Invisível ao Toque

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PRÓLOGO Svek está no ateliê, e sei que ela não quer que eu vá visitá-la no trabalho. Tudo bem. Quase na hora de ela sair, o céu oferece as cores quentes de um início de entardecer. Ao som de uma banda que toca ao vivo na praça, relaxo. Permito-me usufruir da música, da sensação de estar vivo, como alguém que continua desfrutando do sonho após acordar, na esperança de poder sentir na pele o mundo que foi criado, mesmo que seja apenas uma ilusão, mesmo que a realidade lhe obrigue a ficar de pé e viver o que não foi sonhado. O que não pode ser vivido. − Zachary, quer pipoca? Morgana colocou-se ao meu lado, com um sorriso meio torto. Não respondi. − Está de dieta? – provocou. Depois fitou a igreja a nossa frente, do outro lado da rua. – Sei que seguiu o médico de novo. Quer fazer amizade com ele? – Riu e encheu a boca de pipoca. Eu odiava quando ela fazia aquilo. − Não comece, Morgana. Você não imagina o quão difícil isso está sendo isso. Olhar pra pessoa que irá furtar tudo de mim, que irá ter a minha ajuda pra tirar tudo o que tenho, tirar minha vida... − Tirar sua vida? – encarou-me. – Não, não, não, muito pelo contrário. Sinceramente, não sei o que está esperando. Preciso explicar novamente os fatos? Não se esqueç... Morgana parou de súbito e esperou o casal de turistas passar por nós. Começou a sussurrar, movimentando minimamente os lábios: − Svek tem 20 anos. − Eu sei. − Sabe? – Arqueou as sobrancelhas. – Não parece. Respirou fundo e começou a mexer no saquinho de pipoca, como se estivesse procurando uma em especial. − Garoto mimado. – Resmungou.

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Em seguida, começou a caminhar para longe. Em poucos instantes, misturou-se na multidão de turistas. Eu permaneci ali, imóvel, lembrando-me da primeira vez que Svek me encarou, seus olhos nos meus, a respiração descompassada... Pode parecer clichê, mas nela vejo a materialização da felicidade. É como se eu pudesse ver meus sonhos deslizando em seus lábios, brilhando em seus olhos, escorrendo pelo pescoço, e não tem como negar que está nela, em cada centímetro de seu corpo, o fragmento de amor que necessito, porém, mesmo assim... mesmo assim... somos um erro quando estamos juntos. Ela nem imagina o mal que causo e o quão egoísta sou por ser incapaz de dizer: “Adeus”. É doentio, mas... mas eu a amo. A banda, agora, toca “I was broken” do Marcus Foster, apenas voz e violão: Stuck between the burning light and the dust shade. Comecei a caminhar em direção ao ateliê, para esperar Svek do lado de fora. O som da melodia ainda me alcançou, as lembranças pesando, fazendo-me sentir como um pássaro preso. Preso na própria vida.

In my time I've melted into many forms From the day that I was born, I know that there's no place to hide Stuck between the burning shade and the fading light, I was broken, for a long time, but It's over now

− Eu estava quebrado – continuei a melodia −, por um longo tempo, mas acabou agora.

E esse “agora” começou há alguns meses atrás.

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CAPÍTULO 1

Deito-me na cama, apago a luz do abajur e fecho os olhos: ”Hora de sonhar, Svek”. De certa forma, sei que um novo mundo acorda dentro de mim, não tão feliz como queria. Sonhos vívidos de uma época que nunca tive vontade de pesquisar, e tudo que sei é por meio de filmes que retratam a Idade Média. Vestes, mobílias, cortes de cabelos, coisas bem diferentes do que convivo hoje em dia. Às vezes, acho que não são apenas sonhos e sim lembranças. Mas, se fossem, certamente eu usaria o linguajar da época ou até mesmo o idioma do local, já que o ambiente tem um ar europeu. Porém, como falar de uma maneira que não sei? Não posso, o cérebro é incapaz de criar diálogos assim, ou seja, é só um sonho! Mas o fato é... Hmm... O fato... Que fato? O que eu estava pensando mesmo? Ah, nossa! Só sei que estou com muito sono. Sei que terei o mesmmm... Mesmo... Sonho... De sempre.

