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Servidões prediais: aspectos registrais

Ivan Jacopetti do Lago – Oficial de Registro de Imóveis em Paraguaçu Paulista (SP) e Diretor de Relações Internacionais do IRIB

“Será que é conveniente manter esse

tipo de situação em que o sujeito compra o imóvel arriscando ter uma servidão que ele desconhece? Alguém pode argumentar que se trata apenas do caso de servidão aparente, por exemplo, na hipótese da usucapião. No entanto, a função do registro é trazer segurança exatamente para evitar ônus ocultos.

Eu vou tratar da questão das servidões prediais e de alguns aspectos registrais que as envolvem. Esse é um tema clássico desde o Direito Romano. Às vezes, revisitar esses sistemas clássicos é como remexer num baú antigo e encontrar uma joia com um brilho diferente. É isso que eu vou tentar fazer com as servidões prediais, embora um tema clássico, vou tentar trazer alguns elementos que talvez não estejamos habituados a ver por esse ângulo.

Eu vou tratar das servidões prediais propriamente ditas, aquelas do Código Civil. Claro que há servidões administrativas, por exemplo, há servidões minerárias e ambientais. No entanto, como o tempo é limitado, eu recortei especificamente o tema das servidões prediais. Não vou tratar nem das chamadas servidões legais, aquilo que conhecemos como direitos de vizinhança, e nem de outras restrições, que não envolvam a situação clássica em que tenho um imóvel que serve outro imóvel diretamente.

Noção econômica da servidão predial

Para começar, vamos ver o que é a noção econômica da servidão predial. Para que serve economicamente a servidão predial?

1. Primeira função econômica da servidão predial: correção voluntária de externalidades

Externalidade é um benefício ou uma incomodidade que a propriedade de alguém gera para outras propriedades.

Podemos ter externalidades positivas, quando a propriedade de alguém valoriza a região, por exemplo, e o vizinho que não deu causa a essa valorização vai se beneficiar disso.

Mas temos também externalidades negativas. Às vezes, o uso da propriedade pelo proprietário gera desvalorização para os imóveis vizinhos. É o que acontece, por exemplo, no caso de uma atividade que gera emissões, como fumaça, ou mau cheiro, enfim, os vizinhos suportando alguma coisa a que eles não deram causa.

A servidão pode ser empregada como um meio de correção voluntária dessas externalidades. Por que voluntária? Porque servidão predial, especificamente a servidão clássica, decorre de um consenso entre os proprietários. Ou seja, considerando as possibilidades e uma utilização mais eficiente desse tipo de propriedade, pode parecer conveniente aos proprietários limitar de alguma maneira o uso de uma das propriedades em favor do outro.

Se houver previsão legal proibindo aquela atividade que gera uma externalidade negativa para os vizinhos, não é o caso de servidão predial, basta simplesmente que o prejudicado invoque a lei que o defende.

Alguém que gera uma externalidade negativa, em princípio lícita, pode desenvolver a atividade naquele lugar, mas também pode ter ali algum incômodo para os vizinhos. A licitude dessa atividade também pode ser duvidosa, ou seja, pode haver limites para o seu desenvolvimento. A partir de que momento, os vizinhos podem reclamar?

A servidão pode ser usada para estabelecer um consenso de maneira que aquele vizinho que concordou em limitar suas faculdades de proprietário em relação ao seu vizinho não possa mais reclamar ou questionar as externalidades que recebe no seu imóvel. A servidão pode ser usada, em primeiro lugar, para essa finalidade.

Ou então, o inverso. Alguém que, licitamente, pode gerar uma atividade negativa pode atribuir aos vizinhos o direito de exigir que não a realize. Quer dizer, o contrário também pode acontecer. Alguém poderia desempenhar determinada atividade no seu imóvel, mas isso incomoda o vizinho, que prefere, então, pagar alguma coisa para que essa atividade não seja realizada.

Por exemplo, vamos imaginar que eu tenho o direito de tocar bateria na minha casa durante o dia. Isso é lícito? É. Posso fazer? Sim. Mas isso incomoda demais o meu vizinho. Ele pode fazer um acordo comigo para estabelecer que me paga um valor para eu nunca mais tocar bateria de dia ou de noite. A servidão pode se prestar a isso, corrigir uma externalidade lícita, mas que incomoda o vizinho.

