Revista Grandes Temas 02

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Grandes Temas

Universidade Anhembi Morumbi Curso de Jornalismo Número 02 | 2018.1 ISSN 2525-6939 Publicação sem fins lucrativos Não pode ser comercializada

HISTÓRIAS DE

SUPERAÇÃO

LIXEIROS E GARIS superam resíduos e preconceitos TERAPEUTAS OCUPACIONAIS Gente que vai além dos limites

E MAIS Quebrando tabus Mulheres programadoras Fertilização in vitro Filhos da esperança Menstruação Fluxo que pode salvar vidas Dormir bem O sono ideal

E AINDA Educação Realidade virtual Cultura Uma banca diferente Aventura 5 países de bicicleta



Universidade da superação Prof. Dr. Paolo Tommasini

Paolo Tommasini é Reitor da Universidade Anhembi Morumbi

Ultrapassar as expectativas. Ser melhor hoje do que foi ontem. Resolver problemas. Transpor as barreiras. Exceder as expectativas. Ir além dos limites. Sobrepujar. Solucionar. Vencer... Cada vez mais expressões assim permeiam nosso dia a dia. Elas têm sido um marco dessa era. Ainda mais nestes tempos difíceis e de mudanças constantes e vertiginosas. Tempos de economia incerta, de inovações tecnológicas cotidianas, de hiper competição em todos os mercados – tempos de uma sociedade cada vez mais fluída e em ebulição, o que exige das empresas buscar pessoas que se superem a cada dia. Superação. Essa é a palavra chave do nosso dia. É o termo que marca este ainda início de século 21, cujo signo é o da transformação rotineira, que requer, de todos, mais preparo, mais formação e mais capacidade de saber fazer, de realizar. Pois se, para alguns, esse novo “paradigma” social é uma novidade, para nós que convivemos numa grande e criativa universidade, a palavra “superação” faz parte do nosso cotidiano há muito tempo. Quem vive na Universidade Anhembi Morumbi já sabe que “superar-se” é o nosso dia a dia. É a superação que percebemos na luta diária de nossos estudantes que se superam, muitos deles, ao conseguirem aliar trabalho, família, amigos a uma dedicação cada vez maior nas disciplinas, nas pesquisas, nos projetos, nas aulas e nas avaliações. São aqueles nossos bons e dedicados alunos que, muitas vezes, varam dias e noites, fins de semana e madrugadas, para dar conta das leituras, dos resumos, dos exercícios, das atividades práticas, do trabalho de campo... É a superação também dos nossos professores, que se desdobram na elaboração de planos de ensino, pensados cada vez mais sob a mentalidade

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da aprendizagem ativa. Que se dedicam horas e horas no preparo de aulas que consigam unir o melhor das teorias, dos conceitos, dos autores consagrados, modernos e contemporâneos, com as mais bem desenhadas e atuais atividades práticas e exercícios, que buscam simular problemas que os profissionais se deparam hoje e vão enfrentar, cada vez mais, no mercado de trabalho exigente. São professores que consomem não menos horas para formatar avaliações cotidianas que visam medir o grau de assimilação do estudante para, assim, suprir as lacunas desse fascinante e complexo mundo do ensino e da aprendizagem. E, claro, é a superação cotidiana dos nossos coordenadores, dos nossos diretores, da nossa reitoria... Enfim, de todos os nossos colaboradores que trabalham arduamente, todos os dias, para que a vivência acadêmica e a experiência do estudante seja cada vez mais integra, rica, diversificada e completa. É por isso que esta segunda edição da revista Grandes Temas traz como mote básico essa palavra tão marcante neste século 21: a superação. Reunimos aqui reportagens pensadas e desenvolvidas por nossos estudantes, orientados por professores, que investigaram histórias, narrativas e exemplos de vida de quem se supera no dia a dia. De brasileiros e brasileiras que, muitas vezes longe dos “holofotes”, não se contentam com seus limites e vão além. Muito além. Mais do que nunca, acreditamos hoje que é a superação a palavra que define muito do nosso conceito de universidade. Por isso, trabalhamos duro para dar cotidianamente todas as condições – humanas, tecnológicas, estruturais, didáticas e conceituais – para que toda a nossa comunidade acadêmica esteja alinhada a esse esforço diário de superação. É o sentimento que nos une. Boa leitura! 3


Reportar é superar Prof. Dr. Nivaldo Ferraz

Embora o dicionário não faça esse registro, o verbo “reportar” – no sentido de fazer reportagem – é também sinônimo de “superar”. A prática da reportagem é sempre um universo marcado pela superação. E isso ocorre por pelo menos duas características intrínsecas dessa mais nobre atividade do jornalismo, a reportagem, cuja essência é detalhar e interpretar fatos e histórias reais de relevância social. Primeiro porque ao se entregar à atividade da reportagem, o jornalista luta contra, pelo menos, três variáveis limitadoras, que sempre precisam ser superadas. A primeira é a batalha contra o “tempo”. No momento em que se define a pauta, inicia-se aquela ampulheta imaginária, cuja areia vai se esvaindo até chegar ao temido “deadline”, quando a reportagem precisa ficar pronta para ser publicada e consumida, motivo maior de sua produção. Assim, é no tempo muitas vezes escasso, fruto das pressões massacrante do mercado, que o jornalista precisa ser ágil nas apurações, nas dezenas (ou até centenas) de entrevistas, na profundidade das pesquisas, dos levantamentos de dados, na formatação final da reportagem, sempre correndo contra – e nunca a favor – desse inexorável e preciso fator temporal. É sempre uma superação. A segunda batalha é a da luta pelas fontes de informação. Reportagem não é ficção. É um tecido trançado por fatos, dados e histórias reais. Elas devem ser buscadas, investigadas, descobertas, reveladas. E repórter quase nunca têm acesso fácil ou ilimitado a todas as fontes que quer ou que precisa. As informações ficam “escondidas”, propositadamente ou não, frutos de fontes que se tornam “invisíveis” por motivos diversos – da indiferença social à camuflagem do crime. Assim, a apuração é sempre uma busca frenética. É uma corrida de superação. 4

A terceira batalha é a do “espaço”. Jornais, revistas, mídias eletrônicas/digitais têm espaços cada vez mais limitados. A atenção do público idem. É necessário, então, processar uma quantidade enorme de informação apurada e resumi-la num extrato relevante e atraente, numa “gota” purificada que traz o “néctar” do que é mais importante e significante: a reportagem. E isso também é sempre um exercício de superação. Mas se o processo de produção da reportagem é marcado por essa tríade de conjugação do verbo superar, também a matéria-prima do jornalismo é, muitas vezes, uma argamassa de pura superação. Quais são as histórias mais procuradas pelos repórteres no cotidiano das redações? Quaisquer umas? Certamente, não. São as lições de vida. Os exemplos singulares de existência. De gente que, reconhecida ou não, vive histórias relevantes que precisam ser compartilhadas, para que haja evolução social – o ethos da busca jornalística. Pois esta edição que você tem agora em mãos é recheada disso tudo. Sob a orientação precisa de professores, foi produzida por nossos estudantes de Jornalismo que, para tanto, vivenciaram toda a superação necessária para a produção da reportagem. Em paralelo, mostra histórias cotidianas de gente que, embora muitas vezes “invisível”, pratica o verbo superar todos os dias. Esperamos que esses exemplos que trazemos nesta edição – tanto de quem “vê” quanto de quem “é visto” – possa inspirar o fazer jornalístico, que se torna ainda mais necessário neste atual contexto social muitas vezes incerto e de transformações radicais. Em resumo, buscamos reforçar, em toda nossa comunidade acadêmica essa qualidade cada dia mais necessária em todos os níveis, na política, na economia, nas questões ambientais, sociais e de convivência: a capacidade de nos superarmos. Boa leitura!

Nivaldo Ferraz é Coordenador e professor do curso de Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi

Grandes Temas


Sumário

EXPEDIENTE

TCC Garis e Lixeiros

Universidade Anhembi Morumbi Reitor Prof. Dr. Paolo Tommasini Gerente das áreas de Artes, Comunicação, Design e Educação Prof. Me. Renato Tavares Coordenador do curso de Jornalismo Prof. Dr. Nivaldo Ferraz Coordenador Adjunto do curso de Jornalismo Prof. Me. Maria Cristina Rosa de Almeida Revista “Grandes Temas” ISSN 2525-6939 Número 2 . Março 2018 Coordenação editorial Prof. Dr. Nivaldo Ferraz e Prof. Me. Francisco Bicudo Edição executiva Prof. Me. Alexandre Possendoro Direção de Arte e Layout Prof. Me. Ricardo Senise Produção editorial e gráfica Prof. Me. Luiz Vicente de Lima Lazaro

Limpeza urbana de resíduos e de preconceitos 07 Coletor de lixo e distribuidor de sonhos 08 Academia do lixo 10 Coleta seletiva e feminina 11 A vovó do caminhão 14 O legado de um pai coletor 16 Limpeza urbana x insalubridade 18 O futuro da profissão 19 Uma passagem só de ida 20 Com poesia, ele traz alegria para as ruas 22 TCC Terapeutas ocupacionais Marcas da profissão 27 Quanto vale a sua qualidade de vida? 30 Um desafio que pede paixão 37 Reaprendendo a viver 39 Tratando por completo 42 Reportagens Lugar de mulher é... 45 A palavra que resume nossa trajetória é perseverança 48 Realidade virtual: do entretenimento à educação 51 O fluxo vital 54 Nos braços de Morfeu 56 Banca para todos 58 Emanuel Silveira, o viajante à procura de si mesmo 60

A revista “Grandes Temas” é uma publicação experimental, laboratorial e não comercial do curso de Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi. Tem como intuito ser um laboratório de produção jornalística para que os estudantes possam vivenciar a produção e publicação de seus trabalhos desenvolvidos durante o curso. As reportagens aqui publicadas são desenvolvidas pelos alunos, orientados por professores. As opiniões contidas nas matérias assinadas não expressam necessariamente a opinião do curso de Jornalismo ou da Universidade. Essa revista não pode ser vendida por quaisquer meios ou ter comercialização publicitária. Sua circulação restringe-se aos campi da Universidade. Todos os direitos reservados. Não pode ser reproduzida sem a autorização expressa dos autores das reportagens e dos responsáveis pelo curso de Jornalismo da Universidade. Essa publicação visa contribuir para a formação dos estudantes e fortalecer o diálogo social em prol da cidadania.

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As reportagens a seguir foram produzidas como Trabalho de Conclusão de Curso. Componentes do grupo Beatriz Camargo Bianca Bludeni Gabriela Clemente Lídia Ferreira Livia Moreira Marina Godoy Orientação Prof. Me. Alexandre Possendoro (7º semestre) Prof. Me. Francisco Bicudo (8º semestre)

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Limpeza urbana de RESÍDUOS e de PRECONCEITOS Especialistas afirmam: a profissão sofre preconceito, mas é fundamental para a sociedade Lívia Moreira

Arquivo pessoal

Fernando Braga atuando como gari na USP em 2008.

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filme Que Horas Ela Volta? (2015), retrata a relação desigual de uma empregada doméstica com uma família de classe média . Não há economias, por parte dos parões, de “por favor” nem “obrigado”. No entanto, o quarto da empregada fica nos fundos, sem ventilação; sorvete, só o da marca popular. Tereza Ferreira dos Santos, psicóloga social do trabalho, em seu livro “Coletores de Lixo: Ambiguidade do Trabalho na Rua”, chama essa relação de inclusão pela exclusão. “A inclusão vem quando o serviço é urgente, e a exclusão, quando o apreço por ele é de uma cesta básica especial no fim do ano ou um sorvete de vez em quando”, comenta. Psicossocialmente, a mensagem é: a prestação do serviço vale tanto quanto estes “presentes” e nada mais. Isso acontece com vários profissionais, como os coletores e varredores. Outro fenômeno psicossocial “estampado” no uniforme dos garis é a invisibilidade urbana. O psicólogo Fernando Braga acompanhou os garis do campus Butantã da Universidade de São Paulo (USP) por dez anos, e assistiu muito a isso. Em trecho de seu livro, “Homens Invisíveis - Relatos de uma Humilhação Social” (Ed. Globo, 2004), entende-se bem a raiz do fenô-

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meno: “Entramos pela porta principal, eu e o Antônio (um dos garis) (...) E as pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. Talvez apenas uma ou outra tenha se desviado de nós como desviamos de obstáculos, objetos. (...) Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível. Antônio também era invisível.” Varredores e coletores não são a mesma profissão. Os primeiros cuidam da vegetação pública, varrem resíduos e dão conta da limpeza dos espaços públicos. Os coletores buscam o lixo doméstico e o depositam no caminhão. Ainda que o motorista deste caminhão não faça trabalho idêntico, por estar uniformizado, será chamado de “gari”, mas o termo não se aplica para mulheres. Por fim, usar “lixeiro” está incorreto: estes são produtores de resíduos, ou seja, a população em geral. “Ambiguidade” é o título da dissertação de mestrado de Luiza Ferreira, pois opõe as humilhações com as alegrias da profissão e representa com propriedade a realidade que pretendemos narrar. O leitor encontrará nesta reportagem perfis de oito profissionais da limpeza urbana, que mostram os preconceitos de que são vítimas. Ao mesmo tempo, cada relato conta uma trajetória profissional de muito orgulho. 7


Coletor de lixo e DISTRIBUIDOR DE SONHOS Ivanildo Dias de Souza também é maratonista profissional

Lídia Ferreira

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ascido em Monte Santo, município localizado no nordeste baiano, distante 352 quilômetros de Salvador, com uma população de 56.938 habitantes, Ivanildo divide o aseu tempo entre duas maratonas diárias: o seu trabalho durante as madrugadas, coletando lixo pelas ruas de São Paulo, percorrendo cerca de 30 quilômetros todos os dias, e seu compromisso com os treinos de corrida. Essa rotina apertada rendeu a ele não só o reconhecimento de seus colegas de trabalho -que é revertido em muito apoio moral-, mas também uma ajuda financeira de R$ 400,00, oferecida pela empresa, para auxiliar na inscrição da São Silvestre e para compra de suplementos alimentares. Dedicação e estímulo que ajudaram a organizar a coleção de medalhas conquistadas em importantes competições, como as provas do Circuito Corpore, da qual ele foi vice-campeão em 2012 e campeão em 2013. Algumas medalhas, que exibe com um sorriso estampado no rosto, estão em sua humilde casa, em Itaquera, zona leste de São Paulo. A outra parte das medalhas viaja com Ivanildo para sua cidade natal, onde são distribuídas como premiação nas corridas que ele mesmo organiza. Segun-

do ele, correr faz parte de sua rotina, a ponto de sentir falta. Essa maneira de ser e viver contagia as pessoas de sua terra natal. As barreiras impostas durante sua infância moldaram um personagem único que busca incentivar outras crianças em situações semelhantes àquelas vividas por ele. Foi assim que nasceu o Troféu “Ivanildo Dias”, criado por ele mesmo no ano de 2006, entregue por meio de corrida realizada em Monte Santo, tornando-se um projeto que incentiva crianças a participar das maratonas, onde todas saem com premiação. “Com o salário que eu ganho, eu vou lá e faço o que eu posso fazer para eles. Quando eu saio de São Paulo, caem as lágrimas. Eu estou lutando por essas crianças e chegando lá eu vejo que está dando certo!”. Ivanildo faz questão de falar de onde veio: “Vim duma terra difícil, lá na Bahia. Fui criado sem pai, e aí eu vim com 14 anos para São Paulo”. Para ele, São Paulo representava a oportunidade de melhoria de vida e a possibilidade de ajudar sua mãe, responsável por criar sozinha os filhos. Há doze anos, Ivanildo começava o seu primeiro dia de trabalho na EcoUrbis Ambiental, concessionária responsável pela coleta, transporte e destinação adequada de resíduos domiciliares no agrupamento sudeste da cidade de São Paulo. Para explicar

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Lídia Ferreira

Ivanildo mostra alguns de seus troféus

sua trajetória nessa profissão, ele conta que, ao chegar na capital paulista, foi trabalhar como ajudante de pedreiro, com o pai, sem registro, por ser menor de idade. Morava inicialmente com o pai, que tinha duas mulheres em São Paulo, em uma dessas casas. Ao começar a assumir as responsabilidades da casa da madrasta e com isso ficar impossibilitado de ajudar a mãe, Ivanildo se mudou para a zona sul, na casa de seu primo e, por meio dele, conseguiu um emprego de varredor temporário. Após um tempo na Bahia, retorna a São Paulo, casado, e por meio de uma agência de empregos e apoiado em sua experiência como varredor, ingressava na profissão para ser promovido, posteriormente, a coletor de lixo. O baiano se tornou coletor principalmente por necessidade de sustentar seu primeiro filho, pois sua mulher engravidou assim que voltou da Bahia para São Paulo pela segunda vez. A simplicidade do maratonista não revela sua forte opinião sobre a profissão de gari. Para ele, não há razões para considerar os bens materiais, porque de nada valerão na morte. “Eu tenho orgulho em ser coletor, o salário não é tão ruim. Dá para viver sossegado, pagar aluguel e até ter o seu carrinho popular”, conclui Ivanildo, lembrando que é com esse trabalho que ele mantém sua família e

contribui para manter a cidade limpa e as pessoas livres de doenças. Sua rotina de trabalho como coletor se inicia às 18 horas e se estende até as duas da manhã, sem horário fixo para refeições, que faz eventualmente (quando leva algum lanche) ,em intervalos pequenos, de cinco ou 10 minutos. A empresa fornece EPI (luva resistente e sapatos) para evitar acidentes no percurso diário e treinamentos de como manusear o lixo a ser coletado. Ivanildo conta que, mesmo gostando muito de trabalhar como coletor, sofre preconceito por parte de algumas pessoas que não têm conhecimento a respeito do que faz. “Por mexer com lixo, às vezes o pessoal chama a gente de ‘cheiroso’”. De forma geral, ele tem uma boa relação com a maioria da população. Aspectos negativos, para Ivanildo, não existem, pois é deste trabalho que ele tira seu sustento. Uma boa lembrança, rememorada por ele durante a entrevista, é o reconhecimento da EcoUrbis, por meio de uma placa, por seu trabalho como coletor e sua participação como corredor. Ivanildo conta que não é sindicalizado. A escolha pela profissão, que envolve coletar lixo diariamente, e pelo hobby, participação em maratonas municipais, regionais e até esta-

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duais, têm o apoio da família. “Meus filhos têm orgulho de ter o pai coletor e corredor, eles me acompanham felizes”. A corrida está no sangue do coletor. Por isso, Ivanildo dedica-se tanto ao projeto com as crianças da Bahia. “São crianças de 7 a 14 anos de idade, meninas e meninos, que podem participar. A iniciativa mobiliza a família e a cidade toda, e me faz lembrar da minha infância, do que conquistei. Então, nas primeiras semanas de janeiro eu vou para a Bahia fazer acontecer”. A jornada de trabalho da madrugada ajuda na rotina de treinamentos do coletor. Acordar de manhã, fazer o seu treino, alimentar-se bem e, depois, correr atrás do caminhão coletando o lixo fez com que Ivanildo enxergasse a importância da profissão. Ele finaliza deixando um recado para a população: “Coleta não é só colocar vidro dentro da sacola ou não colocar os espetos de churrasco junto. Tem que separar. Sem falar que tem muitas pessoas que prejudicam o nosso trabalho porque colocam o lixo depois do horário que passamos e aí elas vem querer reclamar que deixamos o lixo lá, mas não é a verdade. Tenho muito orgulho do que faço, e as pessoas podiam perceber isso e falar a verdade”, finaliza. 9


ACADEMIA do lixo Coletor ou ciclista? Silvano mostra que é possível ser os dois ao mesmo tempo e em horário de trabalho

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ciedade com ele. Para exemplificar, contou que já jogaram resíduos no rosto dele, outra vez chegaram a falar, com ar de deboche, frases como “Você tá aqui para limpar, né?! Eu sei que você faz esse serviço, essa é a sua função”. Em contraponto, a simpatia e o prazer em atuar nessa profissão chamam atenção de outro tipo de pessoas, que costumam pedir para tirar fotos da bicicleta ou apenas dele, e perguntam para que serve o meio de locomoção. “Minha alegria é essa bicicleta. É o meu dia a dia. Eu gosto de andar nela”. Hoje, a única atividade física dele é pedalar, além do peso que levanta ao coletar os sacos de lixo. As pessoas criam empatia e brincam que ele ganha para fazer academia. A esposa, que trabalha em casa de família, comenta também da definição de músculos e da força que o marido ganhou. Sem o uniforme, Silvano de-

dica-se à igreja. Quando questionado sobre pessoas que o influenciam positivamente, a resposta foi Heitor e Rose Nascimento, uma dupla que canta músicas evangélicas. “Quero ir na Igreja e ajudar essas pessoas que não podem andar”, diz. O ciclista comenta que todas as filhas, desde a caçula, de 4 anos, à mais velha, de 21, estudam. Ele parou na oitava série, mas pensa – e conta com o estímulo e apoio de todas – em concluir os estudos. Em seguida, pretende fazer um curso de eletricista, por se identificar com esse tipo de trabalho. Silvano reza todas as manhãs pedindo proteção. “Eu sinto medo de estar com essa bicicleta na rua e vir um carro com alguém alcoolizado, drogado, esbarrar em mim e acontecer alguma coisa. É que minha menina tem quatro anos e fala que nunca vai acontecer acidente comigo”, finaliza. Lídia Ferreira

ilvano da Silva Souza coleta, há quase cinco anos, o lixo no centro de São Paulo, conduzindo uma bicicleta. Nascido em São Paulo, casado e pai de cinco filhas, ele trabalha seis dias por semana, das 14h às 22h, e pedala cerca de 12 quilômetros por dia. “Antigamente, eu era da ‘varreção’. Aí, soube dessa promoção da bicicleta, me ofereceram e eu aceitei. Eles deram umas aulas e ensinaram como é que guia a bicicleta”, contextualiza. A rotina profissional de Silvano é aguardar os varredores juntarem os lixos em um local pré-estabelecido e colocarem em sacos da empresa Inova, da qual ele é funcionário. Em seguida, ele coleta os sacos da República e da Praça da Sé e deposita os resíduos em um contêiner. “Uma vez fui pegar [o lixo] e tinha um rato dentro do saco. Aí, eu coloquei a mão por baixo e ele tentou sair. Eu larguei no chão e saí correndo”, comenta o gari, ao lembrar-se de um episódio que hoje causa risadas, mas que no momento poderia ter provocado alguma doença. Para esse pai de família, “o negócio mais difícil são os moradores de rua que, de vez em quando, enchem o saco. Param na rua, perguntam se podem dar uma volta e eu falo que não, porque vou perder meu emprego. Muitos deles sobem atrás, os mais pequeninos. ‘Deixa eu ir atrás, tio? Me dá uma carona?’”. Mas ele enxerga o problema social que existe e comenta sobre o cenário e os figurantes, que compõem seu ambiente de trabalho. “Tem que dar um jeito na situação dos moradores de rua. Tirar eles da rua, dar uma profissão [...] e não dar dinheiro”. Outro ponto que Silvano levanta é o desrespeito de grande parte da so-

Marina Godoy

GARI DE BIKE pronto para sair da garagem e realizar seu trabalho diário

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Coleta seletiva e FEMININA Conheça duas mulheres que driblam o preconceito e coletam lixo reciclável na maior cidade do país Gabriela Clemente

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u me sinto uma rainha quando estou em cima do caminhão”, diz Maria José dos Santos, 30, ao descrever a sensação de ser coletora. Orgulhosa de sua profissão, ela aceitou participar da reportagem especial desde que pudesse incluir sua amiga e colega de trabalho, Antonia Jessica dos Santos, 22. “É um orgulho (trabalhar como coletora), por sermos tão poucas, representarmos as mulheres da categoria e combatermos um preconceito que ainda existe”. Segundo o livro “Perfil dos Trabalhadores de Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo”, produzido pelo sindicato da categoria, apenas 1% dos profissionais de limpeza urbana – entre varredores e coletores - da cidade de São Paulo são mulheres. Na equipe de Maria e Jessica, elas são 11 mulheres, sendo 8 coletoras e 3 motoristas. Todas saem diariamente da garagem da empresa de coleta EcoUrbis, no Campo Limpo, pela manhã –as mulheres só coletam neste período-, e cumprem seus itinerários pela cidade. “A gente tem horário para entrar, mas não para sair”, explica Maria. “Você só pode ir embora depois de recolher a meta de lixo do dia, descarregar o caminhão e entregá-lo vazio de volta na garagem”. As meninas entram às 5h50 da manhã, e a coleta dura em média três horas. Os setores onde Maria e Jéssica fazem a coleta seletiva ficam no bairro da Vila Mariana, zona Sul da cidade de São Paulo. E após encherem

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o caminhão -o que equivale a coletar até quatro toneladas de lixo seco-, elas seguem para a cooperativa, onde o veículo é descarregado, para que possam voltar para a garagem, entre 10 horas e meio-dia, e então, vão para suas casas.