− Senhorita Victória... – murmurou uma maltrapilha levantando-se da cama tosca. De certa forma, sei que Victória é o meu nome. Sou eu, em todos os sonhos sou eu. − Calma, calma... – Corri na direção da mulher. – Não se levante tão depressa, Maria. − A senhorita é um ser enviado por Deus para nos curar. – Sorriu. – Não sinto mais as dores na cabeça. Naquele instante, um garoto surgiu na porta estampando seu enorme sorriso banguela. − Senhorita Victória, minha mãe está dando muito trabalho? − Claro que não, Thiago. Ele segurou a senhora pelo braço, despediu-se agradecendo e levou-a em direção à porta. Assim que eles saíram, fui até a caldeira. Queria certificar-me de que as ervas estavam no ponto ideal para serem engarrafadas. O ranger da porta me fez olhar abruptamente para trás. Um jovem rapaz, com roupas de padre, entrava na sala. Trazia na fisionomia uma expressão assustada.

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− Senhorita... − murmurou. – Senhorita... – Os olhos negros me encaravam como que submersos em pensamentos. – Sente-se bem, senhor? Caminhei em sua direção e segurei-lhe os ombros, impedindo que se encurvasse por completo. Ele fechou os olhos. Os lábios perderam a coloração rosada, e ganharam uma expressão de dor. − Dá para me dizer o que sente? – insisti preocupada. Ele recompôs a postura. – Eu... eu estou... bem. – Abriu os olhos e respirou fundo. – O que foi isso, bruxa? – disse, como se a palavra ”bruxa” arranhasse a garganta. Sacudi a cabeça e me afastei. – Se o senhor não se alimenta de forma correta, não me culpe pela sua fraqueza. O jovem suspirou e desviou os olhos, fitando as prateleiras no canto da sala. Forçou a visão para conseguir decifrar as palavras escritas nas garrafas de remédios e fez uma careta ao ver a caldeira. − Diga-me o que quer – pedi em tom ríspido. Ele cruzou os braços. − Seu trabalho, embora não concorde, é admirável e... − Diga-me apenas o que quer. Ele abaixou a cabeça e riu. Foi então que um gemido surdo interrompeu a conversa. Vinha da direção em que o garoto de mais ou menos 15 anos repousava. Eu havia o encontrado no dia anterior, caído na mata com a cabeça ferida. Provavelmente deveria ter tropeçado por cima das pedras. Até então, não havia acordado. Caminhei em sua direção. − Shhh... Está tudo bem, está tudo bem – murmurei, para tranquilizá-lo. O padre veio atrás de mim. Fingi não perceber a sua aproximação e afastei o cabelo da testa do rapaz para examinar o ferimento. − Não imaginava que fosse curandeira de ricos também – disse, o timbre da voz ácido. – A família dele não irá mudar de opinião só porque você...

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− O que tem a família dele? – Interrompi. – Encontrei-o ferido na mata. − Encontrou ou já estava com ele? O que faziam os dois na mata? − Insinua algo? – Ergui o queixo. – Apenas ajudo as pessoas e não as julgo sendo ricas ou pobres, ao contrário... − Ao contrário...? – Esperou ansioso pelo o que iria dizer. Mantive-me quieta, trancafiando uma grande frase mal-educada na garganta. − Ótimo. – Ergueu as sobrancelhas. – Bom, a inquisição está chegando e... − Veio aqui me ameaçar? Ele sacudiu a cabeça. − Não. O que me trouxe até aqui não tem nada a ver com ricos, pobres, igreja, nada. – Encolheu os lábios. – Nada além de mim – sussurrou. − Não entendi. − Você muda, apenas com um olhar, tudo o que sou por dentro e isso... – Juntou as sobrancelhas. – Isso é embaraçoso pra mim. – Abaixou a cabeça. Ele retorcia as mãos em sinal de nervosismo, mas por quê? Levantei as mãos próximas ao rosto e percebi que tremiam. Talvez, estivesse tão ou mais nervosa do que ele. “O que está acontecendo comigo?” Na mesma hora escondi as mãos, levando-as para trás do corpo e segurei uma à outra com muita força. O padre voltou a me encarar: – O que você fez comigo? Girei os olhos. − Veio até aqui para se certificar de que não fiz nenhum feitiço contra o senhor? – Sorri e apontei para o rapaz ferido. – Tenho coisas mais importantes para fazer em vez de enfeitiçar padres. − Creio que a educação passou bem longe da senhorita. − Do senhor também. O jovem padre entortou o canto da boca e esboçou um arremedo de sorriso. – A família deste rapaz já fez várias bruxas morrerem pela inquisição, sabia? Tentei não demonstrar o nervosismo.