2. Outra finalidade econômica da servidão: mais eficiência no aproveitamento do imóvel, envolvendo imóvel vizinho, mediante consenso

É o que ocorre quando há alguma coisa no imóvel do vizinho que não há no meu. Por exemplo: água, madeira, melhor acesso à via pública. E pode ser que seja conveniente para mim ter acesso a esses bens, ainda que eu pague alguma coisa. Também pode ser interessante para o vizinho limitar um pouco a sua propriedade e conceder o acesso a esses bens para mim. Se ambos julgarmos conveniente esse acordo, estaremos aproveitando a nossa propriedade de maneira mais eficiente. Aquele que concedeu a servidão vai receber alguma retribuição, e quem obtém a servidão vai ter uma forma de aproveitamento que maximiza a utilidade do seu próprio imóvel.

Para ser servidão tem que haver consenso, tem que haver um acordo. E não pode haver essa autorização por força de lei.

Se, pelo exercício do direito de vizinhança, a lei autoriza o acesso àquele bem, não se fala de servidão. Por exemplo, por força de lei, o proprietário de um imóvel encravado tem direito a passagem forçada e não precisa fazer um acordo para o vizinho autorizar essa passagem.

Outra situação é quando se tem acesso à via, mas a passagem pelo vizinho melhora muito esse acesso. Mediante consenso, esse proprietário pode aumentar a eficiência ou a utilidade de seu imóvel por meio de um acordo com o vizinho.

Por que esses vizinhos não resolvem essas questões por meio de um contrato, mecanismo clássico de cooperação em que um autoriza o outro a fazer o que precisar no seu imóvel? A questão é que a servidão atribui ao titular do imóvel dominante o exercício das faculdades que são geradas por ela, mas um exercício protegido por aquilo que se chama “regra de propriedade”.

O direito real, diferentemente do direito pessoal, dá proteção mais forte para o seu titular porque protege com uma regra de propriedade, um conceito econômico e não jurídico. A ideia da regra de propriedade é que ninguém tira esse direito de alguém sem esse alguém

236 consentir; nem pagando. Por que? Porque a regra de responsabilidade, a liability rule, permite de certa maneira que uma pessoa retire o direito do outro desde que ela o compense por isso, desde que ela indenize. Então, se eu tenho um direito protegido por um direito real – no caso da servidão predial – o seu titular pode exercer o seu direito e pode impô-lo contra quem for, contra o proprietário do imóvel serviente, contra terceiros, contra quem adquirir esse imóvel, sem que se possa recusar o exercício desse seu direito, porque a servidão atribui ao seu titular uma defesa por meio de uma regra de propriedade.

A servidão predial tende a surgir apenas em situações em que o ganho de eficiência supere os custos. Se é algo voluntário, então tem que haver uma análise tanto pelo proprietário do imóvel dominante quanto do proprietário serviente. E eles podem entender que é benéfico para ambos estabelecer essa servidão. Por exemplo, pode ser valioso para o proprietário do imóvel dominante ter passagem pelo imóvel serviente apesar das despesas envolvidas e mais o preço estipulado pelo proprietário deste último. É um instituto que tende a aumentar a eficiência do aproveitamento dos imóveis.

Noção jurídica da servidão predial

Qual é a ideia jurídica da servidão predial? A estrutura básica dela é a de retirar do proprietário do imóvel serviente a faculdade de exigir do proprietário do imóvel uma certa conduta em situação na qual, em princípio, poderia fazê-lo. A estrutura básica da servidão predial é retirar do proprietário do imóvel serviente alguma faculdade que em princípio ele teria. Algo que ele poderia fazer ou deixar de fazer. Mediante um acordo e a constituição do direito real, essa faculdade dele é tolhida em benefício de outro imóvel.

Por outro lado, ao mesmo tempo, a servidão atribui ao proprietário do imóvel dominante a faculdade de exigir do proprietário do imóvel serviente certa abstenção em situação na qual, em princípio, não poderia fazê-lo. Quer dizer, ele poderia fazer alguma coisa no seu imóvel, mas, por conta da servidão, restringe uma das suas faculdades de proprietário.

Em um conceito de H. Westermann, a servidão predial envolve a utilização de imóvel alheio com segurança absoluta – porque é um direito real – de modo a complementar a exploração econômica do próprio imóvel. Isso seria a essência da servidão.

Quanto à natureza é um quase consenso a ideia de que a servidão predial é um direito real sobre coisa alheia. Ela é um direito real que se tem sobre um bem que pertence a outra pessoa. Portanto, ela seria um direito real autônomo sobre coisa alheia.

