Sidney Amaral

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Aproximações para ultrapassar o fim

Assumir o corpo como território de linguagem pode ser um percurso em direção ao reconhecimento das camadas discursivas que ocompõem e que dele podem emergir desde sua constituição material e subjetiva. Sendo linguagem, assume, portanto, a qualidade plural, e não universal, de forma que o que se nomeia no ocidente, nas américas e no Brasil é atravessado por experiências embricadas em uma densa malha de fios que se interseccionam e costuram corporalidades marcadas pelo trauma da escravidão, genocídio de povos originários, múltiplas desigualdades, racismo estrutural e demais efeitos da colonização.

Encarnada no mundo, a carne é impossível à neutralidade, e é desta posição que Sidney Amaral (1973 - 2017) apresenta sua obra igualmente encarnada enquanto recurso de elaboração e fabricação de narrativas. A partir de diversas técnicas como desenho, escultura, pintura e gravura, o artista e educador fazia do autorretrato e de elementos do cotidiano um dos caminhos frequentes para alcançar representações ambíguas, irônicas e, por vezes, desconfortáveis sobre o que pode ser a experiência social e íntima de uma pessoa negra no país.

O contraste elaborado por suas criações aciona a complexidade humana, e da especificidade de fazer uso de sua própria imagem, transcende do indivíduo ao coletivo, estabelecendo potências de identificação e significações frente às violências raciais que homogeneízam e destituem pessoas negras de sua condição de sujeito. É desta espessura poética que se consolida a exposição “Viver até o fim o que me cabe! – Sidney Amaral: uma aproximação” com curadoria de Claudinei Roberto, guardião não só de suas produções após o precoce falecimento, como da tentativa de nos aproximar de seu acervo vivo.

O alcance de Sidney Amaral percorre temporalidades que permeiam o presente, de forma que sua morte não o extingue, mas nos convoca a não hesitar no resguardo de artistas contemporâneos, exercício caro ao Sesc diante da compreensão de que promover o patrimônio afrobrasileiro é promover a cultura brasileira, e partilhar das perguntas que a arte nos impõe é nos colocar em contato com a coletividade e fortalecer novos conhecimentos para além dos hegemônicos.

Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo

Vivendo até o fim oque lhe coube.

Só muito recentemente a arte afrodiaspórica produzida no Brasil recebe a atenção merecida, e, no entanto, mesmo esses incipientes cuidados são considerados, por alguns, excessivos e mesmo desnecessários. Essa fração da crítica e do público ignora que durante longos anos a produção simbólica dos afrodescendentes padeceu as consequências deletérias do racismo estrutural que torna invisível a história dessa parcela da nossa população. Apesar disso, e concomitantemente aos avanços das lutas antirracistas, por inclusão e igualdade, as realizações artísticas emergem e se afirmam a partir de uma excelência que confirma qualidades geralmente recusadas aos criadores da diáspora afro atlântica. Ora, são várias as estratégias usadas pelos artistas negros e negras na construção de repertórios plásticos que enfrentem a complexidade da realidade em que estão inseridos. A obra legada por Sidney Amaral (1973-2017) participa de uma tradição de excelência que considera de maneira critica e dialógica o fazer arte e a sua inserção nos circuitos ainda reticentes, não obstante os avanços, em recebê-las. Será que vimos o suficiente das obras que já observamos?

A escultura, o desenho, a pintura, a gravura são todos veículos apropriados à verve poética de Amaral, que através delas formulava narrativas de uma tal densidade que torna possível observá-las a partir de pontos de vista distintos. Dada a sua refinada execução, a série de “naturezas mortas” presentes na exposição, existe a possibilidade de considerar Amaral participante de uma tradição que remete ao pintor negro Estevão Roberto da Silva, acadêmico que teve atuação importante no fim do século XIX. Ao mesmo tempo, investigar essas “naturezas mortas” nos aproxima do cotidiano do artista e mesmo da subjetividade que elas expressam. A série de desenhos em que o artista, magnificamente, representa as próprias mãos parece confirmar a opção que ele faz por revelar todo um universo de subjetividade partindo de pequenas partes que falam sobre o todo.

Notável pelo domínio das técnicas de que lança mão na realização dos seus trabalhos, Sidney Amaral, de maneira recorrente, produz autorretratos. Nesses trabalhos não é apenas a sua biografia que está sendo elaborada, o que ele nos oferece, a partir daí, diz respeito a todos que dessa experiência participam através da reflexão silenciosa que tem como gatilho a contemplação das obras.

Sidney Amaral.

Dada a densidade formal e de conteúdo que a obra legada a nós por Sidney Amaral tem, uma das questões que levanta é justamente essaSerá que vimos o suficiente dessas obras que já observamos? O conhecimento sugere que o diálogo travado entre nós e as obras de arte, é continuamente renovado por nossas vivências, não sendo, por isso, imutáveis os sentidos que atribuímos a elas, tanto mais a essas de Sidney Amaral, tão plenas de um vigor que pode ser observado até nos desenhos preparatórios que tem destaque nesse cotejo de obras que o Sesc Belenzinho apresenta e que pretende nos aproximar do universo desse artista incontornável.

VIVER ATÉ O FIM O QUE ME CABE! SIDNEY AMARAL: UMA APROXIMAÇÃO Sesc Belenzinho Rua Padre Adelino, 1.000, Belenzinho, São Paulo Horário de funcionamento: Terça a sábado das 10h às 21h Domingos e feriados das 10h às 18h Trauma 2016 Coleção Renato Francischelli
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