Amor à toda prova kathleen baldwin

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Amor a Toda Prova Lady Fiasco

Kathleen Baldwin

Inglaterra, Século XIX Uma dama imprevisível... Fiona Hawthorn só quer passar despercebida. Nada faz para ter problemas, mas, aonde quer que vá, o infortúnio parece segui-la. Entretanto um cavalheiro se recusa a acreditar em sua má sorte. Lorde Wesmont, seu amigo de infância, e dono de uma devastadora beleza, não crê em maldições. No entanto, quando Fiona lhe oferece seu amor, Wesmont desaparece, deixando-a convencida que a falta de sorte também a persegue nas questões do coração... Traumatizado pelas experiências nos campos de batalha, Tyrell Wesmont retorna à Inglaterra um homem mudado. Retraído, não quer saber das moças que sua mãe insiste em lhe apresentar. Mas em um baile, reencontra a única pessoa capaz de fazê-lo sorrir. Fiona se transformou de menina travessa em uma jovem encantadora, e Wesmont não tardará a cair nas malhas do amor...


CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin

Capítulo I Tyrell, lorde Wesmont, permanecia imóvel como uma estátua, com vontade de fazer a mãe se calar para deixá-lo em paz. — Tyrell, pelo amor de Deus, quer fazer o favor de dançar? Está me constrangendo diante de todos! Por certo, uma dessas jovens... De jeito nenhum!, replicou o filho em pensamento, porém a mãe entendeu mesmo sem palavras. — Seu pai teria gostado que demonstrasse ser mais sociável. Detestava períodos de luto muito longos, sabe muito bem disso. Teria desejado que seu filho fosse recebido com alegria em seu lar. Ficou longe por tanto tempo, meu querido, que é justo que o apresente de novo aos nossos vizinhos. Afinal, Tyrell, planejei esta festa em sua homenagem! Mas lorde Wesmont sabia muito bem por que a mãe organizara aquele baile abominável e com quais propósitos. — É verdade — continuou a senhora, abanando-se com o leque de modo agitado. — Como pode duvidar de minhas boas intenções? Afinal, sou sua mãe, e é meu dever cuidar de você. Sabendo como o silêncio podia ser torturante, Tyrell nada replicou. — Não tem coração? — choramingou sua progenitora. Coração?! Não! Esse órgão mecânico deixou de funcionar em meu peito quando estava na Espanha, nos campos de batalha de Badajoz, para ser mais exato, meditou Tyrell. A música imperava no belo salão de baile, irritando-o com seus acordes frívolos de harpas e violinos. Centenas de velas iluminavam os casais de dançarinos a rodopiavam como um rebanho de ovelhas idiotas e irracionais. Preferiria se ver encurralado em uma caverna cheia de morcegos que estar ali, refletiu, aborrecido. A fim de não escutar a ladainha chorosa da mãe, tentou se distrair analisando Fiona Hawthorn, que abria caminho entre os demais convidados, do outro lado do salão. Não mais lembrava a menina chorosa que correra atrás dele quando partira para a guerra. Tornara-se uma mulher de formas bem delineadas e bonitas, sem dúvida muito atraente. E ali, nesse momento, seus vizinhos idiotas se afastavam dela como se estivesse com a peste. As outras mulheres se apressavam a dar um passo atrás à sua passagem, segurando as saias como crianças assustadas que viam um fantasma. Imbecis supersticiosos! Sua mãe voltou a chamar sua atenção com uma súplica murmurada: — Como pode me tratar tão mal? Só lhe peço que me dê um netinho, de modo que não me veja na miséria um dia. Tyrell continuou imóvel, como se fosse uma figura de um museu de cera. O chalé que caberia à mãe como usufruto dos bens do marido seria o suficiente, pensou com pouco caso. — Não posso suportar a idéia de ver meu lar nas mãos de algum parente distante, que pouco se importará com o que me aconteça — choramingou a dama, agarrando o braço do filho. — Só lhe peço um garotinho que possa embalar nos braços. Um herdeiro. É pedir demais? Sim, demais. Muito além do que podia conceder, refletiu Tyrell. Filhos precisavam de um pai, de preferência com um coração intacto e amoroso, o que não era o seu caso.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Continuou a observar Fiona, enquanto a jovem prosseguia até o fundo do salão, longe dos olhares dos outros convidados e das rodas de moças que riam e mexericavam por trás dos leques. Sentou-se em uma poltrona imersa nas sombras, atrás de uma coluna. Escondendo-se. Tyrell cerrou os dentes. — Precisa ficar com esse ar de fera enjaulada? — queixou-se a mãe. — Não lhe fará bem. E vai ficar com rugas. E que queria que fizesse?, replicou Tyrell em pensamento. Virar as mesas? Expulsar da casa todas as pessoas que ela convidara? Quebrar o violino na cabeça daquele músico irritante? — Nossos amigos compareceram hoje na expectativa muito razoável e natural de vê-lo escolher uma de suas filhas. Precisa dançar com uma destas jovens ou não conseguirei mais aparecer em sociedade tamanha a minha vergonha. Temos um nome a zelar. Pelo menos poderia... — Muito bem. Uma delas. Assim dizendo, Tyrell atravessou o salão sem olhar para os lados, alheio às pessoas que dançavam e que se afastavam depressa à sua passagem, enquanto tentavam manter o ritmo. Os passos de Wesmont ecoavam pelo salão, e nada o deteve, até parar de maneira abrupta diante da poltrona que Fiona ocupava atrás da coluna. A jovem estava sentada com expressão sonhadora, acompanhando com a cabeça o ritmo da música. Tyrell pigarrou e aguardou que erguesse o rosto para fitá-lo. De modo muito lento, Fiona levantou a cabeça, e quando viu quem estava postado à sua frente, ficou branca como papel. — Céus! — murmurou, erguendo-se com tanto ímpeto que a poltrona balançou. Com presença de espírito, Tyrell deu um passo atrás, impedindo que o móvel tombasse. Fez uma reverência, e prendeu a respiração. — Boa noite, Fiona — cumprimentou-a. Assim dizendo, cruzou os braços sobre o peito e encostou-se à coluna, observando-a enquanto olhava sobre o ombro para os demais convidados e percebia, aborrecida, que chamara a atenção. Então suspirou, resignada. — Boa noite, Tyrell... Quero dizer, lorde Wesmont. — Está gostando da festa? — perguntou ele, sabendo muito bem que não. — Sim, milorde — mentiu Fiona, fitando o chão e evitando encará-lo. — Muito! — Verdade? Então poderia me explicar por que está se escondendo atrás desta pilastra? As mãos de Fiona procuraram algo para se apoiar, mas nada encontraram. — Só queria um lugar tranqüilo e isolado para me deleitar com a música. — Deve estar brincando! Esses músicos mais parecem um bando de gansos grasnando que... — Oh, não! São maravilhosos. — Fiona ergueu o rosto e fitou-o com expressão de puro deleite. — Garanto. Estava pensando há pouco que a música me fascina quase tanto quanto a água. Mal pronunciou as palavras, e um rubor intenso coloriu-lhe as faces. Lorde Wesmont arqueou as sobrancelhas. — Água? — Quis dizer que a música é quase tão bonita quanto um lago. Foi isso. — Sem dúvida. — Tyrell estudou seus grandes e misteriosos olhos negros, imaginando se, durante sua ausência, caíra do cavalo e batera com a cabeça em uma pedra. — Diga-me, ainda cavalga como uma louca?

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Oh! Lembra-se disso? Bem, diria que sim. Sorriu, e deslizou um pé sobre o assoalho, de modo contrafeito, em seguida, voltou a fitá-lo com valentia. — Meu estimado pai tem certa dose de culpa. Enquanto está longe, lutando contra as tropas de Bonaparte, permitiu que me comprassem uma linda e fogosa égua. É muita tentação! — Fiona sorriu de modo travesso. — Se não tivesse me presenteado com um animal tão magnífico, não teria condições de galopar pelo campo. — Sua expressão era de total inocência. — Para uma filha como eu teria sido melhor uma égua tranqüila e pachorrenta. Tyrell quase sorriu. Era uma sensação que não sentia há algum tempo, mas durou pouco. Os músicos tocaram os acordes finais, e viu a mãe murmurando algo ao ouvido do violinista. Momentos depois, a orquestra começou a tocar uma valsa. — Mãe... A palavra escapou-lhe dos lábios como um silvo de serpente, mas em seguida voltou-se para Fiona. — É muita ousadia pedir para tocarem uma valsa em um baile como este, não acha? Sua mãe estava comandando a situação como um general, e sua determinação em atirá-lo nos braços de uma moça era exasperadora. Respirou fundo, e tratou de não ranger os dentes. Parecia que Fiona percebera a estratégia do mesmo modo que o Tyrell. Sorriu com compreensão e tocou-lhe a manga do paletó delicadamente, o que o deixou ainda mais irritado. — Talvez, milorde, o que está acontecendo seja algo muito natural. Os mais elegantes bailes da temporada em Londres do ano passado tocaram valsas. Sua mãe está apenas lançando a moda na vizinhança. — Duvido! — Tyrell adotou uma expressão inescrutável e estendeu o braço. — Quer me dar a honra? Fiona balançou a cabeça em negativa e deu um passo atrás. — Oh, não! Desculpe! Não posso... Não devo... Foi a vez de Tyrell dar um passo atrás, perplexo com a atitude da jovem. Pareceu pensar um instante, e depois se inclinou ao seu ouvido. — É por que ainda não recebeu permissão de valsar? Posso lhe garantir que ninguém ouvirá falar deste baile provinciano. Fiona se afastou, encarando-o. — Não se trata disso. A verdade é que... Sou um tanto perigosa na pista de dança. Já aconteceram alguns acidentes e... Mas sem dúvida ouviu as histórias? Entretanto, ele apenas franziu a testa, confuso, obrigando-a a fazer um gesto desanimado. — Meu último parceiro de dança escorregou e colidiu com um criado que carregava uma poncheira, que se espatifou sobre o tenente Withycombe, que quebrou a clavícula. A dor deve ter sido horrível! — Fiona balançou a cabeça com tristeza. — Era um rapaz tão forte. Foi terrível ouvi-lo gemer como um cão ferido quando o tiraram da sala. Coitado! Recebeu uma licença de seis meses. É claro que todos me culparam pelo incidente. Disseram que o Exército devia me enviar ao continente, assim Napoleão se renderia em poucos dias. — Fitou Tyrell com seriedade. — Como vê, é muito arriscado dançar comigo. Lorde Wesmont relaxou e sorriu. — Uma história muito engraçada. — Fiona corou até a raiz dos cabelos. — Garanto que é verdade, milorde. E aconteceram outros acidentes também.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Venha. — Segurou-a pela mão. — Valse comigo. Vamos mostrar a todos que estavam errados a seu respeito. Com um volteio, Wesmont conduziu-a para o meio dos dançarinos. — Mas... Não compreende! Temo por sua segurança, milorde! — Ora! Aqui estamos nós dois, dançando, e continuo vivo. — Inclinou a cabeça e fitou-a, sentindo-se muito à vontade, algo que não lhe acontecia havia bastante tempo. — Esqueceu que já dançamos juntos? Éramos crianças e, se não me falha a memória, foi em uma festa de Natal. Sobrevivi então, e sobreviverei hoje também. — Esperemos que sim — murmurou Fiona. — Exagera seus infortúnios, srta. Hawthorn. Já enfrentei perigos muito maiores que dançar com uma linda dama. Fiona piscou, e suas sobrancelhas escuras se arquearam de modo intrigante. — Não deve me consolar, lorde Wesmont. Sei muito bem que não sou linda, apenas passável. Como pode ver, meus cabelos são rebeldes. Já tentei cremes, água com açúcar e goma, mas de nada adiantou. Cada vez ficam mais rebeldes. Hoje em dia me resigno a colocar alguns grampos e esperar que não me deixem envergonhada. Tyrell sentiu uma estranha emoção ao observar as mechas negras e delicadas que rodeavam o rosto de Fiona. Sim, de fato não era uma bonequinha de porcelana com todos os fios de cabelos no lugar e uma boca pequena em forma de coração. Não. Era uma flor selvagem e indomável. — Gosto dos seus cabelos. Assentam-lhe muito bem assim, naturais. — Não precisa me elogiar, milorde. A triste verdade é que mudei desde a última vez que me viu. Cresci e me tornei uma ameaça. A maioria dos habitantes do vilarejo julga-me azarada. O bom humor de Tyrell pareceu abandoná-lo, e ele fitou-a com seriedade. — Para começar, srta. Hawthorn, não costumo fazer elogios, pelo contrário. Em segundo lugar, por que não aceita um simples cumprimento em vez de acreditar nos mexericos maliciosos dos vizinhos? — Quer dizer que ouviu os rumores a meu respeito? Tyrell desconversou, fitando os quadros na parede. — Por favor, não se aborreça comigo, milorde. Não se trata apenas da opinião da vizinhança. Minha própria família e muitos conhecidos de Londres pensam o mesmo a meu respeito. Tyrell deixou escapar um suspiro impaciente. — Azarada? Ora! Só um tolo acredita nessas coisas! Fitou os olhos baixos de Fiona, e ia dizer alguma coisa, quando a jovem tropeçou, e colidiu sobre seu peito. Tyrell felicitou-se por não ter sido pego desprevenido, e tratou de recuperar o equilíbrio, segurando com força a companheira, e fazendo um volteio com naturalidade. Entretanto, Fiona continuou encostada em seu peito, os olhos arregalados de terror. — Srta. Hawthorn, estamos salvos. Pode ficar calma. — Não é isso, milorde. — A vozinha soou abafada. — Fiquei presa! Ele fitou a parceira de dança. O corpete de seu vestido de baile ficara preso em sua medalha de Honra ao Mérito. Ergueu os olhos para o teto, sem conseguir acreditar. — Bem, dê um puxão — ordenou com o queixo erguido, na postura de comando que adotava em batalha. — Não posso fazer isso sem causar um escândalo.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Tyrell murmurou uma blasfêmia entre os dentes cerrados, e então tratou de valsar na direção das portas abertas que conduziam à varanda, sempre com Fiona agarrada a seu peito. Escaparam para a bendita escuridão, longe dos olhares vigilantes dos convidados. — Agora que temos uma certa privacidade — murmurou. — Pode tentar se desvencilhar do meu paletó. Fiona começou a mexer-se, tentando soltar o corpete da medalha. — Está tão escuro aqui fora que mal enxergo. Creio que fiquei presa na grande estrela de ouro cheia de pontas. — É uma cruz e... Ora! Deixe para lá! Apenas trate de desprender o vestido. Já! — Esperou por alguns instantes, enquanto Fiona se debatia em vão. — Isto é ridículo! Como pode ser tão difícil soltar o vestido da medalha? — Pare de me apressar! — Ande logo! — Está me deixando tão nervosa que mal consigo mover os dedos! Exasperado, Tyrell afastou-lhe a mão. — Deixe-me ver se consigo. Talvez se abrir o fecho da cruz fique mais fácil. Mas não havia iluminação suficiente para executar a tarefa. Tyrell arrastou Fiona até uma janela que os iluminou um pouco mais. Baixou os olhos e viu que a pressão do alfinete no corpete deixava à mostra parte dos seios redondos e firmes. Contrafeito, respirou fundo, e tentou se concentrar na tarefa, mas o perfume de rosas que Fiona usava penetrava-lhe nas narinas, inebriando-o. Tratou de se concentrar e resolver o problema, porém até a brisa noturna parecia estar brincando com ele, pois soprava mechas dos cabelos negros, que roçavam-lhe a face de modo sedutor. Tentou abrir a medalha sem tocá-la, mas era impossível. Seus dedos roçaram a pele acetinada, e um novo tipo de frustração o assolou. Suas mãos, sempre firmes na hora de empunhar um mosquete, começaram a tremer. Tentou se controlar, mas os seios macios de encontro ao seu peito, o perfume de rosas, e as mechas de cabelos roçando-lhe o rosto eram demais para um pobre homem. — Ora, mulher! Não consigo fazer isso! — Lamento, mas avisei-o para não dançar comigo. — Por favor, não comece com essa história ridícula outra vez! — Segurou-a pelos ombros, e fitou-a com severidade. — Ouça-me, Fiona Hawthorn, o que aconteceu há pouco no salão nada tem a ver com maldições ou azar. Não acredito nessas bobagens. Ordeno-lhe que se desprenda do meu paletó! Fiona encarou-o sem medo, e então Tyrell sentiu um desejo insano de beijála. Devia estar perdendo o juízo, refletiu. A jovem, porém, falou de modo tranqüilo, como se fizesse um comentário a respeito do tempo: — Talvez, lorde Wesmont, se tirar seu paletó... — Muito bem. Torcendo o corpo, Tyrell ouviu o som de tecido se rasgando, e logo já tirara paletó, que pendia do vestido de Fiona. Por fim! Livres! Então percebeu que a medalha se desenganchara do corpete. — Pronto! Terminou — anunciou Fiona com ar triunfante, entregando-lhe o paletó. Era uma figura deliciosa, com os cabelos despenteados e o vestido rasgado. Sem perder a calma, Tyrell tratou de vestir o paletó outra vez.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Precisa se arrumar, minha cara. O corpete de seu vestido está rasgado. Pedirei a sua madrasta, lady Hawthorn, que venha até aqui, e... — Não! — Fiona analisou a frente do vestido e torceu as mãos. — Prometi que não criaria problemas hoje no baile. Pensarei em alguma coisa. Oh! Se ao menos tivesse me deixado sossegada atrás da pilastra! — Não complique mais a situação, Fiona. Seu vestido está em um estado lastimável. Precisa de ajuda feminina, e sua madrasta é a escolha lógica, mas, se preferir, mandarei uma criada vir aqui. — Não faça isso! Os criados espalham boatos. O que iria parecer? Pense em sua reputação, milorde, e na minha. Volte para seus convidados, encontrarei uma desculpa plausível. De fato as circunstâncias não eram nada boas, refletiu Tyrell. Valsara com Fiona Hawthorn, trouxera-a para a varanda escura sob os olhares de muitas testemunhas, e no momento a jovem estava com o vestido rasgado e os cabelos parecendo um ninho de pássaros. De súbito um pensamento o assaltou. Talvez tudo não passasse de uma armadilha de Fiona para que pudesse alegar que ele a comprometera. Analisou o rosto da moça à sua frente. Os olhos escuros como a noite pareciam sinceros e inocentes. — Não sou covarde, srta. Hawthorn. Recuso-me a deixá-la sozinha em meio a essa confusão. — Por favor, volte para o salão. Cada instante a mais que passa aqui comigo piora a situação! Alguém pode sair e nos ver. — Então pensa que julgarão que a deixei em uma situação comprometedora, é isso? Acha que me importo com a opinião dessa gente? Que pensem o que bem desejarem! Fiona respirou fundo, e falou como se estivesse se dirigindo a uma criança teimosa: — Mas eu me importo muito, milorde. Como sei que terei de passar o resto da vida nessa vizinhança, acho insensível de sua parte não pensar em minha reputação. Bem, sem dúvida era um homem insensível, raciocinou Tyrell. Mas se isso não era nenhuma novidade, por que as palavras de Fiona pareciam um bofetão em seu rosto? Muito bem! Que fosse como ela queria! — Como desejar, minha cara. — Curvou-se em uma reverência. — Não irei mais importuná-la com minha oferta de ajuda. Dando meia-volta com brusquidão, voltou à sala com o queixo erguido. Aproximou-se de uma roda de jovens damas e, sem cerimônia, convidou a srta. Belinda Compton para a próxima dança. Entretanto, seus olhos não paravam de se voltar na direção da varanda, o que o deixava muito irritado. Afinal o que lhe interessava aquela menina teimosa? Nada! Apesar disso, quando terminou de dançar com Belinda Compton, dirigiu-se à varanda por curiosidade ou por senso de dever. Tudo ali estava deserto. Tyrell sabia que não parará de vigiar as portas que davam para fora e tinha certeza de que Fiona jamais saíra por elas. Onde estaria? Um súbito pânico o invadiu. Preocupado, debruçou-se na balaustrada. Sem dúvida, a louca não pulara! Afinal, o caso não era tão grave assim. De qualquer forma, nunca deveria tê-la deixado sozinha, pensou, mortificado. Examinou o solo, dois andares abaixo, e nada viu. Deus! Não precisava de mais problemas em sua vida! Então seu olhar se fixou no velho sicômoro do jardim. A imagem de Fiona quando menina surgiu diante de seus olhos. Lembrou-se de vê-la subir na árvore como um esquilo.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Uma risada de puro alívio escapou-lhe dos lábios. — Garota infernal! Fugiu pela árvore! Voltou para o salão de baile, ciente de que quando sorria daquele modo, parecia um demônio. Pouco se importava. Não via a hora de fazer as visitas de costume no dia seguinte. Fiona Hawthorn pagaria pelo tormento que o fizera passar. Logo cedo na manhã seguinte, Fiona descia o atalho que levava ao vilarejo de Timtree Corners. Percorreu as ruas de cascalhos ladeadas por casas em estilo elisabetano, coladas umas às outras, como velhas mexeriqueiras. Algumas mulheres costuravam perto das janelas, e ouviu alguém exclamar: — É ela! Fez uma careta, e tratou de manter a cabeça baixa, enquanto cortinas se fechavam à sua passagem. Tratou de apressar o passo, mas pôde ver as testas franzidas dos transeuntes e comerciantes. O sapateiro colocou um aviso de fechado na porta da loja, e os rumores matinais da vila pareceram cessar, mergulhando tudo no silêncio. Fiona passou sob a janela aberta da sra. Twilhammer que, muito surda, falava alto demais. — Que pena! Uma moça tão graciosa, mas aonde quer que vá as pessoas escorregam e caem, os móveis se quebram, e o leite azeda. A pobre menina é amaldiçoada. A irmã mais velha redargüiu, falando alto também para ser ouvida pela surda: — De fato é uma pena. Fiona sabia que não deveria continuar escutando a conversa, mas não resistiu e diminuiu o passo, incapaz de conter-se. — Ainda na semana passada — continuou a velha —, a sra. Thurgood me contou que sua sopeira nova, muito cara por sinal, escorregou das mãos do criado bem no dia em que a srta. Hawthorn foi visitá-la com sua irmã. — Não! — exclamou a outra, horrorizada. — Verdade, e foi terrível. A adorável sopeira se espatifou em mil pedaços, derramando a sopa de peixe. Imagine o odor que impregnou a casa! — Não faz mal — murmurou Fiona para si mesma, voltando a caminhar depressa, e passando diante dos estabelecimentos da modista, do carroceiro e do padeiro. Podia sentir os suspiros de alívio à sua passagem. Trazia um livro debaixo do braço, e tratou de entrar na livraria do sr. Quentin. Um rapazinho ruivo enfiou a cabeça no meio de uma pilha de volumes encadernados, arregalou os olhos, e desapareceu como um coelho assustado. Fiona balançou a cabeça com tristeza. As pessoas a temiam tanto que talvez fosse melhor não voltar mais à vila, refletiu. Localizou o sr. Quentin, um homenzinho gordo, pendurado de modo perigoso em uma escada, arrumando as prateleiras mais altas. Com cuidado, o livreiro colocou um volume encadernado em couro na estante mais alta da parede recoberta de livros. Nesse exato momento, o rapaz ruivo irrompeu dos fundos. A porta bateu com força, fazendo a escada do sr. Quentin balançar. — Vovô! — gritou o jovem. — Ela está aqui! A tal da srta. Hawthorn, a azarada! Virou-se a tempo de ver o pobre velho tentando se equilibrar de modo desesperado, uma mão segurando o livro, a outra, a escada. No entanto, acabou

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin desmoronado sobre uma mesa, e volumes de todas as cores e tamanhos voaram para todos os lados. — Vovô! — gritou o rapaz. Fiona apresou-se em ajudar, mas foi recebida com um rugido do neto. — Você o matou! — Tolice! — dardejou a jovem. Mas de fato o sr. Quentin jazia imóvel em uma pose contorcida, sobre a mesa com o tampo quebrado. Por fim conseguiu abrir os olhos, recobrando a consciência. — Deus! — gemeu. — Estou no céu? — Fiona sorriu com indulgência. — Não, sr. Quentin, ainda está no mundo dos vivos. Encontrou os óculos quebrados sobre a mesa, e tratou de colocá-los sobre o nariz do velho livreiro. — Srta. Hawthorn! Pensei que fosse um lindo anjo que veio me buscar. — Lamento desapontá-lo, sr. Quentin, mas sou apenas eu, trazendo de volta um livro. Está machucado? Devo mandar seu neto chamar o médico? O livreiro balançou a cabeça em negativa, e deslizou o corpo pesado para o chão. Fiona suspirou de alívio, agradecendo a grande quantidade de livros que amortecera a queda. Ajudou-o a se aprumar e ajeitar a mesa destruída, e tratou de comprar mais livros do que era sua intenção, sentindo um vago remorso. Pobre sr. Quentin, refletiu, enquanto fazia o caminho inverso para regressar a Thorncourt. Era mais uma coincidência que maculava sua reputação já tão denegrida. Pelo menos o velho não quebrara nenhum osso, o que era melhor do que o ocorrido com outras de suas vítimas. Olhou para o lindo céu azul, murmurando: — Por que essas coisas precisam acontecer quando estou por perto? Mas o dia estava tão lindo que sorriu satisfeita. Ainda era cedo, e tinha muito tempo pela frente. Olhou para a esquerda e para a direita, a fim de se certificar de que não havia ninguém. Satisfeita, agarrou a barra da saia, atirou os livros no côncavo, e segurou como se fosse uma bolsa. Então, em uma atitude que bem sabia não pertencer à uma dama, correu colina acima e só parou quando atingiu o topo. Respirando de modo apressado, admirou o cenário que se descortinava à sua frente. Ovelhas, que a distância pareciam flocos de algodão, pastavam calmamente. Campos dourados de grãos se estendiam na direção de Thorncourt. Embora soubesse que não podia ser vista, acenou de maneira infantil para um empregado de seu pai que treinava um dos cães de caça. Por fim se voltou, e começou a circundar o arvoredo. Correu para o lago, que fornecia água para os campos e pastagens abaixo. Choupos pontilhavam o local, e logo Fiona atingiu um abrigo de barcos. Entrou, colocou os livros a um canto, e começou a se despir. Emergiu em um exíguo embarcadouro que se estendia dos fundos do abrigo de barcos, usando uma roupa de banho azul-escura, que já deixara ali em uma visita anterior. O sol estava quase a pino, mas ainda tinha o dia inteiro à sua disposição, refletiu. Em uma apresentação que teria deixado o vilarejo perplexo, mergulhou de cabeça no lago. Sentia-se como um verdadeiro peixe na águas cristalinas e pretendia passar a tarde mergulhando em suas profundezas, admirando as pedras, e praticando as braçadas que o pai lhe ensinara quando criança. Como era afortunada por ter um progenitor tão forte e vigoroso! Seu pai sempre zombara dos hábitos rígidos da aristocracia, e permitira à filha usufruir a liberdade de um menino. Haviam passado muitas horas

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin maravilhosas no lago, e agora que o nobre estava longe, o mundo de Fiona não parava de encolher, até que no momento só encontrava alívio e alegria no lago. Sabia que suas escapadas solitárias não importavam à madrasta. Ao contrário, devia ficar muito aliviada por não ter a enteada a seu lado o tempo todo. Ainda assim, por certo lady Hawthorn jamais aprovaria que uma jovem dama mergulhasse de cabeça no lago. Diante de tal pensamento, Fiona sorriu consigo mesma. Sob o mesmo sol brilhante, e àquela mesma hora, lorde Wesmont cavalgava o temperamental corcel branco Perseu, em direção a Thorncourt. Enquanto prosseguia, pensava na melhor maneira de fazer Fiona pagar pelos momentos constrangedores que o fizera passar no baile. Sorriu ao lembrar do incidente. Irá imaginar se mencionarei na presença de lady Hawthorn o vestido rasgado ou o modo peculiar como escapou da varanda, refletiu Tyrell com satisfação. Embora não planejasse fazer nada além de deixá-la nervosa, antecipava com alegria os maus bocados que a obrigaria passar. Entretanto, seu bom humor desapareceu ao fitar a mansão do barão Hawthorn, e imaginou o nobre lutando nos campos da Espanha. De repente, seu passeio e objetivos pareceram muito frívolos. Como podia fazer visitas sociais quando outros homens talvez estivessem enfrentando a morte nesse instante? Perseu relinchou, arrancando-o de seus pensamentos sombrios. Voltou a olhar para a residência de três andares à sua frente, e viu uma cortina se mexer em uma janela do andar superior. Sem dúvida, estava sendo observado, por isso sentiu-se tentado a dar meia-volta e partir. Não deveria entrar na residência para fazer uma brincadeira, pensou. Porém, nesse momento um rapaz dos estábulos veio correndo em sua direção. — Tomarei conta de seu cavalo, milorde. — Tyrell suspirou, e tratou de desmontar. — Fique por perto, porque não irei me demorar — avisou. Subiu os degraus de mármore da entrada, onde o mordomo já o aguardava com as portas abertas. Lorde Wesmont entregou-lhe seu cartão, e entrou no saguão que reverberava com o som de um piano em algum lugar no andar de cima. Devia ser Fiona, pensou Tyrell, pois apesar de bem tocada, a sonata prosseguia fora de compasso. O mordomo logo retornou, e conduziu-o à sala íntima de lady Hawthorn, no segundo andar, anunciando-o com grande pompa. O som do piano parou de modo abrupto, mas ao entrar no cômodo, Wesmont ficou de boquiaberto. A sala estava abarrotada de quinquilharias, e por um instante a visão o deixou estático, tentando entender aquela decoração. Entretanto, isso era impossível, porque ordem e bom senso não faziam parte do local. Vasos chineses formavam um contraste gritante com poltronas de estilo inglês. Artefatos egípcios pareciam pedir desculpas sobre mesinhas barrocas e douradas. Na parede, sobre o tampo da lareira, havia o retrato a óleo de uma jovem que se assemelhava lady Hawthorn. Era uma cena pastoral, mas sem dúvida a modelo colocara todas as jóias que possuía para posar, e parecia que se vestira para um encontro com a rainha e não para cuidar de ovelhas. Enfim, a sala apresentava tal parafernália, que Tyrell imaginou todos aqueles objetos criando vida e começando a marchar em sua direção, como em um pesadelo caótico. Olhou sobre o ombro, imaginado se ainda teria tempo de sair correndo, mas nesse instante lady Hawthorn se aproximava, estendendo-lhe a mão. Tyrell inclinou-se em um cumprimento, notando que o sorriso nos lábios

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin da dama era superficial, e não atingia seus olhos. Lembrando-se do propósito de sua visita, Tyrell olhou na direção do piano, mas ficou desapontado ao ver que a pianista não era Fiona. Em seu lugar estava uma moça com os cabelos louros tão cheios de cachos artificiais, que mais parecia estar usando um chapéu de palha. Lady Hawthorn apresentou-a como sua filha do primeiro casamento, Emeline. — Bom homem meu falecido marido — suspirou lady Hawthorn com expressão de pesar, logo se recuperando da momentânea tristeza. — Por certo se recorda de Emeline, milorde? Sua mãe os apresentou no baile de ontem. Claro que a conhecera, resmungou Tyrell consigo mesmo. Assim como a dezenas de outras moças a quem apertara a mão, e cujos rostos esquecera assim que passaram na sua frente. Mas tratou de sorrir com afabilidade. Em seguida, lady Hawthorn o apresentou à Sylvia, uma menina de treze anos com sardas no rosto, sua caçula. A garota o cumprimentou com educação. Então, Tyrell correu o olhar a sua volta, procurando por Fiona. Talvez estivesse atrás de um dos enormes arranjos de flores, como era seu hábito. Ou atrás da estátua de bronze de Netuno, o deus dos mares, que surgia cavalgando uma serpente marinha, com seu tridente na mão e três sereias o seguindo. Não. Fiona não estava ali. Lady Hawthorn indicou um sofá de seda amarela, que parecia não ser muito confortável, e que formava um contraste gritante com o papel de parede de listas azuis e rosas vermelhas. Emeline tratou de sentar-se ao seu lado, e o vestido cor-de-rosa que usava, sobre o amarelo do sofá, ofendeu os olhos de Tyrell, fazendo-o pensar que iria precisar de algo mais forte que chá para se recuperar do pesadelo de cores. Desejou estar na África ou na guerra, mas nunca ali naquela sala. Os refrescos e chá foram servidos, e Tyrell aceitou um biscoito que tinha gosto de areia doce. Lady Hawthorn serviu todos, tagarelando sobre os vizinhos. Wesmont sorriu de modo polido, e tentou mudar de assunto, mencionando o encontro que tivera com o barão Hawthorn na batalha de Salamanca, na Espanha. Quando a anfitriã franziu a testa com desagrado, assegurou-lhe que o marido estava bem. Emeline começou a fazer uma série de perguntas sobre a vida no continente, em especial sobre as batalhas, o que levou a mãe a arquear as sobrancelhas. — Querida, não devemos falar sobre coisas tão desagradáveis. — Desculpe, lorde Wesmont — murmurou a jovem, torcendo as mãos. — Não quis ser indelicada. Será que pode me perdoar? Os gestos foram tão exagerados que Tyrell admitiu para si mesmo que Emeline deveria ser atriz. — Não foi nada — replicou. — E a srta. Fiona? Por acaso está doente? Foi Sylvia quem respondeu, com um tipo de comentário que os muito jovens escutam dos adultos e repetem como papagaios. — Já que hoje é um dia de sol, Fiona deve estar galopando como uma louca ou se afogando em seu precioso lago. Essas palavras foram seguidas por um aceno satisfeito de Emeline, e Tyrell prosseguiu: — Como culpá-la se o sol está maravilhoso? Por certo, nem se lembra do baile de ontem. Emeline sussurrou como um gato mimado. — Jamais esqueceria se tivesse dançado com milorde. Com seu talento de atriz, baixou os olhos em seguida, e ajeitou a saia, como

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin se soubesse que falara demais e estivesse envergonhada. Com um gesto discreto, Tyrell ergueu o olhar para o relógio de parede, desejando estar galopando ou nadando como Fiona. Mas algo o incomodava. O que Sylvia quisera dizer? Afogando em seu precioso lago? Calculou que já ficara tempo suficiente ali, e levantou-se de modo abrupto, cumprimentando as damas bem depressa, e deixando a sala caótica. No hall, pegou o chapéu que o mordomo lhe trazia e tratou de sair da casa o mais depressa possível. Perseu foi logo trazido pelo mesmo jovem cavalariço. — Deu trabalho? — perguntou Tyrell, afagando a crina branca do cavalo. — Não, milorde. Comportou-se muito bem. — Ótimo! — Olhou ao longe, simulando certo desinteresse, e continuou. — Saberia me dizer que direção tomou a srta. Fiona quando saiu? — A senhorita não precisou de mim porque saiu a pé, milorde. Sua égua continua na estrebaria. — Estranho. Pensei que estivesse em casa — mentiu Tyrell, jogando verde para colher maduro. — Mas não está, milorde. — Então foi dar um passeio a pé? O garoto fungou como se não estivesse muito à vontade. — Não diria que foi apenas passear, milorde, porque a srta. Fiona sempre se mete em confusão. Aquela história ridícula de novo!, pensou Tyrell com irritação. — Ora, meu rapaz! Conheço a srta. Fiona desde que éramos criança. Somos velhos amigos, e não é garantido que deva se meter em complicações todas as vezes que sai. O criado pareceu se encher de coragem, e adotou um tom de voz confidencial. — Para ser honesto, milorde, se me permite dizer, creio que as pessoas são injustas com a senhorita. Se uma criada quebra um vaso, a culpa é da srta. Fiona, e a nova esposa do barão nada faz para que essa fama termine. Está sempre se queixando do azar da enteada. — Sorriu com benevolência, sentindose muito importante, porque aquele nobre o escutava com atenção. — A srta. Fiona é muito bondosa, apesar de galopar e correr a pé como um garoto travesso. Tendo escutado em silêncio, Tyrell tratou de tirar suas conclusões sobre os mexericos do cavalariço, e descobrir mais. — Por certo está exagerando, menino. Como assim? Corre como um garoto? — Não estou, milorde! A srta. Fiona arregaça as saias e sai correndo! Tyrell retirou uma moeda do bolso, contendo o riso. — E para onde exatamente correu esta manhã? — Creio que foi ao lago, milorde — replicou o menino, de olho na moeda. — Mas fica bem longe daqui. — Sim, e é por isso que a srta. Fiona corre — justificou o criado com um amplo sorriso. — Para não perder tempo. Tyrell riu e atirou-lhe a moeda. — Tem razão, garoto.