No entanto, na Idade Média surge outra concepção a respeito disso e que de tempos em tempos acaba ressurgindo na legislação ou na jurisprudência. Trata-se de uma concepção resgatada no começo do século XX por um romanista italiano chamado Pampaloni. Ele tem um trabalho de 1910 em que resgata essa concepção de que as servidões prediais (assim como o usufruto – servidão pessoal), seriam parte da propriedade (pars dominii). Portanto, a servidão e o usufruto não seriam um direito real autônomo sobre coisa alheia, mas sim uma parte da propriedade.

Em relação ao usufruto, especificamente, os juristas medievais acabaram criando uma distinção entre usufruto causal, aquele que pertence ao proprietário da coisa, e usufruto formal, aquele que pertence a terceiro. Quer dizer, o sujeito que seria só usufrutuário teria usufruto formal, mas o sujeito que é o proprietário pleno do bem tem usufruto também, mas usufruto causal. Por quê? Porque a propriedade dele é composta por propriedade mais usufruto, e usufruto é tão somente uma parte da propriedade. A meu ver essa concepção não é adequada, porque partindo do pressuposto de que o usufruto é um direito real autônomo, então, não se pode considerá-lo, assim como a servidão, parte da propriedade.

E essa concepção ressurge na praxe em algumas situações:

Em primeiro lugar, na ideia de reserva de usufruto ou servidão. Mas isso, de certa maneira, desnatura o instituto. Essa reserva se poderia fazer também, em princípio, com a própria servidão. Quer dizer, eu vou alienar um imóvel em pedaços, vou manter a propriedade de uma parte. Essa parte que eu vou manter não tem um acesso direto, ou um acesso ideal à via pública. Então, eu alieno, mas já reservando naquele imóvel que estou alienando uma servidão de passagem sobre ele em favor do imóvel que estou mantendo. A ideia de reserva vem da própria ideia de concepção da servidão como parte da propriedade, como parte do domínio. A mesma ideia aparece também no pagamento de um quinhão hereditário, ou meação em inventário por meio de um usufruto. Quer dizer, estou pagando em usufruto. Estou considerando, então, que a propriedade é composta pela soma de nua propriedade + usufruto. Não estou considerando isso no direito autônomo.

Ou então, e aqui me parece ainda mais complicado, na tributação incidente sobre a instituição gratuita ou onerosa de servidão predial ou pessoal. É comum se ver nos tributos municipais ou nas leis de ITCMD a hipótese de tributação incidente sobre a constituição de servidão. Mas, se estou constituindo servidão, e se ela é um direito real autônomo, não estou transmitindo nada. Não há transmissão propriamente. Novamente, considerar transmissão é retomar a ideia de a servidão ser uma parte do domínio que está sendo transmitido para o titular do imóvel dominante. Esse é um tema excelente para ser mais bem explorado, aliás, mas no Brasil ainda não vi nenhum trabalho a respeito.

O que acontece na servidão não é uma cisão da propriedade entre os direitos do titular da servidão e o proprietário, mas sim um compartilhamento do uso do imóvel serviente, e um compartilhamento restrito. Por quê? Porque a lei procura evitar que a servidão esvazie a propriedade. Como veremos, a servidão é um direito plástico, é o direito real mais plástico que há. Temos uma tipicidade que vigora nos direitos reais em geral, mas a servidão escapa um pouco desse padrão porque o conteúdo dela pode ser definido pelas partes com eficácia de direito real.

Mas há limites, uma vez que a servidão não pode ser usada para esvaziar a propriedade para o proprietário do imóvel serviente. E ela é também, por sua natureza, um direito real autônomo, porém acessório, sendo considerada parte integrante dos imóveis. Então os imóveis não são transmitidos sem a servidão nem ela

pode ser transmitida sem o imóvel que está onerando. Por isso o texto de minutas tradicionais de escritura expressa que se “vende o imóvel e servidões ativas”, ou seja, elas vão junto com o imóvel necessariamente.

Sendo a servidão um direito real plástico, as partes podem moldá-la e moldar seu objeto de acordo com sua necessidade. Para o registrador, isso traz uma responsabilidade, a qualificação desse objeto, se ele é compatível com o estatuto jurídico da servidão predial ou não. E um primeiro ponto que se deve envolver nessa análise é a distinção entre servidão predial e usufruto. Trata-se de direitos distintos com regimes jurídicos distintos e efeitos jurídicos distintos. Cabe ao registrador, ao lançar o direito na matrícula, interpretar o negócio jurídico que lhe é encaminhado e verificar se aquilo realmente é uma servidão predial ou se é outra coisa, por exemplo, um usufruto.

