Ana Cristina Cesar: uns papeis que encontrei

Page 1







24.1.82 Caio, Recebi linda crônica para Elis e fico esperando o próximo Leia e outras novidades paulistas, se não vou eu mesmo aí pessoalmente buscar no fim do mês. Enquanto isso mando uma tradução livre em prosa que fiz do Cisne de Baudelaire quando estava em Londres. Não se esqueça de que em abril comemoramos 161 anos do nascimento dele! Beijos, até mais, Ana C. PS. A tradução é inédita e está dedicada ao meu Professor com quem fiz o MA de Tradução Literária em Essex Vê se você quer.

“crônica para Elis” – crônica de Caio Fernando Abreu publicada no jornal alternativo Lira paulistana. “próximo Leia” – jornal Leia Livros, à época editado por Caio para o qual foi enviada a tradução livre de “O cisne”, de Baudelaire.


RJ, 26.2.82 Caio, Você consegue escrever direto na máquina, sem atalhos datilográficos? Eu só me entendo com uma boa pena. Também fiquei quietíssima no Carnaval, que pasme é uma paz no Rio de Janeiro. Te procurei na praia, encontrei a amiga tua que te hospeda, foi simpática e disse que não estavas. Depois fiquei morfinada pela novela da Lilli Palmer, e andei lendo com muito gosto teu Pedras de Calcutá com destaque para o pique pop, ri muito com meus botões, devo te dizer que você é um contista primoroso, ou já te disse? Também fiquei admirando um outro talento teu – vim a descobrir que sou mesmo Gêmeos com ascendente... Leão, como você havia previsto numa carta. Nasci entre 10:15 e 10:30 da manhã, confere? Se não fosse abuso eu te encomendava meu mapa, globo ou atlas, simplesmente. E o chinês, funciona? Leio que sou dragão, “animal de parada, personagem fabricada, espécie de figura de Carnaval, que sempre será queimado depois das Festas e, como Fênix, renascerá das cinzas para a Festa seguinte”. Aqui já é sextafeira. “Não podemos esquecer que o dragão é uma ilusão, que desperta ilusões”. Achei muito bom o artigo sobre Djuna Barnes e extraordinário o artigo dela sobre Joyce – recomendo a publicação do próprio (não é centenário do Joyce?) no Leia*. Quanto a mim, quero e devo escrever a matéria que você me propôs. No entanto, falta-me aqui o volume das obras de Djuna, deixouse ficar em Londres e é-me absolutamente imprescindível (incluindo o prefacio de T. S. Eliot) para a execução da matéria. Que hacer? Estive com Cacaso. Sem que eu sequer me adiantasse, ele confessou seu desejo de promover finíssima revista literária, de vida curta mas gloriosa. Acho importantíssimo tudo isso. Meu olho brilhou e falei em você. Vamos agitar essa. Uma revista mesmo, em forma de Temps Moderrnes, a sua novelinha publicada em três partes, um soneto meu, um ensaio do Chico Alvim sobre a modernidade – você viu a matéria dele na Veja? O que você pensa? Muito complicada a modernidade. Segundo Djuna, Joyce estava sempre disposto a deixar a mesa de trabalho e “discutir sobre todo aquello


que no es ni artístico ni llamativo ni moderno”. E que era mesmo que dizia “Cansei de ser moderno, agora serei eterno”? Um dos temas que me seduziria mencionar na matéria seria o uso que Djuna faz do inglês, uma curiosa “desanglicização”, a nível do tom, que transforma essa língua “prática”, dada ao nonsense e ao humor irônico, num discurso de eloquência continental. Ai, meus livros! Misturei a modernidade e a tonalidade sem sentir, quando na verdade queria me referir à patrulhagem do moderno. Eu não sei o que é Brasil, você sabe? Obrigada. Telefone. Um beijo da Ana Cristina *posso traduzir achando o original.

“a matéria dele na Veja” – o poeta Francisco Alvim escrevia resenhas para a revista na época.

“quem era mesmo que dizia” – refere-se aos dois primeiros versos de Carlos Drummond de Andrade do livro O fazendeiro do ar.