Rainha do caminhão Antes de trabalhar com coleta seletiva, Maria era camareira, mas já almejava uma função na EcoUrbis. Seu marido Genivaldo, 36, que trabalha com coleta há mais de 15 anos, já era funcionário da empresa quando ela começou a atuar lá. “Eu sempre via as meninas chegando na garagem e pensava: um dia eu vou entrar nessa firma”. Maria mora tão perto do trabalho que vai e volta caminhando todos os dias. Seu marido trabalha no turno da noite e, por isso, descansa durante o dia. Foi por esse motivo que nos encontramos para conversar em um café, no shopping Campo Limpo. “Eu chamaria vocês para ir na minha casa, mas o ‘Val’ acorda com qualquer barulho, e ele precisa descansar. Por isso, achei melhor nos encontrarmos aqui”. O marido de Maria é ciumento, e algumas vezes já implicou com a profissão da esposa. Afinal, ele também exerce a mesma função, na mesma empresa, e conhece de perto o comportamento, muitas vezes abusivo, que alguns funcionários têm em relação às meninas. Além disso, trabalhar como coletora nas ruas de São Paulo exige muito jogo de cintura, pois o assédio por parte dos cole11


Interdependência “No Brasil, assim como nos Estados Unidos e em outras potências neoliberais, a relação entre o consumo e o descarte é tratada de forma linear: eu consumo, descarto e isso não volta para mim; quando na verdade, esse encadeamento é cíclico” explica Leandro Ortunes, doutor em Ciências Políticas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Essa falta de visão do todo, da interdependência entre ações e profissões faz com que a sociedade não só tenha dificuldade de lidar com o descarte dos próprios dejetos como também desvalorize funções como as que Maria e Jéssica exercem. “São pessoas inexpressivas no que diz respeito ao poder de compra, não possuem influência política, logo, passam a ser marginalizadas”, conclui o especialista. Além do preconceito diretamente relacionado à profissão, Maria e Jessica ainda lidam com o fato de serem uma minoria feminina na função. “No primeiro dia, eu senti que os meninos cuidavam muito da gente, mas aos poucos essa impressão foi mudando, pois eles se sentem ameaçados” conta Jessica. “Na verdade, se ele te ajuda, depois ele quer te pagar uma cerveja”, completou Maria. O desafio é diário e grande, mas não tira a vontade e o prazer das meninas. “Quando eu fico um dia sem ir, eu volto e as pessoas param o caminhão e me perguntam se eu estou bem, porque eu não passei no dia anterior”, relata Maria. “Se alguém me perguntar se eu quero fazer outra coisa, eu vou falar não, porque eu gosto muito do que eu faço, muito mesmo”. 12

gas não é o único. “Já teve cara que correu atrás do caminhão para pedir nosso telefone”, conta Maria. “Eles não estão acostumados a ver mulher coletando”, explica. Pernambucana de Glória do Goitá -município de 30 mil habitantes, situado na zona da mata de Pernambuco-, Maria veio para São Paulo aos 14 anos, acompanhada da mãe, D. Severina, 53, para encontrar seus irmãos, já estabelecidos na capital paulista. Logo que chegou, Maria conheceu seu atual marido e se casou pouco tempo depois, aos 15 anos. O primeiro filho, Luiz Felipe, hoje com 14, veio um ano após o casamento, e o segundo, Luiz Fernando, 11, três anos depois. Por essa razão, Maria parou de estudar no ensino fundamental, e só voltou para o ensino médio há alguns anos. Além do colégio, alguns desejos foram deixados de lado durante a vida de Maria, como o de fazer uma faculdade de gastronomia. “Tenho medo de deixar os meninos sozinhos ou com alguém cuidando. Prefiro esperar eles crescerem um pouco mais”. Apesar de alguns sonhos ainda não terem sido realizados, outros tantos já foram. “Eu fiquei 15 anos sem voltar para lá (Glória do Goitá). Depois que eu vim para cá (São Paulo), eu nunca mais tinha voltado”. Mas há dois anos, a gloriense voltou para sua terra natal e decidiu levar os dois filhos, mesmo achando que não iria chegar ao seu destino. “Fui pela primeira vez de avião e eu estava tão an-

siosa que eu achei que não ia chegar lá, você acredita?”. Nós acreditamos. Mesmo porque essa viagem “foi uma maravilha”, segundo Maria. “Meu pai ainda não tinha me registrado, mas quando eu voltei lá, ele me registrou, me reconheceu como filha dele e eu conheci minha irmã”. “(Um outro sonho) é terminar de construir minha casa” diz Maria.

Ativista “É lógico que eu tenho sonhos materiais igual a Maria: comprar uma casa, um carro, sair do aluguel...Mas o que eu quero mesmo é voltar a estudar”, revela Jéssica. Apesar de muito amigas e de histórias semelhantes, ela e Maria têm temperamentos muito diferentes. “Onde é que o mundo vai parar?”, se questiona Jessica, ao falar do quanto a situação política do país a revolta. “Eu não apoio ninguém, na verdade. Sou contra todos, e fora Temer!” . Paraibana de Lagoa - município do interior do estado com menos de cinco mil habitantes -, Jessica viveu dos três aos 15 anos no Ceará, até vir para São Paulo, em busca de um emprego e para encontrar com seus irmãos José, Gedson e Julia, que já estavam estabelecidos na capital paulista. Hoje, a família toda trabalha na EcoUrbis. Julia é motorista, José e Gedson são coletores, como Jessica. “Quando a minha irmã foi contratada, eu fiquei ainda mais a fim de trabalhar lá (na EcoUrbis)”. Mas, assim como Maria, esperou quase um ano

Gabriela Clemente

Família: Maria, Genivado, Luiz Felipe e Luiz Fernando

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após a entrevista para ser chamada para a vaga de coletora seletiva. Antes, Jéssica trabalhava com telemarketing, e se considerava extremamente sedentária, porque passava o dia todo sentada. A mudança de rotina foi brusca, pois o trabalho na coleta é pesado e elas não são frágeis, como pensam. As meninas correm atrás do caminhão, carregam contêiner, enquanto se esquivam dos assédios, tudo isso embaixo de sol e chuva. Jéssica é uma jovem ativista das causas feministas e não gosta de ficar parada nem nos dias de folga. “Ontem mesmo fui a um sarau de uma amiga minha que lançou um livro. Eu gosto de sair, sair com meu filho, ir ao parque, no shopping, eu me defino como movimento”. Mãe aos 16 anos, Jessica é zelosa e, assim como Maria, acaba abrindo mão de certos sonhos para cuidar de Nicolas, seu filho de 6 anos. “Eu gostaria muito de fazer engenharia e voltar a estudar, mas tenho que adiar por conta do meu filho. Ele é muito pequeno, tem seis anos, e eu não tenho com quem deixar. Se eu voltasse a estudar agora, eu praticamente abandonaria ele”.

Educação ambiental Essas mulheres, nordestinas, que já na adolescência aprenderam o que é ser mãe, são duas das [infelizmente] poucas mulheres que trabalham com a limpeza urbana da cidade de São Paulo. E apesar de se divertirem

e sentirem muito orgulho do que fazem, desaprovam a atitude que alguns cidadãos têm com relação a elas. “Quer ver eu ficar nervosa? É quando o caminhão da coleta seletiva passa e as pessoas põem a mão no nariz”, diz Maria, indignada com a ignorância da população com relação à sua função. “O lixo que a gente recolhe não fede, é reciclado”, explicou. A repulsa que a maioria das pessoas têm de seus próprios dejetos, repudiada por Maria, deveria ser substituída pela consciência que deve ser tomada sobre o assunto. “Daqui alguns anos, não vai ter mais lugar para colocar lixo em São Paulo”, afirma Jéssica, que assim como Maria, conhece com propriedade a situação do Aterro Sanitário Sítio São João. Durante cinco anos, o hoje desativado São João recebeu 6 mil toneladas diárias de resíduos, totalizando 30.000.000 de toneladas ou 30 bilhões de quilos de lixo. E é importante que se contém os zeros, pois além de toda essa quantidade ter sido descartada em um curto espaço de tempo, mais de 70% do material contido no aterro era reciclável. Maria e Jéssica são duas coletoras de lixo reciclável em meio a tantos julgamentos e assédios em uma profissão machista e marginalizada. A importância do que elas fazem é inegável, é uma questão de saúde pública. Mas é ainda mais relevante enxergar o quanto elas conquistaram para as futuras agentes de limpeza urbana da cidade.

Representatividade Os coletores e varredores são representados pelo Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços de Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo, Siemaco, que é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 31 de março de 1959, para defender legalmente a categoria perante à sociedade. Por R$10,00 mensais, os trabalhadores da categoria, que se sindicalizam, têm direito ao convênio médico, odontológico, assistência psicológica e jurídica, creches entre outros benefícios. Como forma de combater o preconceito e a invisibilidade a que são submetidos esses profissionais, o Siemaco colocou na cidade estátuas que simbolizam as categorias que o sindicato representa. Assim como os trabalhadores são representados pelo Siemaco, as empresas Loga, EcoUrbis, SOMA e Inova - entre outras - são representadas pelo Selur (Sindicato das Empresas de Limpeza Urbana), que é o sindicato patronal da categoria. Fundado em 24 de julho de 1992, a instituição busca defender os direitos das companhias de coleta e varrição, na cidade de São Paulo.

Gabriela Clemente

Jéssica e seu filho, Nicolas

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A VOVÓ do CAMINHÃO Carismática, carinhosa e avó, Kelly é motorista de caminhão há oito anos e não troca ou vende a profissão por nada

Marina Godoy

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ma avó carinhosa, adorada pelas crianças e que não troca seu caminhão e maquiagem para trabalhar por nada. “Você trabalha no lixo. Você vai andar toda descabelada? Não, você tem que ser o oposto. Você carrega o lixo, você não é o lixo”, reflete Kelly de Souza Nascimento, motorista de caminhão na empresa LOGA, há oito anos. Extremamente perfumada, com olhos delineados por lápis preto e lábios com batom rosa, é mãe de um filho de 29 anos e uma jovem de 22. Sua maior alegria hoje é ser avó. Com aproximadamente 1,63m de altura, dirige o Bobinho, que ganhou esse nome inspirado no personagem Bob Esponja. Mas de “inho” o caminhão de três metros de altura não tem nada: vazio, pesa dez toneladas. Cheio, chega a pesar doze toneladas e meia. “É uma responsabilidade? É. Mas toda profissão necessita de responsabilidade, né?!”, comenta a motorista que já foi recepcionista, sócia de um restaurante self service com o ex-marido e funcionária da Telefônica por oito anos, até pedir para ser desligada. Enquanto guiava os motoristas e auxiliares responsáveis por visitar clientes, ela gostava. Mas ao ser transferida para a parte financeira, decidiu procurar novos desafios. O primeiro

passo foi trocar a carteira de motorista para categoria D, podendo, assim, dirigir caminhão. Fez um curso de transporte coletivo, onde conheceu uma jovem que trabalhava na área e conhecia funcionários da LOGA. Ela indicou a Kelly para trabalhar na instituição, mas em um carro menor, o modelo HR. Aprovada, mas sem experiência, começou em carros pequenos e elétricos, que coletavam resíduos nos calçadões do centro de São Paulo. Um ano depois, fez teste para o caminhão e passou. Ficou por dois meses como reserva, cobrindo os desfalques dos motoristas. Nesse tempo, dirigiu por áreas diversas da cidade. Hoje, Kelly é acompanhada por três coletores estáveis para cobrir um pedaço dos bairros do Pacaembu, Higienópolis, Largo do Arouche e rua Rego Freitas. A rotina de Kelly é sair de sua casa, em Francisco Morato, zona oeste de São Paulo, às 16h30 e chegar na LOGA às 17h45. Já uniformizada, pega a prancheta para fazer a checagem do caminhão: confere pneus, luzes, arranhões e todos os itens da vistoria. Então, vai para o setor. Por volta das três horas da madrugada, está de novo na empresa. Quando questionada se o trabalho à noite não é mais perigoso para uma mulher, Kelly afirma que prefere trabalhar nesse período. “Quando

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que me amam. Para muitas pessoas, é tão pouco. Mas é um amor que realmente é para você. Porque eu não dei nada, só atenção”, concluiu. Os irmãos mudaram-se da rua em que Kelly passava todos os dias. Mas durante uma coleta na Alameda Barros, a ex-recepcionista escutou algumas buzinadas, mas seguia em frente, quando Zacarias conseguiu alertá-la de que Olívia e Benjamin estavam ali. Kelly parou o caminhão no mesmo instante e se aproximou do carro. “A gente estava com saudade e pediu para o papai e para a mamãe trazer pra te ver”, falou Benjamin. Por onde passa, a carismática Kelly faz amigos. Se falta, os moradores perguntam aos coletores se está tudo bem. “Eu gosto muito do que eu faço. Porque eu sempre tive uma coisa comigo... Se der para a gente casar, mais ou menos, o que gosta de fazer e ainda ganhar, é muito bom, né?! É satisfatório’’, finaliza. Devanir Amâncio/Flickr

estou com essa roupa, dentro do caminhão, eu me sinto segura. Ninguém mexe comigo”, explica a motorista. “Sem essa roupa, eu não ando sozinha no Centro”, completa. Kelly é a paparicada. Dentro da LOGA, os meninos a tratam com extremo respeito e é a favorita da equipe de comunicação. Por isso, participou de grandes eventos, como o “Caminhão Dourado”. Nele, Kelly gravou com grandes nomes da música popular atual, como o cantor de funk MC Binladen. Além disso, é inspiração de amor e profissionalismo para a sociedade. Durante outra ação do Caminhão Dourado, a motorista saiu para panfletar na avenida Paulista. Ao sair do veículo, um grupo de mulheres paradas em frente a uma sorveteria começou a gritar “é uma mulher! Eu não acredito, é uma mulher saindo do caminhão!”. Além de ser uma retratação do feminismo, ela influencia seu clã de crianças. Nomes que não esquece: Olívia e Benjamin. “Tinha uma rua que todo dia eu passava nela e duas crianças sempre ficavam na janela. A janela do apartamento deles é da altura do caminhão. Tem a tela de proteção, porque são pequenos, de 4 a 5 anos. Quando eu parava para os meninos coletarem, as crianças estavam lá. Elas perguntaram meu nome. Depois, se eu estava bem. Um dia o pai delas pegou o Benjamin e levou ele na janela do caminhão. A criança falou ‘nossa, de perto você é ainda mais bonita’. Aí no outro dia, a mãe dele me contou que ele disse ‘mãe, eu cheguei perto do caminhão, e você não sabe... Ela estava de roupa!’”, relatou. “No final do ano, eles me entregaram um desenho de coração, escrito

O caminhão de Kelly chega a pesar 12 toneladas

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O LEGADO de um PAI COLETOR José Henrique Correia declara seu orgulho pela profissão e o sonho realizado de trabalhar junto a seu pai Bianca Bludeni

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u tinha um sonho de trabalhar com meu pai e esse sonho eu realizei”, revela José Henrique Correia, 31 anos, com um sorriso

cativante. Natural de Pernambuco, mais precisamente Rio Formoso, Henrique vem de uma família grande e amorosa, “até meus quatorze anos eu dormia na mesma cama que meu pai”, relatou. Com ele, são dez filhos. Em 1985, todos vieram para São Paulo, pois Valderci Correia, mais conhecido como seu Zé, pai de Henrique, pretendia tentar uma vida melhor, embora eles não passassem dificuldades. O primeiro emprego que seu Zé conseguiu foi como motorista de caminhão de lixo, em 1990, e nele permaneceu até sua aposentadoria, em 2012. Henrique cresceu ouvindo as histórias de seu pai e tudo que a família conquistou financeiramente foi fruto desse trabalho. Quando Henrique e seus dois irmãos mais velhos estavam com cerca de dez anos, seu Zé, com o consentimento da empresa em que trabalhava, começou a levá-los para o expediente. A cada sábado, um dos filhos acompanhava o pai dentro da cabine do caminhão. “Dava briga para ver quem ia trabalhar no sábado com o papai, a gente achava um barato”, relembra Henrique. Para ele, o mais divertido em ir com o pai trabalhar era poder coletar

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o lixo junto com os agentes da limpeza urbana. “A gente saía coletando lixo pelas vielas e era muito legal”. Sua vontade sempre foi trabalhar neste ramo, nunca em outro. “Sempre dizia que quando eu crescesse iria me tornar gari”. Quando se tornou maior de idade, seu Zé arranjou um emprego para o filho como coletor na EcoUrbis. Foi assim a iniciação profissional de Henrique, em 2005, na área da limpeza urbana, em que trabalha até hoje. Na mesma época em que conseguiu este emprego, ele teve de ir morar sozinho, “a família estava crescendo, mas a casa não. Por isso, resolvi sair”. Foi a fase mais difícil para ele, que sentia muita falta de sua família, em especial do pai, o que culminou em uma crise de depressão. “Me sentia muito sozinho, nesta época larguei minha faculdade de Direito, que estava cursando há oito meses, pois não tinha ânimo para estudar e acabei apenas continuando no serviço de gari”. Henrique sempre admirou esta profissão, achava que como juiz poderia impedir injustiças e fazer justiça, mas naquele momento, a vida acabou levando-o para outro caminho. Iniciou, então, um tratamento psiquiátrico, mas o que o ajudou de fato foi que, logo em seguida, em 2010, realizou o seu maior sonho profissional: trabalhar ao lado do pai. Eles ficaram juntos cerca de dois anos, até final de 2011. Seu Zé conseguiu uma vaga para Henrique como coletor fixo

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do caminhão em que era motorista. Henrique jura que nunca se desentenderam, pelo contrário, era pura alegria, mas com muito profissionalismo. “No serviço não tinha moleza, por exemplo, quando a gente saía para tomar uma água ou saía do caminhão, eu o chamava de “pai”, mas quando subia no caminhão era apenas seu Zé”. Foram os melhores anos de trabalho que o filho já teve. Seus relatos sobre esta fase são cheios de emoção, carinho e saudades. “Meu pai é meu ídolo”, declarou. O único momento de dificuldade que os dois passaram juntos no trabalho foi quando seu Zé sofreu um AVC enquanto dirigia o caminhão. Henrique e os outros dois garis estavam na cabine do caminhão quando seu pai, sofrendo o ataque, largou a direção e caiu para direita, com o corpo mole. O coletor, que estava ao lado direito de seu Zé, pisou no breque e parou o caminhão. Enquanto isso, Henrique foi acudir o pai. “A nossa sorte é que vinha um carro de bombeiro logo atrás de nós, que parou e nos ajudou rapidamente no resgate”. Seu Zé foi levado ao hospital e logo ficou bem, apenas com uma leve sequela motora na perna direita. “Aquele foi o pior dia da minha vida”, relatou. Para Henrique, a profissão de agente da limpeza urbana é motivo de muito orgulho e gratidão, pois foi como coletor que conseguiu ter tudo que sempre quis: uma casa, um carro e estabilidade. Ele diz perceber algum

tipo de preconceito quando ele passa recolhendo o lixo e as pessoas que estão na rua põem a mão no nariz, por conta do cheiro, mas segundo ele, não o incomoda em nada. A rotina de Henrique começa às sete horas da manhã, levando sua filha Joana de três anos à escola. Em seguida, ele volta para casa, toma café da manhã com sua esposa e tira uma soneca até às onze horas, horário de buscar a menina. Às quatro da tarde, ele sai de sua casa, no Capão Redondo, rumo à garagem da Loga, no Jaguaré. Como faz o percurso de carro, chega por volta das cinco horas. Chegando lá, conversa com seus colegas de trabalho, antes mesmo de entrar na empresa. Porém, quando põe o uniforme e bate o ponto, deixa as brincadeiras e conversas de lado e vai concentrado fazer um check list do caminhão, junto ao motorista de sua equipe. A região em que ele e sua equipe fixa trabalham é intercalada entre Vila Madalena e Alto de Pinheiros. Por volta da uma da manhã eles encerram o expediente e Henrique volta para sua casa. Atualmente, ele está pleiteando a vaga de motorista de caminhão de lixo, como seu pai um dia foi, mas também mantém o sonho de voltar a cursar Direito e se formar advogado. “Fora essa minha vontade profissional, o meu último sonho é poder comprar um sítio na minha cidade natal em Pernambuco, e morar lá com a minha família”, finaliza.