Capítulo II Projeto Revisoras

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Tyrell cavalgou até o lago e encontrou o abrigo de barcos. Amarrou Perseu a uma árvore, e enveredou por um atalho meio escondido, que dava a volta no pequeno prédio. O local estava cercado por canteiros de flores e de morangos, portanto não se tratava de uma casa de barcos abandonada. Ao abrir a porta, viu muitos livros sobre uma mesa, e várias aquarelas, com o lago como tema, enfeitando as paredes brancas. Cada uma refletia luzes diferentes, como se tivessem sido feitas ao longo das diversas horas do dia. Aproximou-se para examiná-las melhor. O amor de Fiona por aquele lugar transpirava das pinturas de modo soberbo. Com cuidado, Tyrell ajeitou um dos desenhos que refletia a luz do início da manhã. Então viu as vestes de Fiona penduradas em um gancho no fundo do cômodo. As roupas de baixo também se encontravam ali, e imaginou o que a jovem estaria vestindo no momento, mas a resposta era evidente. Fiona estava fazendo o que ele mesmo e todos os meninos faziam desde que o mundo existia. Nadar sem roupa em lagos. De repente, imaginou-a na água como uma ninfa desnuda e... Sacudiu a cabeça com ímpeto, e a fantasia se desfez como fumaça. Com duas passadas largas, deixou a casa de barcos. — Que loucura fazer isso sem uma acompanhante — murmurou consigo mesmo. Foi em busca de Perseu, a fim de voltar para casa, mas deteve-se. Fiona estava sozinha... despida... Vá para casa!, gritou sua consciência. Sentindo emoções conflitantes, Tyrell guiou Perseu pela margem do lago, tomando uma decisão. Afinal, era seu dever como cavalheiro garantir que a dama não fosse molestada. Era sua amiga de infância, e no mínimo lhe devia isso. Então o som de água o despertou do debate íntimo, e ele a viu nadando, a luz do sol iluminando-lhe a pele e os cabelos. Pareceu que um século se passava até que ela resolvesse sair do lago. Ergueu-se das águas como uma sereia, mas para frustração de Tyrell, envergava um traje de banho azul-escuro que lhe cobria as pernas de maneira pudica. Fiona dirigiu-se até uma grande pedra e lá se sentou, torcendo os cabelos para tirar a água. Em silêncio, Wesmont fustigou Perseu para que se aproximasse. Assustada com o som dos cascos, Fiona se voltou, e Tyrell tocou a ponta do chapéu, em uma saudação zombeteira. — É um prazer revê-la, srta. Hawthorn. Fiona o encarou, a expressão de surpresa estampada no rosto que lembrava o de um ser encantado. — Lorde Wesmont! O que faz por aqui? O nobre apeou do cavalo, passando as rédeas em torno de uma árvore. — Não me esperava? — provocou-a. — A valsa de ontem foi inesquecível, e por certo aguardava minha visita? — Não. — Fiona mordeu o lábio. — Bem... Esperava que mandasse lembranças, só isso. Como me encontrou aqui? — Por acaso — mentiu, embora de certo modo fosse verdade. — E não me agradou descobrir que estava neste lugar distante e solitário sozinha. E se alguém sem escrúpulos aparecesse? — Meu caro lorde, há muito deixei de ser criança, e garanto que não preciso de acompanhante para tudo que faço. Além disso, venho ao lago há muitos anos,

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin e nada de mau jamais me ocorreu. — Atirou uma pedrinha na água. — Este é o único lugar no mundo onde os acidentes não me encontram. Tyrell encostou-se no tronco de uma árvore e analisou-a. Gotículas de água brilhavam sobre sua pele sedosa, e no momento a roupa molhada delineava suas curvas de maneira provocante e sensual. — Subestima os perigos deste mundo, senhorita. — E milorde está se esquecendo de que sou um desses perigos em carne e osso. — Fiona sorriu de modo tristonho. — A maioria dos homens que conheço estariam mortos de medo se ficassem a poucos metros de distância de mim, como milorde se encontra no momento. — Quanta tolice! — Acho que não ouviu todos os apelidos que já recebi. — Fingiu pensar um pouco. — Deixe-me ver... Lady Fiasco, Dama Fatal, Senhorita Calamidade, e mais uma dúzia deles, além dos que desconheço. Tyrell franziu a testa, imaginando como aquilo devia humilhá-la, e sentiu muita pena. — Para mim, tudo isso continua sendo uma lenda tola! E se um homem que não conhecesse sua... reputação, a encontrasse aqui? Então? — Infelizmente minha reputação é conhecida em muitos lugares, milorde. — Ridículo! Está sempre exagerando, minha cara! E se arrisca muito ao ficar aqui sozinha. Fiona riu de mansinho. — Acha mesmo? Mas vamos supor que um estranho chegasse ao lago. Simplesmente me atiraria na água e nadaria para longe. Não existe nenhuma pessoa do sexo masculino ou feminino que consiga me vencer na natação. Fitou-o como uma criança que desejava impressionar um professor, e Tyrell sentiu-se desafiado, embora não tivesse sido essa a intenção de Fiona. Deu um passo à frente e ajeitou o paletó de seda que começava a ficar banhado de suor. — Palavras corajosas, minha cara. Mas não passam de balelas. Pode nadar mais depressa que alguns rapazes do campo que nunca aprenderam as técnicas corretas, mas continua sendo uma mulher. E qualquer homem bem treinado pode vencê-la. Fiona o fitou como se o visse pela primeira vez e, de modo lento, esboçou um sorriso travesso e zombeteiro. — Não está pensando em... — Interrompeu-se e riu, bem-humorada. A risada soou aos ouvidos de Tyrell como um tapa com luva de pelica. Agora não restava nenhuma opção, refletiu. — Vamos ver então — murmurou. Sem dizer mais nada, retirou o paletó, o colete, a gravata, e pendurou-os no galho mais próximo. Começou a desabotoar a camisa, porém deteve-se, como se estivesse repensando suas intenções. Entretanto, o sorriso de desafio continuava preso aos lábios de Fiona, e isso o fez decidir. A jovem sufocava a risada, por certo achando muita graça da situação, o que o deixava irritado. Então ela atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Seu riso era contagiante, e Tyrell viuse sorrindo também. Contudo era um riso zombeteiro, e isso não poderia suportar. Com gesto brusco, arrancou a camisa pela cabeça, fazendo voar pelos ares vários botões. De imediato, Fiona parou de rir, observando-o pendurar a peça de roupa no mesmo galho. Chegara a sua vez de provocá-la, pensou Tyrell. — Percebo pelo seu olhar que nunca viu antes um homem semidespido. Fiona ergueu o queixo, porém manteve o olhar cravado em Wesmont.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Está sendo ridículo, milorde! Não sou tão ingênua como pensa. Já vi quadros e estátuas gregas no museu de Londres. — Cruzou os braços sobre o peito. — Não parece nada diferente. Ele esboçou um meio sorriso, e meneou a cabeça. — Obrigado pelo elogio — Fiona saltou da pedra. — Mas não o elogiei! Só quis dizer que... Em comparação com os modelos das obras de arte, milorde não deixa nada a desejar... Ora! O senhor é impossível! Dessa vez Tyrell riu e tentou tirar as botas, tarefa que demonstrou ser difícil sem uma cadeira por perto. Fiona aproveitou sua distração e entrou no lago sem fazer barulho. Por fim, livre do calçado, ele a seguiu. Pretendia pôr um fim bem depressa na competição. Fiona riu, virou-se e, como um golfinho, mergulhou e nadou para longe. Wesmont tentou alcançá-la, mas estava em desvantagem. Por São Jorge! Fora atirado no canal de Eaton para aprender a nadar à força, e não seria uma menina do campo que iria vencê-lo! De jeito nenhum! Entretanto, após mais algumas braçadas, percebeu que era isso que iria acontecer, pois já estava sem fôlego. Viu então que a distância entre eles diminuíra, porque Fiona resolvera boiar. Mas mesmo de olhos fechados, continuava a rir, a pretensiosa! Parecia uma sereia tentando atraí-lo para águas ainda mais profundas. Porém Wesmont estava, de fato, fora de forma em matéria de natação, porque começou a arfar muito. Fiona gargalhou. — Dá-se por vencido, milorde? Nem morto, disse consigo mesmo. E em seguida afundou. De início Fiona não compreendeu o que estava acontecendo, mas logo percebeu que Tyrell continuava submerso e fazia muito tempo. — Lorde Wesmont! Tyrell! Sem obter resposta, mergulhou e o viu afundando, os olhos fechados, bolhas saindo de sua boca. Agarrou-o pelos cabelos e nadou com empenho para voltar à superfície. Mas o peso dele os empurrava para o fundo, e logo Fiona lutava para recuperar o fôlego. Não estavam progredindo em direção à margem, pensou. Precisava encontrar outra maneira de sair. Agarrou a cabeça de Tyrell, e enfiou-a debaixo do braço. Poderia estrangulá-lo, mas era preciso tentar. Com o outro braço livre, começou a nadar mais depressa. Nesse instante, Tyrell recuperou os sentidos e começou a se debater. — Fique quieto! Estou tentando salvá-lo. Porém, pareceu não escutá-la, e continuou a se debater como um peixe no anzol. Continue nadando, ordenou Fiona à si mesma, em um último esforço. Por fim, arfante e exausta, alcançou a margem Aos tropeções, arrastou-o para fora do lago, deixando-o cair ao solo, imóvel. Quase aos prantos, ajoelhou-se ao seu lado. — Por favor, não morra! Deus, suplico que o poupe! — Cobriu o rosto com as mãos. — O que posso fazer? De repente, ocorreu-lhe que precisava saber se Tyrell continuava respirando. Virou-o com esforço, deixando seu rosto para cima, mas ele continuava de olhos cerrados. — Permita que esteja vivo, Senhor! — implorou Fiona aos céus. Pressionou o ouvido em seu peito, mas então se sentiu agarrada por mãos

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin poderosas. — Enganei você! — berrou Tyrell, sorrindo com ar triunfante, e de olhos bem abertos. Fiona afastou-se sem conseguir acreditar. — Não se afogou! Não está morto! — Lorde Wesmont tossiu um pouco. — Não, mas quase conseguiu isso quando me arrastou até aqui. O alívio de Fiona logo se transformou em ódio. Ergueu a mão direita com a clara intenção de esbofeteá-lo, mas antes que conseguisse seu intento, Wesmont segurou-lhe o pulso. Sem perda de tempo, a jovem levantou a mão esquerda, mas também foi dominada. — É um terror de menina! — troçou o lorde. — E milorde é um homem abominável! — rosnou ela, tentando se libertar. — Enganou-me da maneira mais vil, fingindo-se de morto! Tyrell caiu na gargalhada, e cometeu o erro de afrouxar os dedos nos pulsos delicados de Fiona, que com um puxão se libertou e aproveitando para esbofeteálo. Por um instante, tudo pareceu ficar congelado no tempo e no espaço, ambos encarando-se, imóveis. Mas de repente o rosto de Tyrell tornou-se uma máscara furiosa. Antes que tivesse tempo de raciocinar, agarrou-a outra vez, fazendo-a deitar no solo, e posicionou-se sobre seu corpo frágil como uma fera pronta a dar o bote. Fiona fechou os olhos, e esperou ser golpeada. Quando nada aconteceu, abriu um olho. O rosto de Tyrell estava muito próximo, mas sua expressão já não era de ódio, porém de profunda curiosidade. Aos poucos foi-se acalmando, mas continuou prendendo-a pelos pulsos. — Desculpe — murmurou por fim. — Por um instante me esqueci... Não sei o que aconteceu. Fiona engoliu em seco, aliviada. — Talvez não devesse tê-lo agredido primeiro, milorde. Tyrell não respondeu, continuando a examinar o rosto da amiga, como se o visse pela primeira vez. De súbito, Fiona sentiu todo o peso do corpo viril sobre o seu, e sentiu o rubor tingir-lhe a face. — Sabia que é muito linda? — inquiriu Tyrell, gotas de água caindo de seus cabelos nas faces de Fiona. — Linda como uma ninfa dos mares. Antes que Fiona tivesse tempo de raciocinar, inclinou a cabeça e beijou-a nos lábios, com muito cuidado e delicadeza. Mas, em seguida, tratou de soltar-lhe os pulsos, e empertigou-se. — Desculpe de novo. Não devia ter feito isso, e... Ora bolas! Tornou a se inclinar e beijá-la, dessa vez com mais ardor, fazendo Fiona sentir pela primeira vez na vida o que era ser desejada por um homem. O odor de água e mato se misturou ao perfume da pele de Tyrell, deixando-a inebriada. Nenhum outro homem podia ter tal perfume, pensou, e cada beijo a lançava em um mundo novo e desconhecido, onde reinava um imenso calor cheio de alegria e portas misteriosas que, bem sabia, tinha poucas chances de ver abertas um dia. Rodeou-lhe o pescoço com os braços já livres, e correspondeu ao beijo com furor. Nada mais importava. Mas nesse instante um som estranho e melodioso encheu o ar. A flauta de um pastor que devia estar ali por perto. Tyrell parou de beijá-la e a fitou, serena e feliz, em seus braços. Afastou-se com ímpeto, sentou-se no chão, passando uma mão pelos cabelos molhados, e praguejou em voz baixa.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Fiona piscou diversas vezes, como se despertasse de um sonho bom, e desejando nunca ter acordado. Sempre é assim com os sonhos, pensou. No melhor da história, precisamos acordar! Já as palavras que Tyrell proferiu eram bem menos românticas. — Raios! O que estou fazendo? Como se fosse impulsionado por uma mola, levantou-se, correu para o lago, e mergulhou nas águas frias para arrefecer o ardor. Deu largas braçadas e enfiou a cabeça debaixo da água por várias vezes, enquanto Fiona o observava de olhos arregalados. Por fim, aquietou-se, e bateu com o punho fechado na superfície, erguendo uma infinidade de gotículas que brilharam ao sol. Saiu do lago, e apontou um dedo acusador para Fiona. — Você — berrou como se fosse uma blasfêmia — é muito perigosa, Fiona Hawthorn. — Agarrou a roupa pendurada no galho da árvore. — E fui um tolo em vir até aqui procurá-la! Ainda sentada no chão, Fiona passou os braços pelos joelhos, tentando não olhá-lo enquanto ele rumava para a grande pedra, sentava-se, recolocava as meias, e lutava para calçar as botas. Por fim, fez uma trouxa com o resto de suas roupas, colocou-a debaixo do braço, e montou Perseu, o tempo todo resmungando a respeito do papel ridículo que fizera, e por ter colocado a ambos em uma situação comprometedora. — Ouça-me! — gritou. — Não me importo com o que conte aos outros sobre o que aconteceu aqui entre nós dois! Não vai me fazer cair na armadilha do casamento. Não quero me casar nem agora nem nunca! Assim dizendo, esporeou o cavalo branco e saiu a galope. Quando os sons dos cascos foram se distanciando até desaparecerem, Fiona estremeceu. Mordendo os lábios para conter as lágrimas que teimavam em rolar por suas faces, ergueu o rosto, como a pedir orientação e consolo divino. Mas parecia que o céu azul e as nuvens só estavam ali para enfeitar o dia, alheios ao seu sofrimento, então deu vazão à tristeza, e soluçou de vergonha e perplexidade. Fiona caminhou de volta a Thorncourt com passos lentos e cansados. Admirou de modo distraído as flores na estrada, e deixou escapar um suspiro de pesar. O ar do final de tarde tornara-se carregado de pólen. Haveria uma tempestade, sem dúvida, talvez nessa noite ou na manhã seguinte. Tentava manter os pensamentos voltados para o tempo, assim evitaria sofrer. Pensar sobre qualquer outra coisa era penoso demais. Esperava que a chuva não danificasse as colheitas. Já dentro de Thorncourt, o mordomo a recebeu com grandes novidades. — Sua tia, a condessa Alameda, está aqui, e aguarda a senhorita na sala de visitas do primeiro andar. — Baixou o tom de voz, e prosseguiu: — E, se me permite dizer, srta. Fiona, está conversando com lady Hawthorn há duas horas. — Duas? Tia Honore e minha madrasta? Oh, céus! — Fiona ajeitou as saias e analisou a situação de seus trajes e cabelos. — Diga-lhe que irei ter com ela dentro de alguns minutos. Subiu as escadas correndo até seu quarto, e postou-se diante do espelho de corpo inteiro. Estava com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar, seu vestido tinha lama na barra, e seus cabelos eram uma massa disforme que mais parecia um ninho de pássaros. Gemeu com pena de si mesma. Não havia tempo para se apresentar muito bem. Com gestos rápidos, refez as trancas, torcendo-as em um coque no alto da

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin cabeça. Evitando dar uma segunda olhada no espelho, saiu correndo do quarto, em direção à sala íntima da madrasta. O mordomo abriu a porta para que entrasse, e Fiona entrelaçou as mãos trêmulas, entrando no aposento e postando-se diante da tia. A condessa Honore Alameda sentava-se com uma pose real. Seus cabelos, que na juventude tinham sido castanhos, apresentavam no momento nuanças avermelhadas. Usava um extravagante vestido de seda verde e rendas negras. Fiona tentou falar, mas a voz saiu hesitante. — Lady Alameda, que prazer revê-la! Fez uma profunda reverência, e avançou, um tanto constrangida, para a mesinha com o aparelho de chá em frente às duas senhoras. Pouco à vontade, lançou um olhar de desculpas para a madrasta, que ergueu os olhos para o teto, em um sinal de desespero. Não desejava testemunhar a cena constrangedora do chá atirado sobre a visita, como por certo aconteceria nos próximos segundos, em se tratando da desastrada enteada. Mas, antes que Fiona caísse sobre a mesinha, lady Alameda segurou-a pelo braço com um aperto firme. Assim que a jovem recuperou o equilíbrio, a tia apoiou o monóculo sobre o nariz, e observou-a de alto a baixo. — Fique aprumada, menina, e deixe-me dar uma olhada em você. Só então lady Hawthorn teve coragem de virar-se na direção do precioso aparelho de porcelana que continuava intacto sobre a mesa, e pareceu muito surpresa. — Que estranho! Franziu as sobrancelhas como se a normalidade do momento fosse, ao contrário, o ponto extravagante do dia. A condessa analisou a sobrinha da cabeça aos pés, viu a lama na barra do vestido, deixou cair o monóculo no regaço, e virou-se para lady Hawthorn. —Confesso, milady, que o calor aqui dentro é intolerável. Precisa de uma corrente de ar. Sugiro que faça mais uma janela naquela parede. Faça mesmo! Verá que tenho razão. — Mas aquela parede faz a divisão com a biblioteca, não com a parte de fora da casa. Será impossível... — E quando der início às obras — continuou lady Alameda como se não a tivesse ouvido —, aproveite para mudar esse atroz papel de parede. — A condessa acenou com a mão como a dizer que a conversa estava encerrada, ergueu-se da poltrona de modo abrupto, e ajeitou as saias sem cerimônia, lançando migalhas de bolo no tapete. — Venha, Fiona. Desejo ver os jardins que minha irmã tanto apreciava. Lançando um olhar inseguro para a madrasta, Fiona acompanhou a tia para fora da sala. Os jardins se estendiam pela lateral da mansão até a sala de almoço, entretanto o calor daquele dia nada respeitava, e o ar úmido estava infestado de insetos. — Rosas brancas. Adoráveis para quem gosta — comentou a tia, mal fitando as flores. — Sua mãe sempre teve um gosto um tanto padronizado, devo dizer. Muito diferente do meu. Caminhou com brusquidão pelo jardim, e sentou-se em um banco de frente para a casa. — Quero ter certeza de que não seremos interrompidas — começou. — Aqui está bem. Sente-se ao meu lado, menina. Fiona obedeceu, acomodando-se na ponta do banco, e lembrando-se de

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin manter as costas eretas. A condessa abriu o leque com estardalhaço, e afastou algumas abelhas. — Não pretendo fazer rodeios, minha cara, portanto irei direto ao assunto. Vim buscá-la para irmos primeiro a Brighton, e depois de volta a Londres. Irá morar comigo. Fiona abriu a boca de espanto. — Vejo pela expressão em seu rosto que deseja saber o motivo disso. Por que, depois de tantos anos, resolvi me interessar por você? Feche a boca, meu bem. As moscas podem entrar, e não quero vê-la engolir insetos. — Fiona obedeceu de imediato. — A verdade, minha querida, é que não tenho muita paciência com crianças. Jamais consegui tolerá-las, assim como não suporto mosquitos. — Satisfeita com a comparação esdrúxula que fizera, acenou para o ar com o leque. — Por sorte, Fiona, você já não é criança, e decidi que deve ampliar seus horizontes. Como nunca tive uma filha e sua mãe era minha irmã preferida, sinto-me um tanto maternal a seu respeito. Fiona sabia muito bem que sua mãe fora a única irmã de lady Honore, mas ficou quieta. Tinha vários tios, porém seus avós só haviam gerado duas filhas. Também sabia de cor e salteado que a tia era imprevisível como o clima campestre da Inglaterra. Nessa tarde, Honore estava com vontade de fazer o papel de mãe. Mas como agiria no dia seguinte? Podia perfeitamente mudar de idéia, e se concentrar em um navio que partiria para o Egito, só porque decidira subir em uma pirâmide. Conhecendo o histórico de lady Alameda, sem dúvida não era seguro confiar na dama como benfeitora. Poderia de um momento para o outro se ver abandonada ao próprio destino, refletiu. Por outro lado, sentia uma grande e premente necessidade de deixar a vizinhança. A perspectiva de ficar em Thorncourt e rever Tyrell a apavorava, pois isso só prometia desgostos e vergonha. Tia Honore podia ser a saída que aguardava, pensou. É claro que sempre existia a questão dos acidentes que provocava, mas... Fiona torceu o tecido da saia. — Milady, é uma oferta muito generosa. Mas talvez não tenha ouvido falar de minha fama de desastrada. Passei no ano passado uma temporada em Londres cheia de peripécias, e não desejo fazê-la sofrer com a cadeia de catástrofes que parecem me seguir para onde quer que eu vá. — Catástrofes? Que tolice é essa? Não ouvi nenhum comentário irônico sobre sua temporada londrina. O que está querendo me dizer? Na verdade, nunca descobri por que sua família deixou a capital com tanta pressa. — Por causa do pobre tenente Withycombe, milady. Machucou-se muito ao dançar comigo. Como tem a coragem de dizer que não ouviu falar a esse respeito? O rapaz não pôde voltar ao continente para lutar contra Bonaparte, e todos me culparam por isso. Se ao menos não tivéssemos dançado... — Bobagem! Aquele espertalhão estava apenas querendo fugir ao dever e encontrou uma excelente desculpa! Honore cuspiu, antes que uma mosca pousasse em seus lábios. — Oh! Não penso assim, minha tia. O infeliz gritou muito enquanto o carregavam para fora do salão de baile. Duvido que estivesse fingindo. — Bem, Withycombe é mesmo do tipo que grita, não é? — Fiona suspirou. — E para minha desgraça, não foi a única vítima que fiz. As pessoas da vila pensam que sou amaldiçoada. — Verdade?

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Honore ergueu o monóculo e examinou Fiona com tanta intensidade que a fez se remexer no banco de maneira, sentindo-se desconfortável. — Uma maldição! — exclamou a condessa. — Que divertido! Partiremos pela manhã. Assim dizendo, levantou-se com a majestade de sempre, deu um tapa em um inseto voador, e marchou em direção à casa. Cumprindo a palavra, na manhã seguinte a condessa Alameda veio buscá-la, e ambas partiram de carruagem para Brighton. Fiona observou a chuva da janela do coche, e com o coração apertado, viu o lar que amava desaparecer ao longe. E ele também. Estava deixando Tyrell. Então por que não se sentia aliviada? Não teria mais que ver seu rosto zombeteiro. Entretanto recordava o calor de sua boca e as sensações que lhe tinha provocado, com os braços fortes ao redor de seu corpo. Jamais voltaria a sentir aquilo, refletiu. Lágrimas começaram a rolar por suas faces. Honore fungou, como se sentisse algum odor ruim. — Vamos lá, Fiona, não pode já estar sentindo tanta saudade assim de sua casa! Só saímos há alguns minutos, e se debulha em lágrimas? Pensei que ficaria feliz por deixar aquele monte de pedras e aquela criatura inconseqüente com quem seu pai se casou! Fiona enxugou as lágrimas e tentou sorrir. — Vamos lá, menina! Está com saudade de Thorncourt? — Não, milady. — Hum... E costuma chorar por nada? Fiona não pôde deixar de rir ante o muxoxo engraçado da tia. — Peço desculpas, milady. Estou me comportando como uma tola. De um momento para outro, Honore mudou a expressão de criança amuada para a de uma raposa sagaz que observa sua presa com os olhos semicerrados. — Tola? Então é um homem que a está fazendo chorar. Isso explica seus olhos inchados ontem, quando veio me cumprimentar na sala de visitas. Fiona abriu e fechou a boca, sem saber o que responder. — Viu? Seu rosto fala por si. Está apaixonada. — A condessa bateu com o dedo no queixo, com ar pensativo. — Esse homem roubou seu coração e a magoou, do contrário não teria vindo comigo com tanta docilidade. — Não! — Fiona quase engasgou. Tratou de engolir em seco, e balançou a cabeça em veemente negativa. — Claro que não! Apaixonada? Impossível! Não por alguém tão cruel e desalmado como... Interrompeu-se com brusquidão, e evitou o olhar da tia. — Vamos lá, minha querida. Nada de segredos entre nós duas. Recuso-me a vê-la sofrer como uma mártir enquanto tento mostrar-lhe o lado bom da vida. Isso nos tornaria duas tolas. Vai me contar tudo, de modo que possamos decidir como proceder. — Não posso! Fui tão... — Fiona fechou os punhos e cerrou a boca, sem encontrar outro adjetivo. — Tão tola! — Irá descobrir, minha cara, como descobri também, que não existe ser humano mais idiota que uma mulher apaixonada. E deve acreditar que entre todas fui a mais tola ao me apaixonar por Francisco de Alameda. Com muitos floreios, Honore narrou a história de um belo conde português que lhe roubara o coração em um baile de máscaras em Londres. Enquanto falava, as faces da dama que ainda era uma bela mulher, adquiriam um colorido encantador e seus olhos brilhavam. — O jovem demônio pensou que iria brincar com meus sentimentos e depois

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin prosseguir caminho sem se preocupar mais comigo. Pois sim! — Bateu com o punho cerrado no estofado da carruagem. — Nunca poderia permitir tal coisa! Enfiei-me no navio que iria levá-lo à costa da África. É claro que ficou zangado, mas quando chegamos a Cabo Delgado, já não conseguia imaginar a vida sem mim. Honore fechou os olhos por um instante, relembrando o passado. — Ainda posso me recordar de seus braços ao redor de meu corpo. — Suspirou como uma menina. — Ah, querida! O amor nos torna idiotas! A paixão da tia pelo falecido marido tocou o coração de Fiona. Em troca da confiança que a condessa lhe depositara, narrando uma história tão pessoal, contou-lhe sobre a visita de lorde Wes-mont ao lago, mas não foi arrojada a ponto de detalhar a cena do beijo. Honore riu quando a sobrinha terminou. — Está omitindo algumas partes, não? Wesmont tornou-se muito arrojado? Fiona concordou com um gesto de cabeça e parte da angústia e humilhação pareceram desaparecer. — E depois? — incentivou a tia. — Sua paixão se transformou em raiva. Assim dizendo, Fiona narrou as palavras dolorosas que Tyrell lhe lançara em rosto, e sua partida tempestuosa. Quando terminou, já não se sentia tão humilhada, pois o odioso segredo fora revelado, dando-lhe um grande alívio. Honore lançou um olhar severo sobre a sobrinha. — Creio que lorde Wesmont agiu muito mal. — Mas, tia, não percebe? Foi tudo minha culpa! Tive um comportamento impróprio para uma dama. Dei-lhe um tapa, e quando me beijou, deveria ter resistido. — Fez um gesto desanimado com as mãos. — Porém, ao contrário, desejei ser beijada cada vez mais... Pensei que Tyrell nunca fosse parar, e mesmo sabendo que era errado... Fiona ficou vermelha como um pimentão, e temeu chorar de novo. — Não consegui disciplinar minhas emoções, e no momento sinto que não sou uma moça bem comportada. Mas essa é a minha maldição, e... Honore cerrou os lábios e os olhos por alguns segundos, como se estivesse contendo a raiva. Em seguida, ergueu a cabeça de maneira impetuosa. — Pelo amor de Deus! A exclamação soou tão alto que assustou Fiona, fazendo-a se recostar no assento e arregalar os olhos. — Recuso-me a ouvir falar outra vez dessa tal maldição! Só os ignorantes acreditam nessas coisas! — dardejou a condessa. — Não volte a dizer essa palavra! — Sim, milady — tartamudeou Fiona. — Quero dizer... não, milady. — Não fale mais disso! — A sobrinha aquiesceu. Como costumava acontecer, a máscara zangada mudou de um momento para o outro, dando lugar à expressão serena de uma tia amorosa. Em silenciosa perplexidade, Fiona a observou. — Agora — murmurou lady Alameda com doçura — devo dizer que sua interpretação dos fatos foi errada, minha cara. Quando disse que Wesmont procedeu mal, não me referia aos beijos que lhe deu. Ao contrário, se não a tivesse beijado quando estavam a sós em um cenário idílico, iria julgá-lo um tolo ou maluco. Honore acariciou a mão de Fiona. — E sem dúvida não ficou marcada nem comprometida, minha querida. —

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Riu com malícia. — Acredite, existe muito mais intimidade entre um homem e uma mulher que um mero beijo! — Mas lorde Wesmont... — Pelo amor de Deus, menina! Se tivesse que me casar com cada homem que beijei, teria cerca de duzentos maridos. Que conceito ridículo! Fiona ergueu os olhos para a tia em total confusão mental. — Pelo que entendi, milady, a sociedade permite às viúvas maior liberdade a esse respeito, não? — Sem dúvida, minha cara, e como são hipócritas os aristocratas! Um bando de cordeiros com pele de lobo. — Quer dizer lobos em pele de cordeiro. — Sim, isso mesmo! Sempre ansiosos por dilacerar com suas mandíbulas a primeira ovelha desgarrada que encontrarem. — Fez um gesto displicente com a mão. — Ignore todos. É isso que sempre faço. Fiona meneou a cabeça em um gesto perplexo. — Confesso que me sinto perdida, pois milady disse que lorde Wesmont agiu mal. Em que sentido? — Pelo modo covarde como fugiu. A condessa Alameda fitou a paisagem pela janela da carruagem, bafejando no vidro. Um minuto se passou enquanto Fiona aguardava, ansiosa, por suas próximas palavras. — A consciência dele falou mais alto, e não suportou a culpa, então resolveu culpá-la pelas liberdades que tomou, e depois fugiu. — Respirou fundo, tentado controlar a raiva. — Rapaz estúpido! Deveria saber que você não o forçaria a um casamento. Então atirou a cabeça para trás e riu, em uma de suas características mudanças rápidas de humor, inclinou-se para frente e voltou a pegar a mão da sobrinha. — Tenho certeza de que neste momento já recuperou o bom senso e sabe que agiu como um patife, insultando-a e saindo a galope. Sua atitude foi sem honra, e é isso que mais o preocupa. —Ergueu os olhos para o alto, posando de mártir. — Pode confiar em mim, Fiona, quando digo que agora ele está sofrendo mais que você.