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− Acredito que essas mulheres eram apenas amantes de alguém da família deles – eu disse. – O senhor sabe o tipo de mulheres que normalmente são mortas pela inquisição, não sabe? − Mas a senhorita é uma verdadeira bruxa. − Ser bruxa é cuidar das pessoas? Ele se mostrou surpreso com a pergunta e mordeu o canto da boca, pensativo. De repente, tudo se tornou escuro, mas a cena continuava a desenrolar, como se fosse apenas uma memória sem imagens. − Anjo – uma voz rouca ressoou. – A mais bela – o garoto ferido murmurou como que sem forças. − Bom saber que está bem – eu disse a ele. – Mas... Creio que não seja um anjo – sorri. − Mas é a mais bela. − O que disse? Padre? Uma música praticamente inaudível começou a tocar.

With the lights out it's less dangerous Here we are now, entertain us I feel stupid and contagious Here we are now, entertain us A mulatto, an albino A mosquito, my libido A denial, a denial, a denial A denial, a denial, a denial A denial, a denial, a denial

Acordei com Nirvana tocando Smells Like Teen Spirit. − Ahh... – murmurei, enquanto nocauteava o impiedoso destruidor de sonhos: meu despertador. – Bom dia, Kurt Cobain, por que você tem que ser sempre o certinho e pontual? – choraminguei. – Hoje é sábado.

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Com os olhos ainda fechados, deduzi o dia ensolarado me esperando lá fora, uma vez que o lado esquerdo do rosto queimava, obrigando-me a levantar e a curti-lo. Talvez se chovesse, eu me sentiria livre para dormir até mais tarde. Queria que chovesse. Na verdade, queria que caísse uma goteira certeira sobre o despertador. Que ele pifasse e não funcionasse nunca mais. Assim hibernaria, por mais que fizesse sol. Não tinha o porquê de pular da cama, nada me fazia explodir de alegria. Quisera eu inflar o coração como o milho da pipoca ao estourar. Um coração que infla nunca mais volta ao seu tamanho original, e isto não é mal de Chagas, é mal de amor. Moro na cidade onde o sol quente arde, enquanto o vento, frio, corta como lâmina. Só de pensar no inverno, o corpo já se arrepia. Difícil até de acreditar que moro em um país tropical como o Brasil, residindo na pequena cidade de Campos do Jordão. Abri os olhos, e as imagens vívidas do sonho desta e de outras noites surgiram diante de mim. Sempre os mesmos personagens, sempre as mesmas ações. É como se cada palavra e gestos tivessem sidos coreografados. Um filme em que se não pode mudar o final. E que final triste. Talvez devesse procurar um psicólogo para tentar me livrar desses pesadelos que, por momentos, são devaneios lindos e românticos, mas em outros momentos tão dolorosos, cruéis... Somente o vazio me aguarda ao despertar. Nunca contei para alguém sobre os sonhos, apenas detalhes básicos, como: “Sonhei que morri, sonhei que me perseguiram, sonhei com um homem”. Na verdade, não os levo muito a sério, acho uma baboseira que só serve para distrair o cérebro enquanto durmo. Cobri os olhos com o braço para me proteger da luz do sol, mas... “PLIIIIMM.” “Que barulho é esse?” – Sentei-me na cama e abaixei o som do despertador. – “Se moro sozinha e estou no quarto, teoricamente não deveria existir nenhum barulho em outro cômodo, então...” O coração acelerou. “Ladrão, meu Deus, um ladrão aqui dentro”. A garganta se fechou de temor. Com os pés descalços, tentei alcançar os chinelos jogados embaixo da cama. – “Vamos, vamos, cadê vocês?” – Nervosa, continuei a arrastar os pés no piso gelado. “Droga.” Inclinei a cabeça para encontrá-los e, com a mão, arrastei na direção dos pés. Calcei-os. “Esse barulho vem da cozinha”, concluí e rodeei os olhos pelo quarto tentando encontrar algo que pudesse servir como arma. Levantei, e o mundo girou. Sentei, levei as mãos até a cabeça. Por ter levantado rápido demais, uma forte tontura me abateu. Deslizei as mãos até a nuca e respirei fundo. – Ok. – Voltei a fitar todo o quarto. –

