O Anel - Alaíde Costa canta José Miguel Wisnik

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Para Hermínio Bello de Carvalho

Em outubro de 1968, Alaíde Costa cantou “Outra viagem” no Festival Universitário da tv Tupi. Eu tinha arriscado a sorte inscrevendo a canção com a qual saía de anos de estudo de piano clássico na adolescência para uma primeira aventura na música popular. De presente, a organização do festival me oferecia uma lista de contores e cantoras na qual brilhava, quase inacreditável, o nome da intérprete de “Onde está você” (de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini), sucesso nacional em 1965. Que cantara baladas medievais e renascentistas no Teatro Municipal, num concerto de Alaíde com alaúde, e que também transitava, assim, entre o popular e o erudito. Essa experiência foi meu batismo na canção. Venho aprendendo desde então o quanto, em Alaíde, a pessoa e o canto têm a mesma limpidez de cristal, uma integridade igual à sua memória incorruptível (que lembra tudo simplesmente porque não esquece as pessoas) e um coração pulsando na voz. Até hoje ela não tinha gravado “Outra viagem”. Mas o elo entre nós ficou vivo, silencioso e intacto por mais de 50 anos. É ele que retorna na canção “O anel”, que dá nome ao disco. Depois que elegemos o estúdio Space Blues, por um conjunto de critérios técnicos e musicais, me dei conta de que ele fica a poucos passos


do lugar onde era o antigo auditório da tv Tupi, e colado muro a muro com a casa em que ficava a produção do Festival Universitário, onde eu e Alaíde nos conhecemos. Por uma misteriosa “volta e meia” da vida, retornávamos ao começo. “Aparecida”, composta há muitos anos, nunca tinha sido gravada e agora, cantada por ela, parece feita para abrir o disco. “Saudade da saudade” (com Paulo Neves) evoca a bossa nova e as “canções só feitas de canções”. “Ilusão real” é uma parceria com Guinga que, como eu, teve em Alaíde a sua primeira intérprete. O arranjo para sopros é de Nailor Proveta. “Estranho jardim” é uma balada quase esquecida do meu primeiro disco, que ela escolheu cantar, assim como “Ilusão real”. “Assum branco”, minha homenagem às vozes que nos fazem voar, tornou-se um cântico e um acalanto. Desde o começo eu queria muito ouvi-la em “Por um fio” (também com Paulo Neves), canção que parece descrever o modo como ela própria canta e, nesse caso, contracanta com o violoncelo de Jaques Morelenbaum, que surge aqui como a verdadeira “voz do outro em mim”. Em “Laser” (com Ricardo Breim), a leveza capaz de cortar diamante ao meio é bem a dela. E a gravação de “Outra viagem” ficou parecendo vir de lá, daquele “estranho festival” de outras eras (“há tanto tempo, quanto faz?”).

“Olhai os lírios do campo”, que fecha o disco, é uma canção que fiz em 1966 para uma peça teatral no meu colégio público, em São Vicente. A letra era de Flávio Rezende, um querido e animado colega, cujos primeiros versos eu lembro, mas os outros tive que reconstituir. Ela respira singelamente um espírito bachiano que estava em voga na época, e no qual se incluía o “Onde está você”, que certamente me influenciou. As duas músicas aparecem juntas para dizer em sons o quanto eu, desde lá, me afinava com as finezas de Alaíde. O trio de piano, contrabaixo e bateria que formei com Zeca Assump­ção (cujas cordas cantam) e Sérgio Reze (cujos gongos cantam), as participações sensibilíssimas de Jessé Sadoc ao flughel, Shen Ribeiro nas flautas e Alexandre Fontanetti na guitarra, além de Jaques Morelenbaum, Nailor Proveta mais seu grupo de sopros e Alê Siqueira na produção, todos nos dedicamos a homenagear e servir essa deusa da canção brasileira, delicada e contundentemente visceral, que faz 85 anos no esplendor de sua arte. José Miguel Wisnik


1 APARECIDA (JOSÉ MIGUEL WISNIK) apareceu sem me avisar no que ela quis me deixei levar foi por um triz ela ‘tava vindo e já ia voar pro mesmo nada de onde chegou de onde um passarinho me falou essa canção eu também conheço de algum lugar a flor de um canto qualquer roubada por quem quiser de um roseiral que não há a melodia se acomodou mas só porque sem saber ficou no lugar certo onde está você no meu coração eu segurei e guardei pra mim mas sem prender nem querer impedir

que é como eu faço quando seguro a sua mão e quando o som flutuar na tarde que vai findar e a lua cheia brilhar um pouco além da dor e o prazer ainda havemos de merecer algo da graça que o tempo passa e deixa no grão da voz na noite adentro de cada amor se o universo é ainda maior é só porque não tem nem porquê e se espelha em nós [1998]