Capítulo III Tyrell sentava-se com expressão sombria em sua biblioteca, tão aborrecido quanto lady Alameda previra. A chuva fustigava os vidros das janelas enquanto ele olhava para fora sem nada ver, nem as árvores no parque, nem os passarinhos que brincavam na grama molhada. Apenas conseguia ver os cabelos úmidos de Fiona espalhados pelo solo, e seus olhos escuros e exóticos que o fitavam com grande intensidade. Parecia uma assombração, pensou. Só conseguia enxergar a figura sorridente da jovem, a pele brilhando com as gotas de água do lago, as faces coradas enquanto jazia sob seu corpo, sem resistir. E também o assombrava sua expressão quando a rejeitara com palavras tão duras. Tyrell esfregou os dedos nas têmporas e desviou o olhar da janela. Lembrava-se do rosto de Fiona quando era menina, movimentando-se como uma borboleta em seu vestido de festa, erguendo o rosto para encará-lo com aqueles

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin olhos de feiticeira. Era uma festa de Natal. Ele tinha voltado de Eaton já muito adulto para se interessar por crianças, mas ainda muito jovem para se misturar com os mais velhos. As crianças se reuniam no fundo do salão de baile, tocando instrumentos musicais e dançando entre si. Fiona já era alta para sua idade, uma menina bonita, sem trejeitos afetados como as outras, mas natural e travessa. Percebera que Tyrell a observava e sorrira sem perder a autoconfiança. Continuara mudando de par na quadrilha improvisada, e dançando com vigor. Tyrell sorrira também. Quando a quadrilha terminara, fizera uma ampla reverência na frente da amiga, de propósito exagerando nos gestos, e a convidara para a próxima dança. Fiona não ficara atrás, e também se inclinara com um floreio, uma expressão provocadora no olhar. Dançaram um minueto, e Tyrell recordou com ar de troça uma outra ocasião em que Fiona forçara seu pônei a saltar um córrego nas pastagens de seu pai, e caíra na água. A menina o corrigira, dizendo que não era um pônei, mas uma bela égua, apesar de pequena. Desde aquele tempo já adorava discutir, refletiu ele. Mas isso parecia ter acontecido em outra vida. Fiona se transformara em mulher, e era o único ser humano que conseguia fazê-lo sorrir ou gargalhar. Bastavam alguns momentos com a srta. Hawthorn para esquecer os infernais campos de batalha na Espanha, e quando estava em sua companhia, a vida não parecia um pesadelo sem fim. Entretanto, o que fizera para retribuir tal bem-estar? Ofendera sua amiga de infância. Assim pensando, deu um soco no tampo da escrivaninha. — Que covarde sou! — exclamou, puxando o cordão da campainha. Quando um criado entrou, berrou a plenos pulmões: — Chame o maldito valete que minha mãe me arranjou, e diga-lhe para me trazer algo que proteja da chuva. Vou galopar! Agora! O mundo parecia estar impregnado de odor de chuva e vegetação molhada. Tyrell fustigou Perseu na direção do lago que ficava nas campinas acima. Um chapéu de abas largas e uma capa o mantinham seco, e já começava a sentir muito calor. Se tivesse sorte, refletiu, encontraria Fiona lendo um livro no abrigo de barcos ou pintando um quadro de seu precioso lago sob a chuva. O importante seria encontrá-la a sós, a fim de se desculpar. De nada adiantaria ficar sentado na sala particular de lady Hawthorn, tomando chá e se irritando com o mau gosto ao redor. O que poderia dizer em meio à madrasta e às irmãs? Mil desculpas, srta. Fiona, por tentar seduzi-la no outro dia? Impossível! Wesmont fez uma careta, repelindo a idéia. Sem dúvida, precisavam conversar a sós. Talvez Fiona não o forçasse a casar, porém sua madrasta não hesitaria em fazê-lo assumir a responsabilidade por seus atos indecorosos e volúveis. Mas casamento estava fora de questão. Iria sufocar se alguém lhe atribuísse mais um grama de responsabilidade na vida. Não conseguia se ver como um marido, por mais que a mãe lhe pedisse um herdeiro. Apesar de ter ultrapassado a linha do decoro com Fiona, recusava-se a ser fisgado. Nada tinha a ofertar a uma esposa. Com tais pensamentos sombrios, Tyrell encontrou a casa de barcos deserta. Não havia sinais de que Fiona tivesse estado ali nesse dia. Nada de pão ou queijo sobre a mesa, nenhuma peça de roupa pendurada na parede, apenas o vestido de

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin banho e um terrível odor de umidade. Só a chuva entrara no velho barracão, concluiu consigo mesmo. Tyrell fechou a porta e voltou a montar Perseu. O grande cavalo branco farejou o ar e saiu a galope, retornando para casa com seu cavaleiro cabisbaixo. Entretanto Tyrell ainda não desistira. Mais tarde no mesmo dia, circundou as margens do lago, e mais uma vez no dia seguinte. Sempre encontrando o lugar deserto, decidiu que precisava fazer mais uma visita à lady Hawthorn e suportar sua sala abarrotada, caótica e sufocante. Quem sabe Fiona levara em consideração o conselho que lhe dera, e decidira evitar a solidão do lago? Ou, ao contrário, voltara a nadar ali e morrera afogada? Ou quem sabe se enforcara de vergonha? — Onde está você, Fiona Hawthorn? — murmurou com os dentes semicerrados. Horas depois, sentava-se no sofá amarelo de lady Hawthorn com um enorme vaso chinês à frente, repleto de peônias gigantescas. — E onde está a srta. Fiona? Já tinham se passado alguns minutos desde que se sentara, e não suportava mais a espera. Porém, quando a dona da casa respondeu, precisou fazer força para não demonstrar sua surpresa. Fiona partira, segundo a informação de sua madrasta. Fora embora com sua tia, lady Alameda, que todos na aristocracia conheciam devido à peculiar personalidade. O que lady Hawthorn estaria pensando para permitir que a enteada seguisse na companhia de tal dama amalucada? E por um tempo indefinido? O cérebro de Tyrell fervilhava com perguntas sem respostas. Mas o que importava era que Fiona não estava mais em Thorncourt, refletiu, enquanto a anfitriã continuava a falar em tom monótono. Deveria se sentir aliviado por saber que a amiga de infância não se afogara, entretanto, parecia que a gravata o estava estrangulando. Passou os dedos pelo pescoço e sentiu riachos de suor escorrerem dali a suas costas, misturando-se à goma da camisa, e provocando uma coceira irritante. Emeline também tagarelava como um papagaio. — Estão no Royal Pavillion, e Brighton deve estar gloriosa nesta época do ano. Oh! Que maravilha ir à praia circundada pelos amigos do príncipe regente! — Uma corja de vagabundos — resmungou Tyrell, fitando o vaso chinês. As peônias exalavam um odor forte e estonteante, e ele estava prestes a segurar o vaso e atirá-lo no outro canto da sala, sobre as estatuetas egípcias. Mas era preciso se conter, pois as pobres damas presentes nada tinham a ver com seus problemas particulares, refletiu. De repente, levantou-se de um salto. — Preciso ir! Cumprimentou-as com pressa, e deixou a sala sem perda de tempo. De fato tinha um assunto a tratar na beira-mar. Fiona olhou extasiada para os minaretes exóticos e os domos do Royal Pavillion de Brighton. A tia sussurrou-lhe ao ouvido: — Espere até ver seu interior. É a maior coleção de objetos chineses do reino, e um verdadeiro pandemônio. Muito divertido. Podia ser que sim, mas quando se deitou nessa noite, Fiona estava com dor de cabeça. Seria o efeito da profusão de aves douradas, pavões com caudas multicoloridas, sedas e cetins vermelhos e azuis, e o intrincado papel de parede chinês?

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Durante sua temporada em Londres, quando freqüentara a alta sociedade, ouvira uma matrona alertar um grupo de debutantes: — Muita excitação pode provocar dor de cabeça em uma pessoa jovem — dissera a dama. Fiona sempre julgara aquilo uma tolice, mas começava a mudar de idéia. Neste instante sua cabeça parecia que iria explodir, e uma dor absurda persistia em seu peito. Mas quando fechou os olhos não viu tapetes orientais ou mobílias de bambu. Foi o rosto masculino de Tyrell que surgiu a sua frente, e uma enxurrada de beijos assaltaram seus sonhos, transportando-a direto para o Paraíso. Porém, como era de se esperar, a visão dos olhos azuis e carinhosos mudou, seu olhar tornou-se duro e frio como gelo, e suas palavras ofensivas e cáusticas a fez cair em um buraco negro de desespero. Na manhã seguinte, levantou-se entorpecida como é comum acontecer quando não se dormia bem. Caminhou devagar até o quarto de tia Honore, muito desanimada no início de um novo dia. — Bom dia, querida. Céus! O que é essa monstruosidade que está usando? A tia examinou-a de alto a baixo como se fosse portadora de alguma moléstia contagiosa. — Este é o meu melhor vestido para as manhãs, e usei-o quando estive em Londres no ano passado. Pensei que gostaria de me ver trajando o que tenho de melhor já que estamos em um palácio — justificou-se Fiona. — Lorraine! — gritou Honore, chamando por sua criada de quarto. Uma mulher gorducha, e de pequena estatura como uma criança, penetrou no aposento. Os cabelos castanhos e frisados nas têmporas estavam presos em um coque no alto da cabeça, e pareciam querer desmoronar a cada movimento. Fez uma reverência para a condessa e ficou esperando. Honore apontou de modo dramático para Fiona. — Tire essa abominação de minha sobrinha! Rasgue em tiras! Se a vir envergando essa... coisa mais uma vez, atearei fogo com ela dentro! Ouviu? — Virou-se para Fiona. — Que horror, menina! O que pensa que é? Um bolo de marzipã? Uma torta de açúcar decorada em camadas e com laços? — Suspirou fundo, tomando fôlego. — E marque minhas palavras; branco não lhe cai bem. — Foi se aproximando de Fiona, semicerrando os olhos, como se observasse um quadro. — Nossa! O que houve com seu rosto, criança? Um cavalo a pisoteou enquanto dormia? Menina, está com olheiras profundas. Não me diga que andou chorando de novo? — Não — protestou Fiona — De jeito nenhum! Em seguida deixou que a criada silenciosa e ativa, que mal atingia seus ombros, retirasse o traje ofensivo. Sem nada dizer, Lorraine rasgou-o de cima a baixo em um movimento seguro. — Desculpe, senhorita — disse por fim, sem demonstrar o menor constrangimento ou remorso. — Mas minha patroa está certa. É um vestido horroroso. Honore resmungou, satisfeita. — Claro que tenho razão! E nunca mais ouse usar uma dessas coisas que as mães de debutantes compram. Assim dizendo, lady Alameda arrancou um pedaço do tecido das mãos de Lorraine, e atirou-o pela janela aberta. — Encontre algo que lhe sirva em meu guarda-roupa, Lorraine. E seja rápida, ouviu? Quero dar um passeio. Mais tarde levarei minha sobrinha para

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin fazer compras e ver como embelezá-la. Teremos de dar um jeito até voltarmos para Londres. Honore encostou-se à parede deixando pender os braços em uma atitude de abandono, e suspirou, parecendo de novo uma criança perdida. — Deus! Como sinto falta de Mattie! Dessa vez me ausentei por muito tempo. Parecia falar consigo mesma, e olhou pela janela. Lorraine terminou seu trabalho e fechou a porta do quarto, levando Fiona consigo até o outro cômodo onde se encontravam os trajes de lady Alameda. — Quem é Mattie? — quis saber Fiona. — A cozinheira de sua tia, senhorita. — E lady Alameda está com saudade da cozinheira? — Sim, mas na verdade Mattie é muito mais do que isso. Antes de cuidar da cozinha foi babá de minha patroa, e depois passou a ser também sua criada particular. — Suspirou, resignada. — Mattie é a favorita da condessa. Se não fosse a diferença social, diria que as duas parecem irmãs. Porém, na verdade isso é impossível, porque sua tia é uma grande dama e não teria uma criada como parente. Assim, tagarelando, Lorraine ergueu um vestido azul-claro até o rosto de Fiona, balançou a cabeça com desaprovação, e atirou-o sobre a cama, continuando a falar. — Mattie é uma excelente cozinheira. Hoje em dia, com essa tal de cozinha francesa com molhos gordurosos, caramujos e não sei mais o quê, é maravilhoso degustar o que ela prepara — comentou a dinâmica criada, escolhendo outros vestidos no armário da condessa — As coisas são assim em Alison Hall, a residência da condessa em Londres. Lorraine continuou sua investigação, até que retirou do armário um vestido de musselina verde-limão com rendas na gola. — Oh! Exatamente o que precisávamos! — exclamou, satisfeita. Sem perda de tempo, fez Fiona envergar o traje, e atou os laços com eficiência, fazendo a jovem arregalar os olhos diante da imagem que via no espelho oval. Colocou a mão sobre o coração. — Sem dúvida que é ousado demais. A renda... é quase transparente, Lorraine! E a linha do decote é muito baixa... Não creio... — Ora, senhorita! Talvez a condessa se vista de modo mais ousado que uma jovem de sua idade, mas este vestido é muito respeitável. — Lorraine falava, enquanto admirava Fiona. — É um pouco mais cheia de carnes que a condessa, mas é muito bonita também. Parece uma pintura, senhorita! E aqui temos um par de luvas de renda para combinar com o traje. Calçando as luvas, Fiona voltou a se analisar no espelho, e estremeceu. A criada podia dizer o que bem entendesse, pensou, mas continuava se sentindo semidespida com as rendas transparentes que revelavam muito mais do que escondiam. Limpou a garganta, constrangida. — Lorraine, será que por acaso não há um xale para combinar com o vestido? — Sim, senhorita, na verdade... A criada começou a revolver o conteúdo de uma arca, e acabou encontrando a peça desejada. Apresentou como se fosse um troféu, um xale da mesma renda diáfana do corpete e das luvas. Fiona ergueu os olhos para o alto, como a pedir paciência. — Adorável — murmurou.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Tinha certeza de que seu pai lhe daria uma surra de chicote se um dia a visse trajada daquele modo, mas no momento precisava aceitar as sugestões da tia. Nesse instante Honore abriu a porta contígua, e observou o trabalho de sua aia. — Bastante apresentáveí — foi seu comentário. — Muito bem, Lorraine. Ouso dizer que até o príncipe regente ficaria admirado. Pena que esteja indisposto nesta manhã. — Voltou-se para a sobrinha. — Venha! Vamos dar um passeio à beira-mar. A aristocracia reunia-se para o ritual da manhã em Brightoh, dando um passeio pela orla. Acenavam e cumprimentavam uns aos outros, analisando-se de alto a baixo, mexericando por trás das abas largas dos chapéus e dos leques, e parecendo apreciar a brisa úmida nos cabelos. Fiona passou a língua pelos lábios, sentindo o gosto de sal. Gotículas de água do mar borrifavam seus olhos, e parou de andar para piscar diversas vezes. — É a brisa marinha — explicou Honore. — Queima os olhos. Trouxe um lenço na sua bolsa? Uniram as cabeças em busca do lencinho, e estavam muito entretidas quando uma voz masculina interrompeu a procura. — Posso ajudar? Assim dizendo, o cavalheiro que falara apresentou um lenço branco diante do nariz de Fiona. — Marcus! Que agradável surpresa vê-lo aqui! Honore entregou à sobrinha o lenço branco, enquanto o recém-chegado beijava a condessa nas faces. Fiona piscou diversas vezes, tentando afastar a ardência dos olhos, mas mesmo com a visão embaçada podia ver como o cavalheiro que as abordara era bonito, alto, com um perfil romano, e um paletó matinal azul e camisa branca, que combinavam à perfeição com seus cabelos negros e pele morena. — E a senhora, minha querida mãe, está linda como sempre, embora mal a tenha reconhecido. Está tão... — Fitou de maneira deliberada o novo tom avermelhado dos cabelos de Honore. — Tão... vermelha! A palavra mãe chamou a atenção de Fiona. Honore bateu com a ponta da sombrinha na calçada. — Se voltar a me chamar de mãe em público irei enforcá-lo usando sua gravata! Qualquer um pode ver que é muito velho para ser meu filho! — Peço perdão — murmurou Marcus, inclinando a cabeça. — Entretanto devo protestar, milady. Por que me culpa pelo fato de meu pai ter se casado com uma mulher tão jovem? Honore deu de ombros. — Não comece a flertar comigo, rapaz ousado! Mas diga-me, o que faz em Brighton? Devia estar em Portugal tomando conta das propriedades da família. Muito mal feito de sua parte surgir onde não é esperado! Marcus colocou a mão sobre o peito. — Está me magoando, milady! Primeiro disse que era uma surpresa agradável, e agora... — Não tente me confundir, rapaz! — Honore bateu de leve com a sombrinha no braço de Marcus. — O que faz aqui? Conte logo! — No momento estou à beira-mar com as duas mais adoráveis damas em Brighton, sendo que uma continua a ser um verdadeiro mistério. Quer prolongar meu sofrimento ou irá me apresentar sua acompanhante, milady?

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Assim dizendo, fez uma reverência para Fiona, tirando o chapéu, sorrindo com inocência, e fazendo-a sorrir também. — Não seja bobo, Marcus! — dardejou a condessa. — Acha que sou uma velha senhora para andar com acompanhantes? Está é minha sobrinha. A expressão de Marcus tornou-se radiosa. — Então, por favor, nos apresente. — Muito bem! — resmungou Honore. — Entretanto devo declarar que esperava que vocês dois nunca se encontrassem. — Voltou-se para a sobrinha com expressão nada satisfeita. — Minha cara srta. Fiona Hawthorn, este é o filho de meu falecido marido, lorde Marcus José Alexandre Luis Alameda, o novo conde de Alameda. — Estou honrada em conhecê-lo, milorde. — Não seja tão formal, srta. Hawthorn. Deve me chamar de primo Marcus, não é verdade, Honore? — Ora! Pode chamá-lo do jeito que quiser! — A condessa sacudiu uma luva no ar com gesto displicente. — Mas tome cuidado, menina, porque é o maior semvergonha que conheço! Ignorando o comentário, Marcus tomou a mão de Fiona, sorriu diante da luva rendada, e acariciou-lhe os dedos, antes de se inclinar. Ainda prendendo-lhe a mão, aproximou-se de seu ouvido e murmurou: — Minha madrasta sabe me magoar como ninguém. Peço, querida prima, que me console. Sorriu de modo provocante, e Fiona sentiu que corava até a raiz dos cabelos. Inclinou a cabeça e baixou os olhos, ante a expressão impertinente de Marcus, que voltou a se aprumar, e virou-se para Honore. — Meus parabéns, milady, por ter uma sobrinha tão encantadora. — Largue a mão da moça e pare de flertar! — recriminou-o lady Alameda, voltando a cutucá-lo com a sombrinha. — Aviso-o para se comportar com Fiona. Desejo fazê-la debutar na sociedade como se fosse minha própria filha. Marcus arqueou as sobrancelhas demonstrando surpresa. — Então pretende ir para Londres com a srta, Hawthorn por toda a temporada? — Não. Quero mais do que isso. Pretendo fazer de Fiona uma herdeira de tudo que sou. Marcus lançou um olhar irritado para as duas. — Ora! Já me criou como seu filho! Quer voltar a fazer isso agora? — Era um menino bem grande quando me casei com seu pai. Aliás, ouso dizer que quando saiu do ventre de sua mãe já era adulto. Nunca precisou de cuidados maternos. — Honore riu. — Acho que sempre mordeu os mamilos de sua ama quando tentava aleitá-lo. Fiona engoliu em seco, ficando vermelha como um pimentão. Lady Alameda sabia dizer coisas muito inconvenientes, pensou, assombrada. — Então somos iguais, pois penso o mesmo a seu respeito, cara madrasta — dardejou Marcus, baixando o tom de voz para não ser ouvido pelos demais transeuntes. Honore bateu com a ponta a sombrinha na calçada outra vez. — Olhe seus modos, rapaz! Tal atitude insolente enfeia seu rosto. Dou-me o direito de escolher quem bem quiser para ser minha filha. Além disso, não permitirei que arraste a asa para Fiona. Marcus ergueu o queixo e voltou-se para Fiona. De modo impertinente e proposital, passeou o olhar pelos cabelos sedosos até a ponta dos pés delicados

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin da jovem, levando em consideração cada detalhe do rosto e do corpo. Ela sentiuse desnuda e, de modo instintivo, apertou o xale em volta dos ombros e dos seios. Por fim, o conde Alameda pareceu relaxar e terminar sua inspeção. Sorriu de leve. — Não arrasto a asa para ninguém, milady. Além do mais, a srta. Hawthorn não é nenhuma criança. Aconselho-a encontrar um bebê para adotar. Lançou as farpas sob uma expressão gentil e doce, mas Fiona não pôde deixar de perceber o brilho malicioso em seu olhar. — Não tenho que lhe dar satisfações a respeito de quem tomo sob minha guarda, meu caro. Além disso, não respondeu minha pergunta. Por que não está em Portugal onde deveria tomar conta do que é seu? Marcus retirou um fiapo imaginário da manga do paletó. — Minha querida Honore, Portugal continua em guerra. Acho a situação lá... muito desconfortável para o meu gosto, se é que me entende. — Tornou a presenteá-las com um sorriso encantador. — Vamos falar de coisas mais agradáveis? As damas aceitariam jantar comigo esta noite? Estou hospedado no Quatro Plumas, que se gaba de ter um restaurante bastante apresentável. — Vamos jantar com o príncipe regente — respondeu Honore, fungando com um certo desdém. — Excelente! Também fui convidado para comparecer ao Pavilhão mais tarde. — Deu um passo em direção à Fiona, tomou-lhe a mão, e cumprimentou-a. — Até lá, minha cara prima. A srta. Hawthorn observou o conde afastar-se, pensando que jamais conhecera alguém como ele. Quando por fim voltou-se de novo para a condessa, viu que Honore a observava com atenção. Embaraçada, baixou o rosto. — Ora! — Lady Alameda aprumou-se e começou a caminhar com brusquidão, fazendo a sobrinha correr para alcançá-la. — Fiona Hawthorn, não passa de uma menina ingênua! Aquele jovem sem-vergonha que acabou de conhecer é muito vivido e malicioso, mas creio que não há nada a fazer quanto a isso. Sem dúvida, irá voltar para Londres quando lá formos. Marque minhas palavras, menina. Tome cuidado com seu... primo! —Tomarei, tia. Porém, tenho certeza de que não existe nenhum perigo. Por certo um cavalheiro como o conde Alameda se circunda de damas mais velhas e belas. Que interesse pode ter por mim? — O mesmo de um lobo a respeito de um cordeiro. Não seja tola, menina! Vamos esclarecer esta história de uma vez por todas entre nós duas. Recuso-me a ser sua aia, babá ou dama de companhia! Não serei relegada ao papel de tia velha também, e trate de se lembrar disso, pois não pretendo segui-la a cada passo que der! — Honore bateu com a sombrinha na perna, e depois apontou-a na direção de Fiona. — Não pode se dar ao luxo de ser inocente e ridícula! Não em minha companhia e no meio da aristocracia! Está entendendo? Precisa se preservar e ficar esperta contra investidas indesejáveis! Fiona ergueu o queixo. — Sempre soube me comportar, minha tia. Aliás, não sei agir de outro modo a não ser com categoria e distinção. Honore ergueu os olhos para o alto como a pedir paciência. — Muito bem! — Baixou a voz em um murmúrio quase inaudível. — Porém o grande perigo, minha querida e ignorante criança, é que não vê a verdade, em especial a seu respeito. Tem um ar selvagem que não consegue ocultar com suas maneiras gentis e comedidas. Parece estar sempre à beira de um precipício com esses seus cabelos indomáveis dançando ao vento.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Ignorando as frases românticas que acabara de dizer, Honore fez um gesto displicente com a mão, simulando o vento, e ignorou os olhares dos transeuntes. — Creio que os poetas adorariam isso. Nada excita mais um homem que uma mulher selvagem. — Mas, tia, não sou nada disso que falou! Nada tenho de indomada ou selvagem! Ao contrário, passei a vida tentando fazer o que as pessoas me diziam, apesar de na maioria das vezes isso não dar certo. — Sim, é isso — repicou Honore com ceticismo. — Não está procurando um marido como lhe recomendaram que fizesse. Não fica olhando na direção de todos os rapazes que encontra. — Fungou com desdém, e prosseguiu. — As meninas bem comportadas fazem isso, e os cavalheiros podem sentir o cheiro das caçadoras a milhas de distância. Então tratam de escapulir, a menos que desejem cair na armadilha. Entretanto, se uma bela moça demonstra não estar atrás de casamento, são os homens que começam a persegui-la. Entendeu? — Não creio que o sexo masculino seja tão previsível, milady. — E é aí que mora o perigo, minha querida. — A condessa segurou-lhe a mão, em um gesto de súplica. — Acredite no óbvio, meu bem. Às vezes, ele representa a verdade. Se não for mais atenta e evitar situações constrangedoras poderá despencar da beira do precipício. Assim dizendo, Honore apontou o mar com a sombrinha. Fiona tentou decifrar as metáforas da tia e extrair um certo sentido de tudo aquilo, mas por fim desistiu e deu de ombros. — Menina tola, não faz idéia do que seja a realidade — resmungou a tia. Fiona fitou-a sem saber o que responder, e Honore voltou a bater com a ponta da sombrinha no asfalto. — Preste atenção. Fechou os olhos para suas próprias qualidades, e agigantou seus defeitos. — Sorriu para sobrinha. — Se continuar assim, irá tropeçar e cair com o rosto na lama. Então a alta sociedade irá se deliciar em trucidá-la, fazer picadinho de você, e servi-la com chá e torradas. Como se falasse do tempo e não do destino de Fiona, a condessa tornou a sorrir e tomou o braço da sobrinha, esquecendo o ar dramático que adotara quase todo o tempo durante o passeio. — Venha! Vamos deixar o ar marinho. Confesso que o sal começa a pinicar na minha pele, e estou com as roupas úmidas. Isso não faz bem para a cútis. Tyrell Wesmont olhou para o gerente do hotel. — Raios, homem! Estou viajando a dois dias, faminto e sujo! Preciso de acomodações e de um banho! — Não tenho nenhum aposento livre. O aniversário do príncipe regente foi há quinze dias e metade de Londres continua em Brighton. — O homem examinou com desdém as roupas empoeiradas e as botas cheias de lama de Tyrell, como se o recém-chegado estivesse mais apto a ocupar um quarto em uma estalagem de beira de estrada. — Talvez o Quatro Plumas, do outro lado da cidade, possa recebê-lo, sr...? — Lorde Wesmont — disse Tyrell, respirando fundo para controlar o mau humor e a impaciência. Nenhum gerente pomposo iria derrotá-lo. Cerrando os dentes, murmurou: — Pretendo pagar o dobro, se puder me conseguir um apartamento, meu bom homem. O hoteleiro engoliu em seco ao perceber o grave erro que cometera ao menosprezar o viajante apenas porque estava com as roupas amarrotadas. — Um momento, milorde — pediu com deferência na voz. Ausentou-se por

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin um breve instante, e retornou em seguida, abrindo o livro de registros. — Consegui, milorde, mas deve entender, por favor, que se trata de um quarto pequeno, porque com todos os cômodos de luxo ocupados, e... — Mande água quente. Quero tomar banho — interrompeu Tyrell, dispensando a lengalenga. Seu valete irrompeu porta adentro, trazendo uma valise em cada mão, e com a aparência mais combalida que a de qualquer outro criado particular na GrãBretanha. Trocou um olhar mortificado com o gerente. Cada qual tinha seus motivos para se sentir envergonhado, o valete por sua aparência, e o hoteleiro por sua falta de tato com um lorde. Em seguida, após o entendimento mudo, cada qual voltou às próprias tarefas. — Ande logo! — disse Tyrell ao valete. — E o senhor, sr. gerente, não esqueça da água quente. Sabia que andava muito mal-humorado, mas sua consciência estava pesada, e precisava se redimir o mais depressa possível, com Fiona. A jovem estava em Brighton, e teria que lhe pedir desculpas e se certificar de que lady Alameda não a estava corrompendo com suas idéia estapafúrdias. Então estaria livre para prosseguir com sua vida. Dois empregados carregaram uma banheira de cobre escada acima até seu quarto e, despido, Tyrell mergulhou na água tépida, sem se questionar do que exatamente estaria livre, após se desculpar com Fiona Hawthorn.

Capítulo IV Marcus esperava na longa galeria com os demais presentes para os festejos após o jantar. O aroma de pato com laranja, faisões recheados e carne de porco no molho de vinho ainda pairava no ar, fazendo seu estômago roncar de fome. A mesa do príncipe George rivalizava com as mais elaboradas do mundo, mas Marcus precisara se contentar com uma torta de rins consumida no Quatro Plumas, já que não entrara na lista dos afortunados convidados para o jantar com o regente. Por fim, o príncipe acompanhou seus comensais até a galeria, e logo Marcus avistou Fiona e Honore. Os festejos após a ceia se resumiam no príncipe regente circulando pelo salão, conversando um pouco com cada convidado. Marcus analisou Fiona, enquanto a jovem ria de algum comentário feito pelo mandatário, e bocejou, pois a noite prometia ser tediosa. Quando Sua Alteza começava a fazer seus gracejos e falar de suas proezas, não havia nada mais sem graça, pensou. E enquanto a condessa Alameda apresentava a srta. Hawthorn aos seus amigos, deixava bem claro por palavras e gestos que não se tratava de uma simples sobrinha para quem pretendia encontrar marido, mas de sua protegida, quase uma filha. As demais damas sussurravam por trás dos leques de plumas, e os cavalheiros cumprimentavam Fiona com respeito. Marcus ouviu lady Bessbourgh exclamar: — A filha que nunca teve, querida Honore. Estou certa? — Em seguida, examinara Fiona com seu monóculo, como se estivesse analisando um pato no mercado, para depois declarar: — Muito apresentável. Honore abriu o leque, abanando-se com delicadeza. — Sem dúvida que sim, minha cara!