24.3.82 Caio dear, Então tá. Me lanço à aventura inconsequente de enfrentar este avião elétrico, cheia de dedos, menos leve que devia. Veja só. Agora tenho um gabinete particular, de onde descortino ray-ban os jardins botânicos e os dois irmãos. Pelo corredor passam celebridades decididas. Faço que não vejo. Contígua Angela Carneiro e o esquisito matrimonio do expediente, que começo com certo estupor, fascínio de máquina, grude, o tempo voando.

Gracinha você: supressíssima a nota no Leia, que por sinal está um luxo, aquelas mulheres todas. Amei, ainda mais que havia arquivado sem saber onde o teu off de que poderia pintar publicação. Querido, obrigada, fiquei feliz. Aguardo sem pensar. O soneto do Drummond está na parede do gabinete. Uma cópia foi discretamente para as mãos de Mary, the analyst, que concordou comigo que o título é equivocado: não se trata de um confronto. Afinal de contas. Tenho um Summertime belíssimo com o Modern Jazz Quartet – coisas do Patinho, requintado ouvinte, cruzando os céus como um satélite. No momento não sei mais do meu desejo, onde pô-lo. Também estou preocupada mas me fio muito nessa psicanalise lacaniana, dizem. Sabes? Suje Veja sim. Chico Alvim me ligou ontem pedindo conselho se continuava lá, cabreiro com o pagamento. Desaconselhei (então Marília também saiu?) e faço votos que a IstoÉ pinte mais embora sinceramente não veja naquela cultura, o que importa porém é a simpatia das pessoas. Geraldo exemplar. Olha só, bruxo: 2 de junho de 1952, 10 e pouco da manhã. Trinta anos este não, com fé e (ainda) pouca caridade. Me procure vindo ao Rio, te ofereço chá nada urbano no meu mínimo quintal onde floresce uma cerca viva. Quero ouvir tua biografia, toco o jazz no rádio, depois esticamos até a Vênus Platinada, onde te instalo no teu gabinete e te apresento a inimitável A. Carneiro, senhora de si, talvez egressa durante o expediente.


Ainda não chegou o telefone próprio, em breve terei um ramal e um vt para brincar (fomos ver Casablanca chez Gilberto Braga num domingo de terrível cinza angustiada; parece que a vontade popular determinou: D. Chica termina com o chofer. Acho justo, também virei casaca). Pra te dizer a verdade estou muito interessada nisto tudo, me divirto muito e espero em breve alcançar a proficiência neste avião da ibm (por enquanto ainda derrabo nas teclas e subitamente estamos na outra linha sem saber) e começar a fazer literatura deslavada nas horas vagas. Queria pedir uma assinatura do Leia para mim, aqui a distribuição é péssima e nem sempre achamos nas bancas. Me mande a conta, não tenho nem o último exemplar para enviar cupom. Ouço Caetano bastante, acho grande cantor. Sonhos é primor de cantada inteligente. Durante o dia, enquanto o número secreto não vem, meu real é 2233 ou 2349, 11 à 1 e 4 às 8. Tudo cifra inédita da minha vida. Me sinto num agradável humor fútil, inspirado pela platina dos corretores. Vai direto um beijo para você, da Ana C. PS. Angela manda perguntar se você sabe aí na editora de livro interessante que precise de tradução – ela é exímia em francês e quer ocupar mais o tempo deste expediente. Dá um toque no Luís. Beijo, A.

“gabinete particular” – o escritório onde a poeta trabalhou como leitora de novelas para a Rede Globo, no Jardim Botânico juntamente com Angela Carneiro. “nota no Leia” – nota que anunciava a edição inteiramente dedicada a literatura feminina publicada pela editora Brasiliense, editora que publicaria A teus pés. “soneto de Drummond” – “Confronto”, de A paixão medida enviado por Caio Fernando Abreu a Ana Cristina Cesar.


“coisas do Patinho” – apelido do amigo e crítica de arte Paulo Venâncio Filho.

“Suje na Veja” - Caio escrevia também, nessa ocasião, resenhas para a revista.

Ana Cristina Cesar sempre gostou muito desse poema de Carlos Drummond de Andrade; sabedor disso, o poeta transcreveu o poema com nota “com o pensamento em Ana Cristina” e enviou a ela.