Como se distingue a servidão predial do usufruto?

Tradicionalmente, o usufruto é conhecido como uma servidão pessoal.

Servidão pessoal é também uma servidão que grava o imóvel, mas, ao invés de gravar em benefício de outro imóvel vizinho, grava em benefício de uma pessoa específica – caso do usufruto, do uso e da habitação.

A nomenclatura “servidão pessoal” foi cunhada pelos juristas bizantinos no final do Império Romano para distinguir usufruto, uso e habitação das servidões prediais. No advento do Código Napoleônico acabou sendo abandonada porque os jusnaturalistas e os iluministas que conceberam o Código entendiam que a expressão “servidão pessoal” remetia ao passado, à Idade Média. A expressão foi abandonada, mas volta e meia ela ressurge e o interesse é justamente distinguir usufruto de servidão à medida que a servidão, necessariamente, beneficia imóvel certo, e não pessoa certa. Há uma decisão mais ou menos antiga do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo em que se questionava uma situação que em princípio era de servidão predial, porque assim vinha nomeada no título. No entanto, ela tinha sido estabelecida em benefício de duas pessoas específicas. É servidão ou não? A princípio, não. Essa análise cabe ao registrador.

238 Ainda com relação à distinção entre servidão e usufruto, um jurista alemão chamado Schöner diz que a servidão implica uma forma concreta, e não genérica, de aproveitamento do imóvel serviente. Ou seja, se o usufruto por um lado quase entrega para o usufrutuário todas as faculdades de proprietário, exceto a possibilidade de dispor do bem, a servidão, por outro lado, vai ter um conteúdo bastante concreto e delimitado, um uso dirigido a certa coisa, não um uso e um gozo genérico do bem.

Outra distinção proposta por três juristas alemães – Baur, Stürmer e Soerger – é que na servidão permanecem com o proprietário do imóvel serviente as faculdades essenciais da propriedade. De maneira geral, as faculdades de dispor, mas também de usar e fruir do bem permanecem com o seu proprietário. As faculdades que são transferidas ou que são limitadas não são tão essenciais assim, são aspectos menores da propriedade.

Aspectos que envolvem diretamente o registro: constituição e extinção das servidões

Quanto à constituição, quanto ao título que constitui a servidão, de onde surge a servidão que vai entrar no registro? As servidões prediais propriamente ditas, definidas pelo Código Civil como servidões prediais, sempre se originam do consenso, que pode se dar de várias maneiras.

Não há servidão predial absolutamente coativa, eu não posso forçar meu vizinho a aceitar minha servidão predial. Mesmo nas hipóteses em que ela decorre de um título judicial, ainda assim em alguma medida ela se origina de um consenso. Esse consenso pode ser expresso, quando há um negócio jurídico real de constituição de servidão, que é o ato inter vivos de constituição de servidão, ou testamento, que é a situação na qual o proprietário em testamento, por exemplo, faz a partilha dos seus bens estabelecendo legados. E como ele sabe que um pedaço vai ficar sem acesso, ele mesmo determina no

testamento que se constitua uma servidão em cima do bem que vai ficar de frente para a via pública. Isso vem da vontade do proprietário.

A servidão predial também pode se originar de um consenso tácito, aquela situação, que o Código Civil prevê, na qual há uma servidão aparente, necessariamente. A servidão aparente é aquela que envolve a realização de obras, que são visíveis, que são aparentes, que deixam vestígio no imóvel serviente. O consenso tácito se dá quando há tolerância do proprietário do prédio serviente pelo período de dez anos (ou vinte, se não houver título). O CC diz que nesses casos se tem a constituição da servidão por meio de uma espécie de usucapião. No entanto, ela só foi possível porque houve a tolerância do proprietário do imóvel serviente. Ele tolerou, pelo período necessário, que se mantivesse a servidão à sua vista – porque são servidões aparentes, necessariamente. Ele tolerou e não se opôs à manutenção dessa servidão, portanto vai acabar tendo o direito de estipular essa servidão. Há também o consenso presumido, que não é comum, mas é possível segundo a nossa jurisprudência, na hipótese da servidão por destinação do paterfamilias. E isso é objeto de controvérsia no Direito Romano: se havia, se não havia, se foi uma criação posterior.