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LIMPEZA URBANA X INSALUBRIDADE 77,8% dos profisionais de limpeza urbana disseram que tem ou já tiveram algum problema de saúde causado pelo trabalho Profissões insalubres são aquelas desenvolvidas em circunstâncias e/ ou ambientes de trabalho com potenciais riscos à saúde do trabalhador, segundo a definição da Portaria/MTE nº 3.214/78 - Norma Regulamentadora 15, do Ministério do Trabalho. O cálculo da taxa de insalubridade é feito conforme o grau de perigo que aquela profissão apresenta. Varia entre grau mínimo (10% do salário mínimo); grau médio (20% do salário mínimo); e grau máximo (40% do salário mínimo). “Não há dúvidas quanto ao grau máximo de insalubridade dos coletores de lixo. Já no caso dos varredores, as opiniões são divergentes, pois eles não têm contato direto com o lixo”, declara Gustavo Locatelli, médico especialista em medicina do trabalho pela Universidade de São Paulo

e membro da ANAMT – Associação Nacional de Medicina do Trabalho e da ICOH - International Commission on Occupational Health. Os profissionais da limpeza estão expostos a agentes biológicos como vírus e bactérias, o que justifica a alta incidência de doenças como dermatites e colites, bem como infecções virais em vias aéreas superiores. Também há de se destacar os acidentes com material perfuro-cortante, devido ao descarte inadequado. Portanto, estes profissionais são expostos, diariamente, a situações que põem suas vidas em risco. Esse cenário sugere que a fiscalização e as leis existentes sobre o assunto apresentam algumas fragilidades e não são bem definidas, o que justifica o impasse sobre o grau de insalubridade dos varredores e garis.

50,1% sentem dores nas costas (lombalgia)

FONTE: todas as informações presentes nessa matéria foram retiradas do livro “Perfil dos Trabalhadores em Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo”, produzido pelo Siemaco (Sindicato dos Trabalhadores em Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo)

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73,9% afirmaram ter recebido tratamento para doenças ou acidentes de trabalho

82,6% nasceram no Nordeste do país

67,3% dos profissionais de limpeza urbana nasceram fora do estado de São Paulo

O FUTURO da profissão Os profissionais da limpeza urbana, varredores, coletores e motoristas de caminhão de lixo são fundamentais para a garantia de uma cidade limpa e para que sua população possa viver de forma mais saudável e livre de doenças, desempenhando um papel importantíssimo para o bem estar da sociedade. Muitas vezes discriminados, marginalizados e alvos de preconceitos da própria sociedade a qual prestam serviço, não recebem o merecido reconhecimento. Porém é fato: eles são imprescindíveis para a manutenção da saúde pública. Mas qual será o futuro desta profissão que, ao mesmo tempo em que é culturalmente desvalorizada, é extremamente necessária para uma boa qualidade de vida dos cidadãos? Para Leandro Ortunes, doutor em Ciências Políticas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no futuro, a longo prazo, será bem provável haver uma mudança que diminuirá o número de pessoas

que trabalham com a limpeza, porque hoje já existem várias tecnologias que fazem isso. Ele exemplifica: “Você tem aquele carrinho que varre as ruas, que é super comum na Europa. Nós temos o sistema de coleta de lixo onde o cidadão coloca o lixo em uma grande lixeira na rua e o caminhão passa recolhendo com dois operadores, só.” De fato, como divulgado pelo próprio site da Prefeitura de São Paulo, um novo sistema de coleta de lixo mecanizado será implementado na cidade, nos próximos anos. Contêineres serão instalados em diversas ruas, e seu conteúdo será recolhido por caminhões adaptados, sem a necessidade de coletores. Esta medida também irá colaborar com a coleta seletiva. “Esses profissionais tendem a ser substituídos por máquinas”, confirma Ortunes. Mas então, o que fazer com essa massa de pessoas que irá perder seus empregos? Trabalharão com o quê? A resposta mais assertiva, que solucionaria este problema de fato, é: melhorar o grau de instrução,

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possibilitar educação de qualidade e capacitação para essas pessoas. O professor reconhece que, para alguns estudiosos brasileiros do assunto, essa profissão sempre existirá, mas em um número muito menor, devido às novas tecnologias. “Nós passamos por uma situação parecida, no Brasil, com os cortadores de cana. Quando chegaram as novas tecnologias de colheita, o que nós fizemos com aquela massa de pessoas? Eles acabaram migrando para o centro urbano e aumentou o problema de exclusão e pobreza”, destaca. Enfim, toda a metodologia e sistemas que envolvem o lixo e seus profissionais irão passar por grandes revoluções no futuro. A quantidade desses trabalhadores diminuirá, já a produção de lixo não, pois a população só cresce. A boa qualidade da saúde pública deverá ser mantida e esses profissionais que serão substituídos pela tecnologia deverão ter um amparo e oportunidade para se realocarem em outra função. 19


Uma passagem SÓ DE IDA Nsoni Mavambu veio de Angola para o Brasil em busca de uma vida melhor

Beatriz Camargo

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ais de 80% da população não tem assistência médica básica; para outros 60%, falta água potável, e 30% das crianças do país morrem antes dos cinco anos de idade. Esse é o cenário que Nsoni Mavambu, de 24 anos, deixou para trás, quando decidiu fugir de Angola para o Brasil. Nascido no país da costa ocidental da África, Nsoni é um dos 550 mil angolanos que deixaram a terra natal em busca de uma vida melhor. “Tem coisas ruins que acontecem por lá, por causa do nosso presidente... Quando você quer fazer uma reclamação, ou quer fazer alguma coisa diferente, eles não deixam, querem te matar por isso. Lá, eu não posso nem ter internet. Por isso eu fugi”, conta. Em julho de 2016, Nsoni embarcou em um avião com um único destino; no Brasil, ele foi recebido pela Casa do Imigrante, em São Paulo. Em poucos dias, ele percebeu que havia uma oportunidade de trabalho para imigrantes e refugiados. A INOVA GSU é a empresa responsável pela porção noroeste da limpeza urbana da cidade de São Paulo. Em parceria com a CATe (Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedoris20

mo) e o CRAI (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes), a INOVA abriu o Programa de Contratação para Imigrantes e Refugiados em maio de 2015, que garante regularização migratória, documentação, cursos de qualificação, atendimento psicológico gratuito aos profissionais, acesso aos serviços públicos municipais e apoio jurídico. “Escutei o projeto da INOVA, corri para tentar entrar e consegui. Hoje, eu faço tudo o que o fiscal manda e gosto de trabalhar”, acrescenta Nsoni. O período de trabalho dele é das 14 às 22 horas, de segunda a sábado, junto à equipe do mutirão, uma mobilização coletiva para recolher o lixo e entulhos dos bairros localizados na porção noroeste da cidade de São Paulo. A partir das 13 horas Nsoni começa o seu caminho para a garagem da INOVA GSU, localizada na Barra Funda zona oeste de São Paulo. Ao chegar no local, ele veste o uniforme e junta-se à equipe do mutirão. Há cinco meses, ele vivencia essa nova rotina, “o trabalho ocupa a cabeça e eu faço porque preciso”. Mas nem sempre foi assim. Nsoni deixou para trás uma carreira administrativa. Formado em Contabilidade, o imigrante era gerente de vendas em

um armazém em Luanda, capital de Angola. Mas, acredita que não conseguirá seguir a mesma carreira aqui no Brasil. “Eu ainda preciso estudar muito, vou estudar. Estou pensando até em fazer um curso de informática’’. Seus dias no Brasil são mais calmos do que os conflitos que enfrentava em Angola, mas ainda assim Nsoni encontra algumas dificuldades. “Aqui tem muito bandido. Eu não gosto de andar à noite sozinho, é escuro”. O domínio da língua portuguesa também é um empecilho pra ele. “O português de Angola é diferente do daqui, do que vocês falam. Preciso aprender um pouco mais, mas por enquanto eu consigo me virar”. A saudade da família é grande, mas a timidez do gari não o permite comentar tanto sobre o assunto. Daqui alguns meses, quando conseguir juntar mais dinheiro, pretende ajudá-los. “O meu sonho é trazer eles para perto de mim. Eles precisam morar aqui e conhecer o Brasil, porque a África não está bom. Lá, nós não temos a democracia, e um dia você vai entender o quanto isso é ruim”, reforça. Ganhar seu salário através de uma profissão relacionada ao lixo não é nenhuma vergonha para Nsoni,

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Lídia Ferreira

muito pelo contrário, sente-se orgulhoso do que faz. “Quando eu fui lá no primeiro dia, me disseram ‘você sabe que vai trabalhar no lixo?’ e eu disse que sim, eu escolhi trabalhar com isso e não tenho porque me envergonhar, eu estou ajudando o Brasil”, conta. Leandro Ortunes, doutor em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), concorda que essa profissão está relacionada à saúde pública das cidades e países. “As pessoas veem como uma função desprezível, porque [os coletores e varredores] têm contato com o lixo diariamente, mas é muito mais uma função de garantia da higiene e controle das pragas, que são consequências do lixo na rua. Está além de ser agente de limpeza, eles são agentes de saúde. ”. Nsoni tem gratidão pelo país tropical e se sente em casa. Mais importante do que “de onde você veio”, para ele é “o que você faz”. “Quero agradecer o país, em pouco tempo eu cheguei aqui, consegui uma carteira de trabalho e o emprego como gari, sou muito agradecido a isso. Mas todo mundo deveria ir procurar um emprego. Eu vou olhar muito mais para os meus irmãos e irmãs africanos, que tem muita gente fugida no Brasil e que precisa de ajuda!”, conclui.

Nsoni era gerente de vendas em Luanda e sente orgulho da atual ocupação

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COM POESIA, ele traz ALEGRIA para as ruas Varredor de rua é reconhecido no bairro pelos poemas que escreve enquanto varre Beatriz Camargo

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melhor horário para eu declamar uma poesia para você seria à uma da tarde, porque eu entro para trabalhar na Praça da Árvore às duas e só paro de varrer lá pelas nove da noite”, explicou o Gari Poeta à repórter, logo no primeiro contato entre eles. O encontro aconteceu numa sexta-feira, em frente à banca de jornal Orissanga, esquina da Avenida Jabaquara com a Rua Orissanga, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Lá, Neusvaldo Juvenal Santos, de 54 anos, declamou o poema “A Bandeira Brasileira”. Entre uma estrofe e outra, a pausa para uma respiração mais profunda mostrava a confiança e o orgulho que o Gari Poeta tinha por ser escritor. A paixão pela poesia nasceu aos 10 anos de idade quando, ainda na escola, Neusvaldo observava os colegas de classe lendo poemas. “Eu achava muito bonito e isso despertou na minha cabeça. Então eu comecei a entender de rimas só de ouvir, e logo comecei a escrever”. Hoje, Neusvaldo tem 13 livros publicados. A edição chamada “A Mulher Joia Fina” tem 38 páginas impressas, dobradas ao meio, em uma folha sulfite A4. Entre a simplicidade das páginas é possível enxergar o seu maior sonho. “Desde que eu escrevi o meu primeiro livrinho, eu queria que

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aparecesse uma editora interessada em lançar meus livros nas lojas ou nas bancas, né? Até hoje isso nunca aconteceu”, conta. Antes de se tornar gari, Neusvaldo veio de Alagoas para São Paulo com 14 anos e começou a lavar louças em uma churrascaria do grupo Sérgio, em Santo André. Pouco tempo depois, estava atendendo mesas. “Fiquei um tempo e resolvi parar com isso. Comecei a trabalhar por conta própria, nas feiras livres, vendendo correia para bicicletas, além de chinelos”. Foi em 1990, no momento de bloqueio do dinheiro da população, durante o Plano Collor, que Neusvaldo se viu sem saída. Enquanto buscava por novas oportunidades, o futuro gari recorria aos amigos e familiares. “Meu cunhado que me ajudou. Ele era motorista lá na região da Vila Prudente e aí estavam precisando de um varredor de lixo numa empresa perto. Ele falou com a chefia e me deram o emprego”. Essa foi a sua porta de entrada para a CAVO Serviços e Saneamento, há 25 anos. Desde então, Neusvaldo não deixou a profissão. Em 2011, o consórcio SOMA Ambiental uniu as empresas Delta, Cavo e Corpus para assumir a porção noroeste da capital paulista. E lá estava ele, um dos muitos profissionais de limpeza urbana que trocaram o uniforme laranja pelo verde-escuro. Mas poucas pessoas notaram essa diferença. Ser varredor ou coletor de lixo em São Paulo não chama aten-

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Beatriz Camargo

ção da população, a não ser que o lixo se mantenha na porta de casa. Neusvaldo percebe bastante essa questão. “Meu trabalho é importante, porque as ruas vão estar limpas e as pessoas querem isso. Quando tem muita sujeira, elas reclamam”, desabafa. Entre uma rua e outra, observando no caminho as flores e o movimento das pessoas, Neusvaldo recita um poema e outro, pensando sempre em novos versos. Essa é a maneira que o gari poeta encontrou para ocupar a sua cabeça enquanto realiza o trabalho manual com o vassourão. A sua rotina é sempre a mesma: “Eu só coloco o uniforme na hora de trabalhar. Pego o ônibus e vou até a avenida Jabaquara. Lá, tem um posto de gasolina BR, que é onde eu guardo e pego meus instrumentos. Um dia uso o vassourão e no outro o carrinho de mão”. Fabíola Morello, psicóloga do Siemaco, Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços de Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo, explica que todo o apoio e suporte da família é importante para fortificar o emocional desses profissionais. “O trabalho deles é cansativo, exaustivo e repetitivo. Mas eles devem ter muito orgulho do que fazem”. Dentro de casa, apoio e orgulho não faltam. Casado e com três filhos, Neusvaldo conta que Caroline, Gustavo e Thiago são os encantos da vida dele. “Meus filhos dizem que o meu

Neusvaldo procura editora para lançar seu livro

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trabalho é digno como outro qualquer, e é né?”. Com certeza é! Durante os domingos de folga, o gari aproveita para passar tempo com os filhos, escrever novas poesias e ajudar em casa. Essa união com a família é a principal inspiração do poeta. Rosana da Silva Santos, sua esposa, trabalha como diarista e é a personagem principal dos seus poemas autorais favoritos. Outro estímulo para o gari poeta são as rimas do cantor Roberto Carlos, porque “quando eu vou escrever, penso sempre nas mulheres, meninas e nas flores, e o Roberto Carlos fala muito disso também”, explica. Homem simples, esforçado e orgulhoso da profissão que escolheu, Neusvaldo gostaria que o cidadão olhasse para a importância do trabalho dos garis. “Eles gostam de ter as ruas limpas, mas às vezes a gente limpa e, dez minutos depois, as pessoas decidem lavar a garagem e jogam a sujeira de dentro de casa para a rua; aí ligam e dizem que os garis não varreram”. Mas, apesar das inconsistências da profissão, Neusvaldo é muito grato às pessoas do bairro onde trabalha. “Eles sempre compram os meus livros. Eu faço pouca quantidade, mas graças a Deus não sobrou nenhum até hoje. Tem até uns que dizem que eu trago alegria para as ruas com a minha poesia”. E é assim que, dia após dia, “para minha felicidade e para o bem de todo mundo que gosta de poesia”. 24

A Mulher Joia Fina

A mulher é uma joia fina Se hoje ela é uma mulher madura Ontem ela já foi uma menina E por ela o meu coração se ilumina Pois a mulher é mesmo assim Uma linda estrela brilhante para mim E com o brilhar assim, mas beleza Que eu admiro e me sinto surpresa. Pois a mulher merece tudo isto assim No paraíso do nosso Deus o Criador Pois ele elogia a mulher por mim E por ela eu dou a Deus um louvor Pois eu sou feliz falando assim Que a mulher é valorizada por mim Escrevendo aqui toda minha valorização Aqui de dentro do meu rico coração Mas que beleza é mesmo uma mulher Pois ela é do jeito que o Brasil quer...

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As reportagens a seguir foram produzidas como Trabalho de Conclusão de Curso. Componentes do grupo Danilo Alves Fernandes de Jesus Luiz Guilherme Viana Alves Cruz Natalia Torres do Nascimento Thais Gomes Teixeira Orientação Prof. Me. Alexandre Possendoro (7º semestre) Profa. Me. Cristina Almeida (8º semestre)

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MARCAS da

PROFISSÃO Diante de histórias marcantes, terapeutas ocupacionais contam sobre como é trabalhar com os pacientes e seus diversos tipos de problemas. Situações que vão de ir à balada com um jovem com transtornos psicóticos a cuidar de um homem que, em um acidente na lua de mel, ficou tetraplégico

A

Danilo Jesus

tuando na psiquiatria terapeuta ocupacional, Gabriela Moraes atende um rapaz que, aos 30 anos, é introspectivo e tem dificuldades em se relacionar com outras pessoas devido a um transtorno psicótico. “Apesar de estar comigo há três anos, ele vive em mundo diferente, em uma verdadeira ‘Batcaverna’”, diz Gabriela. Além dos problemas psicóticos, o jovem é usuário frequente de maconha, o que dificulta ainda mais o tratamento. “Ele começou a ter mais dificuldade para vir aos atendimentos. Quando fumava, ele não queria ficar perto de ninguém, se fechava com as músicas dele, com filmes etc.”, relata a terapeuta. O jovem, com futuro promissor, trabalhava na seleção de roteiros em uma produtora de cinema. Ele morou em Londres e depois em Los Angeles, nos Estados Unidos, e foi lá que os seus sintomas pioraram. Ele desempenhava um trabalho solitário, no geral, lia roteiros e indicava ao diretor o que valia a pena ou não para a produtora investir. O rapaz foi introduzido ao mundo das drogas por um amigo e o mais difícil, nesses casos, é fazer com que o paciente entenda o quanto a droga o prejudica. Já no Brasil, o paciente iniciou seu tratamento na terapia ocupacional, com três sessões de atendimento

por semana. Era necessário criar estratégias para evitar que o jovem ficasse com tempo ocioso e, assim, mais suscetível ao uso de entorpecentes. “Fomos pensando em cursos, como o de teclado e guitarra, porque eram coisas das quais ele gostava”, lembra a terapeuta. Com o passar do tempo, o jovem passou a ter dificuldades para ir aos atendimentos e a profissional começou a atendê-lo na casa dele. Ao longo do tempo, estando mais próxima da rotina do rapaz, Gabriela percebeu que ele vivia apenas com o irmão e a mãe o acompanhava do exterior, onde vivia com o marido. Logo, uma mudança de rotina se fazia necessária, a começar pelo café da manhã, que, na maioria das vezes, era um copo d’água. A terapeuta passou a levar frutas e outros alimentos que o rapaz gostava. Aos poucos, ele começou a entender que, para o dia correr bem, era importante não pular coisas que aparentemente pareciam simples, como tomar café da manhã, limpar o quarto, arrumar os discos espalhados pela casa, fazer uma organização prática das coisas dele, entre outras tarefas. Ele decidiu voltar a fazer faculdade, pediu demissão do trabalho e, junto com a terapeuta, passou a pesquisar cursos com os quais ele mais se identificava. Pensou em fazer jornalismo, pois gostava muito de ler, mas acabou optando pelo curso de Rádio e TV.

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O trabalho da terapeuta é ajudá-lo nas questões do dia a dia, incentivando-o a ir à faculdade todos os dias, a acordar cedo e a interagir mais com as pessoas. “Atualmente, olhando do ponto de vista ocupacional, ele está super inserido. Está fazendo faculdade, atividade física com um personal trainer três vezes por semana, aula de teclado e guitarra”. Com a agenda cheia, ele consegue se organizar melhor. A equipe que o acompanha tenta melhorar agora a questão dos relacionamentos. “No momento, estamos com uma equipe que conta com uma psicoterapeuta, uma analista, dois atendentes terapêuticos, que fazem atividades noturnas com ele, como sair para balada, e um psiquiatra. Então conseguimos introduzir um atendimento de rotina muito grande”, completa Gabriela.

