche. Mesmo que simplificadores e até equivocados, em contraponto à leitura de pensadores recentes, esses comentários se afinam com o interesse do filósofo pela revitalização de ritos gregos arcaicos: “preferiria simplesmente amar a tragédia, tal como os gregos,


viver o alto pessimismo que Nietzsche preconizava” (LC – 13, pi, 261). Essa exposição de preferência parece estar na base do projeto cinematográfico de Lúcio. Mesmo desconhecendo as cenas filmadas de A mulher de longe, material de difícil acesso, é possível perceber a consistência do mito injetando força afirmativa ao argumento de estrita economia, que se delineia no roteiro. Várias entradas de 1949, que iniciam o Diário completo, bem como documentos do arquivo permitam reconstruir a filmagem, proposta e dirigida por Lúcio Cardoso, Conta-se com uma preciosa caderneta, onde o escritorcineasta registrava seu trabalho e onde, num talho de letra bem mais descuidado que o das outras páginas – certamente de um assistente de Rui Santos, o diretor de fotografia –, estão esquematizados os dados técnicos para a filmagem de alguns takes (conforme nomenclatura da época). Preservaram-se também, ainda que com algumas lacunas, as folhas datilografadas do roteiro, cuja numeração das tomadas coincide com a dos esquemas. Na descrição do inventário, organizado pelo Arquivo-Museu de Literatura brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa, não se atribui o roteiro à autoria de Lucio; no entanto, tudo indica que ele assumiu o texto – redigido, com certeza, a partir de seu argumento – pois há, no mesmo, cortes e acréscimos grafados em sua caligrafia.

A atriz Iracema Vitória e o ator Orlando Guy durante as filmagens de “A mulher de longe”.


A intriga de A mulher de longe desenvolve o mesmo tema da novela O desconhecido – tema que receberá tratamentos mais e melhor elaborados em obras posteriores, O viajante e Crônica da casa assassinada – a chegada do forasteiro perturba a vida da comunidade por onde passa, tornando impossível a volta à situação anterior. Como artista, consciente da singularidade de seu trabalho, deseja experimentar os efeitos de um estímulo inesperado sobre mentes acomodadas à rotina. Em diversos momentos de sua carreira, Lúcio empreendeu essa tarefa investigativa, captando as revelações e os transtornos, os ganhos futuros e as perdas irreparáveis que provoca a intervenção do estranho – muitas vezes, do estranho-familiar. Parte dessa vertente exploratória pela via da narrativa ficcional, o filme inacabado parece uma etapa decisiva entre a elaboração ainda imatura, nos seus lances melodramáticos, de “O desconhecido” e o equilíbrio técnico-estético das soluções escriturais atingidas em Crônica da casa assassinada. O cuidado do roteiro em garantir a potência dos efeitos visuais na articulação das cenas deve ter servido de lição de economia narrativa. Ao passo que, na novela, longas descrições detalham a atmosfera psicológica experimentada pelas personagens, no filme, a tensão que a permanência do desconhecido provoca apresenta-se através de falas raras, contidas e principalmente de movimentos e ações das personagens e figurantes – ações planejadas na medida de sua plasticidade e movimentos realizados de preferência por grupos contrastantes, de modo a compor quase-coreografias semelhantes a danças rituais. Observado no seu conjunto, o roteiro distribui as sequências de modo simétrico, em paralelo, alternância ou reiteração. O impacto perturbador da chegada do estrangeiro numa vila de pescadores destaca-se por produzir-se através de sequências semelhantes que se sucedem. As velhas do povoado encontram uma mulher morta na praia, cobrem-lhe o corpo e se afastam temendo “a desgraça”, pois ela pode contaminá-los com a peste; enquanto se afastam, acompanhadas a certa distância pelos homens, um pescador, que se distancia do grupo, vê outra mulher num barco à deriva e ajuda-a a descer em terra. Dizendo que vem “de muito longe”, a recém-chegada se apresenta como fugitiva da “peste”.

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A simetria entre a chegada à praia das duas mulheres – uma morta e outra viva mas dando notícia da peste --, ao enfatizar o clima tenso que se instala na aldeia de pescadores, inaugura o desenvolvimento paralelístico da narrativa verbo-visual, onde vão-se destacar as marchas de grupos assustados em protesto contra o que lhes parece a invasão da desgraça. Percebe-se o cuidado com que são planejados os takes dessas cenas processionais pela correspondência entre a descrição do take 161 da sequência 13 com o esquema, anotado na caderneta sob o mesmo número. Aí, com as indicações precisas de lente, filtro, distância e diafragma, seguidas do desenho do espaço da locação com o posicionamento da câmera, descreve-se a ação ritual da personagem: D. Cora com um pincel e tinta branca, nos 5 mts. Fazem traço vertical (sic), em 1,80, faz um traço horizontal, completando a cruz. Está vestida de preto, com um véu preto na cabeça, caindo em duas pontas sobre o peito (LC, pi, 13 – 261). Os gestos de integrantes dos grupos de aldeões em protesto, desenhando cruzes e amarrando caveiras de bois nas fachadas das casas, destacam-se pelo contraste entre o branco e o negro, as tarefas distintas de homens e mulheres. Já, na sequência 28, a roteirização dos deslocamentos de personagens e figurantes numa procissão de “esconjuro” prevê, como ponto de partida, o surgimento de uma luz de vela, acesa no interior da igreja. O contraste da luz na sombra passa a determinar a ordem da procissão, que se forma com “grupos de virgens de branco com cruzes pretas nas mãos”, “homens de preto carregando estandartes brancos”, “mulheres de preto com flâmulas brancas” e entoa hinos enquanto o padre vai “à frente, asperzindo os lugares amaldiçoados” (LC, pit, 22 – 334). Através da consulta ao arquivo, o que se apreende, acompanhado as etapas da filmagem, é a aptidão crescente do diretor e sua equipe para converter imagens em efeito artístico e sentido questionador. A cenografia de exploração de contrastes adéqua-se à agressividade violenta da paisagem escolhida como locação. É o que se pode depreender do registro do diário, em 28 de agosto de 1949: (...) visitamos hoje algumas praias lamacentas (...). São extensões cobertas de um barro feito de areia e sangue que escorre dos matadouros próximos e que


exalam um miasma fedido, assim que o sol se torna mais forte; essa lama atrai os urubus, às centenas, sinistros reis desses pântanos amaldiçoados (CARDOSO, 1970, p.10). Todavia a construção da A mulher de longe provou-se uma experiência valiosa de escrita, seja esta desenvolvida em qualquer linguagem. Se, para a descrição verbal do cenário, a tarefa constante de refinar seu conhecimento dos fazeres da arte, Lúcio Cardoso encontra vocabulário eficaz à exposição da “máscula poesia” dos ambientes, também, na direção das tomadas de câmera e nas e nas marcações cenográficas vai descobrindo o ponto de equilíbrio entre eloquência e sobriedade. Enquanto artista versátil, que se renovava mudando de gênero, meio e linguagem, exercitou sem preconceito, a exploração literária do tom melodramático, apostando na velha sabedoria de como afetar o leitor. Mas, sempre insatisfeito com os resultados, voltou-se para as lembranças da infância e foi testar sua capacidade de contar estórias com chocantes e, ao imaginar uma trama adequada a eles, contaminou-se da violência mítica que serviu às tragédias arcaicas. Insuflou nos motivos melodramáticas, que “pessimismo” vigoroso, afirmativo dos gregos do passado. Não importa que o filme tenha ficado incompleto, o enfrentamento das dificuldades para concretizar seu próprio projeto revitalizou, sem dúvidas, os instrumentos narrativos que vinham sendo empregados na literatura e no teatro. Explorando, como estrangeiro, as complexidades da produção cinematográfica, Lúcio Cardoso ganhou impulso na continuidade de sua trajetória e, assim. Garantiu às obras posteriores maior ético-estética.

Notas ¹ No roteiro, o take 43 da sequência 3 – aquela em que a aldeia se assusta com encontro de um cadáver de uma mulher na praia – traz a seguinte fala da “velha” que lidera a comunidade na resistência aos forasteiros: --“ É desgraça certa esta mulher que o mar trouxe de longe”.


Referências Acervo Lúcio Cardoso do Arquivo da Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa – pastas consultadas: LC, 170, cp -170; LC 13, pi – 216; LC, 22, pit – 334. CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Org. Octávio de Faria. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. CARDOSO, Lúcio. “Mãos vazias” e “O desconhecido”. In: Três histórias de províncias. Rio de Janeiro: Bloch, 1969.

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Em tom de poesia 1

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Rosana Banharoli Santo André – SP

Jornalista por formação, poeta por teimosia. Autora de Ventos de Chuva (Scortecci 2011), livro financiado pelo Fundo de Cultura de Santo André. Membro da equipe do blog Concursos Literários-Prêmio TopBlog 2012. Foi residente na Casa do Sol – Instituto Hilda Hilst, em 2012. Trabalha com coordenação e difusão cultural.


Resposta à Cantata de Bach para 2013 Que na vida a submissão seja dócil inocência & Que da vida a subserviência seja só um nome sem uso

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1-no fundo da noite o uivo multiplicado corta a conversa de sonhos e dĂĄ voz ao holocausto :silĂŞncio do medo


2-um caminho de esperas traz a noite de instantes vazios

pensamento deserto pernilongo relógio pingo tempo de escapes vãos :um olhar de gato sabe vê e aguarda o dia .

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Detalhe do escrit贸rio de Hilda Hilst


Hilda Hilst: o escrit贸rio duas janelas uma face do jardim e a porta de treli莽a por escorrer a poesia ... ali nascente Casa do Sol/nov.2012


3-o som é de mar ventos que deslocam ondas bailado verde movimentos que voltam liberdade oportuna de poucos : até as águas têm raízes

7faces – Rosana Banharoli │ 45


Leonardo Chioda

Jaboticabal – São Paulo Lê imagens e escreve. Nascido em Jaboticabal, interior de São Paulo, vive maior parte do tempo na capital, transitando entre a planta e a pedra. Formado em Letras pela UNESP e em Literatura Italiana pela Università degli Studi di Perugia, é professor de língua italiana e cursou Poesia Portuguesa Contemporânea na USP. Autor do blog Café Tarot, pesquisa, ensina e publica sobre os arcanos refletindo seus traços na cultura popular, no cinema, nas artes plásticas e na literatura [com a bênção imaginária de Ítalo Calvino]. Vem constatando que o mundo é oráculo tecido em poema. E tem semeado poemas em publicações diversas como Zunái, Macondo, Um Conto e Mallarmargens para colher Tempestardes, seu livro de estreia, pela Editora Patuá.


Itaparica cocar de ferro sargaço moicano ao fogo celeste cristal no lodo agreste aqui está o teu poeta para dizer-te te amplio musa das praias desertas conchas antigas obstruindo os prazeres medusa a lamber os meus pés no silêncio solar da fonte e da erva no sirênico tocar dos pormenores

7faces – Leonardo Chioda │ 47



Notícias do oceano central fogo azul fogo fátuo foto fato de guerra interna dois de espadas ladrilho navalha carne al taglio detalhe entalhe: a pétrea azul pétala em tempo azul-sangue português mosaico baiano o ladrilho prosaico hidráulico o coração azulágrima bulbo de caos azulantigo o mar o mar primordial

7faces – Leonardo Chioda │ 49


Enigma [ao som de sigur rós] já construirei o leito e me deitei nos tempos vindouros vejo que serei velho ontem e amanhã fui menino foi o espelho a me convencer me transformo e em pé triunfarei hoje cedo saberei que mais tarde venci e não haverá passado que não é o meu futuro

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Lara Amaral Brasília – DF

Formada em Jornalismo, Lara escreve poesia desde os 13 anos de idade, e arrisca alguns contos de vez em quando. Tem poemas publicados na coletânea Maria Clara: universos femininos e em várias revistas como Zunái, Mallarmagens e Germina Literatura.


Pedra, demasiado pedra

“É penedo, se limar um pouco, ajuda.” “Precisa lapidar isso tudo que entulha!” Oh, que bruta! Era a mesma ladainha: “Tem de mudar, polir!” Eu discutia, antes. Agora: muda – muda. Joguei-me umas dezenas de vezes da ladeira, rolei para ficar redonda. Esfera de ônix forçando o encaixe em conversa de tabuleiro de mármore. Lá embaixo, sempre um caos de minérios, todos sem valor no mercado. Rochas me aparavam sem querer, não podiam sair da fila; outras continuavam caindo. Fui ferida numa ponta que ficou por lixar. Estou bem assim? Já posso refletir seu rosto com menos pânico? Ou não sou preciosa o bastante para brilhar à luz de fundo? Talvez radioativa, no escuro. Sou das mudas, mudas. Finjo que minha loucura é dessas, que ser feliz é vestir roupinha nova, ter salto tinindo como ametista; comprar, comprar, lascar... Depois eu que sou bronca. Para que vestir calhau, com essa cabecinha já tão calva de limar? Tanto trabalho para nada... É, eu não entendo de mitos de bar, mas balanço a cabeça em falsa concórdia – só cuido de não friccionar muito e atear fogo – pesam-me um pouco os quilates-miolos dos seus ouros de tolo, demasiado tolos.


Mas veja, estou sem fala, aproveitei para esfolar a boca no rochedo enquanto rolo. A face já desfigurada, mas há na base do barranco canetas permanentes pra pichar sorriso afônico. E olha o que encontro lá embaixo! Pedras novinhas em folha, esticadas e luzindo para o próximo verão; os trajes caindo como luva de pelica em cascalho. Há quem se espante com a previsão de granizo. Os meteoritos? Arremessam-se todos.