A ideia da servidão por destinação do paterfamílias é a seguinte: o sujeito tinha dois imóveis e sempre usou um imóvel em benefício do outro. Ele sempre usou, por exemplo, o imóvel da frente, que era dele, para chegar na via pública. E ele era o proprietário do imóvel de trás, então ele aliena esses imóveis para pessoas diferentes. A questão é: quem comprar o imóvel que está atrás poderá continuar utilizando o acesso para a via pública? Essa é a ideia da servidão por destinação do paterfamilias, o sujeito usava dessa maneira, portanto, presume-se que era a vontade dele que houvesse uma servidão ali sobre aquele imóvel que ele utilizava em benefício do outro. Apesar de não ser absolutamente comum, há decisões até do STJ reconhecendo a possibilidade dessa servidão por destinação do paterfamílias. É interessante que o registro da servidão vai ser constitutivo apenas na hipótese de constituição por negócio jurídico real de constituição, que é a situação da servidão constituída por ato inter vivos. Em todas as outras hipóteses, a aquisição da servidão vai se dar fora do registro. Na constituída por testamento, ela vai ser transmitida pela saisine, por exemplo. Com a morte do de cujus, que havia previsto em testamento a servidão, considera-se adquirido o direito em favor do seu beneficiário.

Por outro lado, na servidão aparente adquirida por decurso de prazo, uma vez preenchidos os requisitos, tem-se como adquirido o direito de servidão independentemente de registro. E na servidão por destinação do pai de família também, ela pode ser adquirida independentemente de registro.

A questão que surge é bem interessante. O registro só é constitutivo na hipótese da servidão por ato inter vivos. E nos outros casos, a servidão não registrada é oponível a terceiros? Sim. Apesar de não ser a melhor solução, a solução que temos na lei é essa.

A Lei 13.097/2015, art. 54, parágrafo único, diz que as situações jurídicas não são oponíveis ao adquirente do imóvel desde que não tenham sido constituídas fora do registro. E se foram adquiridas fora do registro, seja na hipótese da morte, seja na hipótese de usucapião, então elas são sim oponíveis ao adquirente, ainda que não constem da matrícula.

Será que é conveniente manter esse tipo de situação em que o sujeito compra o imóvel arriscando ter uma servidão que ele desconhece? Alguém pode argumentar que se trata apenas do caso de servidão aparente, por exemplo, na hipótese da usucapião, então ele deve ter visto que tinha lá um aqueduto, uma estrada. E se viu e comprou mesmo assim, ele aceitou.

No entanto, a função do registro é trazer segurança exatamente para evitar ônus ocultos. O registro não está espelhando a situação jurídica real do imóvel. Pior ainda na situação da servidão constituída por testamento. Se o sujeito não verificar os autos do inventário e o testamento do de cujus não vai saber que tem servidão, mas vai ser vinculado por ela. É problemático, essas situações todas deveriam estar no registro para poder vincular terceiros, porque isso vai gerar grande insegurança.

Forma do título para o registro da servidão

Se se tratar do negócio jurídico real de constituição, o ato inter vivos, não tem nenhuma surpresa, aplica-se a constituição de servidão predial (art. 108, CC) – escritura pública para imóveis de valor superior a 30 salários mínimos. Em todas as outras hipóteses o título constitutivo da servidão vai ser, necessariamente, uma carta de sentença judicial ou, mais recentemente, o resultado de um procedimento de usucapião extrajudicial.

Vale lembrar que a usucapião extrajudicial é admissível também para aquisição de direitos reais limitados. Não é somente para propriedade. Poderíamos ter a constituição de uma servidão predial por usucapião extrajudicial? Sim, mas de maneira geral. Fora dessa hipótese de usucapião extrajudicial e da constituição por ato inter vivos o título vai ser uma carta de sentença que reconhece, por exemplo, o direito de quem exerceu pelo prazo a servidão aparente.

Ou então, mesmo na situação em que há servidão por destinação do paterfamilias – se o adquirente teve que recorrer a esse instituto é porque houve algum tipo de litígio, não houve um acordo na constituição da servidão –, vai ser preciso demonstrar em juízo que se configurava a situação da distinção do paterfamilias e que, portanto, ele faz jus à servidão.

Quanto ao objeto da servidão

Esse me parece o ponto mais interessante. Como os direitos reais são típicos, então, não é possível criar direitos reais que não contem com previsão expressa em lei. Mas, e as servidões? Elas são típicas?

