PARA SEMPRE ANA - CAPÍTULOS 1 E 2

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– Ainda é muito cedo para afirmarmos isso. Mal cheguei aos setenta e quatro anos e quatro meses – graceja e emenda uma risada franca. Enquanto a maioria dos convidados aproveita o momento de descontração para conversas amenas, Irineu – para a infelicidade de Clara, sua mulher – permite que o padre, adversário frequente em contendas filosofais, compartilhe a mesa com eles. Quando encontra um interlocutor animoso, o delegado é capaz de passar horas em devaneios surreais. Certa vez, durante um almoço de domingo na casa do sogro, encetou uma discussão com o cunhado. Eles largaram as esposas de lado e, munidos de muita disposição argumentativa, despenderam a tarde debatendo sobre o nada. O pároco, por sua vez, tem como passatempo formular teorias que supostamente provam a insanidade dos ateus, os quais iguala aos agnósticos. Simpatizante da doutrina destes últimos, Irineu não aprecia tal comparação. Também não se regozija ao ter suas ideias confrontadas por meros dogmas religiosos. “Exijo bases racionais”, diz sempre. Clara preocupa-se, pois sabe que ambos costumam inflamar-se conforme avançam em um embate verbal. E, no auge de uma eventual discussão, ninguém será capaz de deter a impetuosidade desses defensores da verdade. Após poucos minutos de uma agradável e trivial prosa, padre Motta provoca: – Aquela tese burlesca sobre realidade concreta e ilusória ainda serve ao seu espírito? – pergunta, com seu provocativo falar empolado. – Burlesca aos cegos – diz Irineu, fazendo do cinismo uma afirmativa. – Cego por ver na Bíblia a janela para a realidade? Clara, vislumbrando a confirmação de seus temores, levantase e pede licença para cumprimentar algumas amigas. No mesmo instante, os anfitriões convidam Gertrudes e a neta para conhecer o interior da casa. O grupo se afasta em direção à porta social e

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