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ŠEduardo Nery


Babel Sinto que te trarei à tona todos os medos. Acende-se a fornalha e o corpo extasiado pensa que se alça sublimando com o cozimento dos nervos. Sempre se engana o corpo, porque se dá com outro Mas as almas enregelam-se em súplica pelo tempo de recolhimento. A pele é teimosia, aproxima-se fecunda enlevada pelo amor e seu braço dado com a morte.


espelhos d’água venha ao mirante e veja o que não perdeu entrada franca mas limpe os pés no capacho do peito habituado, você sabe aqui dentro o vento faz a curva como a água nos calcanhares à beira-mar, parte tenta retornar ao fundo, a areia algema os tornozelos soçobram os dedos devagar, o sal até o topo das cutículas queima os cantos que comi foi-se a época que eu tentava emergir, agora nem preciso cavar, afundo mansamente um vai e vem de algas arranhando as pernas mais algumas voltas que me derem essas ondas viro estante de coral ou canto triste para as conchas

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Arbitragem Se eu me for agora definitivamente, irá metade da minha mãe uma amizade antiga contorcerá remorsos o primeiro amor tirará a tarde livre dirá ao novo amor que precisa trabalhar e chorará por horas a minha ausência que nem era há tanto uma falta numerosa. O restante do efeito dominó pouco importa, nem mesmo a primeira peça que se derruba à respiração profunda de quem desistiu em tempo diverso, desconexo, cada um encontra a cura, um tampão, ou forma de culpar quem vai porque quis a liberdade: utopia clichê, história para não dormir, conto que diminui um ponto onde antes havia alguém, personagem do próprio, menos da vida – desvia, ordinária Ser livre... não se escolhe nascer sequer morrer em paz.

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Gabriel Resende Santos Rio de Janeiro – RJ

Nasceu no Rio de Janeiro, na última década do século passado. Bloga em Occam, Big Bangs e Outras Explosões e Os Escritores Invisíveis. Tem textos publicados em revistas eletrônicas como Zunái, Germina, Mallarmargens e Diversos Afins. Participou recentemente da antologia Desvio para o Vermelho – 13 poetas contemporâneos organizada por Marceli Andresa Becker e editada pelo Centro Cultural São Paulo.


tentativa de cantar a musa renovar a linguagem através dos cabelos mexer os quadris e arriscar a rima o dadaísmo dessas feições de selva todo senso comum entranhado nos hormônios curvas principais puxando um segredo maníaco atrás de sua figura puritana a madame dos sonhos brancos e semânticos o expressionismo da mão fina o simbolismo da pupila os cílios essas aranhas embriagadas sabonete rítmico esfregando o adjetivo tímido da página inscrito bem no seu gemido rebuscado o verbo anacrônico fugindo espantado do modernismo de seus passos de dança a lisura de suas coxas desajeitadas ignorando se abab aabb importam quando os contornos leves se destacam da fumaça e a palavra perde seu significante significando mais que isso um arfar silvestre pingo de suor escorrido do nariz altamente erudito.

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fotografia de verão esconderijo da pele, não revele o tigre pulando de veia em veia. o papel fílmico onde dentes calados gesticulam mudanças em sépia em laranja. engane, engane-se, as feições do homem mais pobre livres da fama. o sorriso disfarça, morreu mas não perdeu a graça. nariz aberto: galáctico, galactus, o buraco negro, irmão de sangue embora não de história. da boca pequena ou grande que a pele esconde, o xingamento inaudível. da tarde na pose, bicho-papão presente, desdentado e fodido, sai um mal-passado que ninguém deseja: o dia é tão feroz que os negativos viram cinzas antes do xis.

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estreia sempre olho pra trás nas filas de cinema. a partir disso queria contar uma história que levaria a um romance ou um conto sobre a musa que conheci e perdi mas é urgente muito mais urgente o longo tempo de criação me impediria de dizer que sempre olhei pra trás nas filas de cinema. não sei se o que espero da fila ignorante é uma cutucada no ombro voz familiar se identificando na ponta do ouvido a revelação que nos salvasse de olhar os confetes caindo da árvore moribunda pra formar a palavra adeus no solo frágil. não importa se o que vem é a ação o suspense o romance dos sonhos mágicos estrangulados pelo calor antirrômantico: o que importa é que sempre olho pra trás nas filas de cinema. os colegas prestes a cair das alturas também olham pra trás esperando a pipoca que chega a namorada que se atrasa o vazio de estar vivendo a espera. saio de casa depois de ler paulo leminski apenas para olhar pra trás nas filas de cinema. os sujeitos repetitivos usam as mesmas roupas para desenhar suas amadas em traço oriental os sujeitos repetitivos vão reclamar da vida sempre que a primeira oportunidade aparece os sujeitos repetitivos olham pra trás nas filas de cinema e pensam ter encontrado algo no exato segundo em que as portas se abrem e os ingressos para a escuridão são solicitados. sempre olho pra trás nas filas de cinema. os pés se levantam secos. tomara que o filme seja bom.


até amanhã amanhã tu vai. leva junto teu romantismo frank booth e dedo mindinho a única parte em que sobra amor. queria aninha ficando comigo e narrar melhor o vácuo nas garras do namorado. problema é que aninha não curte ser aninha. vai pra máquina do tempo ouvir algum hit dos anos oitenta filme de terror em dose dupla na apresentação do zé. queria comer uma palavra sobre os exércitos do crack mas estou pouco musical num mês tão engarrafado. os amigos viajam por meses namoradas por milênios cachorros pelos segundos em que o rabo não cansa tivesse eu o fôlego dos psicopatas. os pastores dizem ô drummond meu filho sai desse corpo que não te pertence que os poemas desse moleque gabriel graças a jesus também não. minha parte consciente fica ofendida e quer briga mas drummond que é morto forte e rei não me dá bola. porra carlos. fim de semana tu vai. com um facão debaixo do braço e uma máscara de halloween pra dar susto em todo mundo que todo mundo te incomoda demais. olha beleza sim mas depois não me venha pedir receita de microondas ou aquele disco emprestado. vai mesmo embora que deus proteja. se for pra fazer o seppuku faz direito não faz esguelha com os comprometidos anota o telefone de casa não morde ninguém se te chamarem aceita tá com calma que recusa pode ir sem sangue por favor tua memória é mesmo uma bosta.

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ainda não acabou não acabou mesmo, a palavra que palavreada exclama: uma interrogação corta o verso antes de outro ponto final, a rima vindo não rima a rima evapora, calmamente? por favor os longos cabelos escorridos na iminência do susto o verbo pegando soluço, onde a história filho meu onde a história contava que as deidades escondidas escaparam quando o holocausto passara, a dinamite passara, passara o aedes aegypti, globo terrestre tomado de poemas belíssimos e piadas monstruosas, um revolucionário gritando do caixa de som que o amor não estava perdido e que as canções de amor eram tudo menos canções de amor, militares reações químicas, ninguém sabe mais o que significa rádio ou ratio ou prazer, cadê a poesia nisto aqui, mas o macarrão instantâneo é melhor que néctar de artéria suicida, cerimônias cerimônias cerimônias cerimônias e muitas velas porque luz que é boa está cortada assim como a veia a palavra a interrogação e o tempo do mundo, os longos cabelos escorridos escondem a cara rugosa da lua e as crianças se escondem das escolas, começa a tocar uma grande canção do rock britânico, não vale continuar, os lusófonos sabem a música de seu idioma, por favor antes de começar aperte o botão verde confirme o valor e conte nos dedos os milésimos de segundo pro fim do universo, obrigado, volte nunca, tomara que a trilha-sonora seja boa, retrô, anos 80, vhs, sei lá, você queria dar um beijo de despedida mas ela está ocupada em duzentos cinemas passando de três em três horas na sala três, quando o céu estiver amarelado demais, cerra as pálpebras, serra os nervos, braços colados no corpo, sem melodrama aceita a benção, fecha a tampa quando acabar.

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Alexandra Vieira de Almeida Rio de Janeiro – RJ É agente de leitura, tutora de ensino superior, poeta, contista, cronista, ensaísta. É Doutora em Literatura Comparada (UERJ). Publicou um livro de crítica literária em 2008. Tem vários ensaios literários publicados em revistas acadêmicas e livros. Tem dois livros de poesia publicados pela editora Multifoco: 40 poemas e Painel (2011).


Claridade De que me adianta esta escuridão se transformo noites em dias sombras em claridade De que me adiantam os muros se esvazio a sombra de sua plenitude É mais belo olhar para a tarde Prenúncio de um dia sossegado a afundar os olhos da insônia Vagueio ao sol vespertino que esculpe a memória dos astros À sua volta, um atalho de pássaros a sobrevoar na manhã de calamidades A claridade se olha no espelho e descobre sua irmã gêmea, a escuridão, a vagar qual fantasma no quarto de névoas O céu se encobre de joias amarelas que caem nas minhas mãos prestes a abraçar a claridade da manhã.

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Š Adam Garelick


Soterra Soterra, fere a terra no entremeluzir das pedras, orgasmo oco de pedra, de terra, de sal Dádivas do céu chuvas salinas das preces a molhar as páginas da vida Vento amotinado de algas amarras de lenços nos braços o choro incandescente das trevas Sol enfraquecido pela chuva se aquece no seu rosto Cascos de vida lança que se parte no astro Soterra a fera, na selva monstros faiscando luzes gigantes Na cor dos lábios uma prisão de infectos insetos Azul que corta, na face o verbo que tremeluz no papel da terra Soterra imagens na fímbria das páginas brancas Terra que esconde pequeninos seres Na haste da planta a gana da semente a esmiuçar gestos do sol Soterra, em treva as letras do atrevimento Littera desperta pelos escombros da terra Soterra.

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O riso transgressor de SĂ­sifo: o absurdo nas novelas cardosianas Por Odirlei Costa dos Santos


entremeio

© Tchalê Figueira


Em seus desígnios provocadores, Lúcio Cardoso deseja intensificar formas, cenários, máscaras, efeitos e cores, compondo uma miseen-scène para suas personagens, os fantoches de um espetáculo de horrores. Elas esperam um discurso que não é menos do que a voz do próprio autor, onipresente em quaisquer narrativas que compõem sua prosa de ficção. Se tal discurso é o mesmo que encontramos em sua escrita íntima ou metaescrita (como observamos no primeiro capítulo), antes pertence a um constructo literário forjado para abalar os ânimos de uma moral circunscrita ao seu próprio tempo. Pelo seu comportamento doidivanas e pela gana com que gozava a vida¹, este Casanova boêmio e sedutor, afeito a festas e encontros, sempre acompanhado por uma legião de amigos, parecia estar longe de se deter diante da opressão excessivamente religiosa que encontramos em seus livros. O chicote de sete pontas e a expiação diante de um Deus terrivelmente vingativo foram estrategicamente deixados às pobres almas combalidas de suas personagens sem redenção.

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A respeito das novelas, em Corcel de fogo, Mario Carelli apontaria que “na novela o que interessa a Lúcio não é tanto o aspecto impressionante de uma cena de pesadelo, mas a possibilidade de enriquecer uma atmosfera e aprofundar o estudo da psicologia dos personagens.” (CARELLI, 1988, p. 117). Não obstante, acreditamos que a cena de terror muito interessa ao escritor enquanto projeção do mal-estar, como homem de cinema e teatro que foi, fato já observado no que tange à sua relação com o decadentismo. Carelli se refere como a análise psicológica – fato tão decantado por vários estudos e artigos sobre o autor – nos leva a repensar tal análise para reconsiderá-la como fruto do interesse de Lúcio em devassar a alma de personagens para apontar seus aspectos mais controversos e provocadores. Lúcio não se fez de rogado ao explorar profundamente os contornos dramáticos (por vezes excessivos e extravagantes) e, de tal modo, que muitas de suas narrativas possuem um caráter eminentemente insólito. A preocupação em enriquecer uma atmosfera, como Carelli acertadamente aponta, leva o escritor mineiro a configurar um caleidoscópio de situações grotescas que beiram o contrassenso. O grotesco nos conduziu até O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo, de Albert Camus, pela referência óbvia que o livro do pensador faz sobre a absurdidade em seu título. Não obstante, pela leitura do texto de Camus, observamos que o modo com que trata o absurdo é absolutamente distinto e distante do enfoque usual. Procurávamos um conceito; encontramos outro ainda mais fértil e, ao mesmo tempo, absolutamente esclarecedor. O absurdo colocado sob outro prisma, coincidentemente, estabelece a mesma relação sui generis que Lúcio Cardoso possui da absurdidade ao construir suas novelas. O universo absurdo está submetido ao crivo de sua lente expressionista, que intensifica os matizes deste universo alucinatório construído deliberadamente para provocar o leitor e suscitar nele um mal-estar irremediável, o que veremos em todo o presente artigo. Albert Camus inicia o ensaio tendo como mote o suicídio, o ponto nevrálgico que atinge os limites de valoração da existência – lembremos que o suicídio é uma questão onipresente em quase todas as novelas de Lúcio Cardoso. O modo como tal questão se alia à falta de sentido da vida encerra uma atitude autodestrutiva, tão comum às personagens do autor. Camus lembra que o suicídio