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Nailor Proveta (clarinete) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico) Sérgio Reze (bateria) Swami Jr (violão – acorde)


3  SAUDADE DA SAUDADE (JOSÉ MIGUEL WISNIK/PAULO NEVES)

2  O ANEL (JOSÉ MIGUEL WISNIK) o anel que tu me deste não guardei nem esqueci ele nunca se quebrou fui eu que me perdi

sob a luz estroboscópica do agito de um salão que ainda dança à nossa volta com as décadas que se vão

o amor que tu me tinhas não tem nome nem lugar luz que vem da mesma liga do anel a nos ligar

o anel que tu me lembras meu escuro escondeu ele nunca se partiu quem partiu de si fui eu

retiraste de teu dedo sem nenhuma hesitação e o puseste com cuidado na palma da minha mão

meia vida, meia-volta volta e meia vamos dar hoje a lua é uma lagoa espalhada no mar

eu ainda não sabia que existia o puro dom que era feito de verdade desapego e solidão

era a luz alucinada de um estranho festival nada ali anunciava o teu gesto e o cristal

[2020]

tudo então que nos unia numa voz e uma canção nele brilha solitário diamante escuridão

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano e voz) Alexandre Fontanetti (guitarra) Shen Ribeiro (flauta em dó; flauta em sol; shakuhachi) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico) Sérgio Reze (bateria)

não saber o que será que foi que eu sonhei quando amanheceu e quis cantar era o mar ou eram ondas de canções canções só feitas de canções outros azuis tantos sóis tão desgarrada luz no ar e eu sem saber o que é o mar o mar mas me diz o que é o amor me explica por favor o que me faz querer ser saudade de você saudade da saudade de você e eu você e aquilo tudo de nós dois

que vai se transformar depois não sei em que sim eu sei o mundo será sempre assim um recomeço sem ter fim sem ter razão ouve então preciso te dizer que não preciso repetir que sigo só mas me diz o que é o amor me explica por favor o que me faz querer ser saudade de você saudade da saudade de você e eu [1997]

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico) Sérgio Reze (bateria)


4  ILUSÃO REAL (GUINGA/JOSÉ MIGUEL WISNIK) vem, me diz se a lua atrás daquela nuvem quis riscar um círculo de chumbo e giz pra me maltratar

vem, diz mais se a noite esconde o estrago que me faz no próprio peito a martelar tenaz por um mal maior

e se o mar batendo assim no breu se trai querendo copular com o céu fantasmagórica ilusão cruel a debochar de mim

e se o amor se dando a mim total só quer morder meu coração mortal fantasmagórica ilusão real a debochar de mim

será então que vou sem paz e sem perdão no labirinto de tormentos vão onde sobramos eu e deus?

será então que vou sem paz e sem perdão no labirinto de tormentos vão onde sobramos eu e deus? vem, me diz vem, me diz vem [2011]

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Nailor Proveta arranjo para quinteto de sopros: Douglas Braga (saxofone alto) Erick Ariga (fagote) Gabriela Machado (flauta em dó e flauta em sol) José Luiz Braz (clarone alto) Nailor Proveta (clarinete) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico) Sérgio Reze (bateria)


5  ESTRANHO JARDIM (JOSÉ MIGUEL WISNIK) te vejo assim tão sólida e sempre tão sólida sólida a sorrir que mesmo indo embora agora não fica um pedaço sem ti e já que a primavera retorna e se torna em tudo o que existe por que que eu sou tão triste? que sonho nos sonhou e lançou nesse limbo em que a vida é assim? que símbolo cavou entre nós, dentro em nós, esse estranho jardim? a flor que eu vi ali eu colhi, recolhi e escolhi pra mim sim!

eu quero amor sem ter fim agora nem me diz se tem muito jobim nesse meu mal de raiz se ouvir tanto chopin me fez bem ou me fez infinito infeliz mas tudo o que quis eu pedi despedi em mim depois despi oh meu amor vem aqui que sonho nos sonhou e lançou em nesse limbo em que a vida é assim? que símbolo cavou entre nós, dentro em nós, esse estranho jardim? a flor que eu vi ali eu colhi recolhi e escolhi pra mim sim! oh meu amor vem aqui [1989]

6  ASSUM BRANCO (JOSÉ MIGUEL WISNIK) quando ouvi o teu cantar me lembrei nem sei do quê me senti tão só tão feliz tão só só e junto de você pois o só do meu sofrer bateu asas e voou para um lugar onde o teu cantar foi levando e me levou e onde a graça de viver como a chuva no sertão

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Jessé Sadoc (flughel) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico) Sérgio Reze (bateria)

fez que onde for lá se encontre a flor que só há no coração que só há no bem-querer e na negra escuridão assum preto foi asa branca dói muito além da solidão [1997]