Legado “Atendi uma mulher por um mês, Dona Risonalva, que tinha descoberto um câncer em fase terminal. Já estava com metástase e a parte respiratória muito comprometida”, diz Lochaine Sangaletti. Ela tinha um filho de quatro anos e, sabendo da morte iminente por causa do estado avançado da doença, conversava com a terapeuta sobre o que deixaria para o garoto para que ele pudesse se lembrar dela. Dona Rosinalva não tinha mui27


TRATAMENTO Terapia com bola

tos bens nem dinheiro para deixar em testamento. “Tinha coisas para as quais dava valor e que deixaria com determinadas pessoas, mas não para o filho”, conta Lochaine. A ideia foi fazer algo que não se deteriorasse com o tempo, que o menino pudesse guardar e que servisse de lembrança quando estivesse grande. O fato de estar em um hospital e com o quadro já avançado da doença impossibilitava que a terapeuta introduzisse algum tipo de atividade mais complexa, por conta do risco de contaminação. “Dei a sugestão de fazermos um cachecol. Como era inverno, a durabilidade é boa e é algo que ele vai poder usar quando crescer", relata. “Nenhuma de nós duas sabíamos como fazer um cachecol, mas, como a vontade de fazer superava nosso conhecimento, começamos a aprender juntas. Passávamos o dia vendo vídeos na internet para aprender a fazer um cachecol. A gente se divertia durante o atendimento”. Faltando pouco para terminarem o cachecol, Dona Risonalva foi internada na UTI, onde não se pode entrar com nada vindo de fora, ainda mais uma agulha de crochê. “Quando voltei a vê-la, ela mantinha batimentos muito fracos e estava em uma espécie de coma. Me aproximei, disse que sabia da sua piora, que iria terminar o cachecol e o entregaria para o seu filho”, completa a profissional. 28

Um paciente pode entrar em coma por diferentes motivos, como tumores, traumatismo craniano, AVC, reações tóxicas a medicamentos, intoxicação causada por drogas ou outras substâncias tóxicas. Existem muitos estudos que dizem que os pacientes podem ouvir e estão atentos ao que acontece ao seu redor. “Quando falei do cachecol, os batimentos cardíacos subiram. Eu me arrepiei toda e não sabia se continuava falando com ela ou se pedia ajuda”, diz a TO. Momentos após a reação da Dona Risonalva, a equipe médica chegou e estabilizou o quadro dela. “Eu me despedi, fui embora e, naquele mesmo dia, horas depois, ela faleceu. Não sei se ela escutou, mas, se escutou, tenho certeza de que partiu aliviada”, completa Lochaine.

O caso dela é ainda mais complexo, porque, além de todos esses problemas, a menina é cega. “Ela pediu que eu a ensinasse a pôr suco no copo, algo que na condição dela era muito difícil”, diz Maria Luiza. “Primeiro, nós treinamos para que ela conseguisse pegar na alça da jarra, depois a colocar o suco em uma caneca, porém, ficou faltando, para ela, saber quando a caneca estava cheia. Afinal, ela era cega”. A solução para este caso a menina encontrou sozinha, colocando o polegar dentro do copo. Quando o líquido tocava o seu dedo, ela sabia que estava no limite. “Ela conseguiu fazer tudo do seu jeito e deu certo! Depois disso, o segundo passo foi ensiná-la a amarrar o sapato. Eu gravei um vídeo no celular demonstrando como ela deveria fazer, dei um sapatinho para que ela pudesse treinar em casa e, no dia seguinte, já Esperança estava fazendo tudo sozinha. Vê-la conA terapeuta ocupacional Maria Lui- seguir realizar coisas assim me enche de za Gomes contou sobre uma paciente esperança”, completa Maria Luiza. que tratou. “Atendi uma menina que é cega e que, além disso, tem um pro- Preso aos aparelhos blema que torna as mãos dela com- Em mais um dia de atendimentos no prometidas. Com isso, ela tem a parte hospital em que trabalha, a terapeuta sensorial diminuída”, conta a profis- ocupacional Tatiana Vieira recebeu sional. o pedido de um médico para que ela Para pacientes com problemas atendesse um paciente que estava na sensoriais nas mãos, uma simples ati- enfermaria. Seu Raul, já aposentado, vidade como segurar um garfo para co- sofre de um tipo de câncer de esôfago. mer ou pegar em uma maçaneta para Além disso, por causa de um Acidenabrir uma porta se torna muito difícil. te Vascular Encefálico (AVE), sofre

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de uma hemiplegia esquerda e quase não tem movimentos nos membros superiores e inferiores do lado direito. “Nosso atendimento demora um pouco, não é ir lá, perguntar algumas coisas e ir embora. Eu gasto um tempo grande com cada paciente”, afirma a terapeuta. Também por conta do AVE, Seu Raul teve a capacidade de fala prejudicada, o que afetou de maneira substancial a comunicação com o paciente. “Quando cheguei lá, parecia que ele estava morrendo, ele não falava e pouco se movia. Então, levei uma prancheta com papel e caneta para ele conseguir se comunicar. Sua capacidade de comunicação melhorou”, conta Tatiana Couto. Em alguns casos, quando o paciente sente muita dor, é costume dos médicos utilizar morfina como parte da medicação. Nestas condições, não se usa o método intravenoso convencional, mas uma bomba para aplicar o medicamento. Chegando ao quarto do Seu Raul, Tatiana percebeu que o paciente estava preso ao equipamento que administra a quantidade de morfina bombeada, e perguntou se ele estava melhor e o que havia feito naquele dia. Ele respondeu que tinha tomado banho no leito com a ajuda de enfermeiras, o que não fazia em casa. Ao saber que o Seu Raul tomava banho normalmente antes de chegar ao hospital, a terapeuta questionou a equipe médica sobre a adoção do procedimento. Quando o paciente está no hospital, a tendência é a de que ele fique cada vez mais dependente, pois está o tempo todo recebendo auxílio de enfermeiras e outros profissionais para se alimentar, ir ao banheiro e tomar banho. “Para um idoso, o simples fato de estar no hospital vai fazer com que ele tenha uma diminuição da capacidade funcional. É uma questão de independência. Se ele sair daqui tomando banho no leito, vai ficar cada vez mais dependente”. O trabalho da TO muitas vezes é o de devolver ao paciente a condição que ele tinha antes de chegar ao hospital. “O simples fato de fazer com que a pessoa realize ações do dia a dia ajuda não só na sua autoestima, mas também na própria qualidade de vida dele”, esclarece a TO.

Como a terapia ocupacional visa à recuperação de atividades do cotidiano, os terapeutas estão sempre buscando atividades que o paciente goste para introduzir ao tratamento. “O Seu Raul gostava de jogar cartas, jogava sempre com a esposa e com os amigos. Mas, por causa da falta de mobilidade, ele não podia segurar as cartas. Então, fizemos uma adaptação para ajudá-lo a segurá-las. Tiramos o paciente da condição de dependência total e o colocamos sentado. E, por conta disso, ele foi melhorando” conclui Tatiana.

Um dia após o outro Um terapeuta ocupacional (TO) lida com casos muito distintos. O paciente muitas vezes não tem nada, é uma pessoa plenamente saudável, mas, de repente, esta condição pode mudar completamente. “Eu tive um paciente que era pedreiro e ficou tetraplégico caindo de uma laje”, diz Tatiana. Um homem saudável que, em um acidente de trabalho, viu sua vida mudar drasticamente. “Ele era simples, dizia que não sabia que existia fisioterapia, imagine, então, a terapia ocupacional. E, de uma hora para outra, ele se vê dependendo totalmente de uma TO e de uma fisioterapeuta”, conta. No acidente, o paciente teve uma lesão grave e, normalmente, isto acarreta em uma série de problemas, incluindo dificuldades respiratórias. “Ele teve uma lesão alta, muito parecida com aquela menina do filme Menina de Ouro. A personagem teve uma lesão na vértebra C1 e, por causa disso,

precisou de uma traqueostomia, porque esta é uma lesão que pega o centro respiratório. A lesão dele foi na C2, então ele tinha muita dificuldade para respirar”, lembra Tatiana. Para melhorar o sistema respiratório do paciente, a equipe médica passou a pensar em técnicas que, mesmo tetraplégico, ele pudesse realizar. “Ele era gaitista e queria voltar a tocar, mas como um tetraplégico pode tocar gaita? Ele não podia segurá-la”, diz Tatiana. Para conseguir realizar a vontade dele, o instrumento foi adaptado à cadeira de rodas. “Era uma haste de ferro que ficava na cadeira, assim, ele mexia o pescoço e conseguia tocar a gaita. Esse simples movimento, aliado ao sopro, deu um resultado muito positivo na qualidade de vida do paciente”. Lochaine Sangaletti também conta o caso de um paciente que se tornou tetraplégico, só que este possuía alto poder aquisitivo. Ele se casou e foi passar a lua de mel nos Lençóis Maranhenses. Ao mergulhar nas piscinas naturais, achou que era fundo, mas não era. Caiu de cabeça nos arrecifes e fraturou três vértebras. “O mais complicado em situações assim é conseguir trabalhar a autoestima da pessoa. Faço o atendimento na casa dele e, muitas vezes, ele não aceita o tratamento”, afirma. “A gente precisa entender todo o contexto e se colocar no lugar do paciente. Ele é um homem jovem, que tinha acabado de se casar e estava em lua de mel. Talvez ele só possa mexer o pescoço até o fim da vida”, completa Lochaine.

TERAPIA DE MÃO Técnica em areia para restabelecer a sensibilidade das mãos

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Quanto vale a sua

QUALIDADE

DE VIDA?

A terapia ocupacional é uma profissão que poucos conhecem, mas é uma das mais humanizadas da área da saúde. Conheça um pouco mais sobre essa profissão apaixonante e extremamente importante na vida de milhões de pessoas pelo mundo

H

Thais Gomes

oje foi um dia atípico. Apesar de fazer as mesmas coisas todos os dias, a rotina se alterou. Estávamos apreensivas sobre como seria entrevistar alguém que trata pessoas com esquizofrenia, principalmente porque ainda não sabíamos com exatidão o que iríamos encontrar. Chegamos ao shopping que, apesar de movimentado, estava tranquilo. Era uma segunda-feira dessas que a gente só dá bom dia por educação. Pessoas com cara de quem só quer chegar em casa, tomar um banho e relaxar, mas o dia estava apenas começando. Ainda eram 9 horas da manhã, tanta coisa para fazer... e para ajudar, estava frio. São Paulo é uma cidade dessas em que o tempo muda do nada. Chegamos ao local combinado. Gabriela ainda não havia chegado. Ficamos esperando e conversando sobre o que iríamos perguntar. Muitas pessoas passaram por nós e durante breves momentos de silêncio, os devaneios nos levaram a pensar coisas absurdas. Várias pessoas passaram por nós e uma mulher sentou-se ao nosso lado. Será que ela tem esquizofrenia? Parece tão normal, mas será que é louca? E lá estávamos

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julgando, no silêncio de nossas mentes. É ridículo como estamos condicionados a julgar pessoas por conta de estereótipos que vemos e ouvimos todos os dias. Gabriela chegou, a simpatia em pessoa. Cumprimentou todos por onde passou e todos pareciam gostar muito dela. Subimos uma escadinha estreita de madeira e entramos numa sala vazia. Havia uma mesa no centro e várias cadeiras formando um círculo em volta. Ela ficou atrás da mesa e nós à sua frente. A pergunta básica foi: Como você se tornou terapeuta ocupacional? Diferente de muitos, Gabriela foi apresentada à terapia ocupacional por sua mãe. Ela era procuradora do setor jurídico da Universidade de São Paulo e estava atuando no caso de uma criança que teve sequelas devido a uma anestesia mal administrada. Com acesso aos prontuários, ela viu que a terapia ocupacional agora era parte da vida daquela criança, que estava acamada, e sugeriu que a Gabriela que pesquisasse sobre o assunto. Algum tempo depois, ainda sem entender o que era terapia ocupacional, Gabriela estava na faculdade. Sua vontade era trabalhar com crianças com problemas neurológicos, mas mal sabia ela que a vida a levaria para outro caminho.

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RELAXAMENTO Técnica para regeneração muscular

Todos os terapeutas ocupacionais devem fazer estágio em áreas predeterminadas. Quando Gabriela começou seu estágio em saúde mental, se apaixonou. Logo após o fim da faculdade, ela fez sua especialização e hoje é terapeuta ocupacional com foco em psiquiatria. O profissional de terapia ocupacional é muito completo. As áreas de atuação são amplas e seu trabalho é insubstituível, mas as pessoas só conhecem essa ocupação quando precisam dela. E, por falar em ocupação, é justamente sobre isso que se trata a terapia ocupacional.

“Pra gente interessa o que a pessoa faz com o que ela faz” Você tem uma vida. Em uma vida há uma infinidade de coisas e o ser principal da sua vida é você. A forma como você encara a vida é que vai determinar quem você será, mas e quando a sua razão, seu emocional ou suas funções motoras não respondem como deveriam? O desespero bate, a gente se sente perdido e muitas vezes nem comentamos com pessoas próximas por não querer incomodar ou por vergonha. A nossa mente é poderosa. Tudo que pensamos, ela cria. Se bate a ansiedade, o estresse, tudo se reflete em nosso corpo e assim os problemas viram

uma bola de neve. A grande maioria das pessoas que buscam ajuda através da terapia ocupacional o fazem por indicação médica. Muitos ainda a confundem com fisioterapia. Num primeiro momento, dependendo da abordagem do terapeuta, as dinâmicas podem parecer aulas de artesanato, passeios ou outras coisas, mas o trabalho de um terapeuta ocupacional vai muito além. Imagine um açougueiro no auge dos seus 30 anos. Acostumado a acordar cedo, pegar 2 ônibus para o trabalho e, ao chegar lá, trocar de roupa, calçar a galocha, colocar touca, avental e, às vezes vestir uma luva de malha metálica. Num primeiro momento isso parece simples, mas imagine que ele sofreu um corte profundo no polegar dominante que afetou seus movimentos. Uma tarefa corriqueira como abotoar a camisa, amarrar os sapatos ou fechar o zíper de uma calça se torna complicada. Aos poucos, ele vai percebendo que coisas simples como segurar um garfo para comer se tornam um tormento. O terapeuta ocupacional iria intervir na vida do nosso açougueiro de todas as maneiras possíveis. Ele oferece um leque infinito de opções para ajudar nas atividades diárias

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dele. Ele faz um levantamento de tudo que o açougueiro faz e precisa fazer durante um dia e trabalha em cima delas. Não são apenas os movimentos do corpo, ele busca resgatar o psicológico, o emocional e a independência do açougueiro. Cada caso é um caso, principalmente na terapia ocupacional. A princípio pode parecer que ela se assemelhe a várias outras profissões. Este é também um fator que faz com que a profissão seja uma incógnita para muitos. Gabriela, nossa terapeuta lá do início, nos deu um exemplo claro de como um terapeuta ocupacional com foco em psiquiatria atua na vida de uma pessoa. É como a pessoa aprende a se reorganizar, avaliar o que é bom em sua vida. O terapeuta ajuda a pessoa a fazer tudo que ela fazia antes, mas dentro das suas possibilidades. Nada será exatamente igual como foi antes e é preciso fazer as coisas de outra maneira. Isso transforma qualquer ser humano.

“Todos nós temos uma necessidade intrínseca de fazer alguma coisa” Trabalho nem sempre é o que paga suas contas, ele vai muito além e é assim que a terapia ocupacional atua. Para um terapeuta ocupacional, tudo 31


ALONGAMENTO Exercício para recuperação de movimentos

o que importa é a sua independência. Estar inserido na comunidade, vivendo em sociedade, ter um trabalho, estudar e fazer coisas que qualquer ser humano poderia fazer é direito de todos. Estar ocupado tem vários significados e na terapia isso não é diferente. Em um dado momento da vida você pode acordar e ao colocar os pés no chão, sentir o macio do tapete e achar que é areia movediça. Pode estar sentado na sala vendo televisão e se perder num mundo onde não dá para saber o que é real. Tudo vira um martírio e faz com que você se sinta incapaz de tudo. Seu psicológico nessas horas sempre trabalha contra você, fazendo você se sentir o ser mais inútil do planeta. Você está sob efeito de uma onda de pensamentos que não deveriam estar ali e não distingue coisas simples como hora do almoço ou jantar. Como se não bastasse, vozes em sua cabeça te fazem pensar em se matar ou machucar alguém que você gosta muito. Você chega ao seu limite e já não consegue saber o que é real e o que é invenção e aí vem o apagão. Quando uma pessoa tem um surto psicológico, ela fica debilitada para tarefas cotidianas por mais simples que sejam. A medicação é muito importante, mas não traz de volta aquela sua essência, quem você era. O 32

terapeuta ajuda a restabelecer horários, tarefas, movimentos, tudo o que você é, mas foi perdido com o surto. Nise da Silveira - a precursora da Terapia Ocupacional no Brasil Tudo começou em 1926 quando Nise da Silveira foi admitida na Faculdade de Medicina da Bahia. A pequena nordestina veio para o mundo da medicina sem saber que seu trabalho seria tão importante durante tantas gerações. Ser mulher hoje em dia não é fácil, mas nos anos 40 no Brasil era ainda mais difícil. Uma das primeiras mulheres do país a se formar em medicina se mudou ainda jovem para o Rio de Janeiro onde começou sua atuação em clínicas e hospitais psiquiátricos. Pessoas viviam à base de choques, espancamentos e muitas vezes eram completamente isoladas do convívio humano. Outras tantas viviam presas em camisas de forças e padeciam em suas próprias “loucuras”. Até hoje muito se questiona sobre o tratamento dado a pessoas portadoras de doenças mentais, mas naquela época isso não tinha importância. Os “loucos” não tinham voz, não tinham vontades e viviam à mercê das vontades humanas dos que estudavam para tratá-los. Nise viveu na pele o que muitos internos passaram durante anos de

tratamento em clínicas que prometiam a cura por meio de tortura. As marcas que a ditadura deixou em sua pele e sua mente não fizeram com que ela desistisse de buscar um tratamento digno para seus pacientes. Após 18 meses presa numa cela entre tantas mulheres fortes, como Olga Benário, ela se manteve longe dos holofotes da medicina, mas em 1944 foi contratada pelo Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II no Rio de Janeiro. Tudo que é novo causa desconforto e Nise começou a incomodar seus colegas de profissão quando propôs novas formas de tratamento. Ela conheceu na Terapia Ocupacional por acaso e sua contribuição para a psiquiatria revolucionou a área. Carl Gustav Jung, sua principal fonte inspiradora, abraçou sua ideia, dando destaque mundial às suas abordagens. Assim nos conta Solange Tedesco Terapeuta Ocupacional do Programa de Esquizofrenia da Universidade Federal de São Paulo. Formada desde 1983, Solange sempre trabalhou na área de saúde mental e destaca uma correlação da terapia ocupacional com o feminismo. “Antes as mulheres tinham um papel voltado ao cuidado. Seja da casa, seja das crianças, as mulheres eram vistas como pessoas que estavam ali para servir. Até a sociedade

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THERASUIT Método para correção de postura

médica as via assim e, com a terapia ocupacional, não seria diferente”, diz Solange. Essa romantização do cuidado e do ser materno sempre colocou as mulheres como seres inferiores aos homens e isso se reflete até os dias de hoje. A grande maioria de terapeutas ocupacionais entrevistados são mulheres. “Como as mulheres seriam inseridas no mercado de trabalho sem que houvesse disputa com os homens? Nas primeiras turmas, homens tinham que se candidatar para estudar, já para as mulheres bastava querer estar ali.” Mulheres são estereotipadas em todos os sentidos. A discussão a respeito da violência e dos abusos contra mulheres está mais em pauta do que nunca. Nos dias de hoje elas cuidam da casa, dos filhos, maridos, trabalham fora e fazem outros milhões de coisas e ainda são inferiorizadas. Isso se assemelha ao trabalho de um terapeuta ocupacional. Muitos se desdobram em vários para se tornar um profissional completo. Outros tantos traçam carreira e se aperfeiçoam em uma especialidade, mas em sua formação aprendem a lidar com o ser humano como um todo, não apenas com aquilo que causa o sofrimento, mas todas as suas ra-

ízes. Esse é o principal diferencial do terapeuta ocupacional em relação a outros profissionais da saúde. Quando vemos uma pessoa de jaleco branco, logo imaginamos que ela é médica. Quando vemos alguém segurando um microfone, sabemos que ela é jornalista. Muitas profissões são facilmente identificáveis quando temos objetos que as representam, mas com a terapia ocupacional é diferente. Solange afirma que muitos estudantes abandonam o curso por não conseguir enxergar a subjetividade da profissão. “Ele chega e fala que trabalha desenvolvendo as habilidades humanas de outra pessoa e muita gente não entende isso logo de cara”, diz. "Ah, o que você vai fazer, ocupar o tempo?" Esta foi uma pergunta que Lochaine Sangalleti ouviu ao chegar à casa de um paciente. “Lá vem ela com os brinquedinhos dela”. Não era isso que a terapeuta ocupacional formada em 2011 gostaria de ouvir. Lochaine trabalhou em diversas áreas e locais e por todos eles sempre ouvia algo do tipo. Cada lugar tem sua particularidade e seus contras, e, em seu atual emprego, não foi diferente. Trabalhando em home care há algum tempo, ela conta que muitas fa-

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mílias ainda não fazem ideia de como um terapeuta ocupacional trabalha. Desde crianças até idosos, em todos os campos da vida, o terapeuta devolve o que foi perdido: a independência de seus pacientes. Para obter sucesso, o terapeuta que trabalha em home care tem que contar com a ajuda da família do paciente e, muitas vezes, dependendo da necessidade, de outros profissionais. Muitos procuram ajuda apenas quando veem que não vão dar conta de cuidar da pessoa, não entendem que ela precisa recuperar sua autonomia. “Tem famílias que percebem a limitação do paciente e nem investem mais nele”, conta Lochaine. As pessoas têm suas vidas e suas individualidades e, dependendo do trauma, seja físico ou psicológico, grande parte disso é perdido e é aí que o terapeuta ocupacional vai trabalhar. Mas e quando a própria família não entende isso?