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dificilmente é consequência de um ato morosamente reflexivo; antes pertence à ordem dos estados indômitos e aos impulsos irrefreáveis da alma, característicos dos espíritos perturbados das narrativas cardosianas. Em meio à galeria de suicidas do ciclo de novelas cardosiano, encontramos Ida, que submerge no pântano no desfecho de Mãos vazias. Já em O enfeitiçado, a corda sombria dependurada na janela do quarto foi o objeto com que possivelmente Inácio se enforcou, algo que a inacabada novela Baltazar, a última que compõe a trilogia “O mundo sem Deus”, possibilita inferir. A mãe do jovem Cláudio também se mata por envenenamento em O anfiteatro, mesmo modo com que o adolescente Gil fomenta sua tentativa gorada de suicídio. No início de Baltazar, a prostituta Adélia de Val-Flor termina sua deambulação buscando provocar a própria morte em frente às barcas. Nem mesmo crianças escapam incólumes da obsessão trágica de Lúcio: citemos o caso de Sofia, uma menina de nove anos que se atira em uma represa, após a tortura emocional a que foi submetida pela professora Hilda, na novela homônima. O suicídio seria a tenaz confissão de que a vida não vale a pena ser vivida, segundo Camus. E não vale por se submeter a características imanentes da própria existência, que tanto o pensador argelino como o escritor mineiro reforçam: o caráter irrisório que se tornou o hábito de viver, a insensatez das razões que funcionam como esteio para a maioria dos homens e a inutilidade que reveste as atitudes humanas. A constatação de tais características faz surgir o sentimento do absurdo, diante desta vida cíclica e absolutamente inútil e despropositada. A vida, o trabalho, as horas que se repetem, a mediocridade que embala as pequenas buscas prosseguem em vibrações continuamente monocórdias, até o momento em que uma espécie de espanto possa suscitar o movimento da consciência. O homem é arrebatado por seu próprio pensamento: “Começar a pensar é começar a ser consumido.” (CAMUS, [s.d], p. 15). Importante apontarmos aqui como o conceito de absurdo por Camus tem um sentido bastante peculiar em relação àquele que normalmente o termo assume de forma corrente. Tal absurdo não se remete diretamente à improbabilidade e ilogicidade das coisas; antes faz referência a uma lógica esvaziada de sentido, a situações que habitualmente são consideradas plausíveis na ordem vigente de coisas vividas e sentidas, mas que são absolutamente desprovidas

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de um sentido profundo que as tornem realmente justificadas, após a observação mais densa de um olhar consciente e desvelador. O homem absurdo é o sujeito consciente da absurdidade do mundo. Ele é capaz de sentir a lassidão e a falta de propósito que levam ao sentimento do absurdo, e é justamente por estabelecer uma consciência desta situação que ele efetivamente se torna o sujeito absurdo. Como confirma Camus em O homem revoltado, “para afirmar que a vida é absurda, a consciência tem necessidade de existir.” (CAMUS, 1951, p. 15). O estranhamento do habitual e uma nova percepção da densidade dos objetos, livres dos véus com que são revestidos pelos hábitos mundanos, conduzem à quebra deste elo que mantém o estado amorfo de todas as coisas, como verificamos pelo ensaio de Camus: Os homens também segregam algo de inumano. Em certas horas de lucidez, o aspecto mecânico dos seus gestos, a sua pantomima privada de sentido torna estúpido tudo o que os rodeia. Um homem fala ao telefone por detrás de uma divisória de vidro; não o ouvimos, mas vemos a sua mímica sem alcance: perguntamos a nós próprios porque vive ele. Esse mal-estar ante a humanidade do próprio homem, essa queda incalculável ante a imagem daquilo que somos, essa ‘náusea’, como lhe chama um autor dos nossos dias, é também o absurdo. Também o estranho, que em certos segundos vem ao nosso encontro num espelho, o irmão familiar, e apesar disso inquietante que encontramos nas nossas próprias fotografias, é ainda o absurdo. (CAMUS, [s.d], p. 27).

Seja em sua prosa simbólica, seja em sua poesia sofisticadamente dramática, seja através das manifestações confessionais, por onde quer que passe, a obra de Lúcio Cardoso deixa marca inegável, um farol para a literatura brasileira de ontem e de hoje. Escritor habilidoso e dono de recursos estilísticos acima da média, Cardoso monopolizou as atenções sobretudo graças à sua prosa carnavalescamente erigida nas imagens, na metáfora e nas estilizações. Fábio Cardoso



© Tchalê Figueira


Em Mãos vazias², Ida inicia um processo vertiginoso de desespero após a morte do filho de seis anos, o que se torna o catalisador necessário para provocar-lhe o estranhamento do universo limitado em que vivia. Como em toda personagem cardosiana que se preze, a capacidade inata para o Mal e para a loucura, bem como o desconhecimento das próprias forças obscuras, são os elementos que ajudam a desencadear o drama perturbador. Ainda no dia do enterro, Ida recebe a visita do médico de seu filho e se entrega sexualmente. Logo depois do ato “ocorreu-lhe afinal que tinha se entregue ao médico friamente, sem nenhum desejo” (MV, p. 219), o que demonstra como Ida aos poucos perdia o controle sobre si mesma, percebendo que “há momentos na vida em que a pujança dos acontecimentos torna impotente todo esforço para dominá-los; nada são senão correntezas poderosas que se agitam na penumbra do ser e o arrastam com o ímpeto das forças implacáveis da natureza.” (MV, p. 232). A insipidez da vida na pequena São João das Almas se alia a um ódio avassalador que sente por Felipe, o marido que julga ser fraco e medíocre. Apesar de ser um esposo prestimoso, a incapacidade do homem de entender o turbilhão de sentimentos que a invadira – “Felipe era um espírito reto, mediocremente reto” (MV, p. 263) – faz com que Ida seja tomada por um rancor irremediável: “Queria-o mais ríspido, imaginava proezas que o pobre Felipe nunca chegaria a realizar. Nem sequer seria capaz de compreender o seu pensamento, quando chegasse a descobrir os estranhos desejos que a perturbavam.” (MV, p. 216). O repúdio pelo esposo e pelo casamento acentua-lhe ainda mais o espírito de inquietação: A mulher recomeçou a examiná-lo. “Como é vulgar”, pensou, sentindo avolumar-se o seu desdém. “Realmente, nada deseja, senão encontrar o meio mais fácil de passar o tempo.” Os olhos frios de Ida continuaram a pesquisarlhe os defeitos e ela percebia que isso aplacava uma sede desconhecida na sua alma. Naquela noite tinha a necessidade de odiar alguém. Sentia-se cheia de uma força perversa e tumultuosa, capaz de desencadear como o vento que no outono verga inesperadamente as árvores. (MV, 226)

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A lassidão do espaço da província é o antípoda do aluvião de sentimentos a tomar a personagem de assalto: “Ó Deus, aquela vida, aquela casa pequena, aquelas rosas do lado de fora, o ar abafado da sala quando fumegava sobre a mesa a terrina de sopa... Tudo isto era ignóbil, ignóbil.” (MV, p. 233). O estranhamento é agravado pela capacidade de destruição imanente a quase todas personagens cardosianas e o perfil de sua tragédia aos poucos era traçado pelo próprio mal que não compreendia: “Certas ideias giram em nosso sangue até se converterem numa obsessão; de novo aquele ato apresentava-se revestido de estranheza e ela se detinha imóvel, sem saber ao certo o que fizesse (...) Que demônio era aquele que lhe agitava o ser?” (MV, p. 238). Diante da passividade do marido, ao demonstrar uma reação inócua diante da confissão de adultério, Ida decide fugir de casa e vagar pela cidade como uma espécie de Lilith desgarrada e sem redenção e, tal como o mito da lenda judaica³, está irremediavelmente condenada ao mal, como um “espírito feminino que foi negado, reprimido e rejeitado, e que consequentemente torna-se um espírito maligno.” (SANFORD, 1988, p. 156). Durante sua deambulação, reconhece que “nada fizera senão reabilitar a sua personalidade esmagada por uma vida obscura e fácil” (MV, p. 272) e, ao se lembrar do suicídio de uma prima da cidade, reprimida pelas parentes por seu comportamento julgado imoral, conclui que “duas são as espécies de faces que transitam pelo mundo: as que refletem a serenidade adquirida e as agitadas, como as de Maria, capazes de todas as loucuras.” (MV, p. 273). A força incapaz de vencer as barricadas que a cerceiam é o mal que não encontra formas de sublevação, o que leva o médico de Mãos vazias constatar que o transtorno de Ida “é o de não saber como empregar a sua força” (MV, 267), levando a uma completa aridez e a um grande vazio. Diante da falta de sentido para a vida, Camus lembra que o sujeito estará diante de apenas duas condições, como no caso de Ida: morrer voluntariamente pelas próprias mãos ou optar pela esperança. Novamente o médico da novela apontaria que “passamos a vida inteira como adormecidos, mas sucede que um dia o destino abre os nossos olhos e nos obriga a escolher um caminho.” (MV, p. 288). A escolha de Ida é pela evasão final, que assegura o desfecho da novela:

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O odor fétido do pântano estonteou-a um momento, mas, levada pela força da ideia que a dominava, Ida não se deteve, continuando a correr. Junto da água, deteve-se um minuto, desorientada com o mau cheiro que subia. Nas suas costas sentia o luar como uma punhalada. Começou a penetrar lentamente, sentindo as raízes e os detritos chocarem-se na suas pernas. A luz da Lua varava o pântano, estendia-se até o centro do rio, como o reflexo morto de um incêndio. Então docemente, Ida deixou-se desvalar, perdeu-se para sempre nas profundezas da noite. (MV, p. 308). Se optamos por não desertar voluntariamente da própria vida, restaria a esperança; não obstante, Camus rechaça tal mistificação: não há razões, expectativas ou verdades que poderiam indicar um novo norte. O sujeito é obrigado a abolir pseudoesperanças que fomentariam o esteio de uma trajetória existencialmente esvaziada de profundidade. Camus esclarece não optar pelo suicídio, embora longe fosse o caso de Ida simplesmente abandonar a ideia de se afogar no pântano e encontrar um sentido para a vida. Para o sujeito plenamente consciente do sentimento absurdo, tal como a mulher que não somente estranha como contesta o marido, o casamento e toda a vida mediana ao seu redor, aniquilar o mito da esperança representa o limiar de uma existência redimensionada aos limites de uma vida sem apelo, “em que nada é possível, mas tudo é concedido e após o qual só há o desmoronamento e o nada. Ele pode então decidir-se a aceitar viver em tal universo e tirar dele as suas forças, a sua recusa à esperança e o testemunho obstinado de uma vida sem consolo.” (CAMUS, [s.d], p. 76). Podemos também fugir da província para a cidade, onde encontraremos os náufragos cardosianos que recusaram o suicídio e se tornaram os sujeitos absurdos conscientes do tédio, da inutilidade e da insensatez da absurdidade mundana. São tais sujeitos que enfrentam a loucura e a morte os desafiadores presentes nas novelas Inácio e O enfeitiçado4. A luta tenaz de Lúcio Cardoso sempre foi contra o homem apaziguado e sua relutância em romper com as interdições morais que o impediam de explorar seus limites desconhecidos. A errância diante do mistério maior que aterroriza representa um caminho sem volta àquele que estiver preso ao sentimento do

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absurdo: “O homem é sempre presa das suas verdades. Uma vez reconhecidas, não pode libertar-se delas. É preciso pagar esse preço. Um homem que se torna consciente do absurdo fica-lhe ligado para todo o sempre.” (CAMUS, [s.d], p. 46). O sujeito esmagado pelo cotidiano não está livre para abandonar-se ao desvelamento da “densidade e estranheza do mundo” (CAMUS, [s.d], p. 27), bem como é incapaz de transgredir os interditos em busca das regiões caóticas das quais emerge o estado de convulsão que o conduz ao conhecimento de si – ou, melhor pensando, ao completo desconhecimento: “Mesmo este coração que é o meu ficar-me-á para sempre incompreensível.” (CAMUS, [s.d], p. 31). Camus não só desmistifica a extrema necessidade do homem em estabelecer verdades peremptórias (sejam de ordem social ou religiosa) como rechaça quaisquer possibilidades de impor sentidos que expliquem o mundo: Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço tal sentido e que de momento me é impossível conhecê-lo. Que significa para mim um significado fora da minha condição? Só posso compreender em termos humanos. O que toco, o que me resiste, eis o que compreendo. E ainda sei que não posso conciliar estas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável. Que outra verdade posso reconhecer sem mentir, sem fazer intervir uma esperança que não tenho e nada significa nos limites da minha condição? (CAMUS, [s.d], p. 67). Se Camus lança luz sobre a (in)capacidade do sujeito em viver nos desertos onde a esperança não é mais o refúgio comum, Lúcio aponta que a serenidade de espírito não passa de um engodo irrisório, além de espicaçar intensamente uma esperança que não condiz com o destino trágico de suas personagens. Rogério e Inácio Palma, filho e pai, protagonistas respectivamente de Inácio e O enfeitiçado, são porta-vozes da concepção do absurdo tal como apresentada por Camus em O mito de Sísifo, como podemos inferir pelas palavras de Inácio: “O homem nasce do chão, vem da poeira e da terra escura como as plantas, é uma força


desenraizada e cega, uma pobre árvore solta na imensidão. Não há destino, nem missão a cumprir. Duramos como os objetos mortos duram.” (E, p. 227). O homem cardosiano, consciente do seu destino esvaziado de qualquer propósito coerente, é capaz de esgotar ao máximo o sentimento do absurdo em uma perspectiva ainda mais trágica do que a apontada pelo escritor argelino. As personagens da trilogia “O mundo sem Deus” elevam a revolta existencial a tal nível que loucura, autodestruição e morte estão confundidas às ferragens de suas almas trágicas. Como o próprio título da tríade permite inferir, encontramos nela pontos de convergência com a existência sem apelo de Camus, o que conduz o sujeito a aniquilar a esperança como único alento de uma sobrevivência possível. A consciência da inutilidade das tábuas de salvação coloca o homem como estrangeiro do mundo, surtindo nele uma sensação de subsistir à margem, como percebemos em Inácio ao deplorar os controles moralizantes que lhe são absolutamente irrisórios. Inácio torna-se um náufrago que vive sem esperanças, apelos e interdições morais. Está livre de Deus, dos outros homens e do seu futuro, pronto para esgotar-se ao máximo sem quaisquer subterfúgios: Quase tudo em que os homens creem como sensato e positivo, deixara de existir para mim; muitas vezes vi-me apenas como uma força bruta e sem destino, independente dos rigores das leis e dos sábios mandamentos instituídos como a base sacramental da sociedade. Eu não pertencia a coisa alguma, eu não acreditava em coisa alguma, vivia. E para viver, não queria perder um só minuto, todo o tempo me era precioso e raro, tudo me servia. Assim disponível, como podia admitir o avanço dessa solidão que eu tanto detestava? (E, p. 215). Não obstante, a perda do consolo perpetua um caminho extremamente árido e por vezes desesperador, como observamos nas novelas cardosianas. Se Camus propõe a consciência e a revolta contra aqueles que pretendem fugir do enfrentamento, Lúcio expõe espíritos revoltosos que sustentam o filão dos desafiadores morais, com suas paixões incontroláveis, suas subversões sexuais e suas atitudes disparatadas. Os rebelados