Esse é um ponto interessante. No Direito Romano pré-clássico as servidões eram típicas. Por quê? Porque no Direito Romano mais remoto havia apenas algumas ações específicas que protegiam o titular da servidão: passagem, aqueduto, vista, não edificar acima de certa altura. Já no Direito Romano clássico, essa tipicidade foi desaparecendo e hoje, de maneira geral, nos vários sistemas jurídicos, não há mais tipicidade das servidões.

Os códigos, de maneira geral, não preveem a existência de servidão disso e daquilo. O que os códi

240 gos fazem é estabelecer critérios mais ou menos flexíveis para que a servidão possa ser constituída dentro daqueles critérios.

Um exemplo: no Direito Alemão, a servidão deve, necessariamente:

- implicar uma utilidade para o prédio dominante, consistente no gozo limitado do imóvel serviente;

- ou consistir na exclusão de uma faculdade do proprietário do imóvel serviente, pelo que ele passa a ter que tolerar algo;

- ou consistir na proibição, para o proprietário do imóvel serviente, de certos comportamentos que de outro modo lhe seriam permitidos.

- ou ainda, consistir na exclusão, para o proprietário do imóvel serviente, de um direito que poderia ser oposto ao proprietário do imóvel dominante. Ele abre mão da possibilidade de exigir alguma coisa do proprietário do imóvel dominante.

O Direito Francês é mais sintético e o nosso Direito vai na mesma linha. No Direito Francês, para que haja uma servidão, basta que ela gere utilidade a um imóvel, e não a uma pessoa, e seja imposta sobre um imóvel, e não sobre uma pessoa, e não seja contrária à ordem pública.

No Brasil, antes do advento do Código Civil de 1916, aplicava-se o Direito Romano como lei subsidiária porque não havia, nas ordenações, previsão de um regime geral das servidões prediais nem leis que tratassem disso. O que havia em vigor para essa matéria era o Direito Romano, exceto quanto àquilo que eles chamavam de servidão legal – direitos de vizinhança que em algumas hipóteses contavam com lei expressa. Desde o Código Civil de 2002, a lei exige apenas que a servidão gere uma utilidade para o imóvel dominante. E o alcance dessa servidão, em cada caso, pode ser estabelecido pelas partes.

Quais conteúdos a servidão não pode ter?

Segundo a doutrina, a servidão não pode ter como conteúdo:

- a proibição de alienar (Haegele, Schöner, Stöber, Soergel, Stürmer). Não se pode estabelecer que o proprietário do imóvel vizinho não possa vender o bem, porque isso retiraria um dos elementos essenciais da propriedade.

- e também, muito importante, a servidão não pode ter por objeto uma obrigação de fazer imposta ao proprietário do imóvel serviente. De maneira geral, o conteúdo das servidões envolve uma tolerância ou uma abstenção, e jamais uma obrigação de fazer.

Na Alemanha existe um direito real específico para essas situações, que é o direito de “carga real” (Reallast), que seria mais ou menos uma servidão com conteúdo de fazer.

O que nós tínhamos no CC/1916 mais semelhante a isso era a ideia da renda constituída sobre imóveis, em que se impunha a alguém o dever de fazer alguma coisa por conta do direito real.

Hoje não admitimos que se imponha uma obrigação de fazer. No entanto, é admissível que se estabeleçam alguns deveres acessórios à servidão. Esses deveres não são o conteúdo central da servidão, mas sim um acessório para vincular o proprietário do imóvel serviente, como por exemplo, o dever imposto consensualmente ao proprietário do imóvel serviente de conservar os equipamentos da servidão. Em princípio não lhe cabe isso, mas eles podem estipular.

No caso de haver o estabelecimento de algum dever acessório – uma obrigação positiva que não tem origem na lei, mas está intrinsecamente ligada ao objeto mesmo da servidão – isso deve constar do registro da servidão, porque vai vincular os adquirentes do bem.

Agora, se a obrigação que há para o proprietário do imóvel serviente de originar lei, ou se ela é implícita, aí então não deve constar do registro, porque, novamente, isso é uma decorrência da própria lei.

Tal não ocorre se a obrigação que há para o proprietário do imóvel serviente tem origem na lei, ou se é implícita (por exemplo, a obrigação do proprietário do imóvel serviente de conservar a construção, nas servidões de meter trave). “Servidão com escopo industrial”

Algo que não se discute muito no Brasil, mas é bastante comum na lei estrangeira é a servidão com escopo industrial – aquela que tem por objeto a extração de materiais do imóvel serviente empregados em atividade industrial desempenhada no imóvel dominante, por exemplo, água, minerais e madeira. Em princípio isso é possível, segundo a doutrina estrangeira, desde que os materiais sejam empregados exclusivamente na indústria situada no imóvel dominante e em nenhuma outra.