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Marcus recostou-se em uma pilastra, e um vago aborrecimento o dominou. Honore estava agindo como uma mãe demente, ansiosa por conseguir um casamento vantajoso para a filha. Era desconcertante! À medida que a noite chegava ao fim, anunciando o amanhecer, lady Everly se aproximou, tentando flertar com o conde. Porém, Marcus afastou as plumas que a dama trazia nos cabelos, a fim de continuar observando o que lhe interessava. Então, amuada, lady Everly fora embora, enquanto o enteado de Honore se servia de mais champanhe que um lacaio lhe oferecia. Por fim, o príncipe regente se recolheu, e os convidados ficaram livres para ir dormir também. Marcus se aproximou de Honore e Fiona e, ao vê-lo, a madrasta o cutucou com o leque de madre-pérolas. — Onde esteve a noite toda? Vi-o encostado em uma pilastra como se fosse uma estátua, e depois... — Ocupado a noite toda, minha cara. Mas espero que me permita consertar a indelicadeza. Quem sabe gostaria de passear comigo e sua sobrinha no píer ao amanhecer? Sorriu com um bom humor que estava longe de sentir, e fez uma cortesia. — Já é manhã, Marcus. O sol já nasceu, e pretendo dormir algumas horas. O conde de Alameda virou-se para Fiona, esbanjando charme. — Mas por certo a srta. Hawthorn deseja ver o oceano à luz do sol matinal? Marcus franziu a testa ao ver Fiona fitar a condessa como uma boa filha a pedir a aprovação da progenitora. Honore deu de ombros. — Bem, pode ir. Mas leve minha aia com você. E agora, não me incomodem mais. Estou com dor de cabeça e desejo me recolher. Podem esbanjar tempo varando a noite, mas preciso de repouso. — Esplêndido! Então nos encontraremos à beira-mar às dez horas. Marcus fez uma nova reverência para as damas, e saiu do salão e do Pavilhão barulhento, muito satisfeito. Caminhou em direção ao mar, até um local protegido. As botas faziam um rumor cadenciado sobre as tábuas do píer. Percorreu a amurada até o ancoradouro solitário, sentindo o vento açoitar seu rosto, fazendo seus cabelos balançarem em uma dança maluca. Seus passos eram mais controlados, e parecia analisar as tábuas que formavam o deque. De repente, pisou em uma que produziu um som oco de madeira velha. Sentou-se em um banco, retirou uma faca do cano da bota e enfiou-a na madeira de modo feroz. Os dedos longos foram forçando a tábua, até fazer um rombo. — Como ela ousa? — murmurou para o_ancoradouro vazio. — Como aquela menina insignificante tem a audácia de se imiscuir na vida de Honore? Sua protegida! Ora! E onde entro nessa história? Parece que estou sendo ignorado! Resmungou um impropério, e engoliu em seco, afastando os cabelos da testa. — Pensar que deveria estar em Portugal! Pois sim! Enclausurar-me em minhas propriedades transformadas em ruínas! Imagens do lar devastado surgiram diante de seus olhos injetados de ódio. Seu castelo, um monte de cinzas e sujeiras, não era digno nem de aldeões. Entretanto, os camponeses estavam vivendo em ruínas também, como coelhos assustados. Marcus dera uma olhada em suas propriedades, sentira o estômago embrulhado, e voltara para a Inglaterra em um piscar de olhos. Mas no momento as expectativas que tinha a respeito de Honore estavam perigando. Fiona poderia roubar seus sonhos. — Usurpado por uma menina do campo qualquer! Não permitirei que tal

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin aconteça! — resmungou. Voltou a enfiar a faca na tábua carcomida, como se aquilo lhe trouxesse algum alívio. Uma luz acinzentada começou a iluminar o píer e o ancoradouro. Sentou-se na beira do cais e deixou as pernas balançar sobre as águas. Baixou o olhar para o oceano e imaginou o quanto era profundo naquele lugar. — Farei com que a protegida de Honore desapareça em uma queda. As águas prateadas ondeavam ao longe como fantasmas agourentos. Marcus ignorou o cenário, e voltou a enfiar a faca na madeira, como se dilacerasse um coração. — Prima Fiona — murmurou Marcus, levando a mão da jovem aos lábios. — Está linda, minha cara. Fiona retirou a mão, e fitou-o com ceticismo. O rapaz estava com uma aparência terrível, após a noite sem dormir. — Lorde Alameda, talvez esteja muito cansado para caminhar esta manhã. Não vou ficar aborrecida se preferir se recolher. Poderemos dar nosso passeio um outro dia. Marcus limpou a garganta e sorriu. — Não, de jeito nenhum! Marcamos um passeio para hoje. — Olhou em volta. — Onde está sua criada? Precisamos ir. Lorraine, roliça e pequena, entrou na sala nesse instante, de xale e chapéu, e o trio encetou a jornada. — Sei que prometi levá-la ao píer de Brighton hoje — começou Marcus —, mas na verdade o cais real é apenas ornamental. Pensando melhor, achei que iria preferir conhecer um embarcadouro de verdade. É claro que não em funcionamento, mas existe um em particular que se estende até o alto-mar. Disseram-me que o cenário é de tirar o fôlego, e pode-se até ver baleias ao fundo. Fiona arregalou os olhos. — Baleias? Bem aqui no canal? — Foi o que me disseram. Mas o tom de voz não era convincente, e a jovem desconfiou de que estivesse zombado de sua ingenuidade. — Bem, será de fato uma visão estupenda — replicou com serenidade. — Tem razão, milorde, gostaria muito de ver uma baleia de verdade. — Sei disso. Marcus tomou-lhe o braço, muito satisfeito consigo mesmo. Nesse instante, Fiona comparou sua expressão com a de um gato que acabava de encurralar um camundongo, e isso a fez imaginar o que o primo estaria tramando. Mas tratou de descartar essa idéia, e acompanhou-o, enquanto Lorraine os seguia de longe. O oceano era majestoso. O sol fizera a bruma desaparecer, e presenteava Brighton com um brilho radiante, enfeitando a manhã. A brisa era fresca, e os raios luminosos esquentavam suas costas. — O que acha de nosso príncipe regente, meu primo? — Fiona ergueu o rosto e sorriu para Marcus, balançando a cabeça de maneira frustrada. — Devo lhe dizer que não era o que imaginava. Então lorde Alameda brindou-a com histórias divertidas sobre as idiossincrasias do príncipe, até que alcançaram o final do píer solitário com seu caminho de tábuas que rangiam sob o peso de muitos anos de uso. Uma brisa mais quente fazia a saia de Fiona dançar, e a jovem voltou-se para o sol, sentindo seus raios a abraçarem em uma deliciosa sensação de frescor e calor, na mistura de vento e água do mar.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Adoraria viver à beira-mar. E milorde? Ao voltar-se de supetão, ficou estática ao vê-lo muito próximo com uma expressão estranha no rosto másculo. Parecia quase triste, e havia mais alguma coisa que não conseguiu detectar em seus olhos. Fiona se espantou ainda mais quando Marcus estendeu a mão e afastou uma mecha de seus cabelos que lhe caíam sobre a testa, murmurando: — Que pena! — O que quer dizer com isso? — Tão jovem... Essa doçura selvagem... Por certo deveria florescer em uma bela mulher.. E muito triste desperdiçar isso... Sussurrando essas palavras sem sentido, o lorde inclinou-se como se fosse beijá-la, enquanto Fiona permanecia em total espanto. Por certo não iria fazer tal coisa, pensou. Entretanto os lábios de Marcus estavam a poucos centímetros dos seus, quando Lorraine, que correra, bufando e suando para alcançá-los, pigarreou às suas costas. Fiona afastou-se de Marcus, mas o nobre segurou-a pelo braço. — Desculpe, senhorita, mas creio que deve ficar aqui comigo. — Assim dizendo, Lorraine aproximou-se mais. — Ora! Veja só, srta. Fiona! Olhe ali! Deve ser uma das baleias que milorde mencionou. Venha até aqui para ter uma visão melhor. Bem lá ao longe! Lorraine dava pulinhos no mesmo lugar, apontando para um ponto no oceano. Marcus baixou os olhos com horror para onde a criada saltava como louca, e gritou: — Não! — Oh, sim! É uma baleia, sem dúvida. Venha ver, senhorita. Se olhar para láááááá... A tábua se partiu como Marcus planejara, entretanto foi a mulher errada que se precipitou no mar. Seu grito pareceu ressoar para sempre, antes que ouvissem o som do corpo mergulhando nas águas. Lorde Alameda se aproximou das velhas tábuas que na noite anterior com tanta paciência acabara de deteriorar com sua faca, e observou Lorraine afundar na escuridão. — Que falta de sorte! — murmurou, fitando Fiona. — Refiro-me à pobre moça ter caído. Mas para seu espanto, viu a sobrinha de lady Alameda retirar as luvas e os sapatos, e começar a tirar o chapéu, que lhe entregou, aproximando-se da beira corroída, onde surgia um grande buraco em meio à madeira carcomida. O conde continuava de boca aberta, quando, sem mais nem menos, Fiona se atirou na água. — Espere! — conseguiu gritar com voz rouca. Ouviu de novo o baque de um corpo nas águas a uma grande profundidade. Reclinando-se na beira do buraco, Marcus a viu erguer a cabeça das ondas, e começar a dar braçadas na direção da criada, que também voltara à tona, e se debatia como um gato na banheira. — A garota sabe nadar — declarou Marcus para ninguém em particular, pois continuava só no ancoradouro deserto. E as pessoas começaram a correr, curiosas com o barulho, e uma pequena multidão se formou à sua volta, ladeando o buraco. O conde apontou para a figura de Fiona lá em baixo, e desatou a rir de modo histérico. — O brinquedo de Honore sabe nadar! Fiona tentava acompanhar as braçadas ao ritmo do mar. Uma onda a

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin ergueu, levando-a para longe do píer. Arregalou os olhos, surpresa, mas, bem depressa recobrou o controle da situação e começou a dar braçadas fortes em direção da pobre criada em pânico. Fiona nadou o mais depressa possível, rezando para que Lorraine se mantivesse na superfície até que conseguisse alcançá-la. De repente, como se respondesse às suas preces, a cabeça da mulher surgiu bem à sua frente, os olhos arregalados de terror, a respiração ofegante com o esforço que fazia para continuar viva. Lançou-se para Fiona, rodeando-lhe o pescoço com os braços, e ambas afundaram nas águas salgadas. Fiona tentou se libertar dos braços que pareciam tentáculos de polvo, porém quanto mais lutava, mais as duas afundavam para as profundezas do oceano. Desesperada, mordeu o cotovelo de Lorraine com força, e então a criada a soltou, permitindo que sua salvadora a segurasse pelos cabelos, enquanto nadava de volta à superfície. Fiona surgiu sob o píer, em meio às ondas que batiam nos pilares. Agarrouse ao mais próximo com o braço livre, mas estava coberto de limo escorregadio e sua circunferência era muito grande para que conseguisse abarcá-lo. Porém as vigas se encontravam a uma grande distância, e nada havia por perto além dos pilares. Passou as pernas e o braço livre em volta da coluna mais próxima. Sabia que não conseguiria se segurar ali por muito tempo, mas isso lhe dava um momento para recuperar o fôlego. Mantinha a cabeça de Lorraine fora da água e o mais alto possível. A pobre criada tossia e cuspia sem parar, com gestos frenéticos, tentando se segurar em Fiona outra vez, mas a nadadora deu-lhe um puxão nos cabelos. — Não! — gritou para se fazer ouvir acima do rumor ensurdecedor das ondas. — Ouça-me, ou nós duas morreremos afogadas. Os olhos da infeliz Lorraine brilharam de súbito, com um lampejo de compreensão. — Deite-se de costas e tente prender a respiração. Vou levá-la até a praia. Relanceou um olhar para a praia que parecia distante demais. Lorraine fez o mesmo, e arregalou os olhos de novo em pânico. Lá vinha outra onda. — Deite-se de costas! — ordenou. A onda a atingiu, e Fiona mergulhou, sempre segurando a afogada pelos cabelos. Em poucos segundos, percebeu que conseguia dar braçadas mais firmes. Então, vendo que a criada a obedecera e tentava boiar, passou-lhe o braço pelo pescoço, procurando manter a cabeça da mulher acima das águas, e com muito esforço nadou na direção da praia. As roupas encharcadas atrapalhavam muito, desacelerando as braçadas. As ondas que quebravam mais à frente as faziam afundar em vez de empurrá-las adiante, e o sal ardia nos olhos e na garganta. Mesmo assim Fiona perseverou, lutando contra as águas bravias, e só tendo um pensamento: chegar à praia. Lorraine parará de espernear, fazendo-a pensar que já se afogara ou cooperava de maneira maravilhosa. Mas nesse instante não podia pensar nisso. Continuou nadando. Por fim alcançou a praia com Lorraine, e ali ficou caída. Um grupo de pessoas correu em sua direção com gritos de alegria. Fiona ergueu a cabeça, surpresa por ver tal multidão, e depois tombou o rosto sobre a areia, exausta. Ouviu alguém mandando chamar um médico. Fiona continuou deitada na praia, as roupas cobertas de algas, o vestido rasgado e encharcado colando-se ao corpo, os cabelos embaraçados cheios de areia. Pouco se importava. Só queria respirar e deixar o ar fresco penetrar-lhe nos

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin pulmões. De maneira vaga, seu cérebro registrou o som de Lorraine que gemia e bufava ao seu lado. As pessoas deram passagem quando alguém anunciou: — O médico está chegando! — Dêem passagem! — Aqui, doutor. A criada caiu do píer e iria se afogar com certeza, se não fosse pela dama... — Senhorita, está... Fiona dispensou o médico com um gesto. — Tome conta dela — murmurou. — Ambas precisam ser levadas ao ambulatório. Água salgada nos pulmões pode causar pneumonia, sem falar em... Fiona voltou a dispensá-lo com um movimento da mão, e o médico foi cuidar de Lorraine. Sempre com gestos, a nadadora pediu para ficar sozinha enquanto recobrava o fôlego. Momentos mais tarde, notou as pontas de botas elegantes e lustrosas bem à frente de seu rosto. Quem as usava se agachou e retirou as algas de seus cabelos e, com gesto delicado, limpou a areia de suas faces. Fiona ergueu a cabeça e semicerrou os olhos, ante os raios do sol, para fitar o rosto de lorde Wesmont. — Não pode ser — murmurou, deixando a cabeça pender de novo sobre a areia. — Bom dia, srta. Hawthorn. Achei mesmo que deveria ser a senhorita. A voz do nobre demonstrava uma grande alegria.

Capítulo V Fiona estava cansada demais para protestar quando Tyrell a tomou nos braços e começou a carregá-la na direção oposta da praia, por certo seguindo o médico. Mas quando alcançaram a calçada, ela já se sentia bem melhor. Fitou o perfil severo de Wesmont enquanto a mantinha nos braços. — Posso caminhar agora, obrigada. — Não duvido. — Então me ponha no chão. Entretanto, manteve os braços ao redor do pescoço do lorde. Não havia pressa, pensou. — Impossível atender seu pedido, senhorita. — Por quê? A água salgada vai arruinar seu paletó. — Tyrell ajeitou-a melhor, e fitou o rosto molhado. — Porque, srta. Hawthorn, a pouca roupa que restou sobre seu corpo está em farrapos e colada a ele como as algas marinhas. Mas não se iluda, pois seus encantos já não me enganam, porém não desejo expô-los aos olhares da turba curiosa. Fiona sentiu que, mesmo exausta e naquela situação, estava ficando rubra de vergonha. Wesmont tomou fôlego. — E onde foi que arranjou esse vestido ridículo? Mesmo nas melhores condições seria escandaloso para uma donzela. Todas essas rendas transparentes! Seu pai a chicotearia se... — Não precisa me passar um sermão, milorde. Pensei a mesma coisa a respeito, mas minha tia insistiu que era perfeitamente respeitável. Meu guardaroupa particular foi jogado no lixo. Parece que meus vestidos a faziam lembrar de bolos de noiva vendidos a granel, portanto, ordenou que a criada se desfizesse de

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin todos. — Sorriu consigo mesma. — Porém, não devemos criticá-la. Trata-se de uma mulher muito original. Tyrell tornou a respirar de maneira profunda, lutando consigo próprio para não perder a paciência. — Não consigo imaginar sua madrasta permitindo que ficasse sob os cuidados de lady Alameda. Fiquei no continente por quase cinco anos, e mesmo longe ouvi falar de suas excentricidades. — E isso o incomoda? Wesmont limitou-se a arquear as sobrancelhas, e então Fiona refletiu que não lhe fizera ainda a pergunta mais importante. — Por que está aqui, milorde? — Tyrell não respondeu. — Por que Brighton, tão longe de casa? — insistiu Fiona. Ele continuou em silêncio, mas a srta. Hawthorn notou que a linha do queixo estava ainda mais contraída. Isso a agradou, e uma parte malévola em seu íntimo desejou espicaçá-lo ainda mais. Brincou com a lapela de seu paletó como se fosse uma criança inocente. — Não acredito que esteja aqui por sentir saudade da companhia social do príncipe. Neste lugar não encontrará por certo a paz e solidão que tanto ama. Em especial nessa época do ano. — Bateu com um dedo nos lábios. — Não. Duvido que esteja interessado nas festas barulhentas, a não ser que de repente tenha um gosto pela dança? Sorriu de modo coquete e esperou por uma resposta, mas a expressão contida e severa de Wesmont revelou que isso não iria acontecer. — Não? — Fiona continuou como se estivesse tendo um diálogo animado e não um monólogo solitário. — Bem, é claro que existem muitas damas disponíveis em Brighton. Talvez tenha vindo procurar por esposa? — Ergueu o rosto para fitá-lo. — Oh! Mas devo estar louca! Milorde não é o cavalheiro que prefere ir para a forca a enfrentar um sacerdote no altar? Wesmont parou de andar de maneira abrupta e respirou fundo pela centésima vez. — A senhorita é muito impertinente, sabia? Estou quase pensando em largála na calçada e seguir meu caminho. — Por que não faz isso? — Não sei! Fiona conteve a alegria de vê-lo aborrecido. — E quais são os negócios que tem para tratar aqui? — Wesmont resmungou e contornou quase a correr o deque de madeira. — Bem, se quer mesmo saber por que estou em Brighton, devo dizer que vim para pedir desculpas, devido ao meu comportamento no lago, mas creio que agora já paguei toda a minha dívida. Fiona retirou o braço que enrascara em seu pescoço, e fitou-o com espanto. — Toda a sua dívida? — repetiu. — Sempre presunçoso! Nesse momento, Tyrell entrou no ambulatório, e o médico instruiu-o para que colocasse Fiona em uma cadeira, enxotando-o a seguir para a sala de espera. A salvadora de Lorraihe cruzou os braços sobre o peito e resmungou, enquanto o médico começava a auscultá-la. — Como pensei — disse o profissional. — Respira depressa demais e está com um princípio de febre. Isso é conseqüência por ter engolido tanta água salgada e algas marinhas. Sobre uma maça, Lorraine gemeu e Fiona pediu: — Garanto que estou bem, doutor. Por favor, atenda minha criada.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Marcus irrompeu muito transtornado nos aposentos que Honore ocupava no Pavilhão. — Ela saltou do píer! E nada como um pato! Salvou aquela paspalha de sua criada que por certo andou bebendo demais, e caiu na água. Que tipo de sobrinha é essa que sai por aí salvando criadas? — Sente-se, Marcus. Beba alguma coisa, e trate de se explicar, porque está parecendo um louco que não diz coisa com coisa — sugeriu a condessa. O conde de Alameda deixou-se cair em uma cadeira e engoliu a laranjada que lhe era oferecida, fitando a madrasta com dureza. — Atitude muito estranha para uma moça de sociedade, não acha? Sua protegida mergulhou no oceano atrás da criada e puxou a pobre criatura até a beira da praia. Honore sentou-se também e fitou-o com o rosto cheio de surpresa. — E onde estão agora? Por certo não as abandonou na praia, Marcus? — Havia um homem ali dando ordens como se fosse um general. Controlou a situação. — Quem era? Deixou minha sobrinha nas mãos de um estranho? — Pelo amor de Deus, Honore! Conheço um cavalheiro a quilômetros de distância. Foi um lorde, não me lembro de seu nome. Parecia conhecer a srta. Fiona. — Mas que lorde é esse? — questionou a condessa, começando a perder a paciência que não era o seu forte. — Não fale assim comigo, mãe. Não sou um garotinho que pode dominar. Agora me lembro. Era lorde Westely ou Wesmont... algo assim. Agarrou uma garrafa de uísque e voltou a encher o copo, desprezando a laranjada, e sem se importar com a hora matinal. — Então ele já veio procurá-la? Honore fez a pergunta sem esperar resposta de Marcus, era evidente. Riu e recostou-se na cadeira com um suspiro. O enteado a observou por trás do copo. — Seja como for, sua sobrinha estava encharcada e coberta de algas. Ele a carregou pela praia como se fosse uma criança. E devo acrescentar que Fiona não se opôs nem um pouco a tal intimidade. — Assumiu um ar de importância. — Por certo, não iria manchar meu paletó por causa de uma moça que não sabe se comportar. — Para onde acha que lorde Wesmont a levou? — questionou Honore sem se importar com as tolices que Marcus dizia. — Não sei nem me interessa. — O enteado sustentou o olhar de desaprovação que lady Alameda lhe lançava. — Possivelmente foi para o ambulatório. Havia um médico antipático correndo ao redor do tal lorde, e falando sobre pneumonia e febre. Honore tornou a rir. — Ora! Fiona ficará bem assim que se secar, tenho certeza. A menina nada como um peixe. — Encostou um dedo nos lábios como se refletisse. — Mas talvez seja melhor buscá-la no médico. — Sim, porém infelizmente sua criada não é nenhum peixe, e da última vez que a vi parecia um rolo cinza de algas marinhas. Teria sido melhor se Fiona a tivesse deixado afogar-se, pobre coitada! — Encarou a condessa com as sobrancelhas arqueadas. — Com efeito, Honore! Não entendo como pode aprovar o procedimento de sua sobrinha! Uma dama se atirar ao mar! E para salvar uma empregada! Lady Alameda fitou o enteado com olhar severo.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Se minha criada tivesse se afogado, iria exigir que cortassem sua cabeça, Marcus, e me trouxessem em uma bandeja. Foi por sua causa que tudo aconteceu! Jamais deveria tê-las levado ao píer antigo! Que passeio estapafúrdio! — Resmungou consigo mesma, acrescentando com seu raciocínio prático. — E onde iria encontrar outra aia tão agradável e competente quanto Lorraine? Marcus fungou. — Ora, Honore! Deveria se preocupar com o escândalo que sua sobrinha provocou e não com sua tola criada! Em resposta, lady Alameda dividiu ao meio um bolinho sobre a mesa do café, e engoliu metade. Em seguida fez um gesto com a mão, ordenando silêncio. — De que escândalo está falando? Está fazendo um cavalo de batalha sem motivo, Marcus. O conde pareceu ficar muito espantado com as palavras da madrasta. — Ora! A cidade toda deve ter tomado conhecimento do episódio sobre Fiona Hawthorn se atirar ao mar, salvar uma criada de quarto, e ser carregada até um ambulatório nos braços de um homem, as roupas em farrapos e mais parecendo uma vítima de um naufrágio! Em breve o príncipe regente tomará ciência do ocorrido. — É muito provável — rebateu a condessa, retirando uma migalha do bolinho no canto da boca. — E se tal não acontecer, vou garantir que o príncipe saiba. Marcus abriu a boca, cada vez mais estupefato com a reação da madrasta. — Com que propósito fará isso, minha cara? — Creio que é óbvio, não? — Honore encarou seu interlocutor como se lidasse com uma criança teimosa e obtusa. — Minha sobrinha é uma heroína, e é provável que Sua Alteza lhe conceda uma medalha, um título ou qualquer outra honraria do gênero. Assim dizendo, enfiou a outra metade do bolinho na boca. — Vocês mulheres são todas loucas fantasiosas! — rosnou Marcus. — Só os homens podem ser sagrados cavaleiros. Honore fitou as mãos com fingida tristeza, como se tivesse acabado de ser comunicada sobre algo que desconhecia. — Que pena! — É mais provável que o príncipe ordene que vocês duas... três com a criada afogada, façam as malas e partam de Brighton para evitar mais escândalos. Dessa vez Honore soltou uma sonora gargalhada. — Tolice! Não conhece o príncipe, meu caro. Nosso regente adora um pouco de animação e novidades, em especial quando diz respeito a atos de coragem. Irá admirar Fiona por sua conduta, marque minhas palavras. Foi a melhor coisa que poderia acontecer para a menina. Marcus balançou a cabeça com incredulidade. — Um comportamento excêntrico é uma coisa quando parte da senhora, minha querida madrasta, mas a aristocracia não irá tolerar isso de uma debutante. — Ora! Toleram você, Marcus. — Não sou uma debutante. — Mas é um estrangeiro. — Também não! — O conde apoiou o copo com tanta força sobre a mesa, que quase o espatifou. — Sabe muito bem que minha mãe era inglesa. Fui criado na Inglaterra. — Fitou Honore como se falasse com uma desmemoriada. — Milady me educou. Já se esqueceu? Gostaria que parasse de usar esse argumento batido todas as vezes que não tem mais nada para dizer a meu

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin respeito! Nós dois sabemos que Fiona exagerou com seu procedimento ousado. — Respirou fundo, colocando as mãos atrás das costas e erguendo o queixo em um gesto decidido. — Não lhe resta mais nada senão fazer as malas e voltar para o campo que é seu lugar. — Tolice, repito! Não percebe que Fiona irá desperdiçar a vida no campo? Deixe que o príncipe decida a questão. Tenho absoluta certeza de que a reputação de minha sobrinha continua ilibada, e que fará muito sucesso na sociedade. — Assim dizendo, Honore se levantou, sacudindo a saia e fazendo cair algumas migalhas sobre o tapete. — Afinal, não é uma simples debutante. É minha protegida. — Sim, é verdade — murmurou Marcus com o olhar perdido ao longe. — Quase tinha me esquecido. — Ela vai se recuperar? Fiona inclinou-se sobre o médico que auscultava as costas de Lorraine. — Pelo que examinei, sim — replicou o homem em tom seco e profissional. — Mas com essa roupa tão molhada, espero que não pegue uma pneumonia ou gripe muito forte. Preciso acompanhar as reações de seu organismo. Ouviu-se um burburinho na sala de espera, e lady Alameda irrompeu com lorde Wesmont logo atrás. — Aqui está você, minha querida! — Honore se aproximou da sobrinha com um rumor abafado de saias de seda, encostando a mão enluvada na face de Fiona. — Estava quase louca de preocupação! Marcus me contou uma história muito alarmante, e agora vejo que é verdade. Que horror! Venha, querida, vou levá-la de volta ao palácio. Minha carruagem está aí na porta. O médico pigarreou, empertigando-se. — Não a aconselho a fazer isso, milady. As duas sofreram um terrível trauma e precisam ficar em observação. Em especial sua criada. O riso de Honore repercutiu na sala. — Ora, meu caro doutor! Tenho certeza de que ambas estão bem. — Remexeu na minúscula bolsa que trazia, e retirou uma moeda de ouro. — Aqui está pelo trabalho que lhe deram. Agora, vamos andando, querida. Começou a empurrar Fiona pelas costas. O doutor acenou na direção de Lorraine. —Mas... a criada. Olhe para ela! Não deve ser removida daqui! Honore relanceou um olhar sobre o ombro. — Vamos andando, Lorraine. A aia ergueu-se da maça com as roupas enlameadas, e seguiu lady Alameda. Tyrell apoiava-se no batente da porta, uma expressão indecifrável no rosto bonito, quando a condessa passou por ele de nariz em pé, seguida pelas hesitantes Fiona e Lorraine. Mas a sobrinha se deteve a meio caminho, e retornou para fitá-lo. Ergueu o queixo, e murmurou: — Considere sua dívida paga, milorde. Lorde Wesmont devolveu o olhar mantendo a expressão fria e contida. — Ouça aqui, princesinha das algas marinhas, sou eu quem decide quando minhas dívidas serão saldadas! Fiona desviou os olhos do rosto másculo, e resmungou. — Sem querer parecer repetitiva e monótona, milorde é muito presunçoso! — Sem dúvida! — E irritante também!

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Como quiser. Com gesto displicente, Tyrell retirou areia da manga do paletó. — Insuportável e detestável — continuou Fiona, começando a esquecer que era uma dama e que não deveria se deixar levar pela raiva. — É provável — dardejou o lorde. Mas um ligeiro sorriso malicioso surgira no canto de sua boca, demonstrando que começava a se divertir com a situação e que estava muito satisfeito consigo mesmo. Fiona cerrou os punhos, tentando se conter. — No íntimo é o homem mais arrogante, desagradável... Milorde não passa de um... Parou de falar com a respiração entrecortada, como se estivesse escolhendo muito bem as próximas palavras para que fossem as mais ofensivas possíveis. Por fim, com um suspiro penoso, deixou escapar apenas uma, a que lhe pareceu a mais contundente. — Ogro! — Quê?! — Tyrell arqueou as sobrancelhas fingindo um grande choque. — Quer dizer uma daquelas enormes criaturas peludas e demoníacas que aparecem nos contos de fadas? — Passou com cuidado os dedos pelo rosto, deslizando-os depois no nariz bem desenhado. — Acho que não... — É, sim! — exclamou Fiona, dando um passo atrás como se quisesse evitar uma aparição aterrorizante. — Um ogro enorme e asqueroso! E nunca mais desejo vê-lo na minha frente! Arrebanhou a saia e ergueu o queixo com toda a dignidade que conseguiu diante das circunstâncias, e saiu andando, pingando água salgada no chão e derrubando as algas que ainda se agarravam ao vestido enlameado, em direção da carruagem de lady Honore. Na noite seguinte, Fiona mantinha-se quieta no Pavilhão. Centenas de candelabros iluminavam o salão de baile do príncipe regente. A orquestra executava uma melodia italiana, entre as favoritas de Sua Alteza. Os convidados formavam pequenos grupos ao redor das paredes decoradas com guirlandas e nos vestíbulos também ornamentados, parecendo pássaros coloridos e brilhantes. As damas usavam muitas plumas púrpuras e cor-de-rosa, sedas flamejantes, e jóias em profusão que reluziam sob as luzes. Sua Alteza movia-se pelo salão cumprimentando os convidados e divertindo cada grupo com seus gracejos e ditos espirituosos. Honore deu um cutucão em Marcus. — Veja! O príncipe não está mancando muito esta noite. Creio que a gota não o incomoda mais. Que sorte para Fiona que Sua Alteza está de bom humor. Duvida do sucesso de minha sobrinha? Fiona os fitou com desagrado, aborrecida por ver que discutiam a seu respeito como se não estivesse presente. — Ora! — retrucou o conde Alameda com desdém — O príncipe está disfarçando. Olhe bem para ele. Está a um passo de desmaiar de dor e incômodo com a roupa apertada. Caso raciocine com clareza, irá execrar a srta. Hawthorn. Quem já viu uma dama mergulhar no oceano para salvar um serviçal? Muito peculiar e estapafúrdio, se quer saber a minha opinião. De qualquer modo, o príncipe não vai gostar disso. — Veremos — replicou Honore com um sorriso confiante nos lábios. No entanto, Fiona não compartilhava do otimismo da tia. Temia que Marcus

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin estivesse com a razão, e rezava para que a pessoa investida do maior poder no país não ordenasse que fizesse as malas e partisse de forma vergonhosa. Mas quem sabe, pensou, Sua Alteza não daria muito importância ao ocorrido. O gordo príncipe George, condecorado como se fosse um transatlântico branco e vermelho, começou a se aproximar de lady Alameda e de seus parentes. Suando muito, Sua Alteza levava constantemente um lenço à testa, e depois o guardava na manga rendada do paletó. Era evidente para quem fosse um pouco observador, que fazia um enorme esforço para circular de convidado em convidado. Entretanto, analisou Fiona, permanecia bem-humorado e sorridente. Todos riam de suas anedotas e pareciam realmente contentes. Quando por fim o príncipe parou diante de Honore, Marcus fez uma profunda reverência. Com os joelhos trêmulos, Fiona também se inclinou como a tia, em um cumprimento gracioso. O príncipe fez com que as damas se erguessem, e começou a conversar. — Lady Alameda, um fato chegou aos meus ouvidos. Uma história sobre sua sobrinha. Assim dizendo, apontou para Fiona com os dedos cobertos de anéis. É agora, pensou a jovem, engolindo em seco e respirando com dificuldade para se manter calma, enquanto concluía que o príncipe regente da Inglaterra se preparava para lhe passar uma reprimenda. — Quero saber — continuou George. — É verdade? Sua sobrinha mergulhou do píer nas águas geladas para salvar uma criada? — Oh, sim, Alteza! — exclamou Honore. — É a pura verdade. A mulher que caiu é minha aia. Minha sobrinha aqui presente, sabendo o quanto aprecio essa pessoa, não hesitou. — Arregalou os olhos de maneira dramática, antes de prosseguir: — Mergulhou nas ondas colossais, e puxou minha criada pelos cabelos até a praia, depois de lutar muito, é claro. Salvou-a de morte certa e quase pereceu também. — Fitou o príncipe com expressão condoída. — Não é preciso que diga à Vossa Alteza como ficaria triste se soubesse que minha aia morrera comida pelos peixes em alto mar. O regente, que sem dúvida apreciava uma boa história, aquiesceu com simpatia. Então seu rosto se iluminou, como se acabasse de ter uma idéia luminosa. — Mas... A jovem é uma heroína! — declarou, sendo ouvido por todos ao redor. Olhou em tomo com visível satisfação, enquanto outros convidados iam se aproximando do pequeno grupo para ouvir melhor. Tendo assegurando uma platéia, o príncipe George se lançou a um discurso entusiasmado. — Ouso declarar que muitos homens não teriam a coragem que esta jovem demonstrou. Sorriu para a multidão em volta, e em seguida tomou a mão de Fiona, que ouviu o espartilho de Sua Alteza estalar quando se inclinou na sua frente. Por um instante temeu que o homem caísse, mas logo o príncipe se aprumou e levantoulhe o braço como se fosse a campeã de uma luta. — Entretanto, aqui está ela, senhores e senhoras. Esta jovem dama salvou a criada de lady Alameda de morrer afogada, dando um exemplo de bravura! Pousou uma mão cheia de anéis sobre o próprio peito e voltou-se para Fiona de maneira dramática. — Ah! Se estivesse lá, eu mesmo me lançaria ao mar para salvar a pobre mulher!