cardosianos não renunciam à consciência do absurdo, e são por ela arrastados até à completa loucura ou autodestruição. Assim como observamos em O mito de Sísifo, abolir a esperança não é o mesmo que sucumbir à renúncia ou à resignação: Viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é, antes de mais, olhá-lo. Ao contrário de Eurídice, o absurdo só morre quando dele nos afastamos, sem voltar a cara para trás. Uma das únicas posições filosóficas coerentes é a revolta. Ela é um confronto perpétuo do homem e da sua própria obscuridade. É a exigência de uma impossível transparência. Equaciona o problema do mundo a cada segundo. Tal como o perigo fornece ao homem impossibilidades insubstituíveis de tomada de consciência, assim a revolta metafísica dilata a consciência ao longo da experiência. É a presença constante do homem em si próprio. Não é aspiração, pois é sem esperança. Esta revolta não passa da certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la. (CAMUS, [s.d], p. 6970). Já no início da novela Inácio, Rogério é tomado de tal forma pela consciência do absurdo que ela condiciona também o limiar do seu estado de insanidade. O modo como a constatação da absurdidade se confunde com a futura condição de demência da personagem atende às necessidades provocadoras de Lúcio, por possibilitar que o autor carregue ainda mais a ambientação lisérgica da história e (des)focar todo um corpo de situações com sua lente expressionista. O aspecto bizarro com que as personagens são expostas e as atitudes disparatadas de Rogério e seus convivas demonstram como Lúcio parte de um ponto traçado por Camus para transformar o estranhamento inicial num caleidoscópio insólito de formas e expressões que contribuem (deliberadamente) para o estado de mal-estar do leitor. O enfeitiçado segue o mesmo viés da primeira parte da trilogia, ao explorar intensamente o sentimento do absurdo, face ao protagonista que circunscreve às suas impressões pessoais o desprezo por quaisquer sentidos plausíveis para a existência. Se

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em O mito de Sísifo o homem absurdo é capaz de buscar experiências em meio à inutilidade da vida, para Lúcio Cardoso a derrocada de suas personagens pertence ao viés trágico que devem obrigatoriamente percorrer, o que confirma a postura extremista do escritor. Rogério Palma é o homem absurdo que explora com afinco o conceito de absurdidade (lembrando que podemos dizer o mesmo de seu pai). Desperto de uma intensa febre, o espanto diante do absurdo norteia todas suas atitudes posteriores e, assim como aponta Camus, aos poucos assume os contornos de uma paixão lancinante, a ponto de o escritor indagar “se podemos viver com as nossas paixões, se podemos aceitar a sua lei profunda, que é a de queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam.” (CAMUS, [s.d], p. 35). No momento em que abandona seu quarto de pensão em direção às ruas do Rio de Janeiro, Rogério é tomado de assalto por uma intensa disposição de ânimo a partir do novo alcance de seus pensamentos: Que grande espetáculo é a vida! E eu sentia que, mais do que qualquer outra coisa, minha “idéia” me auxiliava a viver naquele instante. Era sua força que me impulsionava. Sem descanso, perguntava a mim próprio: diante desta euforia, deste entusiasmo, como pode você conceber que tenha vivido durante tanto tempo naquele quarto lúgubre, entre livros empoeirados e idéias que assassinavam aos poucos? Se não fosse a súbita descoberta dos “tempos novos”, certamente você teria morrido, e neste caso não seria uma morte plenamente justificada, já que você nada tinha feito para merecer uma existência melhor? Mas as idéias são simples fragmentos, coisas diminutas, parcelas íntimas que brotam do nada e, no entanto, sacodem a base do mundo. As idéias são forças extraordinárias em movimento. (I, 22). Rogério deseja encarar o mundo extrapolando seus limites morais, com atitudes que o conduzem a uma loucura vertiginosa. O personagem aponta o dedo sobre o absurdo enquanto seu estado

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de desvario prossegue em moto-contínuo, como se sua própria loucura crescente fosse paradoxalmente o modo mais lúcido de lidar com o desvelamento da absurdidade ao seu redor, o que o leva a supor: “No dia em que soubéssemos de tudo, morreríamos. Sim, há coisas que ignoramos e cuja ciência nos mataria infalivelmente.” (I, p. 30). Camus não subestima a força do sentimento absurdo sobre o homem consciente, ao apontar como “a tenacidade e a clarividência são espectadores privilegiados nesse jogo desumano em que o absurdo, a esperança e a morte travam o seu diálogo.” (CAMUS, [s.d], p. 21). A loucura de Rogério se alimenta intensamente do ódio para não mais se submeter à resignação, um ódio tão clarividente que por vezes nos remete aos últimos lampejos de lucidez que possui. Diante de Duquesa, dona da pensão que insiste em assediá-lo, o jovem adensa o rancor extremo com que encara as pessoas ao seu redor: “Tornou-se mais agudo, instantaneamente, o meu antigo desgosto pelo gênero humano. Na verdade, como tolerar semelhante monstro perto de mim, dias, noites, semanas inteiras? O suicídio surgiu-me como uma benção.” (I, p. 19). Vemos como toda repulsa capaz de sustentar é instigada pelos sujeitos que perpassam a história, e são eles que mais permitem a Lúcio carregar nas cores deste mundo insólito que tanto persegue. O absurdo das situações é (des)focado por uma lente transfiguradora a atender as grandes obsessões cardosianas que, como lembra Carelli a respeito de Inácio, configuram “personagens que se espiam, os seres acuados que se mascaram para aparar os golpes, a vida comparada a uma doença, a morte violenta, as manifestações grotescas da loucura.” (CARELLI, 1988, p. 130).

Li seu livro numa só tarde. Naturalmente sem interromper. (...) O fato é que gostei de Inácio com tanta curiosidade e tanto interesse como dos outros. Ele é uma mistura (nesse livro mais, me parece) de coisas que a gente sempre toca, como a Duquesa fazendo café à moda da roça e a flor ‘sem serventia nenhuma’, com coisas que a gente nunca toca, como Inácio, meu Deus... Quando chegou o momento em que o rapazinho diz finalmente: eu queria saber como minha mãe e você se conheceram, eu parei e fiquei descansando 15 minutos. E quando ele fica louco, que alívio. (...) Clarice Lispector - Nápoles, Itália, 26 de março de 1945


Lúcio Cardoso na década de 1940


O auge da perturbação de Rogério é estar tête-à-tête com Inácio. Sente pelo pai um misto de fascínio e repulsa, ao notar-lhe o “poder de arrancar as coisas do vazio, de produzir tudo como um feiticeiro com sua varinha, como alguém que faz explodir um fogo de artifício” (I, p. 109), e aponta ainda o que chama de sua “capacidade de transfiguração”, ao notar na figura paterna como “ainda mesmo que se tratasse do fato de tomar uma laranjada, para Inácio esse episódio banal se convertia em algo de estranho e maravilhoso.” (I, p. 109). O pai irá nutrir ainda mais o repúdio do filho pelo estado de coisas ao seu redor, como para torná-lo um cúmplice: “Os homens me causam um desgosto profundo. Cheiram mal, vestem-se de uma maneira inconcebível, são tolos e pretensiosos. Não é possível que Deus tenha inventado seres tão sórdidos para testemunhar da sua grandeza.” (I, p. 113). Neste ponto, observamos como as personagens de Inácio e O enfeitiçado rejeitam sentidos ou consolos para suas existências, tal qual observamos no ensaio de Camus. Encontrar forças para o enfrentamento moral e arregimentar uma capacidade de resistência implacável são os modos com que o homem possivelmente pode não sucumbir ao suicídio. Longe estaria a possível busca do homem em apoiar-se em pseudoexpectativas ou em explicações metafísicas – Deus e a confiança no Outro são estritamente abolidos. Citemos o entendimento do personagem Inácio: “Que era o mundo, que significavam aqueles sinais? Estrela solta, erosão sem significado, esboços de um grande sonho fracassado? Aquela monstruosa paisagem, cheia de formas sem sentido, não atestava a favor de outra experiência, perdida entre os dedos sem forças do homem?” (E, p. 227) O homem deve viver sem apelo ao se desligar do desejo de almejar sentidos para a vida, tendo como horizonte a consciência da morte como única realidade concreta. A vida conduz o homem a um esforço inútil e sem esperança, assim como o mito de Sísifo sugere: Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pela suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os

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mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longe esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à superfície. (CAMUS, [s.d], p. 149). As personagens cardosianas se aproximam do herói absurdo, tal como aponta Camus, pela plena consciência que possuem da vida como um esforço inútil e a consequente perda da fé em Deus e nos homens, que as conduzem à derrocada moral e espiritual. Seguem de tal modo para o abismo (e muitos se atiram apressadamente nele, com a sofreguidão própria das almas alucinadas) que tamanha lucidez diante da inutilidade existencial paradoxalmente se transforma em uma espécie de loucura – ou antes a demência de alguns está sub-repticiamente revestida de tamanha clarividência que seus atos se tornam ainda mais assustadores. São personagens dolorosamente conscientes, como aponta Camus: “Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente (...) O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente.” (CAMUS, [s.d], p. 149). Camus completa: “Sísifo, proprietário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória.” (CAMUS, [s.d], p. 149). Inácio possui um entendimento claro do mal sob o qual irá sucumbir, e a clareza do nefasto presságio cardosiano – “A tragédia é o estado natural do homem” (CARDOSO, 1970, p. 05) –

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é o leitmotiv de toda a sua trajetória, assim como a de outras personagens, e torna-se também responsável por este intenso mal-estar causado nos leitores: Começa aqui a minha destruição. Não temam, não recuem diante da palavra, pois ela serve apenas para exprimir o sistema de desintegração que foi o meu, tão idêntico em suas linhas essenciais a todos os processos de falência e morte que a humanidade conhece (...) Há agora em mim uma vivacidade que me assombra – a dialética do caos é extremamente inteligente. E não sei, vou separando os detalhes, inutilizando frases, acontecimentos, com uma certeza febril: o amor de certas almas se assemelha à danação. (E, p. 242). Aos espíritos combativos, Camus propõe a revolta, a liberdade e a paixão como únicas possibilidades para o enfrentamento da realidade irrisória. Em O homem revoltado, obra que de algum modo complementa as ideias de Ensaio sobre o absurdo, Camus reforça a proposta: “Eu grito que não creio em coisa alguma e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar do meu grito e tenho pelo menos de crer no meu protesto. A primeira e única evidência que assim me será proporcionada, no interior da experiência absurda, é a revolta.” (CAMUS, 1951, p. 20). Tendo a morte como a única certeza entre tudo o que almeja, a privação de esperanças e de um futuro, por outro lado, aumentam a disponibilidade do homem para explorar possibilidades concretas – a arte sendo a mais proeminente entre elas – diante da existência inútil, e Camus reforça a proposição a partir de uma frase que parece redimensionar o aforismo de Descartes: “Eu revolto-me, logo existimos.” (CAMUS, 1951, p. 38). Negando a imortalidade e a conveniência de se amparar em sentidos irrisórios, Camus propõe: “O absurdo elucida-me neste ponto: não há amanhã. Eis, daqui em diante, a razão da minha profunda liberdade.” (CAMUS, [s.d], p. 74). O homem rejeita o desejo de ser imortal – imortalidade que o ascetismo religioso encerra, pela necessidade do homem negar a si mesmo e a sua realidade concreta como ponte para viver em outra existência após sua “salvação” – por um maior número de experiências possível diante da falibilidade de pseudoverdades