"As pessoas não têm paciência!" É mais fácil fazer do que perder tempo ensinando. Quantas vezes já não fizemos isso na vida, não é mesmo? A maioria delas não é por mal, mas essa falta de paciência acaba por fazer com que as pessoas que sofreram algum tipo de perda se sintam inúteis. Elas já têm dificuldade para fazer 33


SENSIBILIDADE Objeto para estímulo tátil

certas atividades e, ao tratá-las dessa forma, elas sentem que são incapazes de fazer qualquer coisa. Quando uma criança começa a comer papinhas, a mãe leva a comida até sua boca e, em determinado momento de suas vidas, elas aprendem a comer sozinhas. Anos mais tarde, essa pessoa sofre um acidente e perde grande parte dos movimentos de seu braço e de sua mão. Um terapeuta ocupacional vai trabalhar com órteses e utensílios que vão auxiliar esta pessoa a recuperar os movimentos do braço e da mão. Ela vai reaprender a comer, se vestir, tomar banho sozinha, tudo dentro de suas possibilidades. Porém, um terapeuta não vai ficar com essa pessoa 24 horas por dia. Muitas vezes, a família tem que ajudar. Entretanto a falta de paciência demonstrada por eles pode atrapalhar o paciente, e, dependendo do quadro clínico, até atrapalhar. Lochaine conta que, mesmo com todos os contras, prefere trabalhar no home care. “A parte boa é que você está dentro da casa do paciente, dentro do mundo dele. A primeira coisa que faço é uma avaliação onde pego o diagnóstico, histórico, aspectos da casa e a rotina do paciente”, diz. Para Lochaine, é essencial fazer avaliações periódicas dos pacientes. Em muitos casos, há grandes chances 34

de melhora e essa constante avaliação ajuda a traçar os objetivos. Entretanto, em muitos casos, não há mínima chance de melhora, apenas manutenção da situação atual. Nestes casos, ela prefere não dar um diagnóstico. “Eu nunca fecho diagnóstico. Se eu fiz uma avaliação e está na cara que o paciente não vai voltar nunca mais a ser como era, faço uma manutenção para melhorar a qualidade de vida e dar maior independência para ele. Eu nunca vou falar isso para a família, não cabe ao terapeuta ou ao fisioterapeuta falar isso, cabe ao médico” completa Lochaine.

Trabalho além do paciente Um terapeuta ocupacional trabalha em todos os campos da vida de seu paciente. Nunca é só a questão psicológica ou a recuperação de seus movimentos. É necessário um resgate da essência daquele ser. Muitas pessoas não sabem enfrentar a perda e o terapeuta tem que estar preparado para lidar com isso. O trabalho é tão intenso que, muitas vezes, até os familiares precisam de cuidado. Todo o ambiente familiar tem que estar bem para o paciente conseguir se recuperar sem recaídas. Muitas famílias têm condições de contratar um terapeuta particular, mas muitas outras dependem do ser-

viço público. Ana Elisa de Almeida é especialista em atendimento multiprofissional em geriatria e gerontologia, e trabalha em uma Unidade de Referência à Saúde do Idoso na Zona Norte de São Paulo. Ela nos conta que o trabalho com idosos é diferente do trabalho feito com pessoas mais jovens. Entre os mais velhos, já não há a necessidade de voltar ao trabalho remunerado. Muitos que sofreram algum tipo de trauma precisam apenas de uma boa qualidade de vida. Com eles é preciso resgatar a vontade de estar vivo. Temos o costume de pensar que uma pessoa idosa está cansada da vida, já está velha demais para sair, se divertir ou até mesmo para se preocupar em fazer tarefas para passar o tempo. Isso é completamente errado. O trabalho com o pessoal da terceira idade é diferente por isso. Para Ana Elisa, ele deve ser dividido. Muitos relatam que tiveram um problema a vida toda e outros contam que os problemas começaram depois de velhos. É a partir daí que a terapia vai trabalhar. Muitos têm questões motoras envolvidas, mas a grande maioria necessita de um trabalho psicológico complementar. Eles são condicionados a pensar que devem ficar reclusos, que a velhice só serve para esperar a morte, mas não é bem assim. Não é porque eles têm

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JOGO INTERATIVO Recurso para raciocínio lógico

uma limitação que devem deixar de fazer coisas que gostariam de realizar. Ana, que também é pedagoga, conta que o meio em que o idoso vive interfere muito em como ele encara a vida. “Existe uma expressão muito usada em pedagogia que se chama: ’profecia auto realizadora’. Se você fala muito para uma criança: ‘Nossa, você é lerda, nossa, você é lerda’, ela vai ter dificuldade em assimilar as coisas porque passa a acreditar que é isso que você espera dela. Eu vejo que muitos idosos estão adoecendo hoje física e mentalmente porque estão tentando ser o que se espera que um idoso seja, eles ficam enfraquecidos socialmente” completa a profissional. É aí que o trabalho com a família entra. Para um idoso receber o devido cuidado, a família precisa estar bem amparada para saber ajudá-lo. Há terapeutas que fazem questão de envolver os familiares, como é caso de Maria Luisa, terapeuta ocupacional desde os anos 80. Ela atende bebês e crianças e diz que a presença dos familiares é fundamental. “Quando você coloca a criança em um carrinho de bebê adaptado e a pega no colo tem muita diferença. Isso é questão de crescimento emocional. A mãe não consegue ficar o tempo todo com o bebê no colo, então temos que adaptar um carrinho para

facilitar a convivência deles. Assim, vamos ter um equipamento que não cria deformidades na criança e, ao mesmo tempo, vai ajudar a família.” Cada caso é um caso e a quantidade de sessões depende do quadro clínico do paciente. Ele passa a maior parte do tempo com a família e isso impacta no tratamento. O terapeuta deve ter o cuidado de passar as orientações corretas para os familiares e aconselhá-los sobre os cuidados, exercícios e atividades que o paciente deve fazer quando o terapeuta não está presente.

Nem tudo são flores Para se tornar um terapeuta ocupacional, é preciso estudar em uma boa faculdade. São Paulo conta com faculdades particulares e públicas com bons cursos, mas e depois de formado? Muitos profissionais buscam clínicas para trabalhar, mas nem todos conseguem fazer especializações e aprimoramentos. Kamyla Roque, de 28 anos, se formou na Universidade de São Paulo em 2013 e trabalha hoje na Rede de Reabilitação Lucy Montoro. A rede, criada pelo Governo do Estado de São Paulo, é referência em reabilitação de pacientes com deficiências físicas incapacitantes, motoras e sensório-motoras.

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Segundo Kamyla, há todo um processo de triagem para se descobrir de que tipo de profissionais e de quais abordagens o paciente vai precisar. Se um paciente precisa de massinha de modelar, brinquedos específicos e outros objetos, muitas vezes é o terapeuta que tem que providenciar, pois a instituição não arca com todos os custos. “Alguns equipamentos, brinquedos, comidas são compradas com dinheiro do bolso da própria terapeuta, mas, se necessário, a instituição ajuda. Outras vezes, também o próprio paciente compra. Mas a maioria das instituições fornece”, completa Kamyla. Não é o que nos conta Ana Elisa. Na URSI, onde ela trabalha, os recursos são escassos. Antes, a unidade era gerida pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e possuía uma infraestrutura mínima para a terapeuta trabalhar, mas hoje a situação é diferente. Uma nova empresa é quem gere a URSI e ela cortou boa parte dos recursos antes disponíveis. Atender idosos em uma sala pequena, com infiltração, sem pintura e sem os materiais necessários é o que Ana Elisa enfrenta todos os dias. “Quem assumiu não tem nenhum compromisso com qualidade, o negócio deles é quantidade. Tem que mandar os números, eles não querem 35


NÃO RECONHECEM O TRABALHO DA TERAPIA OCUPACIONAL. Acham que os idosos vão lá apenas para ocupar tempo saber se atendemos em cinco ou quarenta minutos”, diz Ana Elisa. Ela ainda conta que, antes, a sala de atendimento era dividida entre outros cinco profissionais, o que tornava impossível de se fazer um atendimento bem feito com tantas pessoas na sala. “Vira uma feira livre, muitos pacientes têm problemas de audição. Batalhamos muito por essa sala nova e eu disse para o pessoal para nós mesmos a reformarmos. Se a gente quer fazer bem feito, a gente tem que tocar”, completa a profissional. A equipe de trabalho é completa, mas, quando falta infraestrutura, os profissionais têm de se mexer para conseguir trabalhar da maneira correta. O mínimo que se espera de um local que oferece esse tipo de atendimento é uma infraestrutura que possibilite um tratamento bem feito, sem interferências e saudável para o ser humano. O Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo tem melhorado as condições de trabalho para seus profissionais. Hoje, o setor de terapia ocupacional e fisioterapia conta com um prédio inteiramente novo, salas grandes e com os materiais necessários para se fazer um atendimento de qualidade para seus servidores. Porém, nem sempre foi assim e ainda há muito para mudar. O setor de terapia ocupacional tem apenas pouco mais de um ano de existência e são apenas cinco profissionais que cuidam de terapia de mão e ortopedia, neurologia, geriatria e psiquiatria. Tatiana Vieira, atual presidente da Associação dos Terapeutas Ocupacionais do Estado de São Paulo, é quem realiza cuidados paliativos nos idosos. O hospital é particular e tem capacidade para 700 leitos, mas está em reforma e este número pode aumentar para 900, tudo isso para apenas cinco 36

terapeutas ocupacionais. Claro que não são todos os pacientes que precisam de acompanhamento, mas o número de profissionais é irrisório quando em comparado ao número de pacientes. Apesar de tudo, os materiais utilizados em reabilitação física e neurológica são bons e possibilitam que a terapia siga sem muitas interferências. A área de psiquiatria, entretanto, deixa a desejar, como conta Tatiana. Segundo ela, o hospital não aproveita a terapia ocupacional como deveria: “Não reconhecem o trabalho da terapia ocupacional. Acham que os idosos vão lá apenas para ocupar tempo”. Além da infraestrutura muitas vezes precária, muitos terapeutas ocupacionais têm ainda que lidar com a falta de conhecimento da profissão por parte das pessoas em geral e, muitas vezes, até entre os colegas de trabalho. Camila Grespan trabalha atualmente em um hospital, mas já trabalhou em locais como a Rede Lucy Montoro. Ela comenta que, dentro do próprio local de trabalho, os profissionais ainda confundem sua área de atuação. “Eu atendo dentro de um setor de fisioterapia, então todos me chamam de fisioterapeuta. No hospital, só tem eu de terapeuta ocupacional, o restante são fisioterapeutas. Os pacientes que sabem o que é a terapia ocupacional me procuram no particular quando precisam de alguma órtese, pois a terapeuta ocupacional deles não faz. No hospital é bem difícil, nem os próprios médicos sabem o que é a terapia ocupacional. Os cirurgiões de mão até sabem, mas os médicos em geral desconhecem”, relata. Como trabalhar em um local onde nem os próprios colegas sabem o que você faz? Alguns profissionais atribuem isto ao Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional de São Paulo.

O CREFITO regulamenta as profissões de fisioterapia e terapia ocupacional em São Paulo e muitas demandas acabam sendo iguais para as duas carreiras. “Por ter o mesmo conselho da fisioterapia, o CREFITO deixa a terapia ocupacional às sombras. Não há um consenso no próprio conselho sobre o que é de cada um. Um trabalho feito de forma deficiente acaba sendo ruim para o próprio usuário”, diz uma terapeuta ocupacional que preferiu não se identificar. A terapia ocupacional chegou ao Brasil quando não se sabia muito sobre a profissão. O cuidado demandado pelo profissional faz com que a profissão não possa ser substituída. Ainda há muito o que mudar, muito para se conhecer e, principalmente, divulgar. Dez de dez profissionais entrevistados citaram a falta de divulgação como principal fator para o não conhecimento da carreira pela população em geral. Muitos convênios disponibilizam a terapia ocupacional, mas em um número muito menor que o da fisioterapia, por exemplo. Muitos pacientes começam o tratamento, mas, como o convênio não cobre todas as sessões necessárias, o tratamento não é completado. No Sistema Único de Saúde, o número de profissionais não acompanha o número de pacientes, o que deixa todo o sistema sobrecarregado. Estamos engatinhando quando o assunto é a divulgação da terapia ocupacional. Quem conhece a profissão normalmente é só quem precisa dela, sendo que, para a maioria das pessoas, é um tratamento dispensável. A divulgação e a informação são aliadas e o trabalho dos terapeutas ocupacionais merece destaque no cenário nacional. Um profissional que se doa e faz seu trabalho da forma mais humana possível merece ser reconhecido por isso.

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UM DESAFIO

que pede PAIXÃO O mercado de trabalho do terapeuta ocupacional não corresponde ao impacto da atuação do profissional na reabilitação do indivíduo e na sua independência. Ele existe, mas ainda é limitado pela escassez de cursos de graduação na área, pela falta de divulgação de seus benefícios entre o público leigo e pelo pouco apoio de outras especializações e dos conselhos reguladores da profissão. Luiz Guilherme Viana

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eria a paixão o único motivo para alguém se tornar um terapeuta ocupacional? A baixa remuneração e o número pequeno de graduações levam a essa indagação. Há setenta cursos de graduação autorizados pelo MEC, sendo que 30% estão em São Paulo, enquanto oito estados brasileiros sequer possuem esta formação em suas universidades, sejam públicas ou privadas. O piso salarial da categoria não chega a três mil reais e a grande maioria dos profissionais (se não todos) trabalham em mais de um emprego. Uma reação em cadeia é responsável pela crise na profissão: a má remuneração gera a falta de interesse pelo curso e, em consequência, a escassez de ofertas pelas instituições de ensino. Ou a relação de causa e efeito seria inversa? Gabriela Cruz de Morais toca em outra questão que representa uma das principais dificuldades da terapia ocupacional: desconhecimento. A profissão é pouquíssimo divulgada e associada a outras áreas da saúde, principalmente a fisioterapia. Mas, afinal, qual é o futuro que aguarda a terapia ocupacional? Será que

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uma maior divulgação é suficiente para gerar mais procura pelo curso, ampliar o mercado de trabalho e a motivação dos próprios terapeutas ocupacionais? Kamila Roque não acredita que a profissão ainda tenha tempo de ter o reconhecimento que merece e que deixará de existir no futuro: “Eu acho que um dia a TO vai acabar, tenho medo. Acho por que hoje em dia não tem mais procura. Hoje, existem poucas faculdades que tem o curso de TO, você fica com receio. Se um dia não tiver mais TO no mercado para suprir as necessidades, outras pessoas vão ter que supri-las.” Por outro lado, o time que encara o futuro da terapia ocupacional com otimismo é bem grande e realmente acredita que a tendência é que, a cada dia mais, a profissão se torne conhecida. Maria Luisa, por exemplo, possui uma estrada maior na terapia ocupacional e analisa os progressos da profissão:”Eu acho que está crescendo muito. Cheguei ao Brasil em 1981 e as pessoas não sabiam o que era terapia ocupacional. Foi um trabalho muito árduo. Hoje em dia, tem muita gente que conhece. Alguns hospitais estão sendo convidados a ter uma terapeuta ocu37


pacional porque eles estão começando a entender que a reabilitação não se faz apenas na questão motora simples, tem outros aspectos.” E como ganhar dinheiro fazendo o que ama em um cenário tão cheio de desafios? A formula é a mesma de quase todas as profissões, conta Ana Elisa Gonçalves de Almeida Cavalini: “Eu não temo pelo futuro da terapia ocupacional, muito pelo contrário, acho que estão se formando muitos terapeutas ocupacionais bons. E tem que estudar. Como em qualquer profissão, tem aquele cara que termina a faculdade e não quer nem saber, e tem aquele que abre mão de um monte de coisas. Varia de pessoas de um modo geral.”

Pensando puramente na fórmula: “amor pela profissão + dinheiro” é que alguns profissionais se desdobram para poder sobreviver do exercício da terapia ocupacional, e, para Lochaine Sangaletti, que atende através de home care, vale a pena trabalhar ao máximo: “A maioria das amigas que conheço só procura CLT e se contentam em ganhar pouco. Eu nunca me importei, quero mais é trabalho. Prefiro dar o gás agora que sou nova para lá na frente poder dar uma diminuída no ritmo.” Apesar do otimismo, Lochaine volta a bater na tecla da falta de divulgação: “O TO não se divulga, não tem muito no mercado, são poucas as universidades que têm o curso e não é todo mundo que consegue passar em uma USP.”

ÓRGÃOS REGULADORES DA PROFISSÃO Em São Paulo são os seguintes: CREFITO 3 (Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Terceira Região)

Tem como finalidade principal a fiscalização do exercício profissional de fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. É responsável também por expedir a carteira de identidade profissional e o cartão de identificação aos profissionais registrados. Funciona ainda como Tribunal de Ética, recebendo as denúncias que lhe são encaminhadas quanto à atuação de profissionais inscritos. Arrecada anuidades, multas, taxas e emolumentos, que compõem a receita para efetivação de seus objetivos, repassando ao Conselho Federal sua cota, parte determinada na legislação. Divide muitas opiniões dos terapeutas ocupacionais por ser um conselho em conjunto com a fisioterapia. Alguns acreditam que a terapia ocupacional sai desprivilegiada.

SINFITO SP (Sindicato dos Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais do Estado de São Paulo)

Negocia anualmente com os sindicatos patronais o reajuste salarial dos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais registrados. O reajuste é definido, de acordo com o índice da inflação, em uma convenção coletiva, que também proporciona outros benefícios para o terapeuta ocupacional, como: auxílio creche, cesta básica, insalubridade entre outros. Atualmente, o piso salarial do terapeuta ocupacional para as empresas privadas (SINDHOSP) é de R$ 2.645.00 para 30 horas semanais. Para as instituições filantrópicas (SINDHOSFIL), é de R$ 2.627.68 para 30 horas semanais.

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ATOE SP (Associação dos Terapeutas Ocupacionais do Estado de São Paulo)

Representa a cidade e mais 617 municípios. Diferentemente do conselho e do sindicato, a contribuição é voluntária. Associando-se à ATOESP, o profissional tem benefícios, como descontos em congresso, além de participar ativamente da luta pela visibilidade da profissão. A ATOESP passa hoje por uma crise com poucos contribuintes e sem representantes dispostos a assumirem a nova equipe de presidência da associação. A presidente atual, Tatiana Couto, disse em entrevista que após duas gestões, que somam nove anos no cargo, não tem mais condições físicas e psíquicas de continuar na atividade.

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REAPRENDENDO A VIVER Falar de terapia ocupacional (TO) pode ser fácil, mas só quem já fez ou faz pode realmente nos contar quais foram suas dificuldades na vida e como reaprenderam a viver com a ajuda da TO. Natalia Torres

READQUIRINDO CONFIANÇA

Passa um pouco das oito “Em 2013, fui baleado. Com um tiro na cohoras da noite. Sentada luna, sofri uma lesão na medula e acabei perna mesa de um bar, trodendo praticamente metade do movimento co mensagens com Diego do corpo. Com a lesão, o tronco sofreu bastanLima: “Vou atrasar um te, por isso tenho um pouco de desequilíbrio”. pouquinho, mas já estou Uma tentativa de assalto pode ter vários fins. chegando”, diz ele. Para Diego, este infeliz acontecimento muOs amigos de Diego, dou totalmente sua vida. um jovem de 23 anos, o Após o acidente, ele passou por diversos prodescrevem como um rafissionais, como psicólogos, fisioterapeutas, paz simpático, um poufisiatras e terapeutas ocupacionais. “Tive que co tímido, mas muito me readaptar por inteiro”, comenta. Seu trade bem com a vida. Há tamento foi na rede Lucy Montoro, onde fez, uns cinco anos, ele corria pelo bairro da Moodurante um ano e meio, terapia ocupacional ca, em São Paulo, feliz apenas duas vezes por semana. por existir. “Ele sempre foi muiTO me ajudou bastante nos No começo, tinha “A to brincalhão, gostava de fazer afazeres do dia a dia e de casa, medo de andar graça com os outros meninos. como lavar uma louça – na verEu jogava bola com ele e andava na rua, pensava dade eu nem lavo louça –, mas de bicicleta, ele fazia até umas que ia cair, mas, como dobrar uma roupa, arrumanobras na BMX (modelo de mar uma cama, a se adaptar bicicleta). Sempre foi uma pes- com o tratamento, novamente. Voltei a fazer coisas soa muito ativa”, conta Eder simples, que passam despercebifui evoluindo Gama, um dos proprietários do das pelas pessoas, como colocar e ganhando bar e amigo de Diego. um sapato”. confiança. Chegando ao bar, ele pede ao Após quatro anos desde o acioutro dono do estabelecimento dente, Diego não precisa mais que o ajude a subir um pequeno degrau, já fazer terapia ocupacional. “Como foi uma leque, em cima de uma cadeira de rodas, não são neurológica, depende muito do organismo consegue mais fazer isso sozinho. Com seu e de regeneração”, explica. jeito tímido, mas com um enorme sorriso no Hoje, ele trabalha, mora sozinho e se locomove rosto, ele relata sua história e como passou a por sua conta, seja para ir ao trabalho ou simconhecer a terapia ocupacional (TO). plesmente para encontrar os amigos no bar.