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Reconhecendo o sonho de gloria do príncipe, Fiona voltou a se inclinar em uma cortesia, assim honrando-o com a certeza de que de fato seria ele o herói, e permitindo-lhe se tornar o centro das atenções. Os convidados começaram a murmurar e declarar a certeza de que Sua Alteza sem dúvida teria se conduzido da mesma maneira heróica caso estivesse no píer naquela manhã fatídica. Enquanto isso, Marcus bufava de impaciência e irritação. Fiona notou que tia Honore estava com muita vontade de rir, e fazia um enorme esforço para conter uma de suas sonoras gargalhadas. Por fim, a condessa exclamou: — Jamais existiu monarca mais heróico! Então outros convidados fizeram coro, dando vivas ao príncipe George, que se ruborizava e sorria, acenando para todos. Por fim fez um gesto na direção de Fiona. — Ficaríamos felizes de abrir o baile dançando com a corajosa srta. Hawthorn. — Sinto-me muito honrada, Vossa Alteza. Mas na realidade se sentia apavorada, com vontade de se atirar aos pés do príncipe e rogar para que não a fizesse dançar, porque sempre cometia sérias gafes. Entretanto, teve o bom senso de não fazer nenhuma cena ridícula. Respirou fundo e tratou de obedecer com graça e serenidade. Então, com um gesto real e pomposo, George fez a multidão se afastar, arfando e suando. Conduziu a sensação da noite para o meio do salão, enquanto os demais convidados abriam caminho em um silêncio cheio de reverência. Sua Alteza ergueu a mão na direção do maestro da orquestra. — Uma valsa — ordenou com voz possante. — Desejamos uma valsa. — Meu Deus! — gemeu Fiona para si mesma, os dentes muito cerrados. A música teve início e o príncipe regente, com uma leveza surpreendente apesar da circunferência de seu ventre, a fez rodopiar sobre o assoalho brilhante. O suor gotejava da testa real, enquanto Fiona tentava sorrir a fim de ocultar seu enorme nervosismo. Fingindo displicência e uma segurança que estava longe de sentir, ela fixou o olhar sobre o ombro do príncipe, sem pousá-lo nos demais convidados para não se intimidar, porém sua atenção ficou presa a um rosto muito conhecido com olhos azuis e frios como gelo, que a encaravam do outro lado do salão. Tyrell! Fiona sentiu que perdia o passo, os joelhos parecendo geléia. O príncipe George percebeu sua agitação e tentou acalmá-la. — O que foi? Basta seguir o compasso, senhorita. Não precisa ficar nervosa. Em breve a valsa terminará. Fiona tentou se recompor, percebendo que estava aborrecendo Sua Alteza e deixando-o nervoso também. Onde estaria a bravura que o príncipe tanto elogiara na nova heroína? Desaparecera. Suas pernas tremiam como varas verdes e seu controle ia por água abaixo, pensou, sem querer fazer um trocadilho com o incidente que a deixara famosa. O que estou fazendo em uma pista de dança com o príncipe regente da Inglaterra? E por que o homem mais irritante do país deve estar postado do outro lado do salão me observando com olhos de águia?, perguntou-se, apavorada. O príncipe oscilou de modo perigoso, quando Fiona tentou corrigir o passo, pisando-lhe o pé real de maneira muito pouco graciosa. — Acalme-se, minha cara — sussurrou Sua Alteza. — Todos esses olhares cravados em sua pessoa e tanta atenção a deixaram ressabiada, é compreensível.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Mas vamos dar um jeito nisso. — Acenou para os convidados a fim de que dançassem também. Mas ao erguer a mão, o lenço de seda e rendas que mantinha escondido na manga, escorregou e caiu ao chão, junto aos seus pés. O tempo pareceu desacelerar como em um sonho, as pessoas e a orquestra dando a impressão de estarem meio adormecidas. Fiona observou, sem nada poder fazer, enquanto o pedaço de seda branca volteava até o assoalho muito polido, depositando-se sob o sapato do príncipe. Soube então, nesse exato momento, o que iria acontecer, e não seria uma cena agradável. George escorregou, e seu corpanzil desabou sobre Fiona, que se curvou para trás, sendo amparada por alguém. Sua Alteza agitou as mãos e as pernas no ar, caindo de costas, como um enorme pudim, no chão da sala. Fiona prendeu a respiração e fitou a pessoa que a segurara, ficando frente a frente com Marcus. — Obrigada por me ajudar — sussurrou quase sem respirar. — Não é todo dia que uma moça bonita cai em meus braços — murmurou o conde Alameda, fazendo-a recuperar o equilíbrio e se aprumar, com um tapinha encorajador em seu ombro. — Bem, minha cara, creio que agora estragou tudo. Se mergulhar do píer com suas roupas elegantes não causou sua ruína, quase matar o príncipe regente com a espinha dorsal quebrada ou de vergonha vai dar no mesmo. Caiu em desgraça, querida. Terá sorte se não a mandarem para a forca. Em pânico, sem saber se Marcus estava brincando ou falando sério, Fiona só conseguiu fazer uma coisa. Saiu correndo do salão de baile, irrompendo no saguão, e avançando até uma pequena ante-sala, onde se encolheu a um canto para chorar à vontade. Se pudesse, teria se enfiado sob o tapete oriental, mas era impossível. Tudo dera errado, refletiu. As lágrimas jorravam de seus olhos com tanta intensidade que mal conseguia respirar. Talvez o príncipe a mandasse para a forca por tentativa de assassinato. Bem, pelo menos assim sua vida terminaria de maneira misericordiosa. Após alguns minutos, tia Honore irrompeu na saleta com Marcus em seus calcanhares. — Fiona! O que significa tudo isso? Como ousa sair correndo como uma mísera covarde? — Porque sou covarde! — soluçou a pobre, enxugando as lágrimas com as costas das mãos. — Talvez não tenha notado, milady, mas acabei de... — Apontou com um dedo trêmulo na direção do salão de baile. —... Quase matei Sua Alteza, e sei muito bem que assassinato dá forca! Creio que decapitação está fora de questão, mas serei uma criminosa acusada de alta traição, e... Lady Alameda bateu com o pé no tapete e colocou as mãos nos quadris. — Não seja ridícula, criança! O príncipe está bem. Ele mesmo assegurou isso, há alguns minutos, após quatro ou cinco cavalheiros o erguerem do chão. Lady Bessbourgh se ofereceu para lhe preparar um emplastro de mostarda porque Sua Alteza está com um pouco de dor de cabeça, é só isso. — Sorriu, como se contasse algo muito divertido. — Recuperou-se com grande presteza. Empertigou-se e ordenou que a orquestra voltasse a tocar, dessa vez uma marcha alemã, e todos parecem coelhos assustados, tentando acompanhar o passo no ritmo ligeiro. Marcus balançou a cabeça como se não concordasse com o otimismo de

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Honore, e tratou de corrigi-la. — Não, minha querida. Coelhos não sabem dançar marchas. São os gansos que tem um passo marcial. Honore voltou a bater com o pé no chão. — Do que está falando, Marcus? Sua Alteza está fazendo todo mundo dar pulinhos como coelhos... ou antílopes. O conde deu de ombros e olhou para o teto. — Como quiser, milady. Honore abriu o leque e começou a se abanar com violência. — Tenho certeza que pela manhã George nem se lembrará de que caiu. — Quer apostar? Assim dizendo, Marcus analisou as unhas com ar displicente e sorriu de modo malicioso para a madrasta. As lágrimas recomeçaram a rolar pelas faces de Fiona. — Marcus tem razão — choramingou. — Tomarei o próximo coche de volta a Timtree Corners. Jamais deveria ter vindo a Brighton! Sou um desastre ambulante! Honore segurou a sobrinha pelo queixo e forçou-a a erguer o rosto com um aperto firme dos dedos enluvados. — Não vai fazer nada disso! Enxugue as lágrimas, menina! Não irei tolerar comportamento tão covarde. Precisa apenas reaparecer no salão de queixo erguido e olhos enxutos. Não permitirei que fique nesta saleta toda encolhida como se fosse uma reles criminosa. Além disso, se está determinada a ser uma fora-da-lei, pelo menos demonstre mais coragem. Bandidos costumam ter sangue-frio! Fiona piscou diversas vezes ante as palavras da tia. De fato, às vezes lady Alameda parecia uma louca. Porém a condessa gostou da reação, vendo-a parar de chorar, e felicitou-se por constatar que os meios justificavam os fins. — Ótimo! Posso ver que começa a se dominar. — Fez um carinho no rosto da sobrinha, e deu um passo atrás. — Vamos voltar ao salão de baile e tudo ficará bem. Marcus será seu par na próxima dança. O conde lançou um olhar ressentido para a madrasta. — Então devo também ser sacrificado? Honore franziu os lábios, semicerrou os olhos, e fitou o rapaz, que arqueou as sobrancelhas com ar de desafio. — Francamente, Honore! Deveria dar mais valor à minha reputação, e... Um homem parado à porta limpou a garganta. — Terei prazer em acompanhar a srta. Hawthorn na próxima dança. Fiona gemeu. Quando começava a pensar que não havia meios da situação piorar, algo acontecia. Honore ergueu o monoculo para examinar o recém-chegado. — Lorde Wesmont, presumo? — Mande-o embora! — bradou Fiona. Mas a tia soltou uma risada. — O que é isso, minha querida? Onde estão suas boas maneiras? Não sabe o que diz! — Deixou cair o monoculo que ficou seguro por uma fita de veludo presa ao corpete, e estendeu a mão para Tyrell. — Minha sobrinha está sem palavras. Aceito seu convite em nome dela. Honore voltou-se com graça, apertou o ombro de Fiona, e a fez se levantar. — Vamos lá, minha menina, está quase no seu normal. Aquela expressão de choro já desapareceu, embora seja melhor que conserve um ar discreto. Venha! Pegue o braço de lorde Wesmont.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Fiona fitou a tia. — Não posso voltar para o salão. Sem dúvida meus olhos estão inchados e vermelhos. — Ora! Vermelho é uma cor que lhe assenta muito bem. — Assim dizendo, Honore a empurrou para a porta, agarrou-lhe a mão, e pousou-a na manga do paletó de Tyrell. — Agora vá. Precisa fazer isso, Fiona. Insisto! Nenhuma protegida minha tem permissão para agir como uma ratinha assustada com medo de enfrentar os gatos. Mostre coragem, querida! Orgulho! Amor-próprio! — Analisou-a com um sorriso. — Muito bem! Fiona sustentou o olhar de Tyrell, erguendo o queixo na tentativa de recuperar parte da antiga dignidade. — Não precisava fazer isso, milorde. — É claro que sim — replicou Honore. Com gesto firme, empurrou os dois para o salão. A voz de Wesmont soou paciente e serena. — Desejo fazer isso. E, além do mais, sua tia tem razão. É melhor encarar a situação aqui e agora. — Viu só, Fiona? — Honore enfiou a cabeça no meio dos dois. — Que cavalheiro sensato! — Não sou sua responsabilidade, milorde. Como lhe disse ontem, absolvi-o de suas obrigações. Honore estalou a língua. — Absolvição? Fiona, parece o papa falando! Deixe o homem em paz! Segurando cada um por um braço, conduziu-os ao salão, como se fossem crianças travessas que tivessem deixado a sala de aula. Tyrell cobriu a mão de Fiona com a sua, e a manteve assim. — Sou seu vizinho e amigo. Lembra-se da vez em que a tirei da sebe quando caiu do pônei? — Não era um pônei! Era uma égua! Além do mais só tinha dez anos de idade, e... — Mas não esperava que a deixasse presa aos espinhos da sebe, esperava? — Bem, não creio que isso tenha algo a ver com... — E por acaso não tirei os espinhos e as folhas de seus cabelos e roupas? Fiona fez uma careta, recordando. — Sim, e o tempo todo ficou me passando um sermão por ter tentado pular a sebe com minha égua destreinada. Wesmont sorriu. — Bem, era um animal muito pequeno, e tenho certeza de que não fui assim tão severo. Fiona também sorriu de modo relutante. — Foi sim! Não se lembra? Ordenou que segurasse a saia e a encheu de amoras silvestres. — Ah! Isso mesmo! Bem, não tenho culpa se foi cair junto a um canteiro delas. E se não as colhesse naquele dia, os passarinhos comeriam todas. — Porém estava cheia de arranhões e marcas roxas. Não me sentia disposta a colher amoras. — Parece esquecer-se de que se regalou com as frutas tanto quanto eu. Aliás, voltou para casa com seus lindos lábios manchados de vermelho. Assim dizendo, fitou em cheio a boca de Fiona, que baixou o rosto, rubra como um pimentão, e sentindo um intenso calor percorrer-lhe o corpo. Respirou fundo, e só então percebeu que tia Honore os empurrara para o

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin fundo do salão, junto à orquestra, que o príncipe regia nesse momento, com gestos amplos e exagerados. A vigorosa marcha terminou por fim, e Sua Alteza voltou-se para ser cumprimentado por fazer o papel do maestro. Os dançarinos estavam tão exaustos que mal podiam aplaudir, mas lady Alameda incumbiu-se de fazer bastante barulho coma suas próprias palmas. O regente sorriu. — Ah! Lady Alameda! Milady e sua encantadora sobrinha estão de volta! Que maravilha! Agora creio que seja hora de um minueto para nos acalmarmos. — Mas na verdade o príncipe não pensava muito em tranqüilidade, e dirigiu-se aos demais presentes com sua voz possante. — Dancem! Quero ver todo mundo dançando! E todos trataram de obedecer. Tyrell conduziu Fiona ao meio do salão e segurou-lhe a mão, caminhando ao seu redor, como era de praxe no minueto. Sua parceira de dança não se sentia nada satisfeita, pois cada passo parecia a mímica de um flerte. Enquanto ele fazia suas evoluções sem despregar os olhos de seu rosto, Fiona sentia o coração acelerado. Respirava com dificuldade, o que não combinava com a dança tranqüila que mais se assemelhava a um passeio moroso por um parque. Mas lorde Wesmont não parecia estar imune também. Em determinado momento sua mão tremeu, e soltou Fiona. Quando ficaram frente a frente, Tyrell respirou fundo e desviou o rosto. Mas Fiona viu que estava acalorado como ela, as faces rubras. Foi sua vez de fazer um círculo ao redor dele e terminar com uma reverência. O parceiro fez um cumprimento de cabeça e ao erguer o rosto, Fiona viu, estupefata, sua expressão confusa. Sem palavras, Tyrell lhe dizia que não entendia o que estava acontecendo e por que se sentia tão perturbado. Sim, o que estava acontecendo?, questionou-se Fiona, piscando muito, enquanto Wesmont avançava e mudava de posição com outro casal. Pela primeira vez em sua vida, Fiona parecia estar de fato se afogando. Fitou Tyrell de relance. Se ao menos fosse de fato um ogro! Mas era lindo, elegante e forte. E se ela não o amasse desde os cinco anos de idade... e se Tyrell retribuísse seu amor... Porém não a amava, e isso a fazia se sentir uma náufraga, desejosa de se agarrar a qualquer graveto para escapar do oceano de confusão em que mergulhara.

Capítulo VI — Essa situação é muito desconcertante. Essa moça me faz virar do avesso, deixa meu cérebro inútil como uma geléia, e me torna um fantoche sem vontade própria! — murmurou Tyrell entre os dentes semicerrados. Perambulava pelas ruas escuras de Brighton de volta à Estalagem do Navio, onde estava hospedado, único local onde encontrara um quarto naquela época do ano. Decidira caminhar em vez de chamar um coche, na esperança de que um passeio a pé aliviasse seus pensamentos conturbados, mas não estava ajudando. Parou na porta do hotel, e esfregou as têmporas febris com as costas das mãos. Algo precisava ser feito, pensou, entre o torvelinho de idéias que turvavam sua mente. Abriu a porta com um repelão e tocou a sineta chamando o gerente. Quando o homem não apareceu logo, voltou a pressionar a campainha com fúria. Por fim

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin o gerente surgiu, cambaleante, dos fundos, com o gorro de dormir caído para um lado da cabeça, e um castiçal em uma das mãos. — Minha conta, senhor. Estou deixando este lugar — anunciou Wesmont. — Mas, milorde, disse que queria o quarto para a semana inteira! Rejeitei vários... — Pagarei a semana. — Mas, milorde, são três horas da manhã! Por certo não pretende... — Pretendo! Quero partir assim que conseguir acordar meu maldito valete para me fazer a mala! — O homem vai ficar furioso — resmungou o hoteleiro de modo a não ser ouvido, e logo erguendo a voz com cerimônia. — Mandarei a conta para sua residência, milorde, não haverá problema. Basta... — Não, estou indo para Londres. Pretendo encontrar pessoas que não me recordem lábios sujos de amoras silvestres ou que ergam olhos tristes e inocentes para mim. É melhor acertamos tudo agora. Depois, pelo momento, pretendo encontrar um buraco e me enfiar dentro. — Tyrell tomou fôlego, e olhou para o espaço vazio. — Talvez nunca mais saia dele. O gerente rolou os olhos para o teto, sem entender nada, e achando que o nobre hóspede era um lunático. Um buraco será bom para milorde se esconder, refletiu, mas manteve a compostura. Com um último olhar de comando para o homem, Tyrell subiu a fim de acordar seu criado. Sabia que em atenção ao sono do valete deveria esperar até o amanhecer, mas o instinto lhe dizia que corria perigo se aguardasse mais tempo. Não conseguia detectar qual era esse perigo exatamente, porém a imagem do rosto de Fiona o perseguia, e, apesar de sua expressão meiga e inofensiva, deixava-o apavorado. Precisava se proteger contra a srta. Hawthorn de qualquer maneira, pensou. Um certo sexto sentido lhe dizia que Fiona era letal, e o simples toque de seus dedos sobre a manga de seu paletó, suave como asas de borboletas, tinha o dom de irritá-lo e deixá-lo inseguro. E não era homem de se sentir ameaçado e incerto sobre nada!, refletiu, aborrecido. Na tarde seguinte ao baile, Fiona sentou-se em uma cadeira de vime, olhando de modo distraído as páginas de um livro. Honore entrou na sala de visitas e deixou-se desabar na cadeira ao lado. — Estou começando a me cansar de Brighton — foi logo anunciando. — Que me diz de irmos para Londres, querida? Fiona aquiesceu sem o menor entusiasmo. — Como for melhor para milady. Tanto faz. — Lady Alameda resmungou de modo barulhento. — Que falta de entusiasmo! Não está mais aborrecida por causa do estúpido incidente de ontem, está? Todos acharam muito divertido. Os amigos de príncipe não são pessoas de mente tão estreita quanto os seus do campo, minha cara. Ninguém por aqui pensará que é amaldiçoada, azarada, ou qualquer coisa do gênero. Ao contrário, foi o episódio mais engraçado e hilário que puderam assistir nos últimos dias, garanto! Ver Sua Alteza girar no ar como se fosse um acrobata foi de fato... Fiona ignorou a tagarelice da tia considerando-a muito frívola, e enfiou o nariz no livro. Não queria pensar na noite anterior. Por fim, desestimulada pela falta de interesse e frieza da sobrinha, Honore cruzou os braços sobre o peito, e tentou entabular outra conversa. — O que está lendo? — Fiona sorriu.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Os mais recentes conselhos da srta. Hannah More, a escritora das jovens damas. Achei que me ajudariam a pensar de maneira mais positiva e melhorar de humor. — Ora! Isso vai deprimi-la ainda mais, minha cara! — Honore fez um gesto displicente com a mão. — Atire esse livro às chamas! Não quero que se torne uma puritana carola. — Estamos em agosto, minha tia. Não acendem as lareiras no verão — replicou Fiona com azedume. Com gesto zombeteiro, percorreu a sala com um olhar, sabendo muito bem que não veria nenhuma lareira acesa. Honore semicerrou os olhos, de modo decidido. — Então entregue-o a mim. Vou atirá-lo pela janela. — Já conheço sua mania de atirar coisas pela janela, minha tia. Porém não deve culpar a srta. More por meu mau humor. Com um gesto brusco, fechou o livro fazendo barulho, e deixou-o cair sobre o regaço. — Ficará contente em saber que a conselheira Hannah More detesta senhoritas de espinha mole tanto quanto milady — continuou Fiona com voz áspera. — É exatamente a atitude amorfa e desinteressada das pessoas que combate em seus livros. Critica a carolice, e proclama que Deus deseja ser amado com alegria. Além disso, aplaude a paixão pela vida, e... — Chega! Irei à igreja se desejar ouvir um sermão! — A condessa voltou a fazer seu gesto característico com a mão, que tanto significava displicência como comando. — Então se não é esse livro que a está deixando aborrecida, o que é? — Não posso revelar. — Assim dizendo, Fiona ergueu o livro de novo, e fingiu examinar a lombada. — Talvez também me sinta inclinada a deixar Brighton, minha tia. Nesse instante, pela porta ainda aberta, surgiu o conde de Alameda. — Não pude deixar de ouvir as últimas palavras — desculpou-se, fitando a condessa. — O que é isso, Honore? Planejando sua retirada estratégica? As duas mulheres ergueram os rostos, assustadas com a interrupção. — Tolice, Marcus! Nunca bato em retirada com o rabo entre as pernas! Não é meu estilo, você bem sabe. — Também não costumo fazer isso — acrescentou Fiona, erguendo o queixo com orgulho. — Oh! Peço perdão, minhas senhoras — murmurou Marcus, fazendo uma reverência com atitude zombeteira. — Só estou dizendo que sem querer as ouvi... Lady Alameda riu com bom humor e voltou a dar um tapinha no joelho da sobrinha. — Imagine só, querida! Vamos tomar Londres de assalto! Como irmãs gêmeas! Como Cosme e Damião! Sem dúvida desperto pela conversa, o conde Alameda deixou escapar um suspiro, e se aprumou no assento, ainda de olhos fechados. — Cosme e Damião foram decapitados — murmurou. — Não tem importância! Jamais consigo memorizar direito a história desses heróis gregos. Honore abanou as mãos como se quisesse afastar a Mitologia de sua frente, tal uma mosca inoportuna. Marcus balançou a cabeça de modo paciente. — Pelo amor de Deus, Honore! Cosme e Damião não eram gregos, mas árabes. Além disso, não são heróis, mas santos católicos. Eram gêmeos e foram

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin apedrejados, queimados, e sabe-se lá o que mais. Entretanto no final foram decapitados. — Sorriu com frieza para a madrasta, e virou-se para Fiona, mudando de assunto. — Parece que Honore está lhe prometendo uma estadia maravilhosa em Londres. A condessa deu um chute na perna do enteado sem a menor cerimônia. — Sem dúvida que está de péssimo humor, meu jovem. — Sim — concordou Marcus com sarcasmo. — E pode ter certeza de que foi por causa da hora que escolheu para viajar. — Para começar, não o obriguei a nos acompanhar, mas pode ficar feliz. Estamos quase chegando. Finalmente a carruagem parou em frente à residência londrina da condessa Alameda, e Fiona olhou pela janela da carruagem, admirada com o que via. A fachada da casa parecia um templo grego, com uma escada de mármore que conduzia à porta principal, e seis colunas muito altas, que alcançavam o terceiro andar do prédio. Antes que o lacaio baixasse a escadinha, Honore desceu do coche demonstrando uma agilidade de menina. Subiu a escada quase correndo, e precipitou-se pela porta já aberta. Uma voz de mulher a saudou com entusiasmo. — Minha queridinha! Por fim está em casa! Fiona seguiu a tia, penetrando na residência com ar tímido, a tempo de ver Honore abraçando uma mulher corpulenta cujas feições um tanto abrutalhadas eram emolduradas por cabelos vermelhos sob um toucado branco. Os ombros largos estavam cobertos por um xale xadrez azul e verde, mas exceto por essas cores, usava um vestido todo branco e muito engomado. — Deixe-me dar uma boa olhada em você! — exclamou a mulher, segurando Honore pelos ombros e fazendo-a girar. Estalou a língua em um sinal de desaprovação. — O que fez com seus cabelos? Estão da cor de ameixas maduras! — Vermelhos, Mattie. Queria variar um pouco. — Isso não é vermelho, menina. Os meus cabelos são vermelhos! — Mattie baixou a cabeça e apontou para os fios que surgiam sob a touca, em seguida, apoiou as mãos nos quadris largos. — Os seus parecem ameixas, e essa não é uma cor de gente. — Não dou a menor importância para o que é natural e habitual, querida. Sabe muita bem disso, portanto, não faça uma cena por causa da cor de meus cabelos. Venha ver o que lhe trouxe. Mattie fitou Fiona. — Ah! A menina veio! Tendo feito um gesto para que se aproximasse mais, ela e Honore começaram a andar à sua volta como se apreciassem um novo móvel da casa. Por fim, a velha ama acenou de maneira aprovadora, fazendo a condessa bater palmas. — Não lhe disse, Mattie? É uma raridade! — Sim, mas não tão parecida com você como me disse. Porém é um lindo anjinho. — Satisfeita com a inspeção, a criada abriu os braços, como se estivesse admitindo Fiona em um clube muito exclusivo. — Seja bem-vinda, criança. Pode me chamar de Mattie. Fiona sentiu-se esmagada de encontro aos seios fartos da mulher e, quase sem conseguir respirar quanto mais falar, não teve escolha a não ser corresponder ao abraço. Mas logo sorriu consigo mesma ante a demonstração tão

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin espontânea de afeto, e começou a compreender o motivo da ligação fora do comum entre Honore e sua velha ama. O som de botas soou às suas costas, e Mattie baixou os braços, dando um passo atrás. — Vejo que o demônio negro voltou — murmurou em clara desaprovação. Marcus cumprimentou-a com um gesto de cabeça. — É um prazer revê-la também, Mattie. Ignorando a saudação, a velha se aproximou de Honore e sussurrou-lhe de modo a ser ouvida por todos. — Pensei que tivesse despachado o estafermo para a Espanha. — Portugal, Mattie — corrigiu Honore, examinando as próprias unhas com ar distraído. — Mas, como disse, o demônio voltou e temos de nos conformar. Marcus soltou uma gargalhada e plantou um beijo ruidoso na face da ama. — O demônio procura seu próprio bando. Não pude deixar de me sentir arrastado para cá a fim de provar de sua comida maravilhosa. — Tolice! — Mattie limpou o rosto com as costas da mão. — Não passa de um malandro provocador! Assim dizendo, deu meia-volta de modo pomposo, e saiu da sala com passo duro. Honore bateu com o pé no chão. — Ora, Marcus! Conseguiu irritá-la! O conde deu de ombros com ar inocente. — O que foi que fiz? Mas antes que a condessa pudesse responder, uma figura silenciosa se aproximou. Era um ancião de cabelos brancos que contrastavam com o traje todo negro que usava. Não envergava nenhuma peruca empoada, mas sua própria cabeleira era muito mais impressionante. Movia-se com cautela e de maneira deliberada, e quando se inclinou diante de Honore, Fiona teve a impressão de ouvir ossos estalando. — Seja bem-vinda de volta, milady. — Obrigada, Cairn. Esta é minha sobrinha, a srta. Hawthorn, nossa nova protegida. O educado mordomo fez uma reverência tão profunda que Fiona temeu que caísse com o nariz no chão. — Coloque sua bagagem nas acomodações que remodelei, na ala leste, ao lado das minhas. — Honore sacudiu a poeira do traje de viagem — E leve a bagagem de lorde Alameda para os seus cômodos na ala oeste. Honore passou o braço pela cintura de Fiona e subiram a escadaria de mármore. — Venha, querida, conhecer seu novo lar. A residência da tia era a antítese do pavilhão real de Brighton ou da casa de Fiona em Thorncourt. Ali não havia tapeçarias pesadas ou decorações conflitantes. As paredes eram todas brancas, assim como as inúmeras estátuas gregas, a luz parecia dominar todos os ambientes, proporcionando um ar alegre e festivo. As janelas eram ovais e o corrimão da escadaria era de mármore entalhado e decorado com baixos relevos. Observando a sobrinha, Honore sorriu, deliciada. — Como pode ver, minha cara, Alison Hall é muito confortável. — Essa não é a palavra que me vem ao pensamento, tia — retrucou Fiona, olhando para todos os cantos. — Diria que é de tirar o fôlego. A condessa ergueu o queixo, demonstrando sua satisfação.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Desde que Francisco faleceu, fiquei inquieta. Mandei construir Alison Hall para me distrair e esquecer a tristeza. Mas no fim se transformou em uma casa muito bonita, devo admitir. Assim dizendo, fez a sobrinha entrar no mais lindo aposento que Fiona já vira. Um enorme tapete turco revestia o assoalho. Era verde-escuro e dourado com florões em creme e cor-de-rosa. Tudo o mais no aposento tinha linhas simples e clássicas. As janelas iam do chão ao teto, enchendo o ambiente de claridade. Sem palavras, Fiona voltou-se para a tia e abraçou-a. Honore tratou de se desvencilhar, contrafeita com a demonstração explosiva de agradecimento. — Vamos lá, menina. Precisa sempre ser tão emotiva? Quase me sufocou! — Mas sorriu de modo complacente, contrariando as próprias palavras. — Amanhã, quando tiver descansado da viagem, chamaremos a costureira e veremos qual o estilo que mais lhe assenta. Mandando um beijo com os dedos, saiu do quarto, deixando Fiona se recompor da agradável surpresa. Tyrell dispensou uma carruagem, e tratou de caminhar pelas ruas de Londres. Passara uma noite terrível, despertando de pesadelos, banhado em suor, e sem conseguir dormir de novo. Em seus sonhos via o rosto de Fiona dançando na sua frente, como um espectro incansável. Sim, pensou, precisava de uma boa caminhada e de um uísque no White's. Quando chegou à esquina de Piccadilly e Fleet, suas passadas possantes haviam se transformado em um andar mais comedido. Um tanto distraído, fitou as vitrines, admirando as caricaturas. A rua Fleet era o lar de gráficas cujas vitrines mostravam os mais recentes cartazes com caricaturas à venda, sempre renovadas a cada semana. Essas sátiras forneciam ao povo os comentários políticos e sociais do momento, além de uma boa dose de bom humor, e deixavam os donos das gráficas bem mais ricos. Os clientes compravam os cartazes para divertir os amigos e conhecidos, e por uma ninharia, eram vendidos a granel. Quanto mais escandalosa a sátira, melhor. Lorde Wesmont foi caminhando de vitrine em vitrine, e embora não risse, a sombra de um sorriso surgiu no canto de sua boca ao deparar-se com a caricatura do príncipe regente representado como uma enorme baleia vertendo água. A baleia olhava de modo guloso para a rechonchuda lady Bessbourgh, cuja figura rotunda fora representada como um peixe voluptuoso flutuando ao lado. Seu marido, lorde B., caricaturado como um peixinho insignificante, nadava, apavorado, abaixo da cauda do cetáceo real. Tyrell afastou os olhos do cartaz, pousando-os sobre uma pequena multidão que rodeava a próxima vitrine, da Laurie & Whittle's. De onde estava podia ouvir comentários jocosos e risadas, enquanto alguém lia uns versos em tom zombeteiro. O grupo dava gargalhadas e apontava para uma caricatura na vitrine, atraindo o lorde que se aproximou, curioso para descobrir o motivo de tanta atenção. Quando por fim se aproximou da vitrine, sentiu-se como se tivesse levado um soco no estômago. — Não pode ser! — murmurou, abrindo caminho até se postar bem diante do desenho. Colocou as mãos sobre o vidro, e lá ficou. Mal ouvia as queixas às suas costas dos que reclamavam ter a visão bloqueada pelas costas largas do recémchegado e por sua altura que não permitia que os mais baixos se deleitassem com