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metafísicas. Temos uma atitude de desprezo próxima àquela de Nietzsche em um dos adágios de Aurora: Aos sonhadores da imortalidade – Desejais, pois, uma eterna duração a essa bela consciência de vós mesmos? Não é um descaramento? Não pensais em todas as outras coisas que teríeis então de suportar por toda a eternidade como as suportastes até aqui, com uma paciência mais que cristã? Ou julgais poder obter, pela vossa presença, um eterno sentimento de bem-estar? Um único homem imortal sobre a terra bastaria para mergulhar tudo o que o envolvesse numa fúria universal de suicídios e de enforcamentos pelo desgosto que inspiraria! E vós, habitantes da terra, com os vossos conceitozinhos de alguns milhares de minutos de tempo, quereis estar eternamente dependentes da existência eterna e universal! Pode ser-se mais importuno? – Finalmente: sejais indulgentes com um ser de setecentos anos! – Ele não pôde exercer a imaginação a descrever o seu próprio “aborrecimento eterno”, - não teve tempo disso! (NIETZSCHE, 1977, p. 174). Se os vaticínios de Inácio sobre seu próprio destino são expostos de forma lúcida – lembrando que tamanha lucidez acompanha quase sempre o modo como as personagens cardosianas encaram a própria fatalidade –, o desprezo pela existência miserável e o desdém a toda uma moral que o circunda desnuda um ponto nevrálgico que une implacavelmente os sujeitos fatídicos de Lúcio aos escritos de Camus, como este aponta: “Não há destino que não possa ser sugado com o desprezo.” (CAMUS, [s.d], p. 149). Tal pensamento será o norte dos protagonistas da trinca Inácio, O enfeitiçado e Baltazar, pela qual a falência de Cristo é decretada e por onde o degredo de uma vida esvaziada de fé retira das personagens qualquer possibilidade de redenção. O desprezo é grande aliado da avidez insidiosa com que as personagens de Lúcio Cardoso empreendem sua descida aos infernos, sejam aqueles que queimam as sacristias mineiras e os


altares religiosos das províncias, sejam aqueles responsáveis pelos conflitos ontológicos em meio à decadência do submundo das cidades. Este imenso repúdio se confunde às engrenagens das intenções provocadoras de Lúcio Cardoso, principalmente em suas novelas urbanas. Se no ambiente da província as personagens ainda sucumbem sob o peso do remorso e da expiação religiosa – lembremos José Roberto na agonia final em seu quarto, após o assassinato de Paulo –, as personagens citadinas preferem chafurdar no pântano amoral com seus comportamentos tresloucados. O ódio é componente essencial das personagens cardosianas, onipresente na essência de cada um deles e na atmosfera que os envolvem, como afirma Inácio: “Sempre o senti em torno de mim, impregnando as ações e os gestos, sempre o senti escorrer imponderável entre os homens, atento, vigilante, olhos acesos e imóveis na obscuridade das casas, nas esquinas frequentadas, nas sarjetas, nos bailes e nos cafés.” (E, p. 171). Podemos destacar os matizes do ódio cardosiano: surdo, contínuo e arrastado, comparado a um mofo insidioso que se espalha morosamente, espécie de mal que sub-repticiamente contamina todos os homens: Enganei-me, ao dizer que o ódio permanece de olhos acesos; ele não tem olhos, ou se os tem, são pupilas cegas, úmidas pupilas de mofo, pois só o mofo traduz esse lento e progressivo trabalho, essa sufocante vegetação. Aos olhos menos desatentos não será difícil verificar o que está mofado, pois são nossas mãos que se mostram duras e cansadas, é o sangue que gira menos forte em nossas veias – e se os lábios nunca podem sorrir, os corações batem sem alma, um imenso véu de neblina e tédio se estende sobre o mundo. (E, p. 171). Lúcio Cardoso faria sua louvação ao ódio com a publicação da novela A professora Hilda7 (1946). Pela personagem homônima, o autor almejava criar um arquétipo da personificação do mal. Em um pequeno texto que funciona como introito para a novela, o novelista apontaria alguns indicativos na construção de suas personagens insólitas: “Pois o Mistério é a única realidade deste mundo. E, se dele temos tão grande necessidade, é para não

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morrer do conhecimento dos nossos próprios limites, como as criaturas loucas e martirizadas a que tentei dar vida.” (H, p. 269). Assim como o homoerotismo, o suicídio e a corrupção sexual nortearam o tour de force do escritor polemista, a provocação em Hilda terá como esteio o ódio – mais precisamente a tenacidade do ódio provinciano, espécie de ódio mineiro a se fortalecer na surdina, alimentado pela violência própria da interioridade. A personificação demoníaca foi acentuada deliberadamente pelo escritor, a começar pela própria descrição da protagonista, feita com detalhes que procuram a todo custo enfatizar os traços maléficos da anti-heroína. Mario Carelli aponta que o apuro na descrição da personagem é feita de modo com que “as observações agudas, quase rangentes, sublinham a crueldade do personagem” (CARELLI, 1988, p. 123), num trabalho descritivo que o estudioso italiano apontaria ser um “retrato talhado a escalpelo (talvez um pouco esquemático, como ele [Lúcio] próprio reconhecerá)” (CARELLI, 1988, p. 125), a confirmar o desejo do escritor em realçar os contornos dramáticos para fortalecer a imagem de uma personagem moralmente controversa. Deste modo, temos a descrição de Hilda:

Que romance estranho e assombrado você escreveu! (...) Me deu um bruto de soco no estômago, fiquei sem ar, li, lia, o caso me prendia, os personagens não me interessavam, às vezes as análises me fatigavam muito, às vezes me iluminavam, não sabia em que mundo estava, inteiramente despaisado. (...) Achei seu livro absurdo porque os personagens me pareceram absurdos. Tanto no Brasil como em qualquer parte do mundo. E não pareceram, não cheguei a senti-los como personagens do outro mundo. Loucos? Aberrados de qualquer realidade já percebida por mim? Ou antes criaturas exclusivamente criadas pelo autor para demonstrar a sua percepção sutil e pra mim um bocado confusa (não compreendi exatamente) da luz no subsolo? Tive mais a sensação que se tratava deste último caso. (...) Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas percebi perfeitamente a sua finalidade (no livro) de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas. Enfim. É possível que você tenha agido um pouco nazisticamente, ou comunistamente demais. Quero dizer: viu por demais a tese, teve o desejo de agir de certo modo, e abandonou por essa norma de ação e intenção, arte e realidade. Mário de Andrade, carta a Lúcio Cardoso sobre A luz no subsolo


© Tchalê Figueira


Era uma mulher de estatura abaixo do normal, ligeiramente volumosa, cabelos pretos, sedosos, partidos no meio e rematados em duas tranças no alto da cabeça. Seus olhos eram miúdos e de órbitas profundamente cravadas na face, seu nariz era pequeno e sem importância, os lábios estreitos e cruéis, incimados por um buço forte. Toda a extraordinária força que emanava de sua pessoa parecia, apesar de tudo, partir exclusivamente desses olhos pequenos, onde uma nota qualquer, aguda e maldosa, como que ainda avivava mais o seu brilho constantemente vigilante e desconfiado. Trajava-se severamente de preto, uma estreita fita de veludo no pescoço roliço, onde ainda se demorava uma mocidade pesada e sem graça, último reflexo de uma vida destituída de qualquer vislumbre de sensualidade. (H, p. 271). A professora reside em um lugarejo recôndito ao lado de uma estrada de ferro e no local possui posição soberana para dominar as rédeas de todas as realizações políticas, familiares e sociais da comunidade, incluindo eleições, festas e batizados. Todo o domínio da professora, porém, é ameaçado com a notícia da chegada iminente de outra professora nomeada para o lugar, algo que desperta em Hilda o desejo de realizar uma série de ardis para expulsá-la. A professora parece viver em uma espécie de inferno pessoal criado por si mesma, envolto pelo marasmo da província a acentuar uma espécie de falta de expectativa que a faz sempre “desvendar alusões misteriosas, intrigas fáceis e manobras em torno de si” (H, p. 272), quando “tudo lhe parecia uma ofensa sem remédio ou um golpe mortal” (H, p. 272) ou ainda “as palavras mais insignificantes lhe surgiam aos olhos pejadas de sentido; os descuidos mais banais convertiam-se em imperdoáveis afrontas” (H, p. 272), sendo que tais intrigas pertenciam absolutamente às maquinações de sua mente doentia e fantasiosa. Lúcio adensa as características do espírito rancoroso da personagem: Pelo fato de se ofender com tanta obstinação e de sorrir tão continuadamente, o hábito lhe criara uma máscara pálida e altiva, onde sempre

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parecia flutuar um misto de náusea e desdém. Mas Hilda não perdoava, não sabia perdoar. Sua natureza fechada ao mistério da fé era um mecanismo de julgamento severo, uma balança delicada e precisa das faltas alheias. E, de tanto ocultar seus sentimentos, criara no coração um obscuro e largo depósito de rancores concentrados. Nele, nesse cofre de sentimentos ásperos, borbulhava com o correr dos anos um líquido escuro que lhe atormentava a alma, um desespero soterrado e estranho, que às vezes lhe fazia descer aos olhos um vapor espesso. Nessas ocasiões sua rigidez aumentava, mal dirigia palavras aos outros, recusava convites, impedia festas, acentuava maldosamente palavras desprevenidas, forjando situações inexplicáveis e inimizades sem conta. (H, p. 273). Tal empenho acentuadamente deliberado para salientar as nuances de uma personagem cruel também se encontra na descrição de Miguel, na novela O desconhecido8. Ao descrever seus seres mais venais, Lúcio não hesitava em carregar nos traços pictóricos de suas imagens expressionistas quase caricaturais, a ponto de transformar o cocheiro em uma alegoria da perversidade, com uma descrição que nos remete a uma espécie de vampiro de Dusseldorf. O homem a bradar o chicote para seus cães agressivos, deixados sem comida para que se tornassem assassinos, é uma destas criaturas misteriosamente demoníacas que Lúcio sempre ressaltou em suas novelas da província. A obliquidade, aspecto apontado no que tange ao homoerotismo, nos conduz a uma outra categoria emblemática não somente das novelas, como de toda sua prosa de ficção: a força do ressentimento. Notamos, ao final do tópico anterior, como a revolta é uma atitude absolutamente concreta e dinâmica que Camus defende; não obstante, muitas das personagens de Lúcio – notadamente as figuras enclausuradas da província – se afastam da revolta tal como foi apontada pelo escritor argelino para se metamorfosearem em espíritos perigosamente ressentidos. Em O homem revoltado, Camus aponta uma relevante distinção entre revolta e ressentimento:


O ressentimento é muito bem definido por Scheler como uma auto-intoxicação, a secreção nefasta, em recipiente fechado, de uma prolongada impotência. Mas a revolta, pelo contrário, despedaça o ser e ajuda-o a transbordar de si próprio. Ele liberta vagas que, estagnadas, se tornam furiosas. O próprio Scheler põe a tônica sobre o aspecto passivo do ressentimento, salientando o lugar importante que ele ocupa na psicologia das mulheres, votadas ao desejo e à posse. Na origem da revolta, houve, pelo contrário, um princípio de atividade superabundante e de energia. Scheler teve igualmente razão ao afirmar que a inveja contribui poderosamente para o ressentimento. (CAMUS, 1951, p. 31). Os sujeitos da província estão intoxicados pela sensação claustrofóbica do enclausuramento das casas, das igrejas e de si mesmos. Não são silenciosos por mero acaso – Lúcio sempre demarcou que, sob a parcimoniosa eloquência mineira, jazia a pior crueldade possível. Aquele mofo lento e insidioso citado por Inácio é ainda mais nefasto quando progride no território limitado da província, com suas residências de janelas sempre cerradas, suas longas estradas empoeiradas sob o sol impiedoso, suas sacristias cheirando a incenso nauseante, suas famílias repletas de desejos abnegados cujo rancor, longe de ser o fogo fátuo das histórias esquecidas, se torna demasiadamente longo e arrastado. Sabemos que lançar uma luz implacável sobre o inferno das províncias pertence ao projeto pessoal de Lúcio contra Minas, dominada pelos demônios do silêncio e do cárcere privado. Hilda compõe parte do arsenal de sujeitos ressentidos, com seu ódio alimentado pelo tédio, pelo marasmo e pela interiorização caótica. Enquanto as cidades condicionam a eclosão das revoltas – mesmo as personagens urbanas mais autodestrutivas são, de algum modo, combativas e desafiadoras –, as províncias representam o espaço do re-sentir, o sentir duplicado como um moto contínuo nunca exposto, nunca apaziguado.


Lúcio demarcou personagens tão silenciosas quanto cruéis, seres repletos de perversidade que medram nas províncias, como Aurélia, dona da decadente fazenda Cata-ventos em O desconhecido, ao apontar que “havia nela uma ressonância de paixões reprimidas, de ódios recalcados e pequenas misérias subjugadas.” (OD, p. 21). Destaca ainda que a mulher “amava também criar mistérios, espalhá-los em torno de si como dissimuladas armadilhas. Gostava de ver as pessoas desprevenidas se envolverem nas teias que tecia na quietude dos pequenos cantos, no enigma de pequenos atos deixados em começo.” (OD, p. 41). Os ressentidos cardosianos são sempre solitários – pela extrema solidão, a tendência para o Mal se concretiza e o isolamento dimensiona o inferno pessoal que posteriormente contamina a todos. Como no caso de Miguel, uma ambientação quase fantasmagórica envolve Aurélia, dando forma a uma maldade quase sobrenatural. Enquanto nos espaços citadinos a revolta exteriorizada extrapola os limites da angústia e do desespero, rompendo as barricadas que aprisionam o ódio, nas províncias o rancor se prolonga como uma metástase silenciosa e contínua. A relação entre revolta e ressentimento se projeta inversamente nas novelas, já que o revoltado cardosiano enlouquece ou arregimenta mecanismos de autodestruição não só como ressonância da inadequação que sentem, mas também como forma de imposição do próprio Ser – e o ressentido cardosiano, o mais perigoso entre todas as personagens, mesmo que envenene a si mesmo, é obcecado com o aniquilamento do Outro. Em O desconhecido, Aurélia quer fazer de José Roberto literalmente seu escravo, para exercer sobre alguém sua necessidade mefistofélica de domínio e destruição.9 Camus elucida melhor a questão: “O ressentimento é sempre um ressentimento contra o próprio que o experimenta. O revoltado, pelo contrário, no seu primeiro movimento, opõe-se a que toquem naquilo que é. Luta pela integridade de uma parte do seu próprio ser. De princípio, não pensa em conquistar, mas em impor.” (CAMUS, 1951, p. 31). A imposição do rebelado se dá principalmente pelo distanciamento das bases moralizantes, seja pelo sexo ou pelas drogas, e funciona implacavelmente como uma provocação daqueles que se sobrepõem aos limites da resistência. Os personagens citadinos destroem a si mesmos como consequência da insubordinação, e sucumbem sob o efeito


catártico do riso transgressor a exacerbar o clima dramático da loucura acintosamente expurgada; já os provincianos focam a destruição do Outro, sob uma dramaticidade tensa, austera e silenciosa, própria dos dementes contidos, que preparam suas trincheiras em surdina – o entrincheiramento tipicamente mineiro. Timóteo travestido aguardou por mais de 20 anos sua vingança, esperando o momento oportuno para expor sua monstruosidade – e quando se liberta do autodegredo, em pleno enterro de Nina, funciona como um estopim para a decadência dos Menezes – a decadência mineira. Nas residências da província, as personagens erguem seus últimos altares para o inferno, como na casa de fazenda de Madalena cujo pesadelo é constante, da primeira à última página de A luz no subsolo; ou como no castelo provinciano de Donana de Lara em O viajante, de onde retira o filho aleijado uma única vez para atirá-lo aos urubus que voam sobre o precipício. Tais casas são verdadeiras estufas de rancor e ódio, que aceleram o rumo dos acontecimentos trágicos, e a avidez do ódio é própria do autor que deseja expressar a ruína da tradicional família mineira. O tom oblíquo do ódio mineiro conduz a um estado de mistério sempre intrigante para o escritor, que lhe possibilita criar atmosferas quase fantasmáticas, como aquela a assaltar José Roberto na fazenda Cata-ventos: A atmosfera de irrealidade que desde o entardecer parecia vir impregnando tudo a que ele assistia, esses gestos absurdos e essas reticências cheias de mistério no silêncio da noite, essas criaturas que vinha encontrar girando em torno de uma mola secreta – tudo isso acelerava o vago sentimento de terror que vinha sentindo estreitar-lhe desde cedo o coração. (OD, p. 38).