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NOVOS INGREDIENTES PARA A VIDA

Um álbum de fotograsara percebeu que também precisava ter uma fias pode trazer muitas vida além de cuidar da mãe. Uma atividade memórias do passado, que foi passada para as duas acabou virando mas para Dona Maria uma nova fonte de renda para a família: “fui Cunaria, 87 anos, nafazer um curso de bolacha decorada, imagiquele álbum da família nando que ela (a mãe) pudesse fazer comigo, não há mais lembranmas ela não se interessou, e eu, sem querer, ças. Pelo menos não das comecei a gostar e comecei a vender, então quais ela se lembre. comecei a fazer as bolachas e queria que ela Sua filha Jussara pega me ajudasse, mas que isso fosse para ela uma o álbum de fotos e mosatividade mesmo, mas ela já não tinha mais tra à mãe. Dona Maria o controle. Aí eu comecei a dar as bolachas olha e fala: “Quem é para conhecidos que foram divulgando inessa mulher que está com meu marido?” Ela formalmente, aí virou a ‘Ju Bolachas decoacha que é sua outra filha, Sandra. Olhando radas’”. uma fotografia dela mesma vestida de noiva, Mesmo com o desânimo e falta de interesse diz: “Nossa, que moça bonitinha!” de Dona Maria pelos biscoitos, a profissional Não se reconhece, não se identifica. As lemnão desistiu! Toda quinta-feira é dia de ir branças de uma longa vida vão se perdendo. para a cozinha na casa dos Cunaria. E assim vai, um dia após o outro. Tatiana resgatou o prazer que Dona Maria Em uma terça-feira à tarde, Jussara está em tinha na cozinha ao preparar as festas dos casa, cuidando da mãe. Faz isso há filhos e dos netos e transformou dois anos, já que o Alzheimer de isto em uma atividade para coloDona Maria foi descoberto há três. A TO te ajuda a car a simpática senhora em ação. A doença, que chega aos poucos, “Ela vai para cozinha, pega os mostrar que ela começou a ser percebida pela faingredientes, troca informações pode estar com com a mamãe. Às vezes ela não mília após diferentes episódios de ausência de memória, como quer fazer, mas aí a Tatiana pega dificuldades, quando, em uma viagem de fim no pé dela, ajuda a enrolar um mas ainda de ano a um hotel fazenda, Dona docinho, e isso vai remetendo um tem coisa para pouco ao passado, né? O mais Maria achava que aquele lugar era sua casa. Ela não se situava. aproveitar dela. importante é essa qualidade de O falecimento do marido e, logo vida, porque, se deixar, ela vai depois, o de um primo próximo, ficar o dia inteiro na cama, e isso fez com que o estado de Dona Maria piorasnão é vida”, comenta Jussara. se. Foi aí que o geriatra da família indicou a Além da cozinha, Dona Maria sempre gostou terapia ocupacional (TO). de fazer bordados. Sua cuidadora, Andrea, a Quem nos conta essa história é a própria Jusajuda nessa tarefa e comenta que isto comsara, já que o Alzheimer de Dona Maria está plementa o trabalho da terapia ocupacional. em um estado avançado. “Tem momentos que ela borda tudo certinho, Jussara diz que, no início do tratamento com mas tem momentos que é tudo uma bagunça, a terapia ocupacional, todos ficaram com mas aí, no dia seguinte, ela desmancha e faz medo, mas, aos poucos, foram percebendo e tudo certinho e ainda pergunta: ‘Nossa, mas tendo um entendimento do que realmente esquem é que fez isso?’”. tava sendo feito. Sempre há esperança na vida. Qualquer pesA terapeuta ocupacional Tatiana Couto cuisoa, como a Dona Maria, por exemplo, pode da não só de Dona Maria, mas também da estar com dificuldades, mas sempre há coisas família toda. Com ajuda da profissional, Jusboas para serem resgatadas e aproveitadas.

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TRATAMENTO INTEGRADO E CONTÍNUO

A esquizofrenia é uma ganizado depois do surto. Você não consegue doença que pode trazer fazer uma série de coisas que antes você tinha muito sofrimento para facilidade, como se vestir, tomar banho, fazer a vida de uma pessoa higiene pessoal. Tudo isso fica prejudicado e e seus familiares. Só a terapia ocupacional te ajuda a organizar”. quem vive com ela pode Por meio da terapia ocupacional, os paciendizer qual o verdadeiro tes esquizofrênicos criam autoconfiança, ausentimento ao se descotoestima, um senso de pertencimento na sobrir a doença. ciedade. Hoje, José é Presidente da ABRE “Ninguém quer a loucu(Associação Brasileira de Familiares, Amigos ra, ninguém quer estar e Pessoas com Esquizofrenia), uma extensão perto da loucura e da do Programa de Esquizofrenia (PROESQ). esquizofrenia, mais ainA ABRE tem um projeto que contempla o da porque ela é associada à violência e a uma trabalho da terapia ocupacional, oferecendo série de coisas ruins. Quando a pessoa é diagcursos que buscam a capacitação dos paciennosticada com um transtorno mental ou um tes para ajudar na organização de suas vidas, surto psicótico, fica naquela condição à mercê como escrita, filosofia, teatro, artes plásticas, de começar o tratamento, fotografia, música e ine é muito difícil. Primeiro glês. Familiares e outras A TO é fundamental em vem a aceitação de você pessoas também podem entender que tem um participar destas oficinas. todos os sentidos e você só transtorno e aceitar o mea conhece quando tem uma Jorge Candido de Assis dicamento. Eu demorei também possui esquizodoença mental, se sofre vários anos para aceitar frenia e, com ajuda da tea tomar a medicação, que rapia ocupacional em seu um acidente ou se tem um é para o resto da vida já problema na vida. Aí vem as tratamento, conseguiu que a esquizofrenia não diminuir sua dosagem de TOs para tentar te mostrar remédios. “O trabalho tem cura, só tem trataum novo caminho, uma mento e controle. Então com a TO foi um vínculo no começo eu tomava, e um ponto de virada na construção, um desejo de melhorava, largava... E minha vida, um marco. reconstruir o indivíduo. surtava de novo. Por isso, Ela me ajudou a reconstodo o tratamento psitruir meu mundo interior cossocial não é só com o médico que passa os e, a partir da metade de 2001, eu mudei o reremédios, mas também com psicólogos, teramédio forte que eu tomava para um remédio peutas ocupacionais (TO), com um conjunto de segunda geração e consegui sair daquela de profissionais que abrem a oportunidade de situação cognitiva muito comprometedora”. construir uma colaboração”. A terapia ocupacional foi muito além na vida Foi assim que José Orsi reagiu ao ser diagde Jorge. Conversando com sua TO, ele exnosticado com esquizofrenia. No começo, era pressou sua vontade de voltar a estudar e tratado por psiquiatras e psicólogos, mas, fazer uma faculdade. “Eu até queria fazer logo pós o seu terceiro surto, em 2000, passou física, mas era muito difícil e não dava mais, a fazer terapia ocupacional, na qual praticaentão eu mudei para filosofia. Eu fiz todo va atividades lúdicas de desenho, pintura em um processo com ela e, quando foi no final tela, tudo relacionado a trabalhos manuais. de 2002, eu prestei o vestibular da Fuvest e Segundo ele, a terapia ocupacional “usa a passei para filosofia. arte para ressignificar suas coisas, sua mente Hoje, Jorge dá capacitação para voluntários e sua cognição, porque você fica muito desorna ABRE. Para ele, é um vínculo com a tera-

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pia ocupacional, de maneira muito simples, em ajudar pessoas a reconstruir crenças básicas. “Crenças que no mundo externo existem, mas que na esquizofrenia está comprometido”. José completa que “na ABRE, há um nível de companheirismo, reciprocidade e de cumplicidade que nos faz acreditar que algumas coisas são possíveis, mesmo com a esquizofrenia”.

TRATANDO POR COMPLETO Tratar a esquizofrenia parece ser um desafio aos nossos ouvidos. Entre a sanidade e o delírio, existem muito mais coisas que não percebemos, e que nem os remédios podem tratar. Ouvir vozes, ter mania de perseguição, entre outras alucinações, chamados de sintomas positivos, podem ser controlados com a ajuda de medicamentos. Em contrapartida, muitos pacientes apresentam um quadro com os sintomas chamados negativos, como dificuldade muito grande em organizar uma rotina, de conseguir uma vida mais independente e ter mais autonomia. Estes últimos sintomas não conseguem ser controlados com remédios, e é aí que começa um trabalho multidisciplinar, entre terapeutas ocupacionais e psiquiatras, para tratar o indivíduo como um todo. O mestre e doutor em psiquiatria Cristiano Noto acompanha este trabalho de perto há mais de oito anos. Além de ser pesquisador do Programa de Esquizofrenia (PROESQ) da UNIFESP, ele coordena o ambulatório de Primeiro Episódio Psicótico, da Santa Casa de São Paulo, e conta à Brasileiros a importância da interação entre estes dois profissionais para cuidar de um paciente esquizofrênico. Qual foi seu primeiro contato com a TO? Conheci a TO quando comecei a residência de psiquiatria, que, em paralelo, tinha um estágio para as terapeutas ocupacionais que passavam nos mesmos serviços que a gente. Tudo o que fui aprendendo sobre psiquiatria foi um trabalho em equipe multidisciplinar com elas. Como associar a TO e a psiquiatria? A associação entre a TO e a psiquiatria é, na verdade, uma coisa que não tem como dissociar, já que o tra-

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“Com a TO, você percebe que existem outras coisas além da visão utilitarista da vida, que você tem um infinito, um universo dentro de você mesmo. Então acho que a TO é uma redescoberta, é saber que você tem um lugar no mundo e este lugar muitas vezes começou pequenininho e vai crescendo, e você vai ressignificando as coisas”, finaliza José Orsi.

balho da psiquiatria, em casos mais graves, sempre é tratado por uma equipe multidisciplinar. Cada um tem um papel muito delimitado, sendo que nem eu sozinho nem os TOs conseguem dar conta. O trabalho é em conjunto. E como é esse trabalho em conjunto? Nós trocamos mensagens, eu aviso quando o paciente tem algum sintoma, quando mexo na medicação, e muitas vezes as TOs me falam quando algo não está funcionando. É uma conversa que sempre está acontecendo. Temos reuniões em que diversos profissionais estão juntos e conversamos sobre os pacientes. Todo paciente esquizofrênico precisa fazer terapia ocupacional? Os esquizofrênicos em geral são pacientes que têm dificuldades de relacionamento, que têm uma rotina muito empobrecida ou uma dificuldade em se organizar para fazer as tarefas do dia a dia. Tenho bastante experiência com eles e indico praticamente todos os meus pacientes com esquizofrenia. Em outros diagnósticos, a terapia ocupacional também funciona, como pacientes com uso de drogas, transtorno bipolar e outros que tenham algum comprometimento mais importante. Que diferença a terapia ocupacional faz para o seu trabalho? A importância da TO é bem grande. No caso de pacientes graves com esquizofrenia, é uma forma de conseguir uma vida mais independente, ter mais autonomia. No caso de pacientes em primeiro episódio, logo que começa a doença, a TO sempre me ajuda a abreviar esse período muito sofrido, que é quando o paciente percebe que teve uma crise, que as coisas não estão caminhando legal. Os remédios controlam os sintomas positivos, mas, para a reabilitação, eles ajudam pouco. Me apoio muito na TO para conseguir fazer um trabalho mais completo e ajudar esses pacientes a retomarem a vida, um conceito que a gente entende hoje como superação da doença.

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As reportagens a seguir foram produzidas por alunos do 6º semestre na disciplina Produção de Revista. Orientação Prof. Me. Patrícia Paixão

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Lugar de mulher é... ...na programação! As programadoras estão abrindo caminho entre os homens e mudando a cara das tecnologias Reprodução/Medium

Júlia Freire Tamiris Marcelino

PrograMaria, coletivo exclusivo para mulheres interessadas na área de TI.

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ara elas, Barbie, jogos de panelas e minifogão. Para eles, Lego, videogame e quebra-cabeça. De um lado, todas as qualidades que são esperadas de uma mulher “respeitável“ na sociedade, projetadas de uma só vez. Do outro, o estímulo ao raciocínio lógico e às habilidades científicas, visando uma carreira brilhante no futuro. A falsa narrativa de que meninas não gostam ou não são boas o suficiente em matemática e ciências já começa antes mesmo de elas nascerem. Não é à toa que muitas desistem da carreira antes de chegar aos 12 anos. Essa ideia projetada na cabeça de jovens meninas se reflete na vida adulta. Das mulheres que chegam a ingressar em cursos nas faculdades, 79% desistem no primeiro ano, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). O curioso é que a primeira pessoa da história a trabalhar com

programação de dados foi uma mulher: Ada Lovelace, matemática e escritora inglesa que escreveu o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina, a analítica de Charles Babbage. Mas é preciso dizer que as coisas estão melhores nos últimos anos. Na lista da revista Forbes das “100 Mulheres Mais Poderosas do Mundo”, 16 delas são líderes na área da tecnologia, como Sheryl Sandberg, chefe de operações do Facebook, indicada pelo quinto ano consecutivo, e Susan Wojcicki, CEO do YouTube. Imaginem a surpresa do leitor ao saber que dois gigantes da internet são comandados por mulheres. Como bem apontou Iana Chan, 28, formadora e idealizadora do PrograMaria, coletivo para mulheres que queiram atuar ou que já trabalhem na área de TI, a dificuldade já começa antes mesmo de as meninas tentarem. “A educação

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de uma menina é muito pautada no ‘não’. Não pode usar saia curta, não pode brincar na rua, não pode se sujar. A gente educa meninas para serem perfeitas, enquanto encorajamos meninos a serem corajosos, desbravadores, ambiciosos, presidentes e executivos. ” E é só a partir do modo como educamos esses meninos e meninas, em casa e nas escolas, que esse cenário pode mudar. No Brasil, diversos coletivos inspirados por esse pensamento, criados por e para mulheres, surgiram ao longo dos últimos anos, como o já citado PrograMaria, o PyLadies, que foi criado por sete mulheres em Los Angeles e é mais focado na programação em linguagem Python, e conta com cursos, workshops, palestras e até piquenique em todo o Brasil, e o Girls In Tech, que tem sede em São Francisco, na Califórnia, mas que conta com vários polos em todo o mundo, incluindo América do Norte, Ásia45


Júlia Freire

-Pacífico, Europa, Oriente Médio, África e América do Sul, e no Brasil é co-liderado por Monique Almeida, 35, “farmacêutica de formação, mas empreendedora de coração”. Surgidos a partir da frustração em comum com o baixo número de mulheres no mercado, apesar do alto número de consumidoras, os coletivos pretendem quebrar barreiras e mostrar que ser mulher não deve ser um impeditivo para nada. Diferente do que pensa uma parcela sexista da população (e aqui estamos falando de mulheres também), essa junção de tantas moças estimula o senso de amizade e coletividade, e não de competitividade selvagem. Esses ambientes servem de apoio para aquelas que haviam perdido a confiança em si mesmas quanto às suas capacidades. “As mulheres são muito unidas. Hoje eu já acabei meu curso, mas a gente ainda tem grupo no WhatsApp, a gente conversa. Se alguém tem um projeto novo, uma ajuda a outra”, diz Vilmara de Oliveira, 21, ex-aluna do PrograMaria. Longe de representar o estereótipo “nerd” atribuído a quem trabalha na área, Vilmara, de batom rosa e camiseta do coletivo (“pra fazer propaganda”), chega sorridente num café movimentado na Avenida Paulista. Os workshops “tradicionais” podem ser desmotivadores, com uma maioria esmagadora de homens presentes. Além disso, o assédio é constante. “Alguém se aproxima e você acha que quer fazer um networking, uma amizade ou desenvolver algo juntos, e aí você acaba abrindo espaço para as pessoas, só que elas começam a levar para o outro lado.” Cansada dessas situações, Vilmara pesquisou por conta própria na internet iniciati46

vas para mulheres na área de TI, até que encontrou o PrograMaria. “Me senti super acolhida, não tinha tanto medo de falar alguma besteira. Não me sentia tão mal quanto num ambiente com homens, onde estão sempre te julgando”. O ambiente de trabalho também pode ser cheio de pessoas inconvenientes. “Uma vez me perguntaram por que eu não ia de saia para o trabalho”, conta Beatriz Uezu, 22, ex-aluna e hoje uma das organizadoras do PyLadies. Essas situações corriqueiras costumam ser minimizadas. Alguns homens gostam de apontar que essas mulheres estão “se fazendo de vítimas” e que, na verdade, está tudo ótimo. Outros ainda têm o pensamento retrógrado de que esses coletivos são sexistas e os “excluem”, mas Iana argumenta que o que elas fazem é “incluir as mulheres”. A maioria do feedback para todos esses grupos é positiva e cada vez mais empresas querem ajudar nessas iniciativas. Inclusive, para quem ainda não se convenceu de que muitas mulheres se interessam pelo assunto, saiba que a primeira edição do curso de desenvolvimento web “Eu Programo”, pelo PrograMaria, teve quase 1000 inscrições, para 30 vagas. A ideia de que as mulheres não se interessam por tecnologia é uma falácia, o que faltam são oportunidades. No outro espectro desse mundo tecnológico, nasce um coletivo ainda mais específico. A PretaLab (elas preferem ser chamadas pelo artigo feminino), idealizada por Silvana Bahia, 31, foi criada no dia 17 de março de 2017, no Rio de Janeiro, dá palestras para meninas e mulheres negras e indígenas que querem ingressar ou têm curiosidade sobre a área de TI, além de fazer um

Vilmara é ex-aluna do PrograMaria. mapeamento online dessas mulheres pelo Brasil para coletar dados, dando voz e visibilidade àquelas que já chegaram lá, seja nas áreas mais técnicas, como engenharia ou desenvolvimento web, até criadoras de conteúdo, como youtubers e blogueiras. Cá entre nós, se o mercado não necessariamente recebe de braços abertos mulheres brancas, que dirá de mulheres negras? “Posso contar nos dedos quantas mulheres negras vi em eventos de tecnologia”, relata a própria Silvana. Outro espaço dedicado à visibilidade das mulheres negras é o Blogueiras Negras, uma comunidade de aproximadamente 200 autoras que reúne histórias de vida e pautas das mais diversas, desde política a saúde e beleza, em torno de questões sobre negritude, feminismo e produção de conteúdo. A pergunta que surge num primeiro momento para quem não está no meio (e posso dizer que me incluo nesse grupo) é o porquê de iniciativas apenas para mulheres negras, se em geral já existem tão poucas mulheres na tecnologia. Silvana explica: “A inserção das mulheres negras nesse espaço é extremamente política, porque hoje em

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Ana Clara Tito/Reprodução/Pretalab

dia a gente lida muito com o digital. Ele está ligado a nossa vida cada vez mais e, se a gente não sabe muito sobre como esse mundo está se configurando e como ele funciona, é muito ruim, porque a gente acaba perdendo muita capacidade de intervir no mundo. Se esse acesso chega a um determinado grupo, ele tem que chegar a uma maior quantidade de pessoas. E as mulheres negras, por serem a base da pirâmide social num país como o Brasil, têm que estar inseridas nesse universo.” Larissa Santiago, organizadora do Blogueiras Negras, completa. “Acredito que o primeiro passo dos níveis de importância da inserção delas nesse mercado é a própria mulher negra se dar conta de que compõe esse espaço, lida com tecnologia e tem conhecimento sobre. Porque esses lugares [ocupados por homens brancos] nos dizem que não sabemos, nunca chegaremos lá e que não é para nós. Então, dar-se conta de que o que se faz é produzir e lidar com tecnologia é o primeiríssimo passo, e quando isso acontece, geralmente vindo do olhar de outra mulher negra, é fantástico.” Convido o leitor a fazer um exercício rápido: feche os olhos e imagine um profissional de TI. Certamente a imagem de uma mulher negra não veio a sua mente. Silvana definitivamente sofre com esses estereótipos, ainda que na maioria das vezes não seja de forma escancarada. “Fujo um pouco da caixinha, sou uma mulher negra e gorda e não é o que estão esperando.” No site da PretaLab, o coletivo faz questão de mostrar dados desanimadores sobre a situação da mulher negra na área de TI, pois como Silvana disse sabiamente, sem dados não há política. São eles: 19 mulheres foram citadas na his-

tória da ciência no Brasil pelo(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Nenhuma delas é negra. Entre as startups comandadas por mulheres, apenas 4% o são por mulheres negras. Isso nos EUA. Não se tem conhecimento desse dado no Brasil, mas não precisa ser um gênio para saber que por aqui a situação talvez seja ainda pior. Em 120 anos, a Escola Politécnica da USP formou apenas 10 mulheres negras. Sobre a falta de incentivo, Silvana ainda cita a polêmica questão das cotas raciais em universidades brasileiras. “Criar cota é importante, é legal, mas além disso tem que pensar em como elas [mulheres] permanecem ali [na universidade], porque viver em um inferno não é bom”. Como nesse meio faltam referências positivas, a PretaLab aposta em ações de comunicação nas redes sociais. Uma delas é postar vídeos curtos no Facebook de mulheres negras relevantes na área de tecnologia, a fim de inspirar meninas negras que queiram ingressar nesse meio. Se mesmo depois de ler essa longa reportagem o leitor ainda não se convenceu das diferenças absurdas entre homens e mulheres em ambientes de trabalho, o convido a pesquisar e refletir sobre um caso recente de discriminação de gênero nos EUA. Martin Schneider, um blogueiro da Filadélfia, relatou na sua página no Twitter um episódio que ocorreu em uma agência de empregos na qual trabalhava. Em um belo dia, Schneider estava trocando e-mails com um cliente grosseiro que desdenhara de seu currículo. Quando finalmente se cansou do temperamento dele, Schneider percebeu que acidentalmente assinou todos e-mails como Nicole [Hall-

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Silvana no lançamento da PretaLab . berg], sua colega de trabalho com a qual dividia a mesma conta, e que recebia críticas de seu chefe por demorar muito para lidar com clientes. No instante em que Schneider fez a troca de e-mails, o progresso foi imediato: o cliente respondia prontamente e agradecia a todas as sugestões de Schneider. Logo, não é preciso pensar muito para chegar à conclusão de que o motivo da “demora” de Nicole era o fato de ela ter suas decisões questionadas o tempo todo, o que a impedia de avançar em seu trabalho. Apesar de a humanidade ter avançado incrivelmente, ainda existe a velha polarização entre “coisas de menino” e “coisas de menina.” O que esses coletivos propõem é apenas uma porta de entrada para esses espaços e, a partir daí, inspirar e encorajar as mulheres, negras, brancas e indígenas a cobrar e lutar por políticas públicas que viabilizem sua qualidade de vida profissional, pois, como pondera Larissa, não basta inseri-las nas universidades e no mercado, e tornar inviável a permanência delas, sem lhes dar poder de voz. É preciso fazer a sociedade entender que lugar de mulher é onde ela bem entender. 47


Chrisley e Jefferson felizes com a chegada das gêmeas Valentina e Maria Eduarda.