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin o cartaz. Tyrell só conseguia prestar atenção na caricatura diante de seus olhos, que representava um rosto muito conhecido. Não era possível! Isso não deveria estar acontecendo!, pensou. Entretanto tratava-se, sem a menor dúvida, de Fiona Hawthorn. Tinha que ser a jovem, porque a seu lado via-se a figura da condessa Alameda com um menino agarrado às suas saias, que revelava uma enorme semelhança com Marcus. Incrédulo, Tyrell fechou os olhos com força, mas quando os reabriu, o cartaz continuava ali. A caricatura representava Fiona com o príncipe regente, na posição de quem acabara de dançar. Via-se George pairando no ar de modo grotesco, indo para uma direção, enquanto a srta. Hawthorn parecia ter sido empurrada para trás. O conde Alameda, quase sob a saia de Honore, estendia os braços, como a querer segurar Fiona. Tyrell não gostou do modo como fitava os seios da moça, com olhos libidinosos e um sorriso matreiro. — Que mau gosto! — rugiu, fazendo uma mulher ao lado soltar uma risada. Fitou-a com tanta severidade, que a coitada tampou a boca, amedrontada. Então Tyrell leu os versos impressos abaixo do desenho: Cuidado com a Dama dos Desastres! Precisa de aulas de dança, pois torna seus pares uns trastes, quando rodopia ou avança. A Inglaterra está em perigo, pois Lady Fiasco, a letal, é tão linda, meu amigo, mas uma ameaça real... Era demais! Os versos continuavam, mas Tyrell já lera o suficiente, e para espanto dos demais, voltou a abrir caminho com os cotovelos, e entrou na loja. Pressentindo algo fora do comum, a multidão deixou a vitrine e tratou de se aglomerar em torno da entrada da Laurie & Whittle's. Olhos curiosos viram o cavalheiro furioso sacudir os braços no ar na direção do cartaz exposto na vitrine. Gritos abafados irrompiam do lado interno do estabelecimento, enquanto Wesmont discutia com o proprietário. Então murmúrios de protestos irromperam da platéia na rua, quando o sr. Laurie em pessoa dirigiu-se até a vitrine e removeu o cartaz divertido da Dama dos Desastres. Colocou-o junto às várias cópias que tinha na loja, apresentando-as ao cavalheiro enfurecido, que atirou sobre o balcão um punhado de moedas, enrolou os cartazes e enfiou-os debaixo do braço, saindo da loja com a mesma fúria de quando entrara. Tyrell sentia-se irritado, parecendo um urso dançando em praça pública, enquanto andava pela rua como um torpedo desgovernado, mas pouco se importava. Se o príncipe George e toda a família real ficassem nus no meio da avenida acenando com fitas vermelhas para o povo, daria boas risadas e nem se importaria. Mas tratando-se de Fiona Hawthorn... E isso o deixou ainda mais furioso. Por que se importava tanto com Fiona? Por que se dera ao trabalho de comprar todos os cartazes com sua caricatura para que mais ninguém os visse e zombasse? Absorto em seus pensamentos, esbarrou em um homem que passeava na direção contrária. O transeunte era Robert Anbel, e apenas a interferência divina evitou que o lorde prosseguisse caminho sem mesmo erguer os olhos. No primeiro instante, os dois apenas resmungaram com o encontrão violento, e Tyrell ainda via tudo vermelho à sua frente. Mas quando Anbel se afastou e uma manga vazia do paletó bateu em seu braço, algo chamou a atenção de Wesmont. Parou de caminhar de modo abrupto, e sentiu-se como se tivesse voltado a Badajoz. Quase podia respirar o cheiro de pólvora, ver os clarões dos tiroteios, e lembrar das mãos tintas de sangue.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Virou-se com ímpeto, ao mesmo tempo em que o outro homem, que já dera um passo, prosseguindo seu caminho, dava uma olhada por cima do ombro. Os dois semicerraram os olhos, como a tentar enxergar em meio a uma densa névoa de lembranças, e Tyrell estremeceu. — Ty? — disse Robert Anbel com cautela. — Por Júpiter! É você, Anbel? — Claro que sim! Permaneceram parados, fitando-se por um instante. Então Wesmont estendeu a mão, que Robert apressou-se a apertar. De modo vago, Tyrell refletiu se de repente seu coração voltara a bater com animação por causa da alegria que sentia. Era extraordinário rever aquela pessoa. — Estou muito surpreso, Robert! Deve ser uma aparição, pois não esperava nada tão agradável hoje! O outro riu. — Bem, não quero desapontá-lo, mas ainda não virei um fantasma. Posso ter perdido um braço, porém o resto de meu corpo continua no mundo dos vivos, e garanto que não sou uma aparição! —Bem — começou Tyrell, recuperando-se do impacto do primeiro momento. — Vamos ficar parados aqui no meio da rua como dois postes ou tratar de tomar um vinho do Porto como dois homens civilizados? — Aponte o caminho — redargüiu Robert sem perda de tempo. O lorde riu. — Esqueci de como é direto, meu amigo. — Vendo Anbel arquear as sobrancelhas, como se não tivesse certeza de ter entendido bem o comentário, tratou de explicar, com um gesto de paz com as mãos. — E admiro sua franqueza. Em um canto tranqüilo do clube White's, ergueram os copos para brindar o reencontro. — Devo confessar, Robert, pensei que estivesse morto. — Creio que quase morri uma ou duas vezes. — Anbel sorriu e fitou o líquido escuro no copo. — Houve momentos, Ty, quando desejei de fato estar morto. Mas isso é passado. Pelo menos quase tudo. — Voltou a erguer o copo em um brinde. — Para o senhor, capitão... Desculpe, lorde Wesmont. Lamento o falecimento de seu pai. — Fitou Tyrell com atenção. — Para mim também foi uma surpresa enorme revê-lo. Deixei-o em Badajoz há mais de dois anos, e para ser franco, achava que suas chances de sobreviver eram menores que as minhas. Sentia-me protegido na tenda do cirurgião, porque um herói fez questão de retirar minha carcaça sem valor do campo de batalha. —Robert ergueu uma sobrancelha de modo sardônico, e fitou o companheiro. — Lembra-se disso? Dessa vez Tyrell ergueu o copo, mas nada disse. Como um pesadelo que voltasse a assombrá-lo, sentiu outra vez o sangue morno escorrendo de seu uniforme de capitão, cobrindo suas mãos, enquanto colocava Robert desacordado e ferido sobre o ombro, e lutava para abrir caminho pelas trincheiras e encontrar a tenda do cirurgião. Anbel balançou a cabeça, como se lesse seus pensamentos. — Não tenha medo, Ty. Sei que deveria agradecê-lo, seu tolo, mas não o farei, pois o deixaria sem jeito. — Isso mesmo. Não agradeça — murmurou ele. A imagem se desvaneceu e a tensão momentânea desapareceu. — Certo — prosseguiu Robert. — Agora me conte. O que faz o conde de Wesmont perambulando pelas ruas de Londres de cara feia, com um rolo de cartazes debaixo do braço? E por falar nisso, o que faz nesta cidade? Não deveria

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin estar enclausurado em sua mansão no campo com uma jovem e fértil esposa, começando a criar uma prole? Creio que é isso que chamam de formar uma família e ficar próspero. Um passatempo delicioso, segundo me disseram. Tyrell bateu com a mão na mesa. — Não comece a me provocar! Com ou sem uniforme, posso lhe dar um soco! — Oh! Tenho certeza de que não há mais uniformes em minha vida. — Robert ergueu a manga molenga do paletó, que provava não haver mais um braço em seu corpo. — Entretanto, se precisa mesmo me dar um soco no nariz, ficarei em pé e aguardarei. Ou, quem sabe, permanecerei sentado, porque não preciso me dar a esse trabalho, já que pretende me bater de qualquer jeito. — Fitou Tyrell com atenção. — Essa história de constituir família não é um assunto muito agradável, certo? — Não — replicou Tyrell. — E é por isso que estou em Londres. Para evitar esse assunto. — Agarrou o rolo de caricaturas do chão, e colocou-o sobre a mesa. — Entretanto, não posso nem me dar ao luxo de percorrer a rua Fleet sem me lembrar do maldito sexo frágil! Robert Anbel pegou a caricatura no alto da pilha e colocou-a de lado, percebendo logo que todas eram iguais. — Comprou o lote inteiro? — perguntou sem necessidade, pois isso era evidente. Riu ao examinar a gravura, e gargalhou ao ler os versos. — Que divertido! Tyrell rosnou sem nada dizer, enquanto Robert batia com o dedo no cartaz. — Ah! Deixe-me adivinhar. A caricatura o deixou furioso porque insulta nosso príncipe regente. — Examinou de novo o desenho como se estudasse uma estratégia militar. — Não, não deve ser isso, pois existem centenas de outras caricaturas muito mais ofensivas a respeito de sua obesidade. Não. Talvez esteja aborrecido porque retrata seu amigo, lorde Alameda, como um patife libidinoso. Entretanto, não me lembro de já ter ouvido você mencionar que esse nobre era seu amigo. Além disso, Londres inteira sabe que ele até se orgulha de sua reputação duvidosa. Robert espicaçou Tyrell ainda mais. — Será que está aborrecido por causa da fascinante lady Alameda? Ouvi dizer que tem muito dinheiro e é uma mulher cativante. — Apontou para o desenho, como se o estivesse mostrando pela primeira vez ao amigo. — Veja aqui. Lorde Alameda segura a saia da condessa e parece que deseja arrancá-la. Isso é que deve tê-lo aborrecido muito, Tyrell. Mas Wesmont era esperto e se recusou a cair na armadilha. Robert esperou um segundo e como não houvesse reação, sorriu e virou o cartaz para Tyrell, apontando para outro personagem no desenho. — Veja! Lady Alameda está a ponto de chutá-lo. — Não notei — murmurou Tyrell, cruzando os braços sobre o peito. — Certo. — Robert suspirou fingindo uma seriedade que estava longe de sentir. — Bem, então isso elimina a intrigante condessa Alameda. — Voltou a girar o cartaz para si, como se fosse a única cópia disponível, fincou o queixo nas mãos, e retornou à análise da caricatura. — Isso só nos deixa uma possibilidade. A misteriosa Dama dos Desastres. Como foi mesmo que disse o inspirado poeta que compôs as estofes abaixo do desenho? Ah! É tão linda, meu amigo, mas uma ameaça real... — Chega! Com gesto brusco, Tyrell arrancou o cartaz da frente de Robert, e quando esse lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada divertida, rugiu para o

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin ex-companheiro de Armas, que tentou se conter, mas os ombros continuaram a balançar de modo frenético, e lágrimas rolaram de seus olhos, tal o esforço que fazia para não rir. Por fim não agüentou e explodiu em nova gargalhada. — Meu amigo, não me divertia tanto desde antes da guerra! Vamos beber outro uísque. Precisa me contar quem é ela. Assim dizendo, Robert fez um sinal para o criado trazer mais bebida. — Deveria tê-lo deixado estrebuchar no campo de batalha — murmurou Tyrell entre os dentes semicerrados, mas sem falar de coração. — Ora! E quem estaria aqui para animar seus dias com um pouco de provocação? — Não se preocupe. Há muita gente interessada em me provocar, obrigado. E lady Fiasco — acrescentou, batendo com dedo sobre o cartaz —, esta da caricatura, encabeça a lista. Robert tornou a balançar a cabeça de maneira céptica. — Parece uma moça muito inocente mesmo no desenho. Diga-me, machucou-o também no salão de baile? — Não. — Tyrell lembrou-se do incidente quando Fiona ficara presa à medalha de seu paletó, e sorriu com ironia. — Bem... quase isso. — Compreendo — murmurou Anbel, como se fosse um médico ouvindo os sintomas do paciente. — Não compreende nada! — exclamou Tyrell, passando os dedos pelos cabelos. — Essa ratinha do campo vive colocando entraves no meu caminho. Vim a Londres a fim de levar uma vida livre e me esquecer dela, da guerra, e de tudo o mais. Pretendia me transformar em um bon vivant irresponsável. — Suspirou e prosseguiu. — Não estou preparado para formar família e ter um monte de pirralhos barulhentos. Só desejo acabar com a minha herança nas mesas de jogo, como a maioria dos jovens herdeiros em Londres. Quero seduzir lindas mulheres, me divertir, e ficar bêbedo todas as noites. Anbel permaneceu impassível, sempre com o queixo apoiado na mão. — Parece o que um vigário recomendaria no sermão de domingo — brincou por fim. — Bem, os vigários não foram para a guerra em Badajoz, certo? — A voz de Tyrell soou áspera e amarga. — Tem razão, e apoio plenamente seu plano. Na verdade, é muito parecido com o que tenho em mente. — Robert ergueu o copo bem alto. — Vamos virar dois irresponsáveis! — Bebeu o uísque de um só gole, e colocou o copo sobre a mesa com estrondo. — Vamos encontrar um antro de jogo para dissiparmos nossas fortunas. Esqueça a moça bonita do cartaz. Vamos a um bordel! Pegaremos as prostitutas mais bonitas! Fez menção de se levantar, mas Tyrell afundou ainda mais na poltrona. Então o amigo sorriu de modo zombeteiro. — Quê?! Não vem? — Já não disse que a garota é um entrave em minha vida? Isso não é bom, Rob ela me arruinou! Não quero saber de outras mulheres. Maldita ratinha! — Isso é mau. — Robert balançou a cabeça com tristeza. — Muito mau. Creio que deve estar furioso por saber que a dama anda na companhia daquele sem-vergonha do Marcus. — Aquele urubu! Quero arrancar sua cabeça! Entretanto... — Wesmont ajeitou o paletó e tratou de se recompor. — Não tenho por que culpar a moça. — Fez uma pausa. — E também não desejo sua companhia. — Claro que não! Ora! É muito comum vê-lo carregar debaixo do braço uma

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin pilha de cartazes com a caricatura dela. Comprou tudo isso para distribuir entre seus amigos? Vou ficar com um, se me permite. Afinal, trata-se de uma franguinha muito apetitosa. Tyrell voltou a resmungar, agarrou a pilha de cartazes, e atirou-a no chão ao seu lado. — O assunto é sério, Rob. E, como sempre, nada faz além de me provocar. Robert bateu com o dedo no rosto, como se estivesse pensando em algo muito importante. — Que estranho! Não provoco nem enfureço ninguém desde que nos separamos na Espanha. Mas devo confessar que me diverte fazer graça com seus problemas. Peço perdão. Tyrell acenou com a mão de modo displicente, dispensando as desculpas do amigo. — Alegra-me saber que o divirto. Mas me diga uma coisa. Como faço para livrar meu espírito cansado das lembranças dessa moça e da guerra? — São duas coisas — corrigiu Anbel. — E bem diferentes uma da outra, meu amigo. Uma mulher e a guerra. Brincou com a borda do copo, e uma mecha de cabelos louros caiu-lhe sobre a testa. Wesmont o fitou, e por um momento pareceu o rapaz de antes de presenciarem tanto derramamento de sangue nos campos de batalha. Mas logo endireitou os ombros, fez um movimento rápido com a cabeça, e a mecha loura voltou para o lugar. — Napoleão nos mudou para sempre — prosseguiu. — Creio, Ty, que se tentar apagar essas lembranças de seu coração ficará aleijado, pois fazem parte de nós como um braço ou uma perna. A guerra, com todos os seus horrores e crueldades, assim como seus pequenos triunfos, tornou-se parte de nós. Os garotos imaturos e felizes que éramos, e que vestiram seus uniformas brilhantes cheios de entusiasmo para lutar contra Napoleão, não existem mais, meu amigo. Wesmont fitou o vazio, sem ver as paredes do clube. Em vez disso, viu a névoa que o circundara quando rapazinho, antes da guerra. A névoa da inocência que desejava resgatar, mas Robert tinha razão. Era impossível voltar ao passado. De repente Anbel riu, uma risada breve e irônica. — Bem, pode ser que esses garotos ainda existam — disse, como se lesse os pensamentos de Tyrell. — Gostaria de voltar a subir em uma árvore como se fosse um menino, só que a sensação seria diferente. Tudo se modificou para sempre. A realidade da guerra permanecerá em nosso íntimo até o fim de nossos dias. Melhor encarar isso, Ty. Não vai ajudar tentar fugir das recordações. Jamais será o mesmo rapaz tolo de antes. — Ergueu o rosto e sorriu. — Meu amigo, nos tornamos duas árvores velhas. Tyrell tentou rir também. — Anbel, juro que nunca sei se vai falar como um padre ou um cínico. Velhas árvores! Ora! — Sorveu o último gole do copo. — Mas não deixa de ter razão. — Creio que não sou nem padre nem cínico. Tornei-me uma babá. Minha avó me fez prometer acompanhar duas primas em sua temporada em Londres. O velho dragão não tem mais forças para ficar acordada até tarde da noite, então me fez responsável pelas meninas. Tentei escapar da incumbência, disse que queria zarpar para as índias Orientais, porém ela começou a choramingar e a dizer que não podia abandoná-la, daí concordei. — Minhas condolências. Índias Orientais? — Sim, e logo que me livrar das primas, partirei. Por falar nisso, não gostaria

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin de tirar pelo menos uma das moças de minhas costas? Tyrell arregalou os olhos, alarmado. — Pense bem — continuou Robert com voz persuasiva. — É o homem certo para Diana. Minha prima precisa de um marido velho e rabugento como você. É uma moça sempre tão alegre que tenho ganas de dar-lhe uns tapas. — Fitou Wesmont como se o avaliasse. — Sem dúvida foi talhado para Diana, que debaixo dos cachos e das risadas é bastante inteligente também. Diga que se casará com ela! Não agüento mais essa história de circular por Londres com essas meninas! Robert recostou-se na poltrona e fez um muxoxo. Foi a vez de Tyrell soltar uma gargalhada. — Gostaria de ajudá-lo, Anbel, mas como já disse, no momento não consigo me interessar por nenhuma mulher. A imagem da expressão magoada de Fiona junto ao lago, quando lhe dissera todas aquelas palavras grosseiras, voltou-lhe à mente. Robert tornou a analisar o amigo, e depois apoiou-se na mesa com ar sério. — E por que não? Poderá ser agradável. Além do mais, meu amigo, é o típico nobre do campo, com caráter firme e ideais justos. Não poderia se tornar um estróina nem em mil anos. Sua consciência não lhe permitiria. Mesmo na Espanha em meio à guerra, nunca foi de se lançar na dissipação quando teve oportunidade, como muitos de nossos companheiros. — Sorriu. — E não é como eu, que desejo partir para as índias. Por que não se casa? — Porque o casamento é um inferno! Só responsabilidade e nada de diversão. Assim dizendo, agarrou o rolo de cartazes e levantou-se, preparando-se para partir. — Não vá embora aborrecido. — Robert o seguiu. — Está certo, não vou mais tocar no assunto. Tyrell o fitou com ar de dúvida. — Juro! Vamos mudar de assunto. Vai ao baile de lady Sefton amanhã? — Para quê? — Bem, para fazer companhia a um velho solteirão. Iremos para o salão de jogo, assim que minhas primas se juntarem às demais debutantes. Quem sabe deixarei que recupere um pouco do dinheiro que ganhei de você na Espanha. — Nunca me fez perder nenhum jogo. Foi sempre o contrário, meu velho. — Então sua memória está falhando, Tyrell. Costumava ganhar com freqüência. — Mentiroso! Lembra de uma noite chuvosa em Lisboa... — Assim falando, começaram a caminhar, por alguns instantes esquecidos de que eram homens experientes, e voltando a parecer dois meninos.

Capítulo VII Lorde Wesmont e Robert Anbel chegaram à entrada da mansão de lady Sefton ladeando duas debutantes rechonchudas com vestidos brancos vaporosos. Logo atrás vinha uma mulher idosa que servia de dama de companhia para a avó das meninas. Quando Tyrell, Anbel, a srta. Diana e sua irmã surgiram à porta do salão de baile foram anunciados por um lacaio com excelente dicção e voz retumbante. Tyrell ouviu alguém soltar uma exclamação abafada à sua esquerda. Relanceou um olhar pela multidão de convidados, e em meio ao mar de

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin rostos deparou-se com a expressão surpresa de Fiona Hawthorn. De imediato, a reação de Wesmont falou por si mesma, pois ficou rígido e incapaz de dar um passo à frente. Robert percebeu, inclinou-se para o amigo, e sussurrou-lhe ao ouvido: — Firme, Wesmont, temos uma escada adiante. Tente não cair em cima de minha prima. Em pensamento, Tyrell recriminou-se por perder o controle com tanta facilidade, e desceu a escada de braço dado com Diana. Quando ficaram na fila para cumprimentar os anfitriões, Robert o provocou em voz baixa. — Não sabia que a Dama dos Desastres estava em Londres. Que bom para você! Tyrell não conseguiu pensar em uma resposta à altura, pois ainda se sentia muito chocado com a presença de Fiona no baile. Do outro lado do salão, lady Alameda inclinou-se para a sobrinha e falou-lhe com autoridade. — Minha querida, controle-se. Parece que viu um fantasma, quando na verdade trata-se apenas de um homem. Um simples representante do sexo masculino, vejam só! Agora pare de fazer papel de tola. — Honore fechou o leque com gesto decidido. — Venha, desejo falar com lady Haversburg. Tire essa expressão apreensiva do rosto! Fiona seguiu a tia com humildade. Nessa noite os cabelos da condessa não eram mais vermelhos, e ostentavam um branco prateado, presos no alto da cabeça, o que lhe dava um ar quase matronal. Mas seu vestido dourado era de tirar o fôlego. Os trajes de tia e sobrinha contrastavam entre si, conforme Honore planejara, de modo que, quando caminhavam lado a lado como acontecia, pareciam o sol e a lua desfilando no firmamento. O vestido de Fiona era de um azul muito pálido, bordado com fios de prata. Um drapeado elegante cobria-lhe um dos ombros, deixando o outro exposto. Lorraine penteara-lhe os cabelos em estilo grego, com fios de pérolas entremeados, e deixando alguns cachos caírem sobre o ombro nu. Entretanto Fiona não se sentia tão maravilhosa como a lua. Estava mais inclinada em pensar em Maria Antonieta indo para a guilhotina. O que será que Tyrell fazia ali? Por que estava com aquela debutante gorducha? Sentiu o estômago embrulhado, e um enorme desejo de sair correndo do salão, de Londres... de tudo! Pelo menos, refletiu, quando não estivesse mais nas proximidades de Wesmont poderia agir com naturalidade e ser ela mesma. Honore parou na frente de uma matrona imponente e de uma jovem bonita, mas tímida. Fiona tratou de sorrir com amabilidade para lady Haversburg e sua filha, Maria, que tinha uma forte ha-litose, apesar dos pedaços de cravo-da-índia que sempre mascava. A moça sorriu com timidez, revelando os dentes amarelados e alguns muito escuros, e Fiona lutou para não fazer uma careta de desagrado, pensando que não apenas o hálito da moça era terrível, mas devia ter dor de dente também. Ficava triste por ver uma moça tão bonita e gentil desfigurada por alguns dentes estragados. Sorriu mais ainda, fingindo não ter notado nada de errado, e elogiou a organização da festa. Lançou um olhar para o outro lado do salão, admirando os ombros largos de Tyrell que se inclinava diante da anfitriã dessa noite, lady Sefton. Quando se aprumou, seu olhar cruzou com o de Fiona, que tratou de virar o rosto bem depressa, e controlar o rubor que tornava suas faces da cor de pimentões.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Srta. Haversburg, que lindo vestido está usando! — exclamou com maior entusiasmo do que sentia de verdade. Maria baixou os olhos para o decote profundo que ampliava seus seios, e tentou erguer um pouco os laços para ocultá-los. Por certo o decote fora idéia de sua mãe, pensou Fiona, cada vez mais penalizada. — Acha mesmo? — replicou Maria. — Não pensa que é um tanto... ousado demais? Mamãe disse... — Ficou vermelha de repente, e murmurou de modo conspirador por trás da mão enluvada. — Creio que quis distrair a atenção dos cavalheiros de meus dentes ruins. Fiona não soube o que dizer diante de tanta franqueza. Além disso, só conseguia pensar no homem do outro lado da sala, que a fazia se sentir uma tola de pernas bambas. Fechou os olhos e esfregou as têmporas, fazendo com que Maria segurasse seu braço de modo solícito. — Está se sentindo mal, srta. Hawthorn? — Sim, estou. Lamento, mas de repente sinto que vou ficar com uma terrível enxaqueca. Preciso voltar para casa e descansar. Maria bateu no cotovelo da mãe e apontou para Fiona. Lady Haversburg e Honore pararam de falar e observaram a expressão angustiada da srta. Hawthorn. A condessa franziu a testa com impaciência, enquanto a amiga dava exageradas demonstrações de preocupação. — Sim, minha cara, deve ir para casa e repousar. Que pena! Com todos esses cavalheiros maravilhosos no baile! Bem, sobrará mais para Maria, certo, Honore? — Riu, mas logo ficou séria de novo. — Recomendo um pano embebido em água de rosas, e que uma criada o esfregue em sua testa com delicadeza. Isso fará bem. — Tolice! — dardejou lady Alameda. — Não há nada de errado com minha sobrinha. — Fez sinal para um criado que passava com uma bandeja, pegou duas taças de champanhe, e deu uma para Fiona. — Beba isso e irá se sentir melhor em dois segundos. — Mas, tia, acho que... — Beba! Obediente, Fiona levou a taça de cristal aos lábios, e deixou o champanhe deslizar para seu estômago, sentindo um calor intenso invadir cada fibra de seu corpo. O criado surgiu para pegar a taça vazia, e Fiona depositou-a na bandeja, pegando outra cheia, e voltando a beber de um só gole: Era extraordinário como se sentia melhor, refletiu meio zonza. Parecia que uma névoa reconfortante invadira o salão, e então tratou de se segurar no paletó escuro de um cavalheiro que surgira ao seu lado. Ergueu o rosto e cumprimentou. — Boa noite, Marcus. — Ah! Ma belle! — O conde Alameda tomou-lhe a mão, levando-a aos lábios. Fiona olhou em volta, tentando encontrar a pessoa certa a quem se dirigir, e acabou fitando Maria Haversburg. — Não acha estranho, senhorita, que um nobre português fale francês? Confesso que não me acostumo com isso. Maria voltou a ficar vermelha como um tomate maduro, e Marcus respondeu em seu lugar. — Fui criado na Inglaterra, minha mãe era inglesa e, como todos os nobres daqui, aprendi francês. A srta. Haversburg olhava de um para o outro, assistindo o debate verbal, e

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin encantada com o jovem nobre estrangeiro. — Mesmo assim é esquisito — continuou Fiona. — Creio que as damas iriam preferir que as cumprimentasse com galanteios em português, em vez dessa frivolidade francesa. — Mas se falasse em português não iriam entender uma só palavra, minha cara. — Marcus sorriu com malicia. — Poderia dizer uma série de coisas impróprias e as damas apenas aquies-ceriam, agradecendo, sem saber de fato o que haviam ouvido. Nesse momento a orquestra deu os primeiros acordes, e o conde empertigouse. — O baile vai começar. Deve-se lembrar, querida prima, de que me prometeu a primeira dança, portanto poderemos saltar na pista como duas cabras felizes. — Suspirou. — Espero que aprecie o sacrifício que vou fazer. — Ora, Marcus! Sabe que não quero dançar! — protestou Fiona. — Então é estranho que tenha comparecido a um baile. — O conde inclinouse muito, e sorriu diante do decote generoso de Maria. — E está me deixando sofrer por não me apresentar à esta encantadora dama. — Bem, pretendia poupar esse desprazer a Maria. — Riu do próprio chiste, imitando a risada de lady Alameda, enquanto o champanhe a deixava leve e sem nenhum controle verbal. — Porém não o farei sofrer mais, caro Marcus. — Voltou-se para a outra jovem. — Srta. Haversburg, prepare-se para conhecer o conde Alameda que, como diz minha tia, é um crápula da pior espécie. Maria fez um cumprimento e, sem poder se conter, sorriu diante dos comentários de Fiona, expondo, por um segundo, os dentes podres para Marcus, e bafejando-o com seu hálito de verduras azedas. O conde fez um gesto abrupto, e sem mais olhar na direção da pobre srta. Havesburg, resmungou. — Encantado. Em seguida arrastou Fiona para a pista de dança. — Foi rude com Maria, conde Alameda! — Ela é um horror. E você, minha suculenta prima, deve aprender a dominar a língua e evitar comentários impertinentes. Acho que já bebeu muito champanhe. — Tolice! — redargüiu Fiona, imitando a palavra de desdém favorita da tia. — Está se tornando uma velha babá antiquada! — Então vai precisar se habituar com isso, minha cara. — Fiona sorriu com ironia. — Prometo, babá, que não tomarei mais nenhum gole de champanhe. Marcus acenou para um conhecido. — Está me provocando, querida. Quer que lhe mostre que não sou nenhuma babá? — Assim dizendo, apertou a mão da parceira de dança até aproximá-la a poucos centímetros de seu rosto. Com olhos velados de concupiscência, apreciou cada curva do corpo de Fiona como se a visse nua. Seus lábios se torceram em um sorriso lascivo, mostrando uma fileira de dentes perfeitos. Fiona tentou se afastar. — Não quis aborrecê-lo, Marcus! De verdade! — Tratou de consertar a situação. — Tem razão. Não agüento champanhe e digo bobagens quando bebo demais. O conde relaxou o aperto em sua mão, e continuaram a dançar em silêncio. Tyrell se mantinha no grupo de Robert, observando cada olhar entre Fiona e

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin o conde Alameda. Conservava os punhos fechados como se fossem dois martelos de aço prontos a atacar. Pensava estar se controlando bem, mas sua postura tensa de estátua de granito não era a que planejava. O instinto de luta por fim prevaleceu. Voltou-se para a srta. Diana Anbel e ofereceu-lhe o braço para entrar na dança. Seguindo a promenade, os dançarinos se agrupavam de quatro em quatro. Tyrell lançou um olhar para o grupo de Fiona e Marcus, enquanto Diana fazia uma cortesia como era de praxe, e ambos acertavam o passo. Com um sorriso forçado, a prima de Robert sussurrou-lhe: — Lorde Wesmont, parece que está com ganas de matar alguém. Todos pensarão que foi forçado a dançar comigo. Por favor, tente adotar uma expressão mais agradável. Afinal, não estamos em um campo de batalha. — Desculpe, senhorita. Dessa vez Diana sorriu com aprovação. — Olhe só! Tem um sorriso muito bonito. E esse brilho matreiro em seus olhos é muito atraente. — Jovens solteiras não deveriam fazer esse tipo de comentário — ralhou Wesmont. Separaram-se, formando uma fila dos cavalheiros e outra das damas. As duas frentes avançaram na direção uma da outra, e deram-se as mãos para formar um arco sob o qual cada casal passaria. Tyrell manteve o braço de Diana bem esticado enquanto as pessoas iam passando por baixo. Tentou não olhar para Fiona ou desejar estrangular Marcus, porém foi em vão. A frustração dava um nó em suas entranhas, e sentia ganas de socar o rosto convencido e sorridente do conde Alameda. Era injusto que um homem tão dissimulado e mau caráter tivesse feições tão elegantes e simpáticas, refletiu com seus botões, enquanto a dança prosseguia. As mulheres sempre se deixavam enganar com facilidade pelas falsas aparências, refletiu. Lançou um olhar de esguelha para Marcus e sentiu o sangue ferver ao vê-lo fitar Fiona de maneira lúbrica. Nesse momento, o outro casal cruzou as mãos e inclinou-se para passar sob o arco, enquanto Tyrell fazia força para se conter. Entretanto, quando estavam bem à sua frente, deixou escapar os dedos de Diana. Tudo aconteceu muito depressa. Baixou o braço com o punho fechado, e atingiu ò pescoço de Marcus, que caiu no chão. O conde Alameda ficou estendido aos pés de Wesmont, e Diana começou a dar gritinhos histéricos, enquanto Fiona parava de supetão para não rolar por cima do parceiro de dança. Ante o súbito burburinho, a orquestra parou de tocar sem mais nem menos, os violinos calando de repente com um som desafinado. Todos os convidados de lady Sefton voltaram-se para a pista de dança, a fim de saber o que acontecera. Fiona fitou Tyrell, que sabia ser impossível esconder a raiva que o dominava nesse instante. A srta. Hawthorn balançou a cabeça em desespero e fechou os olhos, como se estivesse a ponto de desmaiar. Agora irão me culpar por esse acidente também, pensou, aborrecida. Marcus levantou-se, cambaleante, parecendo um demônio prestes a atacar, e Diana parou de gritar, para iniciar uma dança particular com pulinhos no mesmo lugar. — Açudam! Torci o tornozelo! Todos os olhares se voltaram para a prima de Robert Anbel, que com gesto rápido tomou o braço de Marcus para se amparar. — Desculpe, milorde. Fui muito desastrada. Fiz com que caísse, porque no