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Lúcio Cardoso em 1946. Arquivo do Instituto Moreira Salles (reprodução)


A forte impressão de Mistério pertence ao olhar expressionista que Lúcio lança por Minas Gerais, terra da qual nunca conseguiu se desligar por completo: “O que amo em Minas são os pedaços que me faltam, e que não podendo ser recuperados, ardem no seu vazio, à espera de que eu me faça inteiro – coisa que só a morte fará possível.” (CARDOSO, 1970, p. 293). Em uma de suas últimas viagens pelos rincões mineiros, de passagem pela cidade de Ubá, zona da mata mineira (onde possivelmente, pelos seus arredores, poderia ser encontrada a decaída mansão dos Meneses de Crônica da casa assassinada), Lúcio explicitaria suas mais pungentes e definitivas declarações a partir da ligação atávica com o estado. Seria pelo registro diário que confirmaria a latência do seu ódio e de sua fascinação por Minas, “esse espinho que não consigo arrancar do meu coração.” (CARDOSO, 1970, p. 293). Todos os ambientes sombrios de seus livros e novelas parecem se remeter a uma eterna “tristeza mineira” que tanto o perseguiu e o fazia lastimar: “Minas é muda e cega. Sua crueldade vem do sentimento terrível do seu poder: são léguas e léguas de brejos, carrascais, lama, poeira e desolação.” (CARDOSO, 1970, p. 293). Minas Gerais e suas longas estradas empoeiradas e soturnas, suas fazendas outrora faustuosas a ostentar a derrocada dos valores e tradições mineiros, suas residências misteriosas de portas e janelas trancadas – Mario Carelli lembraria, em Corcel de fogo, que a casa da fazenda Cata-ventos, de O desconhecido, lembraria o palácio de Nosferato do cineasta Murnau –, suas personagens carregadas de um ódio tão perene quanto amargamente silencioso definiriam os contornos e matizes do universo trágico cardosiano, cuja imagem de sangue e violência ele retira profundamente do berço natal que o transtorna como uma maldição.

Notas ¹ A leitura de Vida vida, de Maria Helena Cardoso, nos permite inferir tal colocação, já que a escritora relembra o modo com que o escritor foi apegado à vida, bem como lutou com afinco pela recuperação de sua saúde, no anseio de voltar a escrever e terminar seus romances e novelas. A luta persistiu anos depois do primeiro derrame, até a crise fatal em 1968. ² A referência à novela Mãos vazias será feita pela sigla MV, seguida do número da página. ³ Ver SANFORD, John . Mal: o lado sombrio da realidade. São Paulo, Paulinas, 1988, pág. 155.

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4

As referências às novelas citadas serão feitas respectivamente pelas iniciais I e E, seguidas do número da página. 7

A referência à novela será feita pela sigla H, seguida do número da página. 8

A referência à novela será feita pela sigla OD, seguida do número da página. 9

Curioso notarmos como a passagem possui uma clara referência à tentação de Jesus, presente no Evangelho de Mateus 4, 1-11, quando Aurélia oferece todas as joias de família para o desconhecido: “Pois tudo será seu, se você me adorar, se me seguir de joelhos, se for meu como um objeto, como a poeira do chão, como o que depende de mim para a vida e para a morte.” (OD, p. 150).

Referências CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução: Virgínia Motta. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1951. _______. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução: Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, [s.d]. CARDOSO, Lúcio. A luz no subsolo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. _______. Inácio, O enfeitiçado e Baltazar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. _______. O desconhecido e Mãos vazias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. _______. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1970. _______. Três histórias da cidade. (Inácio, O anfiteatro e O enfeitiçado). Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1969. _______. Três histórias da província. (Mãos vazias, O desconhecido e A professora Hilda). Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1969. CARDOSO, Maria Helena. Vida-vida. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1973.

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CARDOSO, Rafael. Uma harmonia difícil: Lúcio Cardoso e o cinema. Cult, São Paulo, n.14, p. 60-63, set. 1998. CARELLI, Mario. A música do sangue. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São Paulo: Scipione Cultural, 1997. ______. Crônica da casa assassinada: a consumação romanesca. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São Paulo: Scipione Cultural, 1997. ______. Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso (1912 – 1968). Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. FARIA, Octavio de. Lúcio Cardoso. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São Paulo: Scipione Cultural, 1997. NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Tradução: Rui Magalhães. Porto/Portugal: RES Editora, 1977. SANFORD, John A. Mal: o lado sombrio da realidade. Tradução: João Silvério Trevisan e Sílvio José Pilon. São Paulo: Paulinas, 1988.

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Lúcio Cardoso Três tons



Em Tom de Rosa Rasga, tira, teu suavíssimo esplendor. Rasga, insone, o teu veludo cor de sândalo, antes que a dura pauta enfureça ao chegar do teu calor. Rasga. Antes que seja carne a tua ilusória memória de inocente. Rasga o teu odor, fende tua ilharga, cera e sangue, destrói – oh destrói a alma que te habita. Que viver perdura, e que existe que não sofra a ânsia de morrer? Destrói, rosa, teu próprio ser: configure-se branco, o que é cor e antes do amanhecer sobrevenha em cinza: todo rosa não é mais do que uma invenção do vento. Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.345.


Em Tom de Chama Sempre te esperei, sempre, ó todo o sempre não fosses senão uma fugitiva imagem do que acaba. Sinto, eu, este mundo desaba. Cor subindo, que te assiste, neste teu ser de ígneo de verde e de crepitar? Acena a chama. Seca a velar, quem ama este fumo esvaído no vento? A chama é acontecido. Mas volta, lento, um grito: é um outro eu, existido. Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.355.


Em Tom de Quente Anuncia, teu oculto amarelo: anuncia, esse amarelo tenso. Ó melodia de óxido e gesso, estátua de ferrugem: que cor se esconde em tua imagem e fuzila, silente, em teus olhos de sombra? Anuncia, amarelo, e em todo o teu vagar opalescente, descortina o véu: detrás, eu sei, resplende, a meio, um sol poente. Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.358.


Em tom de poesia 2

Š Emilio Scanavino


Jairo Macedo Goiânia – GO É jornalista. Nascido e criado em Goiânia/GO, hoje reside em Brasília/DF. Ainda inédito em livro, criou a microeditora Maldita Cafeína.


ainda tô esperando você chegar com novidades nas mãos e areia nos pés contando que voltou pra sempre e que vai sair pela direita daqui a pouco sem dizer palavra. insinuando que, de tão irreal, tão desenho animado, tão vestir o disco e botar a roupa na vitrola, finalmente é você quem dança sem uniforme colante na sala de justiça dessa cidade movediça.

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as sete estações do trem de hidrolândia não viajar, apenas se deslocar perder-se em tempo e espaço feito o baudelairiano de apartamento que é. suar na entrada de parques aquáticos assistir grandes jogos de alambrado errar a esquina, coçar a cabeça flanar em calçadas estreitas e semáforos longos leve como um ônibus metropolitano de linha amarelo barulhento e velho, muito velho.




essas cidades sem desafogo são assim terríveis te fazem meio ridículo lendo livros no terraço dos shoppings discutindo o onírico que flutua sobre o bacon do x-bacon ou a cotação da cerveja no perímetro Centro/Setor Oeste ali naquele trecho drive thrus mal-assombrados povoam fantasmagorias de apartamentos complementam insônias e mantém ativos os supermercados 24 horas em qualquer rua daquelas teu suor pode cair em mim preguiçoso, no meio da foda enquanto disfarço e pondero demoradamente sobre quantas latas chutaram os grandes homens em grandes dias e quantas latas chutarei eu no caminho de volta pra casa.

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Homero Gomes Curitiba – PR

Autor dos trabalhos inéditos Sísifo Desatento (contos) e do romance Tempo do Corpo, colaborou com o jornal Rascunho, as revistas Cult, Germina Literatura, Ficções, Rapadura e TriploV (Portugal). É editor dos blogs Paralelo Um e Jamé Vu, e colunista nos portais Página Cultural e Mundo Mundano.


A vereda se encheu de pedras

A vereda se encheu de pedras que brotavam no borbulhar dos pés. As pedras cuspiam espinhos – nuvem de dor ao redor da visão –, a pele rasgou no caminho: pedaços da história deixando marcas. A vereda no meio das pedras. Os olhos fecharam para supor destinos, os dentes cravados nos lábios: a voz e o grito presos dentro das pedras. Os nervos endureceram espinhos. A vereda borbulhou de pés. Pegadas de dor sobre a vereda marcada de história. Pois a vereda se encheu de espinhos. Nos olhos cansados, a vereda de restos num campo de pedras. A vereda se fez com pegadas que deixaram de borbulhar nos pés.

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Thiago Souza Belém – PA Thiago Gonçalves Souza nasceu, cresceu e está envelhecendo, preparando-se, dia a dia, para o enfim. Entre hoje e depois, pretende, desesperadamente, fazer algo belo, mais que útil.


O corpo contemplado

I O corpo contempla-se cansado: É todo poema do longo do dia. O corpo procura porém o corpo outro Para um novo todo poema – O que o corpo quer é metapoesia. II Inscrito no corpo o cansaço, O que nele se lê é o longo do dia. Mas o corpo lê o corpo outro Em novo verso, em nova rima, E ele quer o corpo outro feito melodia.

7faces – Thiago Souza│ 116



À margem do fundo

Da margem outra eu olho águas e águas em silêncio murmúrio... Ensaio a voz, como se ela guardasse a possibilidade Esperando pelo raiar do dia. Quem sabe não vemos para além da noite não ouvimos para além do rumorejo?

... mas é escuro agora, e haverá quem do lado de lá, longe, mesmo depois de tanta chuva e amplidão?

7faces – Thiago Souza│ 118


Mariano Tavares Mossoró – RN

Mariano Tavares nasceu em Açu, Rio Grande do Norte. Cantor e compositor, tem lançados os CDs O SoBrado (2004) e Sem Parar (2005). Também leciona literaturas anglófonas na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Muito raramente, brinca de ser tradutor e poeta.


ŠAndrey Bogoslowsky


Kamiquase para Ana Cristina César Não posso, Ana, eu moro no segundo andar e não sei voar nem quando estou nu. O apartamento é emprestado, as paredes são lindas, tudo ficaria manchado de vermelho e dor. Não posso, Ana, eu não sei viver sem fins de tarde sem intermédios de luz sem ver a vida passar absurda. Foram tantos chamados que perdi a conta, tantas bocas, tantos pés, tantas cabeças, tantos sonhos, coração. Não posso, Ana, não fumo mais cigarros distraidamente e não sou chegados a navios, nem mesmo quando ancoram no espaço. Repetidas vezes assisti o salto, o mergulho, o corte, a ausência e o riso da sorte que até perdeu a graça. Mas acredite, Ana, que naquele mesmo dia quando quase kamikaze segurei sua mão pude entender o sacrifício furando a polpa dos versos.

7faces – Mariano Tavares│ 121


Não posso, Ana, eu gosto de quebrar o silêncio com a ponta dos pés, com os pingos da chuva, e com o cheiro dos cafés. Não posso, Ana, eu danço e canto sempre que preciso.


Um dia desses no dia em que você chegou haviam-me esgotado todas as lágrimas ou vice-versa na mirada do tempo já era quase tarde ou era fim de tarde rubro, dolorido desde então quando o sol começa a pousar no fim da rua ouço seus pés dançando (pra mim)

7faces – Mariano Tavares│ 123


Mario Filipe Cavalcanti Recife – PE

Nasceu em 1992, no Recife – PE. Desde cedo demonstrou inclinação à leitura e à escrita. Estudou piano clássico na Escola de Artes do Recife. Aos 17 anos ingressou na Faculdade de Direito do Recife (UFPE), onde continua a graduação. Vencedor do Concurso Nacional de Contos da Associação Nacional de Escritores (ANE), em 2012; colunista na revista eletrônica Varal do Brasil.


Indiferença Cidade de vidro cinza Poeira de fuligens Carros, bolsas, gente, Horas, Agamenon engarrafada D’outro lado da via Pau-brasil Desabrochando Em rosa

7faces – Mario Filipe Cavalcanti│ 125


ŠAmadeo Modigliani


Surpresa Hoje olhei aquele menino da foto... Álbum antigo, baú de espantos... Menino peralta, macacão vermelho gritando alegrias... Olhei tão feliz menino indagando os porquês de felicidades tamanhas. Vir ao mundo? Ah, menino tolo, nada sabes do mundo! E’além do mais, não é para tanto o mundo! E disse àquele menino da foto: “sossega, pequeno, o mundo é oco!” E aquele menino respondeu-me Com risos ainda maiores... Aquele menino da foto Depois soube, era eu.