Acervo pessoal

A palavra que resume toda nossa trajetória é perseverança A realização de um sonho envolve muitas sensações e emoções

Elaine Mercês

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C

hrisley Fogaça da Silva de Carvalho e Jefferson da Silva de Carvalho são casados há sete anos. Assim como muitos casais, tinham a vontade de ter filhos. Ela sempre imaginou viver em uma casa com crianças correndo livremente, aquela bagunça de brinquedos espalhados no chão e muita alegria que só os pequenos podem proporcionar. Jefferson também passou a ter essa vontade quando começou a namorá-la, porém, mais de 11 anos antes, tinha feito uma vasectomia, que os médicos diziam ser irreversível. Essa história é parecida com a de milhares de pessoas que, por algum motivo, não conseguem ter filhos de forma natural. Seja por vasectomia, por infertilidade ou por problemas psicológicos que afetam o físico. Mas, a medicina evoluiu de tal maneira que é possível optar pela fertilização in vitro ou FIV, como é conhecida. Essa técnica consiste em coletar óvulos e espermatozoides e colocá-los juntos para que haja a fecundação. Após esse processo, os embriões são cultivados em laboratório e depois inseridos no útero. O restante da gestação é feita de forma natural. A FIV tem um custo alto, o que complica o acesso

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a todos, no entanto, existem possibilidades de as pessoas se tornarem doadoras de óvulos, barateando o tratamento ou até mesmo tornando-o gratuito, como conta Chrisley: “Eu tinha muita vontade de ter filhos, mas sabia que pelo método natural seria impossível. Eu ficava bem triste, confesso. Foi então que conheci uma clínica de FIV muito renomada em São Paulo e fui convidada para ser doadora de óvulos, o que custearia o meu tratamento”. Com essa nova possibilidade, ela retirou 22 óvulos e doou a metade; e o outro casal que ficou com os óvulos acabou pagando a FIV dela. A única despesa que teve foi a punção de Jefferson que custou cerca de 6 mil reais. Ela conta que ficou muito empolgada na primeira tentativa, que a expectativa era alta, afinal, ela era jovem e as chances de dar certo eram grandes. Foram inseridos três óvulos e um sobreviveu. “Eu sabia que era o meu Pedro e acertei, estava grávida de um menino, mas aos quatro meses o perdi e isso doeu tanto que nem queria sair mais de casa”, conta Chrisley. A doutora Juliana Amaro, dona de uma clínica de fertilização in vitro na zona sul de São Paulo e responsável pelo tratamento de Chrisley, explica que é importante as pessoas serem orientadas sobre os riscos de a FIV não dar certo. “É preciso alertar aos pacientes que assim como tudo na vida, a técnica in vitro pode dar errado. Funciona como uma preparação, principalmente nos casos em que as mulheres já têm mais de 35 anos. Não era o caso da Chrisley, mas ela estava

ciente que o sonho dela poderia não se tornar realidade na primeira tentativa e foi o que aconteceu. As tentativas frustradas acontecem e atrapalham a vida do casal”. Perder um bebê é uma situação complicada pela qual muitas mulheres passam diariamente. Elas se sentem culpadas e muitos casais acabam se separando por não poderem gerar uma criança. “Quando perdi meu tratamento, meu Pedro, o mundo caiu para mim e também para o Jefferson, ele chegou a cogitar o divórcio, assim eu poderia ter filho com outra pessoa, já que a infertilidade era por parte dele. Quase entrei em depressão e me questionava por que tudo isso acontecia comigo”, diz Chrisley, emocionada. Diálogo Nos casos em que a FIV não dá certo, recomenda-se que o casal busque ajuda médica e faça acompanhamento psicológico. Para o doutor Rogério Fortunato, ginecologista que presenciou as dificuldades de Chrisley e Jefferson, o diálogo é fundamental, ouvir o outro causa sensação de segurança. “Para todos os casais que me procuram, a primeira pergunta que eu faço é: vocês conversaram entre si, passaram segurança um ao outro? Se a resposta for não,

Quando a FIV não dá certo, recomendase que o casal busque ajuda médica e faça acompanhamento psicológico

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existe algo errado. Um casal tem de ter diálogo e buscar se apoiar, aconselhar e jamais julgar ou já exigir o divórcio com a cabeça quente. Foi assim que conduzi as consultas de Jefferson e Chrisley”, explica Rogério. Além do diálogo, o apoio da família é essencial, já que é muito gratificante saber que os que estão ao redor não vão julgar, como conta Jefferson. “Quando perdemos Pedro, fiquei muito angustiado, sabia que não era culpa da Chrisley, mas sim minha, por ser vasectomizado e não poder ter um filho de forma natural. Isso me deixava mal, mas com o apoio dos meus pais e sogros fui entendendo que deveríamos tentar outra vez”. A enfermeira Conceição Fogaça, mãe de Chrisley, revela que a filha queria muito um bebê, e por ter passado por uma perda, se houvesse julgamentos seria bem pior. “O desejo da Chris era construir uma família; nossa, como ela sonhava com isso. Com o aborto que sofreu, ficou arrasada, o Jefferson então, queria pedir o divórcio. Foi aí que eu vi que um amor lindo estava sendo abalado e disse a eles para ficarem tranquilos e tentarem outra vez, preferi não julgar, mas só conversar com eles, mostrava que estava com eles em tudo e para tudo”, conta Conceição. A decisão de tentar outra vez Muitos casais tentam duas, três, quatro vezes e com Chrisley e Jefferson não foi diferente. Desta segunda vez, cinco óvulos foram fecundados e, para a surpresa deles, quando fizeram o primeiro ultras49


Acervo pessoal

Chrisley e as gêmeas em casa.

som, descobriram que esperavam dois bebês. “Outra vez emoção, mas agora uma emoção dobrada. Fiquei triste por não conseguir ver o sexo dos bebês, porém tão feliz em ter de pensar como ia me desdobrar e amamentar dois”, diz Chrisley eufórica. Saber qual é o sexo do bebê é um momento especial, mas no caso de Chrisley a emoção era ainda maior, porque foi exatamente na ultrassonografia de quatro meses de gestação que constataram que tinham perdido o Pedro da primeira vez. “Foi um medo misturado com amor. Quando fiz o exame, fiquei louca de alegria, estava esperando duas meninas. Na hora não tive dúvidas, elas a partir dali seriam minhas princesas Valentina e Maria Eduarda, que vieram para estancar a dor sofrida com a perda do príncipe Pedro”. Gravidez de risco Uma pesquisa feita na USP em 2013 mostra que quatro a cada dez gravidezes de gêmeos são consideradas de risco, seja pela idade da mãe ou complicações de saúde, como diabetes e hipertensão. Chrisley conta que no 5º mês de gestação, em um exame de rotina, soube que a gravidez era de risco. “Mais um dia de exames e veio a bomba: eu estava com mioma e hipertensão. Claro que entrei em desespero e só pensava em me cuidar para garantir a vida das minhas bebês. Fiquei bem assustada e resolvi sair do emprego e dedicar meu tempo a minha saúde”, diz Chrisley. No sétimo mês, Jefferson conta que estava em casa e Chrisley 50

passou mal. Ao chegar no hospital, souberam que uma das crianças não estava se desenvolvendo e pesava apenas 700 gramas. “Eu pensei: como assim? Estamos fazendo corretamente o pré-natal e nada disso foi falado. Eu queria esconder tudo aquilo da minha esposa, mas não dava. Ficamos mal, sem chão e ela precisou ser internada para a bebê ganhar peso e só iria ter alta quando Valentina e Maria Eduarda viessem ao mundo”, explica Jefferson. No dia 20 de janeiro de 2017 às 17h30, as duas meninas nasceram de parto natural, apesar dos riscos. Maria Eduarda com 2,745kg e Valentina com 1,612kg. Chrisley conta que ficou dividida, sorria por Maria Eduarda ir para casa, mas chorava por Valentina ficar na UTI. “Eram sensações que não cabiam em mim. A Duda foi embora, conheceu o quartinho, mamou e trocou a fralda em casa. Valentina, menina forte apesar de tão bebê, ficou no hospital para ganhar peso. Como aquilo me deixava triste, mas tive fé e sabia que em breve ela estaria em casa”, conta Chrisley. Quando uma mãe deixa o filho no hospital, sabe que é para o bem dele e era assim que Chrisley buscava forças para deixar Valentina em observação. “Tudo que fosse para o bem dela, eu aceitava sem pensar duas vezes, meu instinto falava mais alto”, conta a mamãe emocionada. A alegria completa tem data, como revela Jefferson. “Foram dias de ansiedade, como queríamos Valentina em casa. Era nosso sonho, como pedimos para

Deus ajudar nossa pequena” e no dia 26 de fevereiro de 2017, Valentina estava com 2,418kg e teve a tão sonhada alta. “Me ligaram do hospital e nós não sabíamos se queríamos rir ou chorar, a alegria foi completa, intensa e muito linda”, diz Jefferson. Conselho Diferentemente de Jefferson e Chrisley, muitos casais desistem ou se separam. Eles afirmam que a cumplicidade e o diálogo ajudaram muito e que a vontade de ter uma família era mais importante do que qualquer empecilho. “Para nós, a palavra que resume toda nossa trajetória é perseverança. Queríamos ter uma família, a nossa família. Conseguimos, somos felizes e realizados. O conselho que damos é: tirem a palavra desistir de sua vida. Não importa se você quer uma família, um carro, um emprego ou viagens. Desistir não é o caminho, mas acreditar faz alcançar”

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Sala de realidade virtual no Museu Catavento de São Paulo

Realidade Virtual: do entretenimento à educação Conheça os benefícios e aplicações dessa tecnologia

Guiherme Izidio

E

la nasceu nos anos 1970, mas poucos a conhecem. Para o consumidor, está disponível e acessível, considerando os custos, desde 2013, ano em que a tecnologia chegou às terras brasileiras. É a Realidade Virtual, VR, na sigla em inglês. O dispositivo, que funciona por meio de estímulos auditivos e visuais, é capaz de enganar os que se propõem a experimentá-lo, especialmente os idosos, ou mesmo aqueles que não se interessam muito pelas novidades tecnológicas. Para ter a sensação de total imersão, é necessária a utilização de headsets (fones de ouvido com microfone) que cobrem os olhos e as orelhas, impedindo o usuário de ver e ouvir estímulos externos. A grande maioria do público não tem conhecimento das diversas aplicações que a VR possibilita. Keila Keiko Matsumara, idealizadora e fundadora da startup VR Monkey, exemplifica. “Ela pode ser utilizada em muitas áreas, desde o entretenimento e games, até em áreas como educação, medicina, arquitetura e até no turismo”. É fato que grande parte dos investimentos está destinada ao setor de games e entretenimento, porém, muitos testes e pesquisas ainda estão sendo feitos para conhecer o seu real potencial.

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Divulgação Intel

Pampadromaeus barberenai, dinossauro do Rio Grande do Sul com 1,5m de altura

Realidade Aumentada x Realidade Combinada Como toda tecnologia, por mais atual que seja, a VR sofre atualizações e modificações. Recentemente, surgiram algumas variações nesse nicho de mercado, como a Realidade Aumentada e a Realidade Combinada. Reinaldo Affonso, especialista na área (foi diretor de Tecnologia da Intel para a América Latina), explica as diferenças entre elas. “A realidade aumentada insere elementos virtuais no ambiente real. O usuário continua vendo o mundo real, porém, complementado por informações ou elementos virtuais.” Affonso explica ainda sobre o conceito de Realidade Combinada, que surgiu há menos de um ano. “É uma técnica que combina realidade virtual, aumentada e elementos reais, para criar uma experiência de imersão no mundo virtual, porém com total interação do usuário com o mundo real. Ou seja, os objetos do mundo real fazem parte do mundo virtual, compondo todo o cenário desse ambiente. Com a realidade combinada, o usuário pode pegar sua raquete comum para jogar tênis virtualmente em um quadra de Wimbledon, por exemplo.” A Intel é uma das empresas que vem se esforçando para implementar os dispositivos no mercado, como o Project Alloy, protótipo avançando que surpreendeu a imprensa durante a CES (Consumer Electronics Show) 2017, principal 52

feira de tecnologia do mundo, realizada em Las Vegas (EUA). Por lá, anualmente as maiores empresas do setor, como Nokia, Apple, Asus, LG e Samsung, mostram para o mundo suas novidades. VR na Educação Quando surgiu o termo VR, em meados de 1970, experimentos voltados para a área educacional foram feitos, e cientistas pensavam em como iriam melhorar esta aplicação. Os equipamentos ainda eram grandes, pesados e caros, o que dificultava a locomoção e atrapalhou o desenvolvimento deles. Atualmente, projetos educacionais e culturais já podem ser vistos no mundo todo, o que faz surgir a questão: teremos isso também em escolas e universidades? A expectativa é positiva pois, na maioria das vezes, os recursos tecnológicos chegam para auxiliar e facilitar o nosso dia a dia. Keila acredita que no futuro vivenciaremos essa mudança. “Acho que ela vai ser usada nas escolas, assim como as pessoas utilizam tablets. Num futuro não muito próximo deve acontecer. Por exemplo, em vez de contar a história, as crianças podem ver Pedro Álvares Cabral chegando ao Brasil. Tem escola que não consegue ter laboratórios, mas tendo uma sala de RV, você pode materializar isso. Com a máquina, você pode dar aula de modelagem.” Ela afirma também que testes já estão sendo feitos para desenvolver

um laboratório de química virtual. Por outro lado, Luis Eduardo Anelli, escritor e professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), defende que a metodologia tradicional é insubstituível e, por isso, a tecnologia deverá servir apenas como complemento. “Acho que nunca pode ser substituída a leitura, pois é enriquecedora em conteúdo, e a escrita. Acredito que as crianças podem ter a VR como complemento, como um filme para enriquecer aquilo que já estão conhecendo”, defende. Para Affonso, a educação é o segmento mais promissor e avançado desta modalidade. Ele cita exemplos em que aplicações já estão sendo feitas. “Escolas que formam pilotos de avião já usam há muitos anos softwares de simuladores de voo, que fazem com que o aluno possa pilotar em um computador. Em um futuro próximo, esse estudante poderá ser colocado dentro de um ambiente virtual para aumentar o realismo da simulação e gerar um aprendizado mais eficiente.” Precauções Nas redes sociais, temos visto diversos vídeos um tanto engraçados de mães e idosas utilizando o dispositivo em shoppings e lojas. Elas ficam encantadas com a demonstração do jogo, a ponto de acreditarem que aquilo é real e, por isso, levam muitos sustos, chegam até a gritar e chorar. Não por acaso, essa é uma das premissas da tecnologia:

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Rodolfo Nogueira/Reprodução

Óculos de realidade virtual permitem observar os dinossauros de perto

entreter e ‘confundir’ a mente do usuário. Em algumas exposições, mesmo que o conteúdo seja destinado ao público infantil, há uma limitação de idade. Em geral, a permissão é para crianças acima dos 9 anos. A razão disso se dá pela ingenuidade ou falta de percepção da meninada, que pode não conseguir diferenciar o ambiente virtual do real. Keila acredita que tudo em excesso faz mal, mas defende a parafernália. “Tem contra-indicação abaixo de 13 anos, mas não tem pesquisas comprovando que traria malefícios, pelo contrário, é melhor para a saúde da criança do que um tablet.” Dinos do Brasil Por meio de uma experiência imersiva e interativa de Realidade Virtual, a exposição apresentada no Museu Catavento Cultural, na região central de São Paulo, volta no tempo para aproximar o público dos dinossauros que habitaram o país. Este é o primeiro projeto com caráter educacional sobre dinossauros brasileiros que utiliza a RV e foi idealizado pela startup brasileira VR Monkey. De acordo com a empresa, o objetivo do “Dinos do Brasil” é divulgar a pré-história brasileira e o conteúdo sobre paleontologia, além de oferecer a oportunidade de experimentar a tecnologia para todos, tendo em vista que os equipamen-

tos são caros. Os visitantes principais da exposição são alunos de escolas públicas, cerca de 60 são atendidas diariamente na sala de 100 metros quadrados que suporta 25 pessoas por sessão, totalizando 10 mil visitantes diários. Keila, líder do projeto, explica como a iniciativa surgiu. “Foi em 2013, quando os óculos rift ficaram mais acessíveis. E aí pensamos na ideia dos dinossauros, começou a partir daí. Nem sabíamos que existiam dinossauros brasileiros. Reunimos um grupo de modeladores, animadores, programadores.” Segundo ela, o processo para aprovação de ideias como essa é detalhoso e demorado, especialmente quando o orçamento é baixo. “Apresentamos para o Catavento Cultural a ideia e eles toparam. A gente não tinha grana, só a equipe. Em 2015, eles aprovaram, e submetemos o projeto à Lei Rouanet. Demorou um ano para ser aprovado.” A equipe de pesquisa e produção utilizou o conteúdo do livro “Dinossauros e Outros Monstros: Uma Viagem À Pré-História do Brasil” como base e transformou-o numa apresentação virtual. O paleontologista e autor da obra, Luiz Eduardo Anelli, conta qual foi seu papel no projeto. “Minha tarefa principal era não deixar que colocássemos coisas que não tivessem fundamento paleontológico, ou seja, verificar se os dinossauros tinham penas ou não, como era o clima, o céu.”

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Ele explica ainda que muitos traços pré-históricos foram levados em consideração, entre eles as imagens do deserto e plantas do livro. Para que tudo ficasse perfeito e organizado, com enredo e história e sem discrepâncias, muitas correções foram feitas ao longo de quase dois anos. Segundo Carlos Augusto Buarque, diretor de marketing da Intel Brasil, a realidade virtual tem potencial para melhorar a vida das pessoas. “Queremos ampliar o alcance, a influência e o poder da computação para melhorar a vida das pessoas e acreditamos que a realidade virtual vai criar maneiras de trabalharmos, estudarmos e nos divertirmos.” Segundo ele, a parceria com a VR Monkey e o Catavento Cultural é parte de nossos esforços para fomentar a inovação e a cultura no País e ajudar a trazer esse tipo de tecnologia de ponta para o cotidiano do brasileiro.” Dinos do Brasil trata-se ainda de uma exibição educativa e cultural, ideal para ensinar públicos de todas as idades a respeito de um aspecto ainda desconhecido da pré-história brasileira. Além da consultoria do professor Anelli, o projeto também contou com o apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), por meio do PIPE (Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas) e da Intel e Ambev, por meio da Lei Rouanet. 53


O fluxo vital U

ma das maiores reclamações das mulheres está relacionada ao ciclo menstrual. Quem entre elas pode dizer que nunca teve um desconforto ou passou por alguma situação constrangedora neste período? Desde a menarca, as meninas são instruídas a não exporem nada sobre este assunto, que é tão natural em pessoas do sexo feminino saudáveis e em idade fértil quanto respirar. Até mesmo houve uma época em que mulheres eram consideradas impuras. Este tipo de comportamento apenas serve para reforçar a menstruação como algo ruim. Claro que nem tudo são flores, existem as cólicas, por exemplo, mas a questão aqui é que menstruar não é sinônimo de alguma desgraça, como querem fazer parecer. E se essa ideia pudesse ser transformada? E se, em vez de acharem nojenta ou inútil essa eliminação periódica de sangue e de fragmentos da mucosa uterina, pudessem entender que há algo tão importante nela quanto a capacidade de gerar uma vida? E se esse desprezado sangue pudesse salvar vidas? Será que o temido período seria, enfim, absolvido por homens e mulheres? No que depender do esforço de alguns cientistas, isso deve acontecer em breve. Como sempre estudam para descobrir a melhor maneira de tratar diversas doenças, houve uma busca incessante por novas fontes de células-tronco e, desde 2008, começaram a pesquisar 54

o sangue menstrual. A ideia surgiu porque o útero sofre renovação celular bastante acentuada. Feitas as primeiras análises, descobriu-se que este material possuía células mesenquimais que são raras em sangue periférico - do braço, por exemplo. O que são células-tronco Para entender melhor, é preciso lembrar que o corpo é formado por milhões de células de diversos tipos, porém todas elas foram originadas a partir de uma única célula

A célula-tronco é a célula indiferenciada, ou seja, pode se transformar em qualquer outra do corpo, é capaz de se autorrenovar produzindo cópias de si mesma indiferenciada após a fecundação do óvulo e espermatozoide. Essa célula se divide em outras idênticas e, posteriormente, se diferencia formando tecidos, órgãos e sistemas. A célula-tronco é a célula indiferenciada, ou seja, pode se transformar em qualquer outra do corpo, é capaz de se autorrenovar produzindo cópias de si mesma. Ela tem a mesma informação genética de uma célula normal, mas ativa genes diferentes que determinam a sua função. Sabe-se que os embriões são repletos de células-tronco, porém

esse estudo esbarra na ética. Isso porque, para retirar as células, o embrião acaba sendo descartado, o que, para alguns, é como se estivesse sendo descartada uma vida em potencial, mesmo que hoje em dia, essa prática esteja protegida pela lei da biossegurança, como explica a Dra. Patrícia Pranke. Porém, além disso, há o problema da falta de controle. As células embrionárias são muito potentes, mas, por não terem tanto controle, acabam não sendo usadas para terapias, apenas para pesquisa. Por ter tantos empecilhos acerca dessa questão, os pesquisadores passaram a procurar células-tronco em muitos outros tecidos. Então, houve uma divisão das células-tronco: as embrionárias e as derivadas de tecidos adultos, como as de tecido adiposo, medula óssea, de músculo estriado e do cordão umbilical. A partir de 1980, as do cordão umbilical se tornaram a principal fonte para utilização em transplantes. Em 1988, o uso dessas células tratava uma patologia; em 2007, 40. E hoje são mais de 80 que podem ser tratadas e curadas. Tipos e utilizações As células-tronco adultas regulam a reposição celular em um organismo saudável e podem ser divididas em dois tipos. As hematopoiéticas, responsáveis pela manutenção da produção dos diversos tipos de células sanguíneas e as mesenquimais, que também são responsáveis

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Como um incômodo pode passar a salvar vidas

pelo suporte à produção de células de sangue, mas que atuam na regeneração de tecidos danificados. Normalmente, uma pessoa perde de 50 a 70 milhões de células por dia e as falhas no processo de reposição levam ao surgimento de patologias que, muitas vezes, precisam ser tratadas pelas próprias células-tronco. O uso de células hematopoiéticas pode tratar doenças do sangue como leucemia, anemias malignas e linfomas. E elas são infundidas no organismo como se fosse uma transfusão de sangue; migram para a medula e vão produzir novas células saudáveis. E o uso das mesenquimais trata doenças degenerativas como Alzheimer e Parkinson, e doenças autoimunes como artrite reumatoide, lúpus, esclerose múltipla, distrofia muscular, etc. Quando infundidas no organismo, as células mesenquimais vão migrar para a região de lesão e substituir as células que estão morrendo. “São células inteligentes que procuram a lesão. Lá se instalam, se fundem com as células existentes e recuperam o órgão que está se degenerando”, explica o Dr. Carlos Alexandre Ayoub, CEO do Centro de Criogenia Brasil. A nova pesquisa Uma das vantagens das células-tronco do fluido menstrual é que a coleta não se dá de forma invasiva (ao contrário da obtenção das células da medula óssea que é feita por meio de uma agulha) e também

esse método não enfrenta problemas éticos e morais. Muitas mulheres já se mostraram favoráveis a essa técnica, como Isadora Cruz, 25 anos, fotógrafa, que, por ter histórico de câncer na família, acha que o avanço nesta área deveria ser ainda mais intenso. “Eu seria doadora, só de imaginar que um material que é descartado todo mês por milhões de mulheres no mundo pode salvar vidas, já me traz reconforto. Ficarei feliz se muitas pessoas não passarem pelos mesmos sofrimentos que eu passei ao perder entes queridos”.