RJ 17.11.82 Te escrevo, Caio querido, com teu telefonema ainda quente, deixo Proust de lado, e a burocracia editorial da lista de nomes e endereços e ceps, que me consola como um álbum de figurinhas. Ando gemebunda. Aguardo bem o livro mas com aflição do número imprensa e dos falsos elogios dos amigos. Lançamento vai ser num lugar ideal, o que para mim significa: a dois metros de casa, nem saio da Biaxa Gávea. Detestei fazer a tal biografia, redigir durante dias tentando não fazer número nenhum, atingir uma espécie de grau zero qualquer. Vá. Tomo decisões que não sei se cumpro: levantar cedo, fazer exercícios na praia; ler os clássicos; arrumar a casa. Tudo bem ao chão porque disseram que sou toda ar com o trio gêmeos, leão, libra (por ato falho escrevi “virgo”). Fiz o mapa. Lê pra mim? O astrólogo achei vago, geral demais, muito perguntador, o que tirava o charme dos adivinhadores e fazia dela, embora americano tranquilo, um sacador de pistas que eu mesma dava. E tudo tão caro! Olha, meu corpo todo dói. O amor... Nos amamos em mente porém enrascados em psicanálise (pode?) e no “mulher com mulher”. Acaba quase todo dia. Não sei direito (tem que?) entrar para a colônia gay, mas desejo mais escracho, mais verão sim, e entro numa pedagogia da desopressão que vira um papel. Precisaria ficar simplesmente mais quieta. Mas o que esse caso tem me virado... Não sei como, recuperando uma espécie de dom da sobriedade. Quando acaba fico grave, meio empertigada, com projetos muito ao chão; quando recomeça palpito, me sobressalto, tenho medo e eloquência. Há sim uma emperração fundamental que volta e meia. Cosa devo fare? Isto aqui parece um bilhete desses de escola, passado por debaixo da carteira. Como é que bruxas voam? Adoro te ouvir dizendo do projeto imenso e secreto. Sabe que também acalanto a sombra de um poema inteiro interminável tipo William Carlos Williams? Às vezes acrescento um mote. Charles, até Chacal andam alongando seus versos. Waly Salomão, na homenagem à Torquato, leu um belo longo bem-beat. Queria que só lesse. De 15 em 15 dias sou hostess, com a Grajina (“a dama de Gdansk”, segundo Waly), no Barbas, de noites de leitura de poesia. Tem dado certo, semana que vem leio eu entre outros, mas no geral nenhuma mundanidade me atrai. Só fui a uma festa do PT e ao aniversário de Clare (você conhece?) onde quis tanto escarchar que ficou de propósito demais. Arre, só falo em mim.


Vê se acha a Folha com o Loyola te lendo. Alguns livros sobre a mesma que atualmente, no vendaval, só folheio: o peruano César Vallejo, o português Carlos de Oliveira, o paulista Piva, o fundamental Rimbaud, e, à espera, Conrad de Heart of Darkness. Mas cadê que eu paro? Ai que desejo de grande ordem, nem que fosse ao preço de certa aridez. Mas o amor... Te beijo, Ana C.

“Aguardo bem o livro” – é a edição de A teus pés publicada no final de novembro desse ano.

“nem saio da Baixa Gávea” – Ana C. morava numa vila na rua das Acácias, no chamado Baixo Gávea. “O amor...” – a poeta estava apaixonada por mulher casada, amiga de longa data. “sou hostess com a Grajina” – uma amiga, a polonesa Grazyna Drabik, com quem organizava leituras de poesia no bar Barbas, de Nelson Rodrigues Filho, em Botafogo. “Folha com o Loyola te lendo” – o escritor Ignácio Loyola Brandão, na época bolsista em Berlim, havia elogiado Morangos Mofados, de Caio, num entrevista para o jornal Folha de São Paulo.


“O cisne”, de Charles Baudelaire na tradução livre de Ana Cristina Cesar Para Arthur Térry I Eu penso em você minha filha. Aqui as lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cheguei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo Anaïs de capa bebendo com Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean-Paul nos Elysées, Gene dançando à meia-luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa no frio da manhã e pensa na Força de Trabalho que desperta, talvez bichos que falam, ou exilados cm sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio. II Paris muda! Mas minha melancolia não se move – Beaubourg Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com meus gestos loucos, e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você,


minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do dise-jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim do sonho deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamente a sua fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!




Manuscrito do poema “Protuberância”, acervo Instituto Moreira Salles.


Manuscrito do poema “Chove�, acervo Instituto Moreira Salles.


As cartas foram copiadas do jornal O estado de S達o Paulo, de 29 de julho de 1995.



Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.