7faces – Mario Filipe Cavalcanti│ 127


Casé Lontra Marques Vitória – ES

Casé Lontra Marques nasceu em 1985, em Volta Redonda (RJ). Mora em Vitória (ES). Escreveu os livros: Indícios do dia; Movo as mãos queimadas sob a água; Saber o sol do esquecimento; A densidade do céu sobre a demolição; Campo de ampliação; Mares inacabados.


Nomear os sons na dissolução

Nomear os sons na dissolução conserva um pouco das sílabas ofensivamente estendidas ao espanto inicial? quase esqueço o que responder — enquanto somos arrastados — até o fundo das retinas: sustentando (pânico após pânico) a fabricação da apoteose — minto — da metamorfose corporal;

7faces – Casé Lontra Marques│ 129


com súbito prazer; insisto: assim que o bulbo — depois de algum silêncio — mas antes do acaso: assim que o bulbo (o bulbo) esfria no asfalto — eles sempre correm — é claro — todos agora correm —


por que logo eu tentaria coibir uma qualquer intrusão? nascemos para a língua: jogados no tempo — sem a exatidão da voz — contra essa espessa mudez: nascemos para o que nos ressuscita — arremessando um rosto — nos cristais da cica

7faces – Casé Lontra Marques│ 131


Š Tom Climent, Miracle Pool, 2012


Minutos antes da estiagem Minutos antes da estiagem que agora pretendo aproximar dos dias disseminados pela insuficiência — assoprando o assombro — unimos as línguas num lapso de relutante quietude (para logo poder aludir aos ferimentos entrecortados


por profusas quebras em ínfimos acasos) evito devolver as mãos ao emudecimento que nos afasta da água adversa; enquanto algumas de nossas retinas depuram códigos que a dor apenas deplora (diante da infância ainda fria) rodeamos outra boca

7faces – Casé Lontra Marques│ 134


© François-Henri Galland


— cujos murmúrios se amontoam — enterrando o mesmo nome num imenso limiar? rodeamos outra boca — entre raptos de fala — talvez para também exercer aqui uma última distração? encosto a cabeça no esquecimento que sedimenta o assoalho — com uma vegetação oblíqua — incubando em minhas suturas


a imagem de seus hábitos (até a suspensão das pupilas onde apoiamos sempre poucas pedras) reposiciono um ritmo urgente na noite orgânica: corpo que se desfaz em frases anfíbias:

7faces – Casé Lontra Marques│ 137


após desossar a pressa com que ensurdeci — ao suspender os tímpanos do estrado — um sopro no pulso abre cada palma da palavra


Sobrevivemos ao calor de acordar perto dos olhos Sobrevivemos ao calor de acordar perto dos olhos porque algumas ausências se agravam — mesmo sem ostensiva perda óssea — conseguimos diluir um sono aceso no susto cujas arcadas alinham nossas lacunas: expondo o repouso difuso da vogal que aviva a chuva desembrulhada


pela memória inumana: o tempo regressa à frase até agora fincada como uma guelra na calma inóspita da casa; junto ao resto de rosto que arrasto pelo espanto distribuindo as hesitações sintáticas do trauma

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— durante um lento desmembramento — enterramos os tímpanos nos estigmas quase exaustos da vigília cujas fendas já infestam novas faltas: ao também reunir antigos rastros sob esquivas rasuras:


pausas hoje ausentes do isolamento vocabular preservam os móveis inoculados na claridade onde mergulho parte da nuca ancestralmente informe de uma criança avessa à sede não contaminada por nenhuma fúria

7faces – Casé Lontra Marques│ 142


Ana Romano Córdoba – AR

Ana Romano nasceu Córdoba em 1944. É professora de Francês. Obtevo prêmios e menções honrosas em diversos prêmio literários e integra várias antologias. Participou em oficinas de poesia coordenadas por Fernando Molle, Walter Cassara, Harnán A. Isnardi e Rolando Revagliatti. Tem publicado um livro de poemas: De los insolentes fantasmas (Vela al Viento, Argentina, 2010)


Presagio Apiñada entre tablas se acopla La mirada mansa Es llena de vida que sucumbe El hombre aguijonea Con premura los colores Estéril es la entrega Masacran Y el suplicio.

7faces – Ana Romano│ 144


Ranura MaĂąana de presagio El viento es negro Arrumbado asoma El disparador en este dĂ­a nublado empuja.


Š Henri Matisse


Secuencia Desnudos ante el viento los cuerpos Desnudos flamean en el fuego Desnudos junto al rĂ­o encandilado Desnudos frente al espejo estallan Desnudos se detienen al llegar a la cima.

7faces – Ana Romano│ 147


Transmutación El cuerpo ajado que acaricias por los bordes de la rutina Encallas Centro terso imponente Y absorbes útero.

7faces – Ana Romano│ 148



Lúcio Cardoso na década de 1960


Poesia completa, de Lúcio Cardoso: a edição Por Ésio Macedo Ribeiro


Após nove anos e meio de trabalho, dei por finalizada a edição de uma importante obra de Lúcio Cardoso (Curvelo, MG, 1912 – Rio de Janeiro, RJ, 1968). Importante não só pela excelência dos textos presentes nela, mas também pelo seu ineditismo. A Poesia completa foi publicada pela Editora da Universidade de São Paulo, numa edição capa dura, com 1.120 páginas, no ano de 2011, antecipando as comemorações do centenário do autor do ano seguinte.

Capa (aberta) da primeira edição da Poesia completa de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.

Neste artigo, comentarei sobre o processo de organização deste livro, pormenorizando os problemas e as soluções que encontrei para que o resultado final fosse o melhor possível.

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A edição crítica da Poesia completa de Lúcio Cardoso é o resultado da minha tese de doutorado, intitulada Edição crítica da poesia reunida de Lúcio Cardoso, orientada pelo Prof. Dr. João Adolfo Hansen e apresentada, em 2006, à Área de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Em trabalhos do porte deste, temos, em princípio, que conhecer todo o material a ser inserido, o que no caso de Lúcio Cardoso não foi tarefa das mais difíceis. Isto porque, ainda que existissem dispersos e inéditos, cuja localização demandou mais tempo do que o esperado, a quase totalidade do acervo encontra-se depositado no Arquivo Lúcio Cardoso (ALC) do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Depois disso passamos a definir a forma organizacional do trabalho. Tratando-se de edição crítica, após defini-la, temos que conhecer os princípios da crítica textual, linha de trabalho que nos permite verificar com precisão, tanto quanto possível, o que um autor de fato escreveu ou o que ele desejou que fosse a versão final de cada texto seu. O procedimento adotado permite cotejar ou pôr lado a lado os textos publicados de uma obra, junto com os textos manuscritos que sobreviveram, no sentido de encontrar as mudanças feitas pelo autor em seus vários estágios de escritura, para identificar e corrigir as fontes erradas, visando estabelecer o texto segundo a última versão do autor. Esse método de investigação nos fornece subsídios para uma melhor forma organizacional do trabalho. O processo requer registro e transcrição meticulosa das variantes dos versos, segmentos e palavras, constituindo, assim, extraordinário e copioso material para o estudo da ação de Lúcio Cardoso em seu processo criador. Definido o método de trabalho, parte-se para a seleção do apoio teórico. Trabalhei, nesta edição, com os vários livros de estudos de crítica textual de, entre outros autores, Antônio Houaiss, Cleonice Berardinelli, Ivo Castro, Júlio Castañon Guimarães, Philippe Willemart, Segismundo Spina e Telê Porto Ancona Lopez, que discutem teorias da gênese da escrita e alguns dos fundamentos dos estudos da edótica e da crítica textual sobre os manuscritos literários.

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Lúcio Cardoso deixou, só de poesias, 675 documentos, distribuídos entre manuscritos autógrafos e datiloscritos, e publicou 84 vezes poemas em periódicos. Desses, alguns foram inseridos, antes ou posteriormente, em seus livros, e outros, publicados mais de uma vez em veículos diferentes. Isto é, essa quantidade foi a que pude localizar, pois pode haver mais. A edição da Poesia completa contou com uma “Apresentação”, um ensaio introdutório (“Introdução à poesia completa de Lúcio Cardoso”), uma “Introdução crítico-filológica”, uma “Cronologia de Lúcio Cardoso”, seguido pela “Poesia completa” (Poesias (1941), Novas poesias (1944), Poemas inéditos (1982), Poemas publicados em periódicos (1934-2009), Poemas póstumos, Poemas póstumos “incompletos”), pela “Bibliografia” e por um “Índice de títulos e primeiros versos”, o que enriqueceu a edição por facilitar a consulta dos poemas pelos leitores.

Capa da primeira edição de Poesias de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.


Capa da primeira edição de Novas poesias de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.

Capa da primeira edição de Poemas inéditos de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.


Trouxe ainda, para fechar o livro, dois apêndices. No “Apêndice 1”, apresento uma “Bibliografia anotada (1934-2009)” de e sobre Lúcio Cardoso, ampliada e totalmente revista, trabalho que pretendeu fornecer subsídios a futuros pesquisadores da vida e da obra de Lúcio Cardoso. Finalmente, no “Apêndice 2”, exibo os “Fac-símiles de Poemas de Lúcio Cardoso” (ver ao final deste artigo). São oito facsímiles de seis poemas do autor, que escolhi com a estrita intenção de mostrar ao leitor exemplos do tipo de papel, tinta ou lápis utilizados, a tipologia de uma das máquinas de escrever que utilizou, a grafia e os movimentos da escrita dele. *** É importante comentar o estado geral do espólio deixado por Lúcio Cardoso desde o momento em que esteve em poder dele até sua transferência, quando ele morreu, para as mãos de sua irmã e amiga dileta, a também escritora Maria Helena Cardoso. Trato ainda da doação de todo o espólio de Lúcio Cardoso à FCRB. Os originais manuscritos dos textos de Lúcio Cardoso têm uma história pitoresca. Para começar, assim como Fernando Pessoa, Lúcio Cardoso os guardava em sua casa em uma velha arca. Essa atividade se manteve inalterada até ele sofrer o derrame que o deixaria hemiplégico, em 1962, fato que o levou a mudar-se para a casa de Maria Helena Cardoso, onde poderia receber melhores cuidados médicos e a atenção de familiares e amigos. Na mudança, levaram-se poucos pertences de Lúcio Cardoso. Seus manuscritos foram deixados para trás. Até que, certo dia, Lúcio Cardoso solicitou que fosse levada para junto dele a arca e seu respectivo conteúdo. E Maria Helena, com quem ele passou a residir, solicitou a alguém, que ela não lembra quem era, conforme correspondência ao poeta e amigo de Lúcio Cardoso, Emil de Castro, que fosse à ex-residência de Lúcio Cardoso, onde agora residia Walmir Ayala, buscar a arca. Essa pessoa não identificada retirou todos os guardados que havia nela e, enrolando-os num lençol, transferiu-os para a casa de Maria Helena, incluindo todos os manuscritos dos poemas que, até aquela data, em sua grande maioria eram inéditos. Lúcio Cardoso queria apenas tê-los perto de si, pois, por causa da hemiplegia, perdera os movimentos do lado

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direito do corpo e a fala, nunca mais escrevendo até sua morte, ocorrida em 1968. Após sua morte, esses documentos permaneceram intocados, em poder de sua irmã até 1972. A partir desse ano, com a ajuda de Walmir Ayala, ela resolveu doar todo o acervo. Isso foi feito em várias etapas. Após a morte de Walmir, em 1991, Maria Helena recebeu a ajuda do crítico literário e ensaísta André Seffrin para executar seu intento. De posse do espólio, a FCRB, em prol de preservar e ao mesmo tempo viabilizar a pesquisa da documentação a estudiosos da vida e obra de Lúcio Cardoso, designou Eliane Vasconcellos Leitão e Rosângela Florido Rangel como responsáveis por catalogar e arquivar os documentos de Lúcio Cardoso depositados naquela fundação. O trabalho resultou no catálogo do Inventário do arquivo Lúcio Cardoso, que foi publicado em 1989 pela própria fundação, objetivando a divulgação da rica documentação que cobre o período de 1927 a 1968.

Capa da primeira edição do Inventário do arquivo Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.


A análise e a classificação do material não foram muito acuradas, pois encontrei entre os manuscritos dos poemas, trechos de textos teatrais e de prosa ― refiro, aqui, apenas e tão-somente os manuscritos dos poemas de Lúcio Cardoso depositados na FCRB, parte maior do objeto desse trabalho. Os poemas foram arquivados em ordem alfabética de títulos e primeiros versos, o que por um lado facilita a consulta, mas por outro a dificulta, pois os documentos não foram ordenados antes de seu arquivamento. Segundo Plínio Doyle, no texto introdutório do Inventário do arquivo Lúcio Cardoso (p. 7), a equipe teve um tempo exíguo para organizá-lo, o que pode explicar os deslizes que menciono. Por exemplo, ao começar a pesquisar os manuscritos, percebi que muitos dos supostos “poemas”, segundo encontrei na organização feita por Octávio de Faria para o livro póstumo Poemas inéditos, não estavam mais juntos. Ao que tudo indica, Octávio de Faria manuseou os manuscritos antes que eles fossem abertos à pesquisa pública em dezembro de 1986. Há, em Poemas inéditos, muitos poemas incompletos e/ou textos que são apenas fragmentos, outros que nem sequer pertencem a Lúcio Cardoso, erros de transcrição, entre outras discrepâncias. Mas, feitos os devidos descontos por esses “deslizes”, a edição de Octávio é louvável. Pois, como mencionei, além de reunir os poemas do espólio, ele teve a pertinente ideia de coletar entre os amigos de Lúcio Cardoso os poemas que o poeta lhes dera de presente. O ALC não seguiu a organização de Octávio. Quando consultei os documentos lá conservados, percebi que muitos deles demonstravam a mesma incompletude apresentada em Poemas inéditos. Poemas que estavam completos no livro em questão, por exemplo, foram separados durante o arquivamento e vice-versa. As diferenças e semelhanças dos manuscritos podem ser percebidas pelo tipo e dimensão dos papéis utilizados, cor de tinta ou lápis empregados, a grafia, a temática e a cronologia, entre outros fatores. Muitas vezes, o que se pensava ser poema era, na verdade, parte de outro. Enfim, um verdadeiro quebra-cabeça. Ordenar e montar as peças desse emaranhado de manuscritos de poemas foi uma das tarefas desse trabalho.