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Alexandre Fontanetti (guitarra) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico)


7  POR UM FIO (JOSÉ MIGUEL WISNIK/PAULO NEVES)

8 LASER (RICARDO BREIM/ JOSÉ MIGUEL WISNIK)

por um fio eu me parto em dois aceito o que a sorte dispôs no meu caminho vejo a vida, a morte e o depois não vou viver jamais sozinho porque sou dois sou mais que dois sou muitos fios que vão se tecendo com a voz do outro em mim e quem canta não sabe o fim com medo e alegria ele anda por um fio

gota pura gota gota pura vindo pela veia do veio diamante diamante duro cortando o cristal pelo meio com um beijo eu acordei outro beijo me dormiu depois todo o tempo se seguiu todo o tempo nos antecedeu ficou preso e solto por um fio e esse fio era você e eu

[2000]

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Jaques Morelenbaum (violoncelo) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico)

leva leve pega e leva leve raio da leveza do laser eu te firo e você me fere como a luz nos fere com seu ser [1989]

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano e voz) Shen Ribeiro (flauta em dó; flauta em sol) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico) Sérgio Reze (bateria)


9  OUTRA VIAGEM (JOSÉ MIGUEL WISNIK)

10  OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO (JOSÉ MIGUEL WISNIK/FLÁVIO REZENDE)

quando você sem adeus partiu a natureza te perseguiu cantaram aves velejando cantando aves velejaram e foram ventos só rodando foram palmeiras e rodaram canoa, canoa persegue esta chegada hoje a lua é uma espada amanhã é uma lagoa quando você voltou doutro mar outra barcaça, outra embarcação não tinha vento nessa terra nem cor nem água nos canais teus olhos novos tua guerra há tanto tempo quanto faz? não tinha aves mais na serra

nem galinhas nos quintais teu sangue pra ser derramado o meu parado já demais palmeira em sonho se levanta girando vento vem nascer eu te pergunto de que adianta de que amor vamos viver? canoa, canoa persegue essa chegada hoje a lua é uma lagoa amanhã é uma espada

olhai os campos que passam olhai os lírios do campo chorai a ternura dos lírios ouvi a pureza do canto amar as flores pisadas colher os frutos da graça beber na certeza da fonte sentir os campos que passam [1966/2020]

ONDE ESTÁ VOCÊ (OSCAR CASTRO NEVES/LUVERCY FIORINI)

(...) hoje a noite não tem luar e eu não sei onde te encontrar pra dizer como é o amor que eu tenho pra te dar passa a noite tão devagar madrugada é silêncio e paz e a manhã que já vai chegar onde te despertar?

[1968]

vem depressa de onde estás já é tempo do sol raiar meu amor que é tanto não pode mais esperar [1965] Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Jaques Morelenbaum (violoncelo)

Alaíde Costa (voz) José Miguel Wisnik (piano) Zeca Assumpção (contrabaixo acústico)



Produção musical Alê Siqueira Direção artística José Miguel Wisnik

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo

Gravado em setembro/outubro de 2020 no estúdio Space Blues, por Alexandre Fontanetti (São Paulo), sob supervisão de Alê Siqueira (Algarve, Portugal) Roadie Luisinho Silva Pré-produção Pedro Vinci Editado, mixado e masterizado por Alê Siqueira

Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Superintendentes Comunicação Social Ivan Paulo Giannini Técnico-Social Joel Naimayer Padula Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli

Produção executiva Sérgia Percassi Diretor de produção Guto Ruocco — Circus produções Agradecimentos Daniel Augusto, Dra. Diana Maziero, Dra. Heloisa Ruocco, Jacob Solitrenick, Renato Coppoli, Ricardo Breim, Ricardo Santiago, Rogerio Augusto, Silvana Jeha e Haquira Osakabe (em memória)

impressão _ pigma

Design gráfico Elaine Ramos Fotos Anita Abreu Solitrenick e Jacob Solitrenick Imagens da capa e encarte Erik Linton

Selo Sesc Gerente do Centro de Produção Audiovisual Silvana Morales Nunes Gerente Adjunta Sandra Karaoglan Coordenador Wagner Palazzi Produção Flavia Rabaça, Raul Lorenzeti, Ricardo Tifona Comunicação Alexandre Calderero, Nilton Bergamini, Renan Abreu Propriedade Intelectual Bianca Thais, Katia Kieling, Yumi Sakamoto Administrativo Camila Viana, Clarissa Nobrega, Erika Takahashi, Thays Heiderich

Av. Álvaro Ramos, 991 São Paulo/SP - CEP 03331-000 Tel: (11) 2607-8271 selosesc@sescsp.org.br sescsp.org.br/selosesc sescsp.org.br/loja



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