Pode uma servidão afastar uma regra de direito de vizinhança?

Segundo Serpa Lopes, sim, desde que a regra de direito de vizinhança em questão seja exclusivamente de direito privado. Nesse caso admite-se que se afastem entre aqueles proprietários os direitos de vizinhança em questão.

E segundo o STJ (RESP 425), a servidão também pode ser submetida a termo ou condição e ser registrada normalmente.

Em qualquer caso, na instituição da servidão o título deve indicar com clareza qual é o objeto e quais são os limites da servidão, e isso deve ser objeto de qualificação pelo registrador. Ao receber o título constitutivo da servidão, o registrador deve analisar: a vontade das partes de efetivamente constituir servidão; se aquilo é uma servidão realmente; qual o seu conteúdo; e sobre quais imóveis incide essa servidão. Isso tem que ser definido com clareza no título.

Quanto aos imóveis que são objeto de servidão

O imóvel dominante e o imóvel serviente sempre têm que ser precisamente individualizados.

Admite-se que a servidão incida sobre parte do imóvel (desde que parte fisicamente determinada – não se admite onerando fração ideal), mas também sobre o imóvel inteiro.

Na servidão de passagem é preciso descrever o caminho da passagem?

Não, é necessário descrever e exigir a especialização disso, se as partes quiseram, pela sua vontade, limitar o exercício dessa servidão a um trecho do imóvel. Nada impede, se o proprietário do imóvel serviente nisso consentir, que o proprietário do imóvel dominante possa passar em qualquer lugar. Nesse caso, o que se tem é um direito de servidão de passagem que onera o imóvel como um todo.

Mas, se eles optam por localizar no solo onde vai se dar o exercício de direito dessa servidão, ele tem que ser delimitado com precisão e enviado para o Registro de Imóveis juntamente com uma planta, mural descritivo, ART, etc. Nesse caso exige-se – de acordo com reiterada jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – que a especialidade seja atendida tanto em relação à servidão em si quanto em relação ao imóvel que vai ser onerado. Pela descrição que está na matrícula e pela que consta na servidão é possível que o registrador possa encaixar a servidão dentro do imóvel, caso contrário, não é possível o registro da servidão.

Então, não vai ser possível retificar o imóvel uma vez que ele é propriedade do sujeito que está sendo atingido pela servidão. Por isso que a retificação de área exige como legitimado ativo um interessado, e não necessariamente o proprietário. É claro que ele vai ter uma despesa que pode não ser do seu interesse arcar, mas, em princípio o titular do direito de servidão que não pode ser registrado porque a descrição não é compatível poderia dar início à retificação do imóvel serviente e a seguir possibilitar o registro da sua servidão, porque ele é interessado nessa retificação.

Segundo a doutrina estrangeira predominante, uma mesma servidão pode beneficiar mais de um imóvel dominante. É a situação, por exemplo, de uma passagem que envolve vários imóveis em fila, sendo que o último chega na via pública. É possível ter uma única servidão onerando esse último imóvel e beneficiando todos os demais.

É possível a constituição de servidão sobre imóvel próprio?

Outra questão tradicional é sobre a possibilidade

242 ou não de constituição de servidão sobre imóvel próprio. Conforme princípio que vem do Direito Romano, nulla res sua servit, ou seja, não pode haver servidão sobre coisa que já é sua.

A doutrina alemã tradicional também entende que não é possível essa servidão sobre imóvel próprio, porque falta consenso ou acordo jurídico real entre proprietários, o que seria requisito da constituição da servidão. Não se pode fazer acordo consigo mesmo. Mas a jurisprudência alemã há algum tempo vem admitindo ao proprietário de um imóvel constituir um direito real de garantia sobre ele em seu próprio benefício.

No Código Civil Francês exige-se também o pertencimento a outro proprietário, e o nosso Código Civil também diz que necessariamente a servidão “grava o prédio serviente, que pertence a diverso dono” (art. 1378). E há uma decisão do STJ (RESP 117.308) também no sentido de que não se admite a servidão sobre bem próprio, quer dizer, a servidão sobre bem próprio não se constitui.

No entanto, Pontes de Miranda sempre defendeu que era possível a constituição de servidão sobre bem próprio. Para ele não seria lógico entender que quem vá parcelar seu imóvel para vender a terceiros não possa instituir servidão sobre as unidades resultantes, se disso precisar para manter o acesso às demais.