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Não é possível que não haja nada que sirva nessa bagunça. – Mordi os lábios. Levantei-me cautelosa e, com passos leves, caminhei até o corredor. A respiração descompassada, as pernas bambas. Óbvio que deveria fugir pela porta dos fundos. Fugir? Não, não, não. O rosto se queimou de raiva só de pensar em agir como covarde. Caminhei na direção da cozinha até que... − Custa você organizar as panelas no armário? − Mãe? – Soltei um suspiro de alívio. – O que você faz...? − Parece que montou uma armadilha aqui – continuou a resmungar, enquanto pegava as panelas, tampas, potes e toda a bagunça jogada no chão. – Só faltou saírem ratos do armário, nada mais. Rodeei os olhos. – Ah, mãe, relaxa! – Estiquei o corpo, me espreguiçando. – É cedo pra estresse. − Cedo? − Arqueou as sobrancelhas. Ri. − Pra um sábado sim. Aliás... O que faz aqui hoje? Por que não me avisou que viria? Ela se levantou segurando uma panela de pressão e quando foi responder... mais panelas caíram do armário. − Viu? – Zombei. – Se tivesse avisado que viria, nada disso teria acontecido e eu... – bocejei − eu teria desmontado a armadilha. Minha mãe meneou a cabeça negativamente, mas com um sorriso nos cantos dos lábios e respondeu: − Bom, agora estou TENTANDO cozinhar alguns pinhões e você sabe: já que a senhorita não vai me visitar em casa... – Deu de ombros. – A montanha vem até Maomé. É, realmente estava devendo uma visita a ela, aliás, meu estômago estava supernecessitado de comida de mãe. − Então “montanha” – eu disse −, a “Maomé” aqui está muito atarefada no escritório, mas eu ia te visitar na semana que vem. Ela parecia nem ter me ouvido e abriu a geladeira.

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− Olha essa geladeira, está uma bagunça. – Sacudiu a cabeça. – Isso que dá você morar sozinha. – Esticou o braço e, em seguida, tirou da geladeira uma bandeja de presunto. – O que é isso? − Presunto. − Com a validade vencida há um mês? − Continua sendo um presunto. Ela ergueu uma das sobrancelhas. − Uma mulher de 150 anos continua sendo uma mulher. – Dei de ombros com ar de deboche. − Hahaha! – riu de maneira desdenhosa. – Pelo visto, acordou de bom humor. − É... – caminhei até a mesa e puxei uma cadeira. – Tive um sonho ruim esta noite. – Sentei e comecei a olhar as pontas duplas no cabelo. − Isso se chama pesadelo, querida – argumentou, enquanto continuava a mexer na geladeira. Plantei o cotovelo na mesa e apoiei o queixo no punho. – Mas hoje foi sonho. É como se fosse apenas o primeiro capítulo de uma novela. − Hummm. Não consegui decifrar se esse “humm” significava interesse no que dizia, ou se era um “humm” do tipo “Eca... Que nojo”. − Eu sei o final da história. Ela fechou a geladeira e torceu o nariz. − Então diga, querida. Meus olhos se fixaram na foto de Caíque, na mesinha de canto. Um véu de tristeza deslizou sobre mim. Até quando iria me sentir culpada? − Já faz tanto tempo, filha – dizia ela, aproximando-se. − Ah, mãe... Se pudesse voltar no tempo... – Deixei a voz se perder no ar, enquanto as lembranças surgiam. Foi numa noite, três anos atrás. Uma chuva intensa caía e respingava contra a janela do restaurante em que eu e Caíque – meu namorado, na época, embora em vias de se tornar um ex,

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bem nessa noite – estávamos. Íamos para lá sempre que o nosso time de futebol ganhava um campeonato. − Svek, você está tão distante. O que houve? – Caíque estreitou os olhos azuis, enquanto bebericava o suco. Olhei para a janela antes de encará-lo, as palavras queimando na garganta. − Svek? – insistiu. − Caíque, precisamos conv-v... – limpei a garganta – conversar. Ele gesticulou com a mão para que eu continuasse; em seguida, voltou a cortar o frango com crosta de queijo. – Estamos conversando, meu amor. Respirei fundo e comecei a jogar a comida de um lado para o outro no prato. O nervosismo e desconforto eram nítidos. Queria sair correndo de lá, mas não! Não mais. Não podia prolongar toda essa história. − Eu n-n-não... – Mordi os lábios, descontente por não conseguir dizer uma frase inteira sem gaguejar. Caíque me olhou através da pestana. – O que está acontecendo? − E-eu... Eu não encontro as palavras. Ele sorriu, levantou a ponta da toalha de mesa e fingiu procurar algo por debaixo. Em seguida me olhou. – Tento encontrá-las, mas você sabe pelo menos com qual letra elas começam? – Ainda com um sorriso nos lábios, voltou para a sua posição inicial, encarando-me. Fechei os olhos, enchi os pulmões de ar e disparei: − Quero terminar. – As palavras saíram cuspidas da boca, como um pedaço de brasa que a boca precisa eliminar. − Como... O quê? Por quê? O que eu fiz? Abri os olhos, e as mesmas gotículas de água que escorriam pelo vidro da janela pareciam brotar em seus olhos. − Eu não... V-v-você merece alguém que te ame de verdade e...