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin meio da dança torci o tornozelo e perdi o equilíbrio... Bem no momento em que passava por baixo. — Sorriu de modo contrafeito. — Sou tão pequena e milorde é tão alto... Tentei me esticar o mais que consegui, porém... — Fitou-o com olhos meigos. — Perdi o equilíbrio e caí sobre milorde. Lamento tanto! Pode me perdoar? O conde semicerrou os olhos de modo céptico, porém inclinou a cabeça como um cavalheiro e murmurou que não era nada. Diana sorriu de modo agradecido, e virou-se para Tyrell. — Milorde, pode voltar a me dar seu braço? Creio que não estou em condições de terminar a dança. — Fez um gesto gracioso para os demais dançarinos. — Minhas sinceras desculpas. Por favor, continuem. Um tanto desafinados por causa da interrupção, os músicos atacaram de novo a dança, acabaram entrando no ritmo, e tudo voltou ao normal, com os pares retornando ao meio da pista. Em silêncio, Tyrell escoltou Diana até uma cadeira ao lado de sua irmã e Robert. Ao sentar, a jovem comentou em tom baixo para só ser ouvida por Wesmont. — Milorde, da próxima vez que pretender bater em alguém na pista de dança, peço que escolha outra parceira. Porém Robert ouviu e soltou uma gargalhada. — Diana, é uma fingida de primeira classe! E eu que a julgava uma debutante desmiolada e frágil! A prima limitou-se a cruzar os braços sobre o peito e resmungar consigo mesma. Anbel voltou a rir e fitou o amigo. — Deve admitir, Ty, que minha prima o tirou de uma enrascada. O que aconteceu? — Um simples acidente, como a srta. Anbel explicou. — Não me engana, embora Alameda tenha engolido a história de Diana. — E que ele tente me enfrentar. Nada me dará maior prazer do que socá-lo de novo. — Ainda bem que não machucou o sujeito. Mas ouvi dizer que lorde Alameda é excelente atirador, e ao contrário de você, Tyrell, poderá preferir não usar as mãos em uma luta limpa, e enfiar uma bala no meio de sua testa. — Não ousaria — murmurou Wesmont, ajeitando as mangas do paletó. — E por que não? — Anbel por sua vez ajeitou a gravata. — Todos sabem que Alameda é imprevisível. Alguns até o julgam um louco. — E acha que me interesso por sua sanidade mental? Estava lançando olhares indecentes para ela. Precisava de uma lição. — É claro — sorriu Robert com malícia. — Já que é um homem tão controlado, é a pessoa certa para doutrinar o conde. Sim, atirar um cavalheiro no chão no meio de um baile acontece todos os dias na aristocracia londrina — acrescentou com ironia. — Será o perfeito professor para... Mas um rugido ameaçador saiu da garganta de Wesmont, fazendo o amigo se calar de modo prudente. Do outro lado do salão, o notório lorde Alameda abandonara Fiona, deixando-a se sentar ao lado da tia. Honore inclinou-se e sussurrou ao ouvido da sobrinha: — Veja como Marcus flerta com Sally Jersey. E olhe como a moça fica corada e se abana com o leque. — Continuou a observar o casal de modo disfarçado, e logo respirou fundo, satisfeita. — Olhe só! Está bajulando a coitada que mal cabe em si de contente, e vai acabar roxa de tanto corar. Em seguida os dois irão

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin procurar algum canto escuro. — Encostou-se na cadeira e suspirou. — Tudo para restaurar seu amor-próprio ferido depois de ter sido atirado ao chão por seu admirador. Ninguém notou, mas vi o que seu Wesmont fez. — Lorde Wesmont não é meu admirador! — Bem, também não é indiferente a seu respeito, minha querida. E claro que não aprovo um homem disposto a dar um soco em meu enteado diante da sociedade, entretanto... — A condessa abafou uma risada. — Também não consigo deixar de apreciá-lo por isso. Lorde Wesmont tem coragem, sem dúvida. — Ergueu a cabeça como uma raposa farejando o ar. — E, se não estou enganada, está vindo neste momento em nossa direção. Alarmada, Fiona fitou Tyrell de olhos arregalados. Viu-o cruzar a sala em sua direção com a conhecida expressão de desafio contrastando com o sorriso angelical. Como se houvesse um prego na cadeira, ela se levantou com brusquidão. — Peço licença, minha tia. Devo ir... arrumar os babados da saia. — Seu vestido não tem babados. Fiona olhou para os lados de maneira desesperada. — É a saia da srta. Haversburg. Rasgou-a e preciso lhe dar uma ajuda. Já! Honore ergueu os olhos para o alto como se pedisse paciência, e murmurou à sobrinha que partia. — Covarde. — Prefiro chamar de prudência, milady — replicou Fiona no mesmo tom. Relanceou um olhar para trás, e quase correu até Maria. Segurou-a pelo cotovelo, fez uma rápida reverência para lady Haversburg, e saiu com a amiga em direção à uma porta. Voltou a olhar sobre o ombro, e viu que Tyrell mudara de rumo, seguindo-a. — Srta. Hawthorn... Ignorou o chamado e continuou a apressar a pobre Maria que, entretanto, acenou para o lorde e caminhou mais devagar. Tyrell agarrou o braço de Fiona, fazendo-a parar. Enfurecida, a jovem o fitou. Como ousava interceptar seu caminho de modo tão rude? — Não tente me evitar, Fiona. Assim dizendo, ele inclinou a cabeça para Maria, e voltou a se concentrar no objeto de suas preocupações. — Não estou tentando nada! — Claro que está! Pelo menos me deve a cortesia de algumas palavras. Afinal sou seu vizinho, amigo de seu pai, e antes de ver seu olhar feroz, julguei que também fosse minha amiga. — O que entende como amiga? Nunca poderia imaginar que uma pessoa de minhas relações iria derrubar um dançarino no meio do salão. Por falar nisso, está fazendo coisas que não considero agradáveis em um amigo. — Respirou fundo. — Como ousa me passar um sermão sobre cortesia? Com um repelão, afastou-se de Tyrell, que se aprumou. — Não espero que entenda meus motivos e não me daria ao trabalho de procurá-la se não fosse pelo fato de que nos últimos tempos ninguém lhe dá bons conselhos. Desejo alertá-la sobre as companhias que tem. Fiona ficou de boca aberta, mas logo percebeu e tratou de fechá-la. — Isso é demais, lorde Wesmont! Já lhe disse que não me deve nada e que não tem nenhuma responsabilidade a meu respeito. Só lhe peço que nunca mais derrube meus amigos no chão. — Não creio que Alameda seja seu amigo, minha cara. — Voltou-se como a

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin pedir desculpas para a srta. Haversburg. — Isso é muito constrangedor, Fiona. Será melhor que lhe faça uma visita amanhã para discutirmos essa situação em particular. — Não será necessário, milorde. Estou muito satisfeita com minha... situação. Agora, se me der licença... Voltou-se para ir embora, mas Tyrell agarrou-a pelo ombro nu. A sensação dos dedos fortes tocando sua pele provocou uma intensa onda de calor que a possuiu dos pés à cabeça. Fiona não conseguia respirar nem se mover, e com grande esforço virou-se para encará-lo. Então percebeu com toda a clareza que não fora a única a se perturbar com o toque íntimo. Hesitante, Tyrell deixou a mão cair, e quando falou sua voz era suave. — Gostaria de ter a oportunidade de explicar. Se me permite, irei visitá-la. Fiona mordeu o lábio, ansiando pelo toque másculo outra vez, mas sabendo que isso era impossível. Lembrou-se de como poderia ser doloroso se aproximar outra vez de lorde Wesmont e ficar decepcionada. Ergueu o queixo, desafiando-o. — Estou surpresa, milorde — disse, forçando uma voz desdém. — Está de fato pedindo minha permissão para ir a Alison Hall? Porque estou convencida que costuma fazer o que bem lhe agrada, sem pedir licença a ninguém. Tyrell voltou a se empertigar, muito irritado, mas um brilho de desafio surgiu em seus olhos. — Muito bem, como quiser. É do meu gosto visitá-la amanhã, às quatro horas da tarde, para darmos um passeio no parque. Fez um cumprimento breve para as duas senhoritas, e rodou nos calcanhares, desaparecendo entre os demais convidados. Fiona tornou a abrir a boca, atônita com seu procedimento. Bateu com o pé no chão, demonstrando-se enfurecida, agarrou o braço da srta. Haversburg, e conduziu-a às pressas para a saleta destinada às damas. Maria piscou os olhos diversas vezes, espantada com a amiga. — Srta. Hawthorn, devo declarar que seu diálogo com lorde Wesmont me deixou confusa e estupefata. — Não foi a única — replicou Fiona entre os dentes semi-cerrados. Na manhã seguinte, Fiona sentava-se à mesa do café com sua tia. Na verdade já não era tão cedo, pois o carrilhão no vestíbulo soou doze vezes seguidas. De qualquer modo, fizeram a primeira refeição juntas, com um companheirismo silencioso, até que o mordomo Cairn apresentou à condessa uma salva de prata recheada de correspondências. — Meu Deus! Quantas cartas! — exclamou a dona da casa. Mas não parecia tão aborrecida como demonstrara, pois logo tratou de abrir o primeiro envelope com animação. Estava habituada a receber muitos convites para reuniões informais à noite, nas residências das amigas. Qualquer evento estava fadado a ser um sucesso se as pessoas soubessem que a conhecida condessa Alameda iria comparecer. Honore leu o primeiro convite. Esticou o braço segurando o cartão, e semicerrou os olhos para ler melhor Com um resmungo, depositou a missiva sobre a mesa, e tratou de abrir a próxima. Leu e voltou a colocar de lado. De cenho franzido, ergueu o rosto para Fiona. — Algum problema, minha tia? Honore arqueou as sobrancelhas e olhou para o teto. — Sabia querida, que posso ver uma mosca no forro a esta distância, mas não consigo ler com clareza a menos de um metro dos olhos?

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Deve ser muito inconveniente. Gostaria que lesse a correspondência para milady? — Céus! Não! Ainda não estou senil. — Claro que não. Apenas pensei que seria mais prático... — Seria melhor se pudesse ler minha própria correspondência sozinha, isso sim é prático e conveniente. Assim dizendo, rasgou mais um envelope e procedeu com o mesmo ritual. Uma rápida lida e o descarte. Então pegou um maço de cartas, leu rapidamente o nome dos remetentes, e escolheu uma. Passou os dedos sobre o sinete azul e rompeu-o. Era um convite, e sorriu de modo sardônico, deixando o cartão escapar dos dedos. i Contemplou Fiona com a testa franzida e murmurou: — Que extraordinário! Fiona colocou um pedaço de pão na boca, determinada a não perguntar nada, porém a tia não a deixou na expectativa por muito tempo. — Parece, meu bem, que já não precisa de minha proteção. Fiona logo imaginou o que fizera de errado dessa vez, pois era óbvio que a tia estava aborrecida. De repente a torrada adquiriu o gosto de palha seca, e sentiu dificuldade em engolir. Quando por fim pôde limpar a garganta, aventurou-se. — Não entendi, milady. Sem responder de imediato, Honore puxou o prato para perto de si outra vez, e começou a comer. — Não entendeu mesmo? — Sem pressa começou a descascar uma laranja. — Bem, então deixe-me explicar. A aristocracia acabou de coroá-la como sua mais nova atração. — Relanceou um breve olhar para a correspondência. — A julgar por estas cartas, cada anfitriã de Londres espera contar com sua presença em seu próximo baile. E consegue adivinhar por quê? Fiona balançou a cabeça em negativa, e apoiou o garfo no prato, já sem apetite. — Creio que a resposta é óbvia, querida sobrinha. E seja lá que defeito possua, não é estúpida. Será que não consegue adivinhar? Fiona respirou fundo. — Acho que se sou convidada para tantos eventos é por causa de meu relacionamento com a senhora, minha tia. Não consigo imaginar outro motivo para isso. A resposta pareceu amolecer o coração de Honore, e seu tom de voz adquiriu timbres menos sarcásticos. — Sim, pensava o mesmo até ontem à noite. Mas no momento parece que é você a figura no centro do palco. Sem dúvida todos rogam por sua presença, esperando que compareça e crie um de seus famosos incidentes para alegrar a festa. — Não pode ser! — Fiona arregalou os olhos, pasma. — Deve estar enganada, minha tia! Ninguém pode querer um desastre em sua festa! Honore resmungou. — Como conhece pouco o mundo em que vivemos, minha cara! Considere o baile de lady Sefton na noite passada. Pode mencionar o fato mais interessante que aconteceu lá? Nem precisa me responder. Todos sabem que foi o tombo de Marcus no meio da dança. — Sorriu como uma professora que explicasse à aluna o movimento da terra em volta do sol. — Não interessa se foi Wesmont quem o fez escorregar, você estava dançando com meu enteado. Junte isso à história do tombo do príncipe regente, parece que a aristocracia passou a considerá-la o foco

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin de acontecimentos muito interessantes. Fiona juntou as mãos no regaço e apertou os dentes. Aquilo era outra das tolices de sua tia, refletiu. Parte de sua agradável insanidade, sem dúvida! Honore riu ao ver a expressão no rosto da sobrinha, e continuou a descascar sua laranja com toda a calma. — Pense, Fiona. Se comparecer à festa de Louise Haversburg uma catástrofe poderá ocorrer, e tornará o evento o mais comentado da semana. Louise será a anfitriã do momento. Fiona franziu a testa. — Ridículo, minha tia! É difícil imaginar que alguém deseje que algo dê errado. Afora o fato de humilhar ou ridicularizar um dos convidados, o que aconteceria se alguém se machucasse de verdade ou, pior ainda, morresse? Honore partiu a laranja com cuidado, levou um pedaço à boca, e limpou os cantos dos lábios com o guardanapo de linho. — Isso não parece incomodar ninguém. — Aípontou com a faca o convite com o sinete azul — Veja este. A condessa Lieven insiste que compareça ao seu baile. E a festa será daqui a um mês! — Ergueu o cartão como se fosse um troféu. — Creio, minha cara, que a condessa escreveu este cartão assim que chegou em casa, após o baile dos Sefton. — Fitou a pilha ainda alta ao seu lado. — Todos devem ter procedido do mesmo modo. Que extraordinário! Ninguém quis esperar um dia sequer. — Bem... — Fiona ergueu o queixo em desafio. — Não irei! Teriam feito melhor se tivessem ido logo para a cama e poupado a tinta e o papel. Recuso-me a ser o bobo da corte para essa gente! — Tolice! Que diferença faz? Pense na srta. Phoebe Ritwater. Não é convidada para todos os lugares apenas porque é bonita? Sem dúvida isso não acontece devido à sua brilhante conversação. — Fez um muxoxo de desdém. — Assim que abre a boca torna-se um tédio. Mas é um belo ornamento, por isso recebe centenas de convites, apenas por ser um bonito espetáculo para os olhos das pessoas, como se fosse um magnífico arranjo de flores. Fiona voltou a balançar a cabeça, atônita com a lógica da tia. — Pensei que fosse pelo fato de ser bem relacionada — murmurou. — Claro que não, menina! Faz idéia de quantas moças bem relacionadas ficam sentadas em casa recebendo apenas um ou dois convites durante toda a temporada? Honore ergueu uma minúscula sineta de prata e sacudiu-a no ar. O mordomo apareceu como em um passe de mágica. — Mande um lacaio procurar monsieur Renellé agora mesmo. Quero que esteja aqui esta tarde, sem falta. Avise que não fiquei satisfeita com a cor de cabelos que me impingiu. Diga-lhe que pareço mais velha que a Rainha Mãe. Cabelos prateados! Ora essa! Estão grisalhos, isso sim! Quero algo mais jovial e próprio para minha idade. Os lábios de Cairn se franziram muito de leve, mas sua voz permaneceu séria. — Muito bem, milady. Com um resmungo, Honore afastou o resto da correspondência de sua frente. Abriu o jornal e terminou o café em silêncio. Nessa mesma tarde, Maria Haversburg veio fazer uma visita e sentou-se, insegura, no sofá de lady Alameda. Sua mãe que a acompanhava, deu-lhe um tapinha no joelho para animá-la.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Fique quieta — murmurou, olhando também com insegurança para o relógio sobre a lareira. — Talvez tenha sido um erro vir sem avisar, pois a condessa deve estar muito ocupada. Será melhor voltar em outra ocasião... Fiona sacudiu a cabeça em negativa. — Claro que não! Tenho certeza de que minha tia aparecerá em um minuto. Ficaria muito triste se soubesse que partiram sem vê-la. — Ergueu um prato de porcelana para as visitas. — Aceitam mais um biscoito? —Bem, só mais um — disse a mãe. — Sempre digo que Honore tem muita sorte com sua cozinheira. Entendeu a mão e pegou o maior biscoito. Quando Maria fez um gesto na direção do prato, afastou-a. — Nada disso! Já comeu bastante, querida. Precisa tomar conta de seu peso. Fiona sorriu com simpatia para a amiga, e relanceou um olhar para o relógio. Maria abriu a boca para falar, e o odor de seus dentes alcançou a sobrinha de lady Alameda, que precisou se conter para não recuar na poltrona. — Srta. Hawthorn, não ia passear com lorde Wesmont esta tarde? — Não tenho certeza. i Sorriu de novo, agindo como se o assunto não tivesse a menor importância. — Mas o lorde não disse que viria buscá-la às quatro horas? — Disse? Não me lembro. Lorde Wesmont está sempre brincando, e nunca se sabe quando fala a sério. Fiona mordeu o lábio, esperando que suas palavras soassem sinceras. — Estranho! Pareceu-me um homem tão sério! Jamais diria que é de brincadeiras. — Creio que Maria tem razão — comentou a mãe, abanando-se com força para dissipar o odor de mau hálito da filha. — Ontem no baile tinha sempre um ar muito duro e severo, como se estivesse contendo o mau humor. Nesse instante, o mordomo apareceu à porta e pigarreou com discrição. Às suas costas surgiu o tema da conversa das senhoras, como se fosse um fantasma que tivesse se materializado. — Lorde Wesmont — anunciou Cairn com toda a pompa. As damas se voltaram para ver o objeto de sua discussão parado na soleira da porta e vestido com extrema elegância para a tarde. — Entretanto, não deixa de ser muito atraente — murmurou lady Haversburg sem disfarçar a admiração, dando um cutucão discreto na filha, e sem parecer nem um pouco constrangida pelo comentário que acabara de fazer. As sobrancelhas grossas e escuras de Tyrell não estavam franzidas como de costume. Seus olhos se conservavam semicerrados e os lábios voltados para cima em uma espécie de sorriso irônico. Fiona se levantou, lutando para controlar a respiração e as pulsações do coração inquieto. — Lorde Wesmont, que surpresa! Tyrell segurou-lhe a mão e falou em tom muito baixo, de modo a só ser ouvido por ela. — Sim. Pensou que estava brincando quando disse que viria às quatro horas. Ignorando o comentário sardônico que revelava que ele ouvira a conversa das damas, tratou de fazer as apresentações. O nobre cumprimentou de maneira polida, e Fiona notou que não se afastava com desprezo da pobre Maria, embora tivesse sentido o odor de sua boca quando a jovem murmurou uma saudação.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Isso a deixou satisfeita e aliviada por ver que Tyrell tinha compaixão, mesmo quando Maria voltou a falar, revelando os dentes destruídos. Honore espantou a todos ao entrar de modo impetuoso na sala. A sobrinha ficou de boca aberta, ao ver que os cabelos da tia estavam louros, mas não em um tom dourado suave, porém da cor do queijo prato, quase alaranjados. Entretanto por mais chocante que fosse esse detalhe, o vestido que a dama usava era o real escândalo, de musselina verde e muito transparente. Embora elegante, o decote expunha mais do que seria prudente. A única coisa que cobria os seios perfeitos de lady Alameda era um bordado de folhas em um tom mais claro sobre o verde-escuro, e que se estendia da saia até os ombros. As folhas pareciam quase reais, e ocultavam, de maneira artística, os atributos físicos da dama. Lady Haversburg se levantou para saudar a dona da casa, enquanto Maria, ao contrário, recostava-se no sofá, atônita, ante a visão da condessa, até que a mãe lhe deu um leve chute no tornozelo, que a fez se recompor e levantar também. Honore se adiantou com segurança, agarrou lady Haversburg pelos ombros e abraçou-a com efusão. — Louise, querida! Maravilhosa surpresa! Não sabia que estavam me esperando. — Virou-se para a sobrinha. — Que vergonha, Fiona! Deveria ter-me avisado que tínhamos visitas. Fiona piscou diversas vezes. Não mandara o mordomo avisar a condessa? E lady Haversburg a vira fazer isso. Porém não teve tempo de abrir a boca, porque a tia continuou a tagarelar. — Ah! E aqui está nosso lorde Wesmont! — Adiantou-se a parou a poucos centímetros de Tyrell. — Que bom nos visitar. Fiona enrubesceu, pois da distância em que se encontrava e com sua altura, o nobre devia ter uma visão excelente dos seios de Honore. Sentindo o rosto em brasa, falou em um tom de comando que não lhe era habitual. — Está frio hoje, minha tia. Vou mandar buscar seu xale para que não pegue um resfriado. — Tolice! — Honore continuou parada de modo coquete na frente de Tyrell. — É um dia bastante quente, não acha, milorde? — Bastante — replicou Tyrell. A condessa atirou a cabeça para trás e riu. Lady Haversburg fez um movimento na direção de Maria, como se desejasse proteger a filha de alguma tirada maliciosa, mas logo se recompôs. — Honore, querida, vim aqui com o propósito de pedir seu conselho sobre o próximo baile de Maria, mas só agora percebi como é tarde. Estávamos conversando com a srta. Fiona e esquecemos da hora. Precisamos partir, se nos der licença. — Claro — replicou Honore sem tirar os olhos de Tyrell. — Venha, Maria. Louise agarrou a jovem pelo braço, e tirou-a da sala. Fiona tentou acompanhá-las até a porta, mas mãe e filha pareciam estar correndo enquanto se precipitavam escadas abaixo. Ouviu lady Haversburg murmurar: — Que despudorada! E a filha perguntar com inocência: — O que foi que disse, mamãe? — Nada, querida. Vamos embora!

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Fiona cruzou os braços sobre o peito em atitude severa. Sua tia estava exagerando, e alguém precisava contê-la, refletiu de maneira decidida. Retornou à sala no momento em que Honore apontava para um pacote que Tyrell segurava debaixo do braço. — O que é isso — perguntou como uma criança curiosa. — Um presente para nós? — Mais ou menos — murmurou Wesmont, relanceando um olhar para Fiona. — Que maravilha! — Honore pressionou um dedo sobre o queixo. — Deixeme adivinhar. Creio que é um livro. — Não, lady Alameda. — Honore franziu as sobrancelhas. — Que misterioso! O que pode ser? Por certo não são chocolates embrulhados nesse papel marrom comum. — Nada tão gracioso. — Não? Bem, então não sei. Mas não deve me deixar assim curiosa, milorde. — Deslizou a mão nas folhas sobre o colo e depois para o braço de Tyrell, de modo sedutor. — Vamos lá, milorde. Fiona teve ímpetos de atirar um lençol sobre os ombros da condessa e arrastá-la escada abaixo, mas conteve-se e observou Tyrell conduzir sua tia até uma poltrona. — Talvez milady deseje se sentar primeiro — disse Wesmont. — Infelizmente o que trago não é muito agradável. Honore deixou-se cair no assento sem a menor cerimonia. As bordas das folhas bordadas estremeceram de modo perigoso, e Fiona prendeu a respiração com medo de que caíssem. — Muito bem — disse a condessa, repousando as mãos sobre o regaço. — Dê-me. Estou preparada para qualquer surpresa desagradável. Tyrell entregou-lhe o pacote e Honore desamarrou os barbantes, revelando um rolo de cartazes. Ergueu o primeiro, e abafou uma exclamação. — Oh! É uma caricatura de Cruikshank! Como é talentoso! Parecia extasiada, e Tyrell franziu o cenho. — Sim, deve ser, mas olhe bem de perto, condessa. Observe as identidades dos personagens. Honore semicerrou os olhos para ver melhor, e então percebeu sua própria caricatura com Marcus sob suas saias, tentando agarrar Fiona, e o príncipe George pairando no ar como uma bola gigantesca. Franziu os lábios, resmungou, cocou o queixo, e por fim explodiu em uma sonora gargalhada. Lágrimas começaram a rolar por suas faces, e seu riso invadiu cada canto da casa. Mattie entrou na sala, assustada. Seu avental estava coberto de manchas de sangue de frango e farinha, e empunhava a faca de cozinha como se fosse uma espada. Passando o olhar pelo cômodo, deteve-se em Honore, que se dobrava na poltrona, rindo de modo histérico. Com seus cabelos vermelhos que lhe davam um ar incomum, a criada parou na frente de lorde Wesmont e sacudiu a faca sob seu nariz. — Bandido! O que fez com minha queridinha? Tyrell ergue as mãos, tentando se proteger da gorducha pequena e furiosa. — Nada, senhora, asseguro-lhe. — Voltou-se para Honore. — Lady Alameda, por favor, chame seu cão de guarda. — É claro — replicou Honore coma voz embargada pelo riso. — Deixe lorde Wesmont em paz, Mattie. Tentando recuperar o fôlego, a dama fez um gesto para a ex-babá e,

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin enxugando as lágrimas do rosto, murmurou: — Olhe para isso. Assim dizendo, estendeu um dos cartazes na direção de Mattie, que relanceou primeiro um olhar de suspeita para os demais presentes. Por fim examinou a caricatura. — Meu Deus! O que é isso? Não pode deixar tal ofensa sem resposta, minha querida! Quem fez isso deve ser chicoteado! Honore arrancou o cartaz das mãos da criada. — Bobagem! É apenas um motivo para boas risadas. Nesse instante, Marcus entrou na sala, vestindo apenas um roupão de seda sobre a calça preta. Tyrell enrijeceu-se ao vê-lo se aproximar de Fiona sem cerimônia, e beijá-la no rosto. — Bom dia, minha cara — saudou lorde Alameda, relanceando um olhar displicente em torno. — Qual o motivo de tanta comoção? Fiona foi quem respondeu de modo seco. — Já estamos no meio da tarde, Marcus, portanto boa tarde, e não faço a menor idéia do motivo da comoção. Parece que lorde Wesmont está divertindo minha tia seminua com uma caricatura, e... Ora! Tire suas próprias conclusões! Assim dizendo, Fiona acenou com desgosto para sua guardiã. Honore ergueu o rosto e sorriu para Tyrell. — Meu caro lorde Wesmont, estava enganado se pensou que iria me deixar contrariada, pois achei isso muito divertido. Venha cá, Marcus. Veja que cartaz engraçado! Fazendo questão de ignorar a presença de Tyrell, o enteado se aproximou de lady Alameda e tomou-lhe o desenho da mão. Retirou um monóculo do bolso do roupão e examinou-o com atenção. — Extraordinário! — exclamou. — Posso ficar com uma cópia? — Não! Tyrell arrancou-lhe o cartaz, fazendo Honore rir de novo. — Ora! Mas é muito engraçado, Wesmont! Onde o conseguiu? — Estava exposto na vitrine da Laurie & Whittle's, na rua Fleet. E devo dizer-lhe que não creio que o resto da sociedade o considerará tão engraçado quando milady. Não só coloca a pessoa da srta. Hawthorn sob uma luz ridícula, mas também a senhora. Por precaução adquiri todas as cópias, e o sr. Whittle me garantiu que irá destruir a matriz. — Respirou fundo. — Temos a esperança de evitar um escândalo, porém não duvido que pelo menos algumas cópias foram vendias antes que chegassem à loja. — Comprou todas que estavam disponíveis? Para proteger nossa reputação? Como é antiquado, milorde! A aristocracia londrina não dá atenção a essas coisas. Ao contrário, a metade estava presente quando o incidente ocorreu — Apontou para Fiona. — Ali está a atração principal da elite. Esse cartaz apenas aumentará seu prestígio. — Não consigo seguir seu raciocínio, milady. — Compreendo. Bem, deixarei que Fiona lhe explique. — Ótimo, porque vim para levar a srta. Hawthorn para um passeio com sua permissão, milady. Honore levantou-se de supetão, fazendo as folhas balançarem de novo de maneira perigosa. Mattie, que continuava postada a um canto com os braços cruzados sobre o peito como se fosse um general, conteve um grito, e sua expressão tornou-se severa como a de uma mãe diante da filha travessa.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Sem parecer notar, Honore colocou a mão sobre o braço de Tyrell. — Como posso saber se devo confiar em milorde para escoltar minha sobrinha? Ouvi coisas alarmantes a seu respeito. — Garanto-lhe, condessa... — Não se preocupe. — Lady Alameda fez um gesto que dispensava as explicações, e esfregou as têmporas, os olhos fechados. — Pode ir e leve Fiona, Wesmont. Tenho certeza de que esse passeio será muito sério e tedioso. Voltou a fazer um gesto de dispensa, como se não desejasse ser mais incomodada. Tyrell inclinou a cabeça com brusquidão, cruzou a sala e ofereceu o braço a Fiona, que não sabia se deveria acompanhá-lo ou não. Depois que o vira olhar para o decote da tia, como podia acreditar que desejava passear em sua companhia?, pensou, ofendida. Enquanto refletia sobre a resposta que deveria dar, ouviu Mattie ordenar que Honore se cobrisse. A criada retirou o avental, e ofereceu-o à condessa. — Use isso, menina — disse sem cerimônia. Honore ergueu o queixo com ar de desafio. — Tire essa coisa malcheirosa da minha frente! Uso o que bem entendo e ninguém tem nada com isso. Mattie começou a bufar como um touro furioso. As duas pareciam prestes a se engalfinhar. Então Fiona concluiu que seria mais prudente sair de casa com Tyrell. Sem falar, colocou a mão sobre o braço que ele lhe oferecia, e fez um gesto em direção da porta. Quase haviam conseguido escapar, quando Honore chamou. — Lorde Wesmont, darei uma festa informal na quinta-feira à noite. Venha, porque será muito educativo para milorde. Seu riso ecoou no corredor, atingindo a escada onde Tyrell e Fiona já se encontravam. — Sim, condessa, obrigado — gritou de volta. Em seguida ouviram os gritos de Mattie. — O que pretende usando um vestido escandaloso como esse? Está seminua! — Escutaram o rumor de tecido sendo rasgado. — Desculpe, minha senhora! Foi sem querer. A gargalhada irônica de Marcus ecoou, e logo em seguida a voz enfurecida de Honore. — Saia daqui, rapaz! — Ouviu minha senhora — bradou Mattie. — E agora, querida, coloque o avental nos ombros e vamos para seu quarto mudar de roupa. O que fez com seus cabelos? Parecem um queijo gigante. — Não pode me tratar assim, Mattie! Dê-me a faca, sua intrometida! Sou uma mulher adulta, e uso o que quiser! Os gritos da condessa eram tão altos que Fiona estremeceu. Como a um comando mudo, o par desceu as escadas correndo, mas mesmo assim ouviram a resposta de Mattie. — Não enquanto viver sob o mesmo teto com você! — Mas é o meu teto! Mora na minha casa! Alcançando o vestíbulo, Tyrell aceitou o chapéu e as luvas que o mordomo lhe estendia com toda a calma, como se não estivesse ouvindo a briga feroz no outro andar. Saíram às pressas, e o lorde ajudou Fiona a subir na carruagem leve puxada por dois cavalos. Chicoteou os animais, e partiram a galope.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Passaram-se alguns segundos até que Wesmont fizesse os cavalos trotarem com calma. Olhou para Fiona que correspondeu, e de repente ambos começaram a rir. Tyrell abanou a cabeça como se desejasse pôr os pensamentos em ordem. — Parece que acabei de sair de um hospício — comentou. Fiona sorriu como a pedir desculpas. — Sim, minha tia é um pouco excêntrica. E imprevisível. — Está sendo muito bondosa. A condessa é louca! — Fiona aquiesceu. — Pode ser, mas às vezes é muito compreensiva, bondosa e maternal. — Maternal? — repetiu Tyrell com espanto. — Não acredito. — Mas é verdade. Às vezes pode ser muito carinhosa. Sabia que mandou remodelar um apartamento da casa antes mesmo de saber se viria com ela a Londres? E parece adivinhar quais as cores que me caem bem. — Espantoso! — replicou Tyrell com ironia. — Não me acredita e não posso culpá-lo por isso. Lady Alameda pode ser meiga e amorosa em um minuto para em seguida se tornar perigosa e irracional. Lamento que hoje tenha visto apenas uma faceta de sua personalidade, que não foi um bom exemplo, milorde. — Vou acreditar em suas palavras. Entretanto uma pessoa tão intempestiva e imprevisível não é boa influência. E a briga que teve com a criada! Sua tia não é uma guardiã recomendável para uma jovem debutante, e não me sinto seguro ao vê-la morando em sua casa. Fiona cruzou os braços e respirou fundo. — Parece nunca estar satisfeito comigo, milorde. Só sei desapontá-lo. — Não compreendeu o que quis dizer... — Creio que não. Mas não deve se preocupar comigo. Afinal, não me tornei mais perigosa ao lado de minha tia do que na beira do lago. Os maxilares de Tyrell se cerraram com força. — Já pedi desculpas, Fiona. Creia que lamento muito meu comportamento naquele dia. Ela apertou os dedos no assento de couro da carruagem até se acalmar. Então fitou Tyrell e as palavras brotaram de seus lábios sem que conseguisse se conter. — A qual comportamento se refere, milorde? O fato de ter me assustado? Ou talvez por ter me beijado? Ou, quem sabe, por causa da humilhação que me infligiu em seguida? Logo se arrependeu do que dissera, e aprumou-se no assento, relanceando um olhar para o lacaio que seguia atrás. Percebendo, Tyrell murmurou: — Não precisa se preocupar com meu criado. É surdo como uma porta. — Virou-se para trás. — Certo, Kip? — Certo, milorde. Desde que nasci. Ante tais palavras Fiona sorriu, contrafeita. Tyrell segurou as rédeas com uma das mãos e com a outra apertou o braço de Fiona. — Lamento ter dito aquelas coisas terríveis naquela tarde no lago. Para ser franco, também não compreendi minha reação. Ignoro por que agi como um louco. Não tenho desculpas para meu comportamento, e só espero que me desculpe. Baixando a guarda, fitou-a com muito carinho. Raios de sol brilhavam nos olhos de Fiona, e suas faces estavam rosadas como pétalas de flores. Parecia questioná-lo sem nada dizer, e isso o fez sorrir. Está me enfeitiçando de novo, pensou. Atraindo-me como um ímã. Sem