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Além do problema referente à ordenação dos poemas, outro fator que prejudicou o estabelecimento dos textos foi reconhecer a autoria de alguns poemas datiloscritos. Isto se deveu principalmente ao fato de Octávio de Faria ter contratado uma datilógrafa, Maria Helena Geordani, para copiar os poemas de Lúcio Cardoso para ele fazer a seleção para o livro Poemas inéditos. Isso pode ter colaborado para a imensa massa de poemas de Lúcio Cardoso datilografados sem data e sem assinatura. Alguns trazem, inclusive, conforme menciono nas notas das variantes, interferências manuscritas que não são de Lúcio Cardoso. Supondo, por estes fatores, que algumas dessas cópias de poemas não tenham sido elaboradas pelo autor, inseri na descrição das lições presentes na colação a informação de que se tratam de datiloscritos apógrafos. Com relação aos manuscritos, temos um problema de mesma ordem, pelo fato de que, na recolha dos poemas por Octávio, muitos amigos de Lúcio Cardoso, em vez de enviarem os originais dos poemas a eles presenteados, preferiram enviar copias feitas do próprio punho. Mencionei a essas, também, na descrição das lições presentes na colação, informando que se trata de manuscritos apógrafos. Conforme já mencionei, outro problema que detectei ao consultar o ALC foi que os responsáveis pela sua organização e catalogação inseriram, além dos textos poéticos, também textos teatrais, trechos de diário, esboços de romances, de novelas e de traduções de Lúcio Cardoso. Material que excluí da presente edição. Não menos problemático, como se pode ver na minha descrição das lições presentes na colação, é o fato de Lúcio Cardoso ter o costume de escrever em todo e qualquer tipo de papel e em qualquer lugar que estivesse, fosse um bar, restaurante, hotel ou casa de amigos. E não tinha por hábito numerar as páginas quando escrevia os versos, por exemplo, em um bloco de notas. O que ajuda a ordenar o material disperso deixado por Lúcio Cardoso é a sua letra ― felizmente legível ― que apresenta pouca variação da grafia da primeira safra de poemas, datada de 1931, até a última, datada de 1962.

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Ao apresentar os estados da evolução dos textos poéticos de Lúcio Cardoso, como emendas, alternativas e hesitações, procurei oferecer ao leitor não só a possibilidade de conhecer sua obra em verso, mas também seu processo minucioso de elaboração. Finalmente, as poesias de Lúcio Cardoso são pouco estudadas pela academia e desconhecidas pelo público em geral. Sendo assim, a edição crítica de sua Poesia completa deve trazer benefícios em relação à leitura do que permanecia inédito e também corrigir o que estava mal editado. Referências CARDOSO, Lúcio. Poesias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941. ______. Novas Poesias. Capa de Santa Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. ______. Poemas Inéditos. Organização de Octávio de Faria. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. ______. Poesia completa. Edição crítica de Ésio Macedo Ribeiro. São Paulo: Edusp, 2011. INVENTÁRIO do Arquivo Lúcio Cardoso. Org. de Rosângela Florido Rangel & Eliane Vasconcellos Leitão. Rio de Janeiro: FCRB/MEC, 1989. (Série CLB; 4).

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O material que integra esta seção refere-se aos poemas citados por Ésio Macedo Ribeiro e constitui-se, portanto, em anexo ao seu texto.



2. Fac-símile do poema “[Opala morta. Flor fechada]”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.

1. Fac-símile do poema “Wolff”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.


2. Fac-símile do poema “[Opala morta. Flor fechada]”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.



3. Fac-símile do poema “[Sol que morri, à toa,]” (frente). ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.


4. Fac-símile do poema “[Sol que morri, à toa,]” (verso). ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.


5. Fac-símile do poema “[Branco, é imaginar]”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.


6. Fac-símile da fl. 1 do poema “As vagas”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.


8. Fac-símile da fl. 2 do poema “As vagas”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.


7. Fac-símile do poema “O outro”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.



Š Emilio Scanavino


Poema Que sei fazer, meu Deus, senão amar? As tardes de estio, o vento nos caminhos, a ausência. Sinto que tudo não será senão um sonho a se dilacerar no tempo imóvel. O vento nas folhas, o vento no rio, o vento arrastando as nuvens indefesas. O teu olhar, os teus cabelos que rolam, o meu amor que não se acaba. Que sei fazer, meu Deus, senão sofrer?

Lúcio Cardoso, Poesia Completa, p.220.


O Tédio das Cidades Prisioneiras à beira do oceano, as cidades não conhecem a vertigem dos desertos onde explode o cântico das vagas! Ao longo das areias sonolentas, choram o céu imenso que as abraça, e azul que tonto se despenha sobre o mar. Ei-las, grandes, soturnas, acesas junto à orla dos portos oleosos. Ei-las sondando a linha do futuro, desvendando no silêncio dos astros o mistério da vida - ei-las atentas à maldição da permanência, do sangue que flui na voz do mar e à febre das partidas. Oh! a noturna tristeza destes mundos, agonizando contra o peito das muralhas! Jamais o espaço livre, a onda, jamais o vento que arde nos velames, jamais a prece dos naufrágios, a tormenta que nasce dos poentes, e o abismo aberto em chagas à fúria dos ciclones! Jamais o brigue que soçobra, jamais o delírio das vitórias acesas aos uivos do relâmpago! Quando o sol desce no ápice das vagas, gemem sobre os destroços que regressam sonhando as partidas impossíveis e só o mar esplende aberto ao sopro das manhãs…

Lúcio Cardoso, Poesia completa, p.306-307.


Corta a Lâmina Corta a lâmina esse espaço do dia iluminado corta o ciúme, o tardo e o angustiado amortalhado no seu leito de falso e renúncia. A carne soando seu último suspiro, o berço, a amante, o regicida - o que corta a lâmina se esvai ao esforço do tempo. Vai, à suburra incalma das sarjetas, serra e monstro, trabalhando seu programa de aparar e destruir uma floresta em aço iluminada, a lâmina se produz, decepa e vence até que o óxido anoitece seu poder de apara e o morticínio. Fala o monturo em seu agreste fim enquanto fácil a tarde vai descendo sobre o esforço vencido deste limpo só que se avermelha à lembrança do oculto anavalhado.

Lúcio Cardoso, Poesia completa, p.474.


Š Emilio Scanavino


paisagens

JULIAN LESSER

aéreas


Julian Lesser nasceu e vive em Nova York. Em 2005 recebeu seu BFA da Universidade de New Paltz com concentração na pintura. O trabalho de Lesser incorpora toda a energia e a pressa da cidade, além do colorido de uma natureza ausente, por onde se mais convive entre o concreto e o asfalto. Essa influência da natureza, entretanto, não está em Nova York, mas em New Paltz , lugar onde se apaixonou pela exuberância paisagem das colinas e das montanhas. Daí o tema das flores numa sequência temática “Just Flowers”, ou a sequência “Flower and city landscapes”, ou ainda “Aerial Landscaps” – cuja parte se pode observar a seguir. “Paisagens aéreas” (em tradução direta) retrata a beleza que existe em paisagens naturais, quando vistas do alto. A terra torna-se uma colagem de cores e formas irreconhecíveis ao olho nu. A expansão urbana, a poluição e outras características terrestres vistas de cima são tudo cores, como se chão estivesse a derreter. Para Lesser, estas pinturas nos dizem que, enquanto nossas próprias vidas de perto podem parecer terrivelmente importante minuto a minuto, não devemos esquecer que de um ângulo mais aberto (quando tudo é visto de cima, por exemplo) não é nada mais do que um mar de cores e formas abstratas. A série reflete ainda dois sentimentos opostos. A sensação de grandeza do homem sobre a natureza e sua redução perante a ela. Contrastes que se revelam na materialização das cores – responsáveis elas não apenas para essa representação de um mar com tudo, a vida e seus pertences, dentro de um só ângulo, mas também pela vertigem que é está diante da simultaneidade das formas.
















OS CONVIDADOS

Marília Rothier Cardoso É graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1967); mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976) e doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1990). Atualmente é professora assistente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica literária, arquivo, composição textual, escritor e intelectual e crítica biográfica. É pesquisadora B2 do CNPq. Odirlei Costa dos Santos Doutor em Teoria Literária pelo programa Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ésio Macedo Ribeiro é doutor em Literatura Brasileira pela USP, escritor, pesquisador e bibliófilo. Tem onze livros publicados, dentre eles, O riso escuro ou o pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso (Edusp/Nankin, 2006), a edição crítica da Poesia completa de Lúcio Cardoso (Edusp, 2011) e a edição dos Diários de Lúcio Cardoso (Civilização Brasileira, 2012). Organizou, ainda, com Silvana Maria Pessôa de Oliveira e Viviane Cunha, o número 39 da Revista do Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da UFMG, que traz um “Dossiê Lúcio Cardoso”, contendo doze ensaios sobre o autor (FALE – UFMG, jan./jun. 2008).



7faces caderno-revista de poesia set7aces.blogspot.com O caderno-revista de poesia 7faces é uma produção semestral independente projetada, diagramada pelo poeta Pedro Fernandes. Editores Pedro Fernandes Cesar Kiraly Organização desta edição Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Convidados para esta edição Marília Rothier Cardoso Odirlei Costa dos Santos Ésio Macedo Ribeiro Colaboradores (por ordem de apresentação) Rosana Banharoli Homero Gomes Leonardo Chioda Thiago Souza Lara Amaral Mariana Torres Gabriel Resende Santos Mario Filipe Cavalcanti Alexandra Vieira de Almeida Casé Lontra Marques Jairo Macedo Ana Romano

Agradecimentos A todos que enviaram material para a ideia e em especial aos professores Marília Rothier Cardoso, Odirlei Costa dos Santos e Ésio Macedo Ribeiro que se dispuseram a escrever sobre Lúcio Cardoso. A Rafael Cardoso, em especial, por ter cedido todos os fac-símiles de poemas de Lúcio Cardoso reproduzidos nesta edição.

Contato Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com 7faces. Caderno-revista de poesia. Natal – RN. Ano 4. Edição n. 7. jan.-jul. 2013. ISSN 2177-0794

Licença Creative Commons. Distribuição eletrônica e gratuita. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores e não seja para utilização com fins lucrativos. Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores e fica disponível para download em set7aces.blogspot.com Os editores deste caderno-revista são isentos de toda e qualquer informação que tenha sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, conforme declaração enviada por cada um dos autores e arquivadas no sistema 7faces.



Capa/Contracapa: Emilio Scanavino Nasceu eu Génova em fevereiro de 1922 e morreu em Milão em novembro de 1986; foi um pintor e escultor italiano. Foi aluno Escola de Arte Nicolò Barabino de Génova, onde conheceu seu professor Mario Calonghi, que teve uma grande influência na primeira formação; já em 1942 teve sua primeira exposição no Salone Romano de Génova. Neste mesmo ano ele se matriculou na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Milão. Cinco mais tarde, em Paris, tem contato com poetas e artistas como Edouard Jaguer , Wols eCamille Bryen, experiência que resulta na formação de sua obra da maturidade. Esteve na 25 ª edição da Bienal de Veneza, na galeria de Apollinaire de Londres, onde conheceu Philip Martin, Eduardo Paolozzi, Graham Sutherland e Francis Bacon. No retorno à Itália abriu seu primeiro estúdio em Milão. Depois, em 1962, abre seu atelier numa casa em Clice Ligure. Premiado várias vezes, trabalhou até os últimos anos de sua vida e participou de várias exposições dentro e fora de seu país e fora dele. O ponto alto de sua carreira nasce nos anos 1970 em diante com a série de pinturas Nó, marca de seu estilo, relembrado nas páginas desta edição da 7faces.

Tchalê Figueira Além das imagens de Emilio Scanavino, esta edição da 7faces apresenta imagens do artista plástico Tchalê Figueira (vide o texto “O riso transgressor de Sísifo: o absurdo nas novelas cardosianas”): Tchalê Figueira nasceu em 1953 na ilha de S. Vicente, em Cabo Verde. Viveu em Basel, na Suíça, onde concluiu, em 1979, o curso de Belas Artes na Basel School of Fine Arts. Desde 1985 vive e trabalha no Mindelo. Em 2008, foi premiado pela Prix Fondation Blanchère na Bienal de Dakar. Além do seu trabalho nas artes visuais, Tchalé é musico e poeta. Em 1992 publicou o livro Todos os naufrágios do mundo, em 1998 Onde os sentimentos se encontram e em 2001 O azul e o mar.

As imagens desta edição foram coletadas da internet e nos casos identificáveis cita a fonte de todas as obras aqui disponibilizadas. Em caso de violação de direitos, mau uso, uso inadequado ou erro entrar em contato; nos comprometemos a atender as exigências no prazo legal de 72 horas contadas do momento em que tomarmos conhecimento da notificação.

Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço set7aces.blogspot.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou solicitar aos editores através dos contatos pedro.letras@yahoo.com.br e ckiraly@id.uff.br o envio das regulagens.





Existe o cão. Preto, ronda em torno desse oco que nós somos. Velha igreja, pano, a bandeira diante do vazio: um pássaro transmite a sua forma e voa dentro do quadrado sem ninguém. Peras, maçãs, acontecidas lantejoulas participam, a hora se exprime e sobre o longo acomodado no seu sono o moço acorda: Artur. No silêncio um vermelho agudo se define. Lúcio Cardoso, Poesia completa, p.728

Selo Letras in.verso e re.verso


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