São células inteligentes que procuram a lesão. Lá se instalam, se fundem com as células existentes e recuperam o órgão que está se degenerando Células do fluxo menstrual Um outro ponto importante é que essas células trazem a possibilidade da utilização autóloga, ou seja, pela própria doadora, o que elimina o problema de compatibilidade e de transmissão de doenças. Outro fator favorável é que as células-tronco extraídas do sangue menstrual são células novas, uma vez que todos os meses, o endométrio se renova. As doadoras só precisariam seguir alguns critérios de inclusão, sendo alguns deles a avaliação e exames do ginecologista, não ter doença crônica diagnosticada (cân-

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Beatriz Bauer

cer, diabetes, cardíaca, etc.) nem fazer uso de medicamento tóxico. E, obviamente, estar em idade fértil. A Dra. Regina Goldenberg, pesquisadora da UFRJ publicou o primeiro trabalho mostrando que a célula-tronco mesenquimal advinda do sangue menstrual reprogramou uma célula de pluripotência induzida (célula que tem manifestação forçada de alguns genes) mais rapidamente do que outras fontes. Porém, ela lamenta que as pesquisas não tenham avançado muito: “o avanço tem sido mais lento do que outras fontes, pois poucos grupos investem nas células de sangue menstrual por questões de preconceito. Ela é considerada uma fonte mais constrangedora para os pesquisadores discutirem ou apresentarem em congressos”. Como as teorias ainda estão em fase de testes, não é possível saber qual a quantidade de sangue ideal para a coleta nem a melhor idade das doadoras. Mesmo com tantos pontos ainda a serem confirmados, o estudo sobre a presença de células-tronco do sangue menstrual promete trazer mais esperança para pacientes que possuam doenças ainda incuráveis. É um método de coleta simples, fácil e acessível, já que mulheres menstruam por muitos anos. O que precisa haver é a queda da barreira do preconceito, mas, isso não é nada difícil comparado ao preconceito enfrentado por todas as mulheres que menstruam já sofreram, pelo menos, alguma vez na vida. 55


Nos braços de Morfeu Por que não conseguimos ter um sono tranquilo? Beatriz Bauer

V

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produção de insulina), hipertensão, obesidade (redução na produção de leptina, hormônio que controla a saciedade), além de a pessoa ficar mais propensa a infecções e a ter estresse elevado, pelo aumento da produção de cortisol. O sono é dividido em algumas fases e, cada uma delas tem uma função, como explica a médica especialista em metabologia, a Dra. Regeane Trabulsi Cronfli, que possui consultório em São Paulo. “Na fase 1, a melatonina é liberada. Ela induz o sono e regula o metabolismo. Já na fase 2, o ritmo cardíaco e respiratório diminuem, os músculos são relaxados e a temperatura corporal cai. Nas fases 3 e 4, do sono profundo, há o pico da liberação do GH (hormônio do cres-

cimento) e da leptina. O cortisol começa a ser liberado até atingir o seu pico no início da manhã. E, por fim, há o sono REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos), no qual acontece o pico da atividade cerebral. O relaxamento atinge o máximo e as frequências cardíaca e respiratória voltam a aumentar”. Durante o sono profundo é que acontece a liberação do hormônio do crescimento, o GH (Growth Hormone), que tem a função de manter o tônus muscular, evitar o acúmulo de gordura, melhorar o desempenho físico e combater a osteoporose. Caso ele não seja liberado corretamente, outros problemas podem ocorrer, como dificuldade de concentração, perda de memória, envelhecimento precoce, meBeatriz Bauer

ivemos em uma era da informação e parece que temos de conseguir ver tudo o que nos é oferecido pelas mídias. Para dar conta de um volume tão alto, precisamos achar tempo, elemento que anda cada vez mais escasso. Como não podemos deixar nada para trás, então, qual é a solução? Encontrar mais tempo. Acontece que o dia continua tendo as mesmas 24 horas. Como não dá para mudar o andamento do relógio, o que se pode fazer é desempenhar várias atividades ao mesmo tempo. Bingo! Problema resolvido. Hum, não é bem assim, porque, além de não fazermos nada bem feito, achamos que precisamos de mais tempo. Outra solução é diminuir o nosso período de descanso. Sim, cada vez mais, suprimimos as horas destinadas ao sono, aquele momento de recompor todo o desgaste diário. Ansiedade, dificuldade de respiração e comportamento muito agitado são alguns dos fatores que levam milhares de brasileiros a não dormirem de forma satisfatória. Essa vida corrida somada à falta de repouso tornam os dias mais cansativos e menos produtivos. O sono, que é o período de descanso do corpo, tem funções essenciais para o ser humano, como termorregulação, consolidação da memória e aprendizado, repouso e restauração das substâncias químicas que regulam o funcionamento do organismo. Quando alguns hormônios deixam de ser produzidos em quantidades necessárias ou são produzidos em excesso, podem ser desenvolvidas algumas doenças como diabetes (inibição da

Brasileiros têm dormido cada vez menos

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tados ficam prontos em 15 dias. No caso da professora, foi constatada apneia durante o sono (obstrução do fluxo de ar para os pulmões) e, para resolver este problema, foram sugeridas três soluções: adesivo dilatador no nariz que auxilia a entrada do ar, uso de aparelho que injeta ar no organismo e fisioterapia para reaprender a respirar. O adesivo seria a solução mais simples, prática e econômica, já que o aparelho custa, em média, dois mil reais e tem grande rejeição dos usuários. Não dormir bem não é apenas uma questão social. Isso também pode acabar gerando problemas no trabalho, como conta João Reis, 58 anos, motorista de caminhão de combustível que só roda à noite por São Paulo. “A falta de sono prejudica o meu rendimento, porque na minha rotina é preciso muita atenção. Caso eu não tenha o mínimo de uma noite bem dormida, não consigo me concentrar ou até agir dentro do esperado para o meu cargo”. No caso do João, qualquer deslize pode ser fatal, mas mesmo assim, ele não recorre ao uso de medicamento, caminho natural pelo qual muitos acabam seguindo. O motorista prefere métodos alternativos para driblar o sono. “Quando estou muito cansado, chego em casa, como algo e tento relaxar. Porque, às vezes, o cansaço é tanto que me tira o sono. E eu sei que preciso me recuperar para voltar 100% ao trabalho na noite seguinte”. Já Bernardo Queiroz Siqueira

Recomendações para uma boa noite de sono 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.

Ter horários regulares para dormir e acordar Ir para a cama somente na hora de dormir Dormir em ambiente limpo, confortável e sem ruídos Não tomar café, bebidas alcoólicas, refrigerantes ou outras bebidas estimulantes em horários próximos ao de dormir Não usar medicamentos para dormir sem orientação médica Evitar o uso de celular e outros aparelhos eletrônicos antes de dormir Jantar com moderação Relaxar o cérebro antes de dormir com atividades leves, como leitura agradável Evitar levar problemas para a cama Praticar exercícios físicos regularmente

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Acervo pessoal

nos vigor físico e aumento da irritabilidade. Alguns aspectos ligados ao sono também podem gerar problemas sociais, como o ronco elevado, que acaba sendo um problema para pessoas que dividem espaços para dormir. Além disso, há riscos físicos. Christina Duarte, 62 anos, professora de ciências da Escola Estadual Chiquinha Rodrigues, em São Paulo, resolveu fazer exames para descobrir o porquê de roncar, após amigas comentarem em uma viagem de férias que parecia que ela sufocaria. “Fiquei preocupada e resolvi me certificar se era problema de cordas vocais ou nasal. Por isso, passei uma noite no Instituto do Sono, em São Paulo”. O exame que realizou consiste em monitorar diversas partes do corpo, por isso, eletrodos foram colocados na cabeça, nariz, cordas vocais, abdômen e peito (na região do coração). Apesar de ficar ligada por diversos fios e com uma máscara no nariz, Christina não alegou desconforto, apenas um eletrodo atrás da orelha a incomodou um pouco por causa da posição em que dorme. O exame é completo e monitora, além da respiração, a frequência cardíaca, o momento que o cérebro entra em estado de sono (suas divisões) e, quando a pessoa começa a sonhar. Uma câmera presa no teto é utilizada para analisar o quanto o paciente se mexe durante a noite e como isso interfere na qualidade do sono. Após análise clínica, os resul-

Christina realizando exames no Instituto do Sono em São Paulo Santos, 36 anos, professor universitário, sofre com distúrbios do sono por causa de sua rotina atribulada. “Tenho um ciclo de trabalho muito intenso que envolve as noites até muito tarde e as manhãs a partir de muito cedo. Fora isso, estou fazendo meu Doutorado em Comunicação Semiótica. Então, além do tempo que estou na Universidade, em casa estou trabalhando ou pensando no meu trabalho”. Devido ao seu dia a dia atarefado e a não ter pausas, Bernardo sofre de sono irregular. Por diversas vezes, acorda durante a noite pensando no trabalho e não consegue mais dormir as poucas horas que teria para tentar repor as energias. “Leio muito de madrugada e assisto TV. Isso prejudica o desempenho, tenho de compensar o tempo inteiro. Trabalho muito, descanso pouco e, quando eu durmo, tenho pesadelos. Não são noites muito felizes”. Esse ritmo de vida levado pelo professor, e por milhões de brasileiros faz com que, a longo prazo, criem-se problemas físicos muito graves. O ideal é conseguir conciliar as atividades com uma boa noite de sono. Vale a pena repensar o grau de importância que estamos dando para cada compromisso que assumimos. Saúde sempre deve vir em primeiro lugar. 57


Banca para todos Projeto une literatura independente, cultura e economia num espaço independente no bairro de Santa Cecília e tenta resgatar algo que perdemos: o prazer pela leitura Priscila Oliveira

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uem passa pela Rua Barão de Tatuí, localizada no bairro de Santa Cecília, no centro da cidade, encontra na altura do número 275 uma banca de jornal cinza e amarela que não vende os jornais ou artigos que parecem saídos de lojas de R$1,99, como já estamos acostumados. A Banca Tatuí só vende livros (e zines) independentes e oferece a quem passa na rua o resgate da banca de jornal como espaço para encontrarmos a leitura. Inaugurada em dezembro de 2014, a banca tem como donos Cecília Arbolave, João Varella e outros parceiros. Nasceu de um outro projeto já em andamento, a Lote 42, editora de publicações independentes. E foi a partir dessa experiência que os idealizadores viram que existia uma barreira para a circulação dessas publicações acontecer. Assim, nasceu o projeto da banca – um espaço voltado para contribuir com a divulgação e venda de trabalhos de autores independentes. Ter uma banca de jornal era um sonho antigo de João Varel58

la. Um dia, ao ver que o espaço no número 275 estava à venda, não pensou duas vezes para fechar o negócio. Ele e Cecília moram na rua Barão de Tatuí, bem perto dali, então, a escolha pelo local foi um pouco lógica e “depois por vermos uma oportunidade de ressignificar esse móvel urbano tão presente e tão importante”, conta João. O design da banca ficou por conta da parceria com Gustavo Piqueira, da Casa Rex – ele já havia publicado o livro “Seu Azul” com a lote 42 também – que teve como desafio desenvolver suas ideias dentro de uma banca de jornal, sem exagerar no projeto e sem descaracterizar o cenário original. Para Gustavo, a relação entre o design e a literatura vem ganhando corpo mesmo que agindo ainda separadamente. “Acredito que a linguagem escrita e a visual podem ser mais exploradas em conjunto, como parte da concepção de uma obra impressa”. No final, a banca continuou com cara de banca, mas com ar aconchegante, que cria a atmosfera de algo novo, com novos significa-

dos. E transformou a região em que está localizada. Segundo Varella, antes, a esquina era perigosa e servia como boca de fumo. “A Banca Tatuí fez a região ser frequentada, o que trouxe segurança. Grande parte dos moradores reconhece essa melhoria – embora não tenha sido esse seu objetivo final”. Além da segurança, em algumas tardes de sábado os moradores podem aproveitar os shows de bandas realizados em cima da banca. O intuito dessa mistura entre a literatura e a música é dar espaço para a cena cultural independente e mostrar essa ligação que as duas áreas sempre tiveram. “ Vide o último Nobel da Literatura, dado a um artista mais conhecido por ser música”, reforça Varella. Para fazer parte dessa banca, os autores independentes devem enviar seus materiais para análise da curadoria do projeto (outros são convidados a participar). A divulgação da Tatuí é feita pelas redes sociais e a sustentação da mesma acontece por meio das vendas das publicações. O selo Lote 42 tornou-

Grandes Temas


Reprodução/Facebook

-se referência para leitores e editoras e vem fazendo a diferença no mercado das editoras independentes, criando feiras, eventos e fortalecendo assim a rede. E é nesse fortalecimento e divulgação na rede que Christian Piana, editor da Lamparina Luminosa, uma das editoras das estantes da Tatuí, acredita. Para ele, além de um ponto de venda, a banca traz visibilidade aos títulos e ao selo, fortalecendo-o amplamente. “O forte nas nossas entradas financeiras não são as vendas nestes pontos, mas em termos de imagem e divulgação do selo, a Banca Tatuí é fundamental. Justo hoje estou conversando com uma possível nova autora, que veio conhecer a gente, porque viu nossos livros na Tatuí”. Abertura para imaginação Em pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), com apoio do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e da Câmara Brasileira do Livro (CBL), em 2015 foram produzidos 52.497 títulos (cerca de

446.848.571 exemplares), contra 60.829 (501.371.513 exemplares) em 2014. A pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” feita em 2016 pelo Instituto Pró-Livro, indica que os brasileiros leem 4,96 livros por ano – sendo que 0,94 são indicados pela escola e 2,88 são lidos por vontade própria. Desse total de livros, 2,43 foram terminados e 2,53 lidos em partes. Se antes pensávamos que os e-books seriam a transposição do impresso para o digital e que apresentariam uma ameaça para o setor de publicações, essa perspectiva não se concretizou. Os livros impressos têm ainda uma apreciação insubstituível e a maioria dos leitores prefere ter os textos em mãos para sentir o cheiro do papel, sublinhar, marcas páginas, fazer anotações, etc. “A verdadeira ameaça para as editoras são os leitores, ou seja, o fato de que não há um aumento significativo de número de leitores no país inteiro. As políticas de incentivo real à leitura estão congeladas, não há um esforço significativo para aumentar a cultura da leitura, do livro e do

Primeiro semestre - 2018

texto. A gente vê claramente isso nas feiras. Observando o público dá para identificar o seu extrato social/ cultural e ele não está se ampliando, não está se diversificando”, revela Piana. São espaços como a Banca Tatuí que criam a atmosfera de imaginação e de que algo novo está sendo produzido todos os dias no país. Se passarmos dez minutos dentro das livrarias clássicas, vemos que os preços são elevadíssimos e que não há mais uma grande gama de novos autores e/ou histórias a serem imaginadas. E que não existe abertura por parte das grandes editoras para apostarem em novos talentos ou apenas promoverem pequenos selos. O mercado de editoras independentes deve ser construído de forma alternativa ao que vemos nas livrarias da cidade. Espaços culturais, pequenas livrarias, sebos podem revender esses livros. A criação de eventos e debates para apresentar esses livros gera ideias, experiências e trocas mais humanas entre produtoras e público-leitor. 59


Emanuel Silveira


Emanuel Silveira, o viajante à procura de si mesmo A experiência do webdesigner que viajou de bicicleta pela América do Sul

Renata Silveira

E

m setembro de 2015 Emanuel Silveira, paulistano de 25 anos, decidiu confrontar seus medos e ir atrás de um sonho antigo: atravessou cinco países da América do Sul de bicicleta. O webdesigner deixou o emprego onde estava há mais de cinco anos para se aventurar e, segundo ele, passar pela melhor experiência de sua vida, que durou cerca de seis meses. Sem nenhuma habilidade técnica e, sobretudo, atlética, Emanuel escolheu a bike por ser um meio de locomoção mais barato e eficiente, não no sentido de velocidade, e sim de ir aonde quisesse com versatilidade. Apaixonado por antropologia, optou por uma viagem pela América do Sul pela diversidade cultural existente em um único continente. “Temos todos esses países juntos e cada um deles nos traz uma bagagem cultural impagável. Eu tinha que ir ver e viver isso de perto”, afirma o mochileiro.


Emanuel Silveira

Boa parte da viagem foi feita em acampamentos.

A reação de seus pais receberem a notícia de que o filho sairia por aí com uma mochila e uma bicicleta pela América do Sul sem previsão de volta não foi das melhores. “Um fato curioso é que eu nunca havia visto meu pai chorar na vida, e no dia em que eu sai ele chorou mais que uma criança, aquilo mexeu demais comigo. Meus amigos aceitaram numa boa, apesar da maioria ter duvidado que eu seria capaz de fazer tal coisa”, explica. Aceitar uma decisão como essa não foi fácil nem mesmo para o próprio viajante, afinal, a mídia e sua sede por notícias negativas nos assistam o tempo todo, divulgando mortes, assaltos e acidentes em todos os lugares. Mas, felizmente, nada de ruim aconteceu durante seu percurso. Apesar de acampar a maior parte do tempo, ficar sem dinheiro e, muitas vezes, sem comida, aprender às pressas artesanato para vender pulseiras e se aventurar como ajudante de pedreiro, Emanuel conta que conheceu pessoas maravilhosas. “Passei por lugares incríveis e conheci pessoas sensacionais, mas o que mais gostei disso tudo, além de poder chegar perto de cada cultura, aprender e sentir um pouco de cada uma, foi poder ver que o mundo não é tão perigoso quanto parece, não é aquele caos divulgado nas TVs e programas policiais. Durante todo o tempo que estive fora, eu só encontrei pessoas boas e totalmente dispostas a me ajudar de

Emanuel Silveira

Registro o Salar do Uyuni, na Bolívia.

alguma forma, seja com um prato de comida, com um pouco de água, um abrigo ou até mesmo uma informação. Eu não sentia maldade nas pessoas, só amor”. O percurso começou no Peru, atravessando a trilha de Salkantay, que vai para a cidade de Machu Picchu, a cidade perdida dos Incas. De lá, conheceu o Parque Nacional de Sajama e o Salar do Uyuni (o maior deserto de sal do mundo), ambos na Bolívia. “Levei cerca de três dias para atravessar sozinho o deserto de sal sem encontrar com nenhuma alma viva, não tinha estradas, eram a bússola, um mapa e eu”. No Chile foi a vez do Parque Nacional de Isluga até chegar na Argentina, onde as montanhas e os desertos cercam a Ruta 40 até a base do Monte Aconcágua, conhecido como o “Everest da América do Sul”. É o pico mais alto do mundo, fora da cordilheira do Himalaia, que ele fez questão de subir até a base. Após a aventura, retornou ao Brasil, passando pelo Sul do país, onde conheceu as famosas Cataratas do Iguaçu. “Depois que voltei, acabei sendo uma espécie de espelho para muitos, alguns se inspiraram em mim e já saíram em aventuras parecidas. Outros estão se preparando para tal. É engraçado quando você se vê como um exemplo para outra pessoa, eu nunca havia me sentido assim antes. Não me sinto orgulhoso disso, até porque o que fiz não foi nada além de pedalar por dias

e meses por lugares que eu não conhecia, mas eu valorizo esse reconhecimento sobre a minha coragem por ter abandonado tudo e ter ido”, lembra Silveira. O mais interessante é que o dinheiro foi o menor de seus problemas. O essencial para prosseguir viagem era a comida. Não havia gastos com hospedagem, pois a barraca o acompanhava. Vender seus artesanatos e fazer alguns bicos foi o suficiente para conseguir o alimento e seguir para os destinos seguintes. “Acredito que a maior dificuldade foi lidar comigo mesmo. Claro que tive diversos problemas com a bike, fiquei sem água no meio do deserto, quase fui atacado por pumas durante a noite, passei fome, mas o que foi mais difícil para mim foi me encontrar, pois esse era o maior objetivo dessa viagem”. Emanuel desejava se encontrar, assim como a maioria de nós. Quem somos? Por que viemos ao mundo? Quais são os nossos limites? Ele precisava sentir isso e chegar mais próximo de Deus, através da forma mais pura: a natureza. “Precisava me conhecer como ninguém jamais me conheceu, me sentir como jamais havia sentido, e ser eu mesmo como jamais havia sido. Mudei, voltei uma pessoa totalmente distinta daquela que saiu do Brasil. Hoje percebo mais as coisas, sinto mais, vivo mais, amo mais. E isso me fez um bem inexplicável”, conclui.



Grandes Temas

Este número da revista Grandes Temas reúne Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) para meio impresso e reportagens produzidas na disciplina Produção de Revista, todos realizados por estudantes de Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi. Nesta edição você poderá conferir duas grandes reportagens especiais – sobre profissionais da limpeza urbana e sobre terapeutas ocupacionais –, além de matérias sobre comportamento, ciência e tecnologia, cultura e histórias de vida. Boa leitura!


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