O que ocorre no caso de divisão dos imóveis?

Se acontecer a divisão de imóveis, ela não pode prejudicar o imóvel dominante. Não se pode restringir qualquer direito do proprietário do imóvel dominante porque houve a divisão do imóvel serviente. Se a divisão se dá quanto ao imóvel serviente, todas as parcelas seguem gravadas, salvo se a servidão incidia sobre parte certa.

Por outro lado, se a divisão se dá quanto ao imóvel dominante, esta deve ser transportada para todas as novas matrículas, e haverá uma “servidão solidária” (Staudinger); mas é direito do proprietário do imóvel serviente que seu ônus não aumente.

Em qualquer caso em que houver divisão a lei não exige anuência dos proprietários. Se houver a divisão e

algum deles se sentir prejudicado, deverá ir ao Judiciário para fazer valer o seu direito contra o outro.

Pode o titular de direito real limitado constituir servidão?

Pode o usufrutuário, o enfiteuta ou superficiário constituir servidão sobre seu bem em favor de outro sob seu direito? A doutrina estrangeira, de maneira geral, entende que sim, respeitando-se as peculiaridades de cada direito real. Por exemplo, se o usufrutuário constitui servidão, esta ficará condicionada ao tempo de duração do usufruto. Mas o nosso Código Civil exige expressamente a declaração dos proprietários, portanto, ele parece não admitir que os titulares de outro direito real possam constituir sobre seu direito a servidão predial.

A extinção da servidão predial

A extinção da servidão pode se dar:

- pela vontade do proprietário do imóvel dominante (caso da renúncia à servidão), ou por acordo entre ambos (caso do resgate da servidão);

- pela reunião da propriedade dos dois prédios na mesma pessoa.

Podemos verificar essas duas hipóteses diretamente no cartório. Pela análise do título podemos entender que, de fato, a servidão está extinta e pode ser cancelada.

Mas há outras hipóteses, que dependem de ordem judicial para o cancelamento:

- pelo implemento de condição resolutiva; - pela cessação de utilidade ou comodidade para o prédio dominante;

- pela supressão das obras por efeito de contrato ou de título expresso;

- pelo não uso por dez anos contínuos. Se não houver lide quanto a essas hipóteses, e se houver um acordo entre as partes reconhecendo, por exemplo, que de fato há o não uso por dez anos, portanto as partes estão de acordo quanto à extinção, o registrador também pode cancelar diretamente. Se não houver acordo, então deverá haver intervenção judicial. A servidão segue valendo até que o registro seja cancelado. Se o imóvel dominante estiver hipotecado, a extinção da servidão dependerá de anuência do credor, porque ele vai ser prejudicado por isso. Para concluir, há uma decisão da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo (Processo 100.09.129885- 8) no sentido de que não é possível o cancelamento de servidão por meio de notificação seguida do silêncio do proprietário do imóvel dominante.

Usucapio libertatis – extingue a servidão?

O que é Usucapio libertatis? A usucapião tem o condão de extinguir uma servidão que tenha sido registrada anteriormente no imóvel serviente? Quer dizer, quem adquire o bem por usucapião adquire ele livre e desembaraçado? Ou será que tem que continuar respeitando aquela servidão, ou hipoteca, ou qualquer outro direito real limitado que antes onerava o imóvel?

Eu não encontrei decisão judicial a respeito. Na doutrina, Luciano de Camargo Penteado e Leonardo Brandelli entendem que a usucapião pode sim extinguir a servidão desde que o exercício da posse pelo usucapiente se dê ostensivamente, de maneira incompatível com o respeito à servidão. Ele exerceu a posse sem respeitar a servidão, como se não existisse servidão. Nesse caso, segundo os autores, seria possível a extinção da servidão.

E como fica o registro? Se houver o registro da usucapião e, anteriormente, houver um registro de servidão, é temerário o cancelamento sem uma ordem judicial específica, ou ao menos sem apreciação específica desse ponto na sentença de usucapião. Não é possível presumir que a usucapião se deu de uma maneira ou de outra, por isso eu não cancelaria.

E se eu fosse, por exemplo, abrir uma nova matrícula a partir daquela anterior, eu transportaria a servidão para a nova matrícula.

E há o cancelamento, que vem com ordem judicial específica reconhecendo que essa usucapião, especificamente, foi realizada com os efeitos da Usucapio libertatis.