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− O que você quer dizer com isso? – Juntou as sobrancelhas. – Você não me ama? É isso?! − Não, digo, não... é que você não me entendeu, eu... eu acho... − Responda à pergunta. − Você é um amigo, Caíque, u-um grande amigo... − É outra pessoa – concluiu. − Não – gritei. – Não tem outra pessoa. E-eu não posso amar alguém, sendo que não me encontro em ninguém. Caíque mordeu os lábios e abaixou os olhos, numa clara expressão de dor. − Você respondeu à pergunta – sussurrou. − Caíque... Ele se levantou, jogou uma nota de R$ 50,00 sobre a mesa sem me olhar por nenhum instante. − Tenho certeza do que sinto. De quem amo. Vou provar que te amo. − Você não precisa provar nada. – Enquanto eu dizia essas palavras, Caíque caminhava na direção da saída, os ombros caídos como um soldado que perde a guerra. Já eu, não consegui mover nenhum músculo. Fiquei ali, travada diante do nosso jantar. Apenas eu e o prato de frango com crosta de queijo. Naquela noite me embriaguei. Queria anestesiar a consciência, mesmo sabendo que Caíque iria se recuperar logo do nosso término. No dia seguinte, logo cedo... o celular tocou. Era Sammy, uma amiga de infância. − Humm, o-o-o... – bocejei. – Oi – atendi sonolenta. – Notícia ruim pra me contar? – Fitei o relógio. – Única notícia ruim é você confirmar que está me acordando às 7 horas de um domingo – zombei. Mas o que Sammy me dizia tirava cada milímetro de chão. − Comm... Como? Caíque o quê? – arregalei os olhos. Caíque se suicidara. E, de algum modo, me matara, ao menos por dentro. Um coração que já agonizava e, com um golpe preciso, acabava de ser exterminado. Caíque havia jogado o carro contra a ribanceira − aparentemente, um acidente. Não para mim.

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O dia passou em um segundo, e logo amanheceu outra vez. Não conseguia fazer e dizer nada além de chorar, chorar e chorar. No cemitério, sentia as pernas fracas, o corpo doía, a cabeça girava. De novo estava embriagada, só que desta vez por lágrimas. Caminhava ao lado do caixão, vez ou outra alguém surgia e dava os pêsames. Na cabeça de todos, eu ainda era a namorada e, agora viúva, não a ex. Caíque, em questão de minutos, passou de namorado, para ex, e por fim... morto. Como queria voltar no tempo; assim não teria terminado com ele. Ou então nem teria aceitado o pedido de namoro, ou quem sabe nem teria lhe direcionado uma palavra sequer; assim nós não seríamos nem amigos, nada. Eu não existiria em sua vida − assim que deveria ser. Cautelosa, minha mãe se aproximou e questionou se nós havíamos brigado; isso justificaria em parte o ocorrido. Apenas a encarei. Temia que mais alguém, além de mim, me condenasse pelo suicídio. Talvez não tivesse seguido o protocolo de como terminar um relacionamento. Um verdadeiro crime. A mãe de Caíque logo se aproximou também e, aos prantos, me abraçou forte, o rosto molhado tocou meu pescoço e ombro. Fiquei constrangida, afinal de contas, como deveria agir? Matei seu filho, não com minhas próprias mãos... E sim pelo coração. Ele ainda é uma memória recente, não que pense nisso todos os dias, mas a memória não tem muito do que se lembrar nesses últimos anos. Não tenho feito muita coisa de valor. Nem por mim, nem por ninguém. Talvez devesse sair mais, tirar essas lembranças da cabeça, mas não. Desde então, a vida tornou-se um suicídio diário.

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