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin querer, apertou-lhe os dedos, e seu olhar passeou de suas faces para os lábios vermelhos e o colo elegante. Que homem complicado, pensava Fiona por seu lado. É tão imprevisível como minha tia. Mas, por favor, não retire sua mão. Adoro sentir o calor de sua pele. Parece que estou no Paraíso... Nesse exato momento, um faetonte descontrolado surgiu da esquina, e investiu sobre a carruagem de lorde Wesmont, que retirou a mão de Fiona e segurou as rédeas com força, conseguindo se afastar do abalroamento no último segundo. Kip assobiou. — Bom trabalho, senhor. — É melhor contornarmos o parque, longe dessas pessoas que não sabem conduzir seus veículos — comentou o lorde. Voltou a franzir as sobrancelhas com ar carrancudo, enviando olhares para a jovem sentada ao seu lado. Por que sempre tinha reações tão violentas quando estava perto de Fiona? Seu corpo parecia não ter controle, e tratou de se concentrar nos cavalos. Após uma volta no parque, virou a carruagem na direção de Alison Hall. — Milorde — disse Fiona —, está com sua habitual expressão de poucos amigos. Tyrell sorriu de leve. — Sim, a expressão que, segundo disse lady Haversburg, me dá um ar de velho mal-humorado e rabugento. Sisudo, disse a dama. — Não creio que usou a palavra velho — comentou Fiona prendendo o riso. — Não? Bem, isso é um alívio. — Tyrell soltou uma risada. — Mas lady Haversburg tem razão. Sou um rabugento. — Sei disso muito bem, milorde. — Sabe? Entretanto preciso irritá-la mais um pouco, Fiona. É necessário que deixe a casa de sua tia. Não só é uma dama de caráter questionável, mas viver sob o mesmo teto com lorde Alameda... Bem, é muito arriscado. — O que tem contra Marcus? Notou que Tyrell franzia a testa, e isso a fez se sentir feliz. Estaria com ciúme? — Não é confiável, só isso. Uma jovem não deveria ficar ao seu lado nunca. — Mas Marcus tem sido muito educado e atencioso comigo. Se não fosse por ele tomaria chá de cadeira em vários bailes. Tyrell resmungou. — Não acredito que precise dele para dançar nos bailes. Todos a disputam. Mas vejo que se tratam pelo primeiro nome. — Claro! Marcus é quase meu primo. — De qualquer modo, não deve ficar em sua companhia. Não passa de um libertino, malandro e aventureiro! Fiona fingiu-se ofendida, mas no íntimo estava muito satisfeita com a reação dele. Começava a achar a hostilidade de Tyrell em relação a Marcus muito engraçada. — Francamente, milorde... Tyrell estava muito ocupado guiando os cavalos, e não percebeu o tom irônico. — Digo-lhe que não é uma pessoa confiável, Acabou de me revelar que lorde Alameda é atencioso. Até que ponto? — Não deve se importar com essas coisas, milorde. Como já lhe disse, não

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin precisa se preocupar comigo. — Preciso, sim! Sou amigo de seu pai e seu vizinho. Estaria negligenciando meus deveres se não procurasse vê-la bem e em segurança. — Mentiroso! Acha que sou uma tola que não sabe se cuidar. Bem, não sou tão ingênua como pensam por aí! Tyrell arqueou as sobrancelhas em dúvida. — Não é? Lembro-me de tê-la levado a uma situação muito comprometedora, ou já se esqueceu? — Que injustiça, lorde Wesmont! Sabe muito bem que me enganou. — Sim, e é esse o ponto. Foi fácil ludibriá-la e, se não me falha a memória, é muito suscetível aos beijos masculinos Não me lembro de que tenha resistido muito, e... — Pare! — gritou Fiona, sabendo que estava vermelha como um pimentão. — Está passando dos limites, milorde! Acha que deixaria qualquer um me beijar daquele modo? Sei que fiz papel de tola e me deixei envolver, mas aquele dia... — Enxugou lágrimas salgadas dos olhos. — Foi diferente. Tyrell sentiu um aperto no estômago e seu coração pareceu sair da insensibilidade. Segurou a mão de Fiona, que se afastou. — Fiz de novo, não? Disse tudo que não deveria dizer. — Fiona aquiesceu, enxugando as lágrimas. Com gesto súbito, Tyrell enlaçou-a pela cintura, fazendo com que se aproximasse. — Ouça, Fiona. Não pretendo ser cruel. Não sei o que aconteceu comigo naquele dia no lago. Estava tão linda sob a luz do sol e o reflexo das águas que perdi a cabeça e agi como um louco. Fui um cafajeste e tirei partido de sua inocência. Talvez por isso receie que Alameda, um patife de verdade, tente se aproveitar de você. Compreende o que quero dizer? Fiona o fitou com seus olhos escuros cheios de meiguice e com tanta confiança que o fez derreter-se por dentro. Tyrell sentiu-se atraído pela boca rosada e fresca, e tratou de se controlar. Preciso parar com essa tolice!, pensou, irritado. Com gesto brusco retirou a mão da cintura fina, e chicoteou os cavalos, fazendo-os sair a galope outra vez. Fiona entrelaçou os dedos. — Se deixar Alison Hall para onde irei? Deve ser um alívio para todos em Timtree Corners não me terem por perto. Para ser sincera, sou mais feliz vivendo com minha tia do que em minha própria casa. Lady Alameda pode ser excêntrica, mas jamais me acusa de azarada ou desastrada. Não acha que sou amaldiçoada, e mesmo que Marcus seja um malandro como diz, milorde, minha tia o controla muito bem. Nada acontece em Alison Hall sem sua aprovação. — Suspirou. — Portanto, como pode perceber, apesar de ingênua sinto-me em segurança com lady Alameda. Tyrell continuou com a expressão soturna. — Compreendo — resmungou. Mas na verdade achava que Fiona estava errada, apesar de nada poder fazer a respeito no momento. Deteve a carruagem na frente da casa da condessa e saltou. Ajudou Fiona a descer, mas logo se afastou, evitando cair na armadilha do perfume delicioso que emanava de seu corpo, das covinhas que surgiam em seu rosto a cada vez que sorria, ou da cintura delgada que rodeara para fazê-la descer da carruagem. Com determinação, deu um passo atrás, fugindo da tentação, e isso fez Fiona imaginar se desenvolvera uma espécie de aversão a seu respeito.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Estou farta das atitudes misteriosas de lorde Wesmont!, pensou. Já agüentei demais suas mudanças bruscas de humor, uma hora atencioso, outra hora indiferente! No momento gostaria de lhe dar um soco no queixo, mas tratou de dar meiavolta e subir a escada de Alison Hall. A porta se abriu e o mordomo surgiu, vigilante como sempre. Lorde Wesmont tirou o chapéu em um cumprimento. — Verei você na festa de sua tia, na quinta-feira. — Como quiser — replicou Fiona sem se voltar. Tyrell enfiou o chapéu na cabeça com raiva. — Menina terrível — resmungou. — Tem razão, milorde — concordou Kip com um sorriso. — Pensei que fosse surdo — redargüiu o lorde com azedume. — Sem dúvida, milorde. Como uma porta. — Bem, trate de continuar assim. Não ouviu nada de minha conversa com a dama esta tarde.

Capítulo VIII Honore desceu as escadas parecendo flutuar em seu vestido púrpura. Marcus fitou-a a distância. Os seios maravilhosos surgiam no decote profundo com um grande laço bem no centro. O traje era todo bordado com contas muito juntas, dando a impressão de uma malha brilhante como as dos antigos cavaleiros medievais. Mas se alguém observasse com maior atenção veria que no espaço exíguo entre uma conta e outra o tecido era bastante transparente. Lorde Alameda pousou o copo sobre a mesa e respirou com dificuldade. — Minha cara Honore, vai despedaçar corações esta noite. A condessa ergueu o nariz. — E por que deveria ser diferente? — Tem razão. Está maravilhosa como sempre. A pobre Fiona irá parecer uma ratinha insípida ao seu lado. A condessa o fitou, aborrecida. — E por quê? Fiona se veste muito bem. — Claro, só pensei... — Pensou errado, meu caro. Não sou um dragão cruel e ciumento, Marcus. — Sem dúvida — murmurou o conde, voltando a examinar a figura sensual da madrasta. Seria um desperdício se adotasse ares de matrona, refletiu. Mas sempre repete que Fiona é sua protegida e afilha que nunca teve... Em voz alta, disse: — Fiona é a sua favorita. — Bem, isso foi antes de saber como minha sobrinha é de verdade. Antiquada e tediosa como seu admirador, lorde Wesmont. — Fez um gesto displicente com a mão. — Não é a protegida que desejo, mas isso também não tem importância. Meu irmão viúvo em Hertfordshire tem uma filha, e quando tiver cabeça para pensar nisso, irei visitá-lo. — Virou-se para Marcus. — Não está farto de meninas ingênuas? — Sem esperar resposta, murmurou. — Com licença, devo ir ter com meus convidados. Enquanto a via sair, Marcus murmurou consigo mesmo: — Quantas sobrinhas terá, afinal?

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Não fazia mais sentido tentar se livrar de Fiona agora que sabia que Honore não pretendia mudar seu testamento favorecendo a srta. Hawthorn. A fortuna continuava segura, mas o que aconteceria se a madrasta mudasse de idéia ou encontrasse uma órfã para deixar todos os seus bens? Uma solução seria apressar os acontecimentos e tomar posse da herança sem perda de tempo, refletiu com frieza. O esquema que planejara para aquela noite para matar Fiona precisava ser alterado. Seu alvo agora era outro. Tyrell fitou a mesa comprida na sala de jantar de lady Alameda onde se reuniam rostos fora do comum. Seu lugar ficava em uma das pontas e, de modo cruel, Honore o colocara bem do lado oposto à Fiona, onde poderia vê-la, mas não lhe falar. Além disso, um arranjo enorme de flores impedia que a contemplasse à vontade, a não ser torcendo o pescoço. Mas a perversidade de lady Alameda ia além disso, e tinha como alvo a sobrinha também. Do lado direito de Tyrell fizera sentar uma jovem atriz voluptuosa, e Fiona, que já ocupara seu lugar, sentia ganas de pedir a um criado que jogasse sopa quente na mulher. Onde estava seu dom de provocar catástrofes quando precisava dele?, pensou. À esquerda de Tyrell sentava-se Maria Haversburg. Fiona observou como a filha de lady Louise estava satisfeita. Maria sentia-se afortunada por Honore tê-la colocado ao lado do único homem em Londres que não parecia enojado com seu hálito, e a srta. Hawthorn apurou os ouvidos para ouvir a conversa entre os dois. Ouviu Maria dizer: — É um grande alívio estar sentada ao seu lado, lorde Wesmont. Mamãe me avisou que os convidados desta noite seriam um tanto excêntricos e diferentes de nós, mas que era preciso comparecer. Ninguém ousa ofender lady Alameda. — Sorriu, colocando a mão na frente da boca para esconder os dentes feios. — Minha mãe me disse para não ficar chocada com os presentes, mas jamais poderia imaginar ver tantos atores e artistas juntos! Poetas, pintores, escritores... Meu Deus! — Maria apontou de modo rápido para outro lado da mesa, e Fiona desviou o rosto, com medo de que percebessem que os observava. — Dizem que o homem sentado à esquerda da srta. Hawthorn é amigo do poeta lorde Byron. E quando o tenor cantou aquela música picante sobre as moças do campo, fiquei envergonhada. Creio que deveria ter tampado os ouvidos com as mãos, não acha? Tyrell aquiesceu com um gesto de cabeça, de modo distraído, e tentou cruzar o olhar com o de Fiona, que parecia uma ninfa dos mares nessa noite, com uma tiara de minúsculas flores na cabeça, e mechas de cabelos emoldurando-lhe o rosto e alcançando os ombros nus. Seu vestido era da cor do mar no verão, nem verde nem azul, e realçava os olhos escuros que pareciam o oceano durante uma tempestade. O jovem ao lado de Fiona inclinou-se demais em sua direção, fazendo Tyrell franzir a testa. Que audácia! Por que Honore convidara o sujeito? Poetas! Amaldiçoou aquela raça em pensamento. Não passavam de um bando de desocupados dissolutos. Depois do jantar, lady Alameda convidou as visitas para circularem por diversos cômodos onde uma espécie de circo ou feira de variedades fora montado. Músicos tocavam no salão de baile, de modo que quem desejasse poderia dançar. Um mágico entretinha as pessoas em uma saleta, e havia várias salas de jogos com bebida à vontade. A atriz que sentara ao lado de Tyrell tomara posse de seu braço, pedindo

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin para que fossem até uma das salas onde um encantador de serpentes se apresentava. O lorde ergueu o rosto e viu que Fiona já deixara a longa mesa, abrindo passagem entre os comensais que se levantavam nesse momento. — Oh! Estou com medo dessas víboras! — exclamou a jovem atriz ao ver o encantador retirar vários seres rastejantes de uma cesta de vime. — Tem razão — resmungou Tyrell. — E supondo que uma das cobras pique e mate o encantador, teremos uma casa infestada desses animais rastejantes, passeando pelos corredores. O duque de Cumberland, que se encontrava ao lado, estufou o peito e passeou o olhar lascivo pelos dotes físicos da jovem atriz. — Estarei aqui para protegê-la, senhorita — murmurou com uma reverência. — Oh! Vossa Graça é tão gentil — ciciou a atriz. Tyrell aproveitou para deixar os dois sozinhos, e saiu da sala, imaginando se ao lado não haveria um domador de tigres. — Lady Alameda é maluca — resmungou consigo mesmo. Fiona e Maria Haversburg sentaram-se a um canto tranqüilo da casa. Tomando coragem, a srta. Hawthorn perguntou algo que a incomodava havia tempo. — Desculpe a indiscrição, mas por que sua mãe não a leva a um especialista para arrumar seus dentes? Maria suspirou. — Implorei isso quando chegamos em Londres, mas minha mãe só confia no nosso médico de família, o dr. Klimes. O coitado tem mais de cem anos de idade, mas convenceu mamãe de que é o melhor profissional do mundo. — E não pode fazer alguma coisa com sua boca? — Maria conteve as lágrimas. — Não sabe o que já passei com o dr. Klimes. Fez com que tomasse uma poção feita de olhos de peixe! Chegou a colocar sanguessugas em minha boca! E por mais que reclame e chore minha mãe não quer me ouvir. Conhece o maldito médico desde que nasceu, e suas curas para ela são sagradas. — Mas isso é terrível! — gemeu Fiona. — Tenho rezado para que o dr. Klimes, que é tão velho, morra antes da temporada londrina terminar. Acha que vou para o inferno? — Bem, não deveria rezar para vê-lo morto, coitado. Venha! Vamos dar uma volta pelo jardim de tia Honore. Tem um lindo roseiral e, quem sabe, poderemos engendrar um plano, Maria, para levá-la a um bom dentista ou médico. Mal haviam deixado o ponto afastado da casa, Tyrell passou por ali, e viu o sofá vazio. Maria e Fiona caminharam pelos canteiros de rosas de Honore. O ar frio e seco se misturava ao aroma forte de novos e velhos botões de flores, anunciando que em breve o outono chegaria. — Adoro o perfume das rosas de verão. E você, Fiona? — Sim — replicou a amiga com ar distraído —, mas voltando ao nosso plano, acho que já tenho um. Digamos que fizesse o papel de sua irmã mais velha? Sou muito mais alta que você e isso dará credibilidade. Então poderia acompanhá-la em uma consulta. Poderemos escapar da vigilância de sua mãe alegando que vamos fazer compras juntas. — Não sei se persuadiremos mamãe a me deixar só em sua companhia. — Maria ficou vermelha de constrangimento. — Não é por sua causa, porém nunca tive permissão para sair sem uma criada ao lado. — É claro. — Fiona examinou as pedras do caminho e, de repente, ergueu a cabeça. — Já sei! Iremos com a criada de minha tia. Lorraine me deve um

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin pequeno favor, portanto tenho certeza de que manterá segredo. Seremos nós duas e uma acompanhante. — Sim, isso poderá dar certo, mas... Lorraine não é a mesma que salvou do mar? Pararam para admirar uma enorme roseira, e Fiona tratou de desviar o assunto, pois não queria receber elogios. Então alguém gritou às suas costas. — Aqui está ela! Três jovens cavalheiros correram pelo atalho de pedras, escorregando e quase caindo. O sr. Rupert, o poeta amoroso que se sentara ao lado de Fiona no jantar, acenou. — Aí está. Minha feiticeira! Olhem para ela, meros mortais! Fui capturado por seu encanto. Fui consumido pelo fogo líquido de seu olhar, e devo segui-la como se segue o canto da sereia em alto mar. Oh! Estou envenenado pelo elixir do amor! — Já a beijou? — perguntou um dos outros dois rapazes. O poeta perdeu o equilíbrio, quase caindo aos pés de Fiona. Voltou-se para o companheiro e pôs a mão no peito. — Não, embora seus lábios me atraiam como cerejas maduras, e... Não! Como romãs. Fiona apertou o braço de Maria, e ambas pegaram um atalho lateral. — Acho melhor irmos embora depressa — murmurou. — Pare! — gritou o poeta, alcançando as damas com extrema rapidez, e segurando Fiona pelo cotovelo. — Pretende me deixar sofrendo os tormentos do amor? Será que pessoa tão bela pode ser assim cruel? — Sr. Rupert — replicou Fiona tentando se desvencilhar —, creio que está bêbedo. Tudo que irá sofrer será uma ressaca amanhã. Agora, por favor, deixe-me ir. — Só a deixarei quando tiver me livrado de seu feitiço. — É melhor se lembrar de que a moça é sobrinha da condessa Alameda, e conhecida como a Dama dos Desastres — disse um outro que estava mais sóbrio. — Vamos embora Rupert, senão lady Alameda o fará pagar caro. — Não me importo. Vá embora, covarde. E leve consigo essa outra linda criatura, para que fique a sós com minha deusa. O outro deu de ombros. — Faça como quiser. O terceiro rapaz agarrou Maria pela cintura. — Venha, minha bela. Vamos apreciar o luar. A srta. Haversburg soltou um grito. — Dê um pontapé nele, Maria! Corra! — Mas a outra já desaparecera na escuridão. Fiona seguiu o próprio conselho e deu um chute na canela do poeta, mas Rupert estava tão bêbedo que nem pestanejou. Aproximou-se, fazendo-a sentir o cheiro de rum em seu hálito. — Sr. Rupert, peço que pare com isto agora mesmo. — Não consigo me conter, sereia. É você quem precisa me libertar de seu feitiço. — Caiu de joelhos e apoiou a cabeça no ventre de Fiona. — Adoro-a! — Por favor, senhor... No caminho às suas costas, ouviu o rumor de passos e vozes abafadas. Então o amigo do poeta que carregara Maria exclamou: — Deus! Que cheiro horrível! Fui enganado! Pensei que estivesse beijando uma moça, mas na verdade é algo muito diferente!

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Fiona pôde ouvir o gemido humilhado de Maria e o estalar de uma bofetada que, sem dúvida, foi dada no atrevido. — Bem, mereço isso — resmungou ele. — Pelo menos com o choque consegui recuperar o fôlego e respirar. Isso mesmo, querida, fuja. É um favor que me faz. Ouviram-se passos apressados de Maria e do homem, mas em direções opostas. Pobre amiga!, pensou Fiona. Como fora insultada! Voltando ao seu problema, agarrou um tufo de cabelos de Rupert que continuava a abraçá-la, e torceu-o com toda a força. Maria correu pelo caminho escuro em direção às luzes da casa. Irrompeu pela primeira porta que encontrou aberta, parecendo uma lunática histérica. Por sorte colidiu com lorde Wesmont que estava se dirigindo para o jardim, tendo esgotado a procura por Fiona dentro de casa. Tyrell segurou a srta. Haversburg pelo braço. — O que aconteceu? — Milorde! — soluçou a pobre moça. — Foi horrível! Aqueles homens horrorosos nos assediaram. Escapei, mas deve vir depressa. O sr. Rupert agarrou Fiona, e não sei o que poderá fazer com ela. — Onde? — perguntou Tyrell. — Ali. — Maria apontou na direção do roseiral. — Perto da fonte. — Fique aqui — comandou Wesmont. — Ou melhor, sua mãe está na outra sala. Vá procurá-la. Maria acenou de modo obediente, e Tyrell marchou para o jardim, os punhos cerrados, planejando dar uma grande surra em Rupert. E teria feito isso se, ao chegar ao roseiral, não visse Fiona erguer o joelho e acertar as partes íntimas do poeta, que se inclinou para trás com um urro de dor, caindo na fonte. Fiona pôs as mãos nos quadris e ficou olhando o bêbedo chafurdar na água rasa. Ergueu o rosto ao ver Tyrell se aproximar, e encarou-o com toda a calma, como se fosse muito normal vê-lo ali. — Acha que vai sobreviver? — Sim, mas se tivesse agarrado esse infeliz, não garanto que o deixaria tão bem. — Tornou-se inconveniente. — Foi o que me disseram. A srta. Haversburg entrou na casa como se estivesse sendo perseguida por mil demônios. — Eram só três. Maria está bem? — Sim. — Graças a Deus! Nesse instante o poeta se sentou dentro da fonte, e balançou a cabeça espalhando água por todos os lados, inclusive sobre Tyrell e Fiona. — Ficarei famoso! — exclamou. — Fui derrubado e quase afogado pela Dama dos Desastres! Serei o assunto em Londres amanhã pela manhã. Ajude-me, senhor. — Estendeu a mão para Tyrell. — Preciso compor uns versos para enviar ao Post. Wesmont semicerrou os olhos, aproximou-se do poeta e, empurrando sua testa, fez com que caísse de novo na água. Fiona riu, enquanto Rupert tossia e cuspia. Deixando que se recuperasse, Tyrell falou-lhe como se fosse um professor orientando um aluno estúpido. — Sugiro que vá para casa, durma, e esqueça que conheceu a srta.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Hawthorn. Do contrário estará em maus lençóis, meu caro, pois não bato em ninguém há muito tempo, e confesso que estou ansioso. Se não estivesse tão bêbedo, lhe daria uma lição aqui mesmo. — Como? Não devo contar a ninguém que fui vitima da Dama dos Desastres? Ora! Mas isso seria perfeito para me tornar um poeta famoso! Como pode esperar que... Tyrell voltou a enfiar a cabeça de Rupert debaixo da água até vê-lo se agitar como um louco. Então o agarrou pelos Cabelos e o fez tomar ar. — Não contará a ninguém. Carregará a aventura desta noite para o túmulo. Pense nisso como um tormento poético, um sofrimento fora do comum... O que bem entender, mas não conte a ninguém. Fui claro? Rupert balançou a cabeça de modo relutante, os cabelos emplastrados e as roupas encharcadas. — Tem minha palavra, senhor — disse por fim. — Muito bem. Assim dizendo, Tyrell segurou Fiona pelo braço e deu meia-volta, seguindo pelo atalho. — Não precisava ter quase afogado o infeliz, milorde. — Não? Perdão, srta. Hawthorn. Esqueci que não se importa de ser o assunto do momento. Se preferir posso voltar e liberá-lo para que a torne a mais ridícula... Fiona desvencilhou-se dos dedos de Tyrell, e parou de caminhar. — Acha mesmo que exista, alguma maneira de me livrar dessa reputação que carrego há anos? Seja lá onde for, por mais que tente passar despercebida, coisas extraordinárias acontecem comigo. Atirou os braços para o alto em um gesto de frustração. — Tudo é em vão! Aceito minha sina. Sou amaldiçoada, azarada ou apenas sem sorte. Pode ser que não acredite nisso, milorde, mas os outros sim. Consideram-me muito divertida, um entretenimento e uma novidade. E por que seria diferente? Não sou uma sensação como a mulher barbada do circo ou um urso dançarino? Parou de falar e tomou fôlego, tentando manter a calma. — Sou apenas mas um espetáculo como o encantador de serpentes que tia Honore contratou para alegrar sua festa. Lágrimas jorravam de seus olhos, e cobriu a boca para abafar um soluço. Sem saber o que fazer, Tyrell tomou-a nos braços e fez um carinho em seus cabelos, enquanto Fiona encostava o rosto em seu peito e deixava os soluços sacudirem seus ombros. A lua era a única testemunha da cena, silenciosa e amiga. O lorde nada disse, e esperou que o choro terminasse. Por fim a srta. Hawthorn ergueu o rosto. — Molhei sua gravata. — Sim. Precisava mesmo ser lavada. — Parece que estou sempre estragando suas roupas. — Assim dizendo, Fiona sorriu, e um conhecido calor invadiu as entranhas de Tyrell. — Não deve me olhar assim, Fiona. Ignora o quanto fica sedutora com esse ar infeliz e desprotegido. Beijou-a na face, e acariciou-lhe a costas. — Como pode dizer que sou tentadora quando não passo de um estafermo e sempre o irrito? — Tem razão, me irrita. Deixa-me louco. — Afastou-lhe uma mecha de cabelos dos olhos escuros. — Até quando durmo me perturba. Recusa-se a sair

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin de meus sonhos, e sua imagem me persegue durante o dia também. É muito irritante. Fiona tentou ler a expressão de seu rosto para saber se dizia a verdade ou se estava sendo irônico outra vez. — Sim, trate de se afastar de mim como sempre faz, Fiona. Corra, porque estou prestes a me comportar como aquele ridículo poeta que desejei afogar. Fiona sentiu seu hálito quente e, de modo lento, Tyrell se inclinou, beijandoa na boca, de início com lentidão, porém o autocontrole logo o abandonou, e a carícia se tornou mais exigente. Fiona circundou-lhe o pescoço com os braços, pensando que Wesmont tinha razão, e que deveria sair correndo para evitar a tentação. Mas não conseguia. Desejava continuar a beijá-lo por toda a eternidade, moldar seu corpo ao dele e devolver o mesmo calor e paixão. Lembrou-se de ter caído na mesma armadilha quando estivera no lago. Tyrell a fizera perder a noção do tempo com seus beijos para depois ofendê-la e humilhá-la com seu discurso enfurecido. Precisava detê-lo, pensou. Melhor sofrer sem seus beijos que deixá-lo irritado outra vez. Deslizou as mãos para seu peito, e afastou-se devagar. Tyrell fitou-a. — Desculpe — murmurou, a voz rouca de emoção. — Está arrependido? — arriscou Fiona. — Não. — O lorde deu um passo atrás. — Desejava fazer isso. Quando me aproximo de você tenho ganas de derrubá-la no chão e... É impossível explicar. Parece um vinho especial que provo e que me deixa embriagado a ponto de enlouquecer. Passou a mão pelos cabelos, em um gesto desesperado. — Conheço-a desde que era criança, e não desejo magoá-la. — Fiona fitou o caminho com as pedras brancas brilhando sob os raios de luar. Uma brisa fresca acariciou suas faces escaldantes, fazendo-a estremecer. Rezando para soar calma, disse: — Então creio que devemos voltar para o salão, milorde. — Tyrell aquiesceu e ofereceu-lhe o braço. Em silêncio, retornaram para a festa e as luzes da casa de Honore. Fiona parou diante da entrada. — Prefiro não chamar muita atenção e entrar sozinha. Não precisa me acompanhar. — Se não se importa, quero me assegurar de que não existam mais poetas malucos esperando sua volta. Sei que não precisa de ajuda, porém pretendo vê-la em segurança. — Muito bem. Reconheço que é difícil fazê-lo mudar de idéia quando resolve alguma coisa. Assim dizendo, Fiona caminhou com passos duros, e Wesmont a acompanhou de perto. Entraram pela biblioteca sem fazer o menor ruído, e dispunham-se a se esgueirar para o salão, quando algo os distraiu. Um rumor abafado soou a um canto, e Tyrell levou um dedo aos lábios, pedindo silêncio. Uma exclamação de mulher fez-se ouvir. — Deixe-me em paz, monstro! Pare com isso! Seguiu-se uma pancada forte. — Pode me esbofetear! Quer dificultar as coisas, minha pequena cortesã? Bem, vou ensiná-la a não provocar um homem. Fique desfilando por aí com esse ar sensual, e... O homem não terminou seu discurso, porque Tyrell atirou-se de supetão,

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin segurando-o pelo colarinho, e arremessando-lhe um soco poderoso no queixo. Fiona prendeu a respiração. À luz das velas, viu o rosto da mulher que jazia no chão. Sua tia, lady Honore Alameda. Como se fosse uma acrobata, a condessa levantou-se de súbito, e agarrou a pá da lareira, golpeando as costas de seu agressor. — Porco arrogante! Arda na inferno! Ergueu de novo o instrumento e iria desfechá-lo na cabeça do homem, quando Tyrell a deteve, segurando-lhe o pulso com força. — Condessa, assassinato dá forca — alertou com voz convincente. — Levarei este verme para fora e lhe darei uma boa lição em seu nome, mas não recomendo que o ataque com a pá. Pense, milady. Tem um pescoço muito bonito para perdêlo. Além disso, seu luxuoso tapete ficaria manchado com o sangue do crápula. O agressor de lady Alameda esfregou o queixo e sentou-se, fitando a pá com olhar abobalhado. Honore continuava segurando sua arma improvisada, enquanto Tyrell a detinha. — Aguardo sua decisão, milady — murmurou com voz firme. — Sim — replicou Honore, baixando o braço. — Não vale a pena. Tire este lixo humano daqui. Wesmont aquiesceu com um gesto, voltou a agarrar o outro pelo colarinho, e arrastou-o para fora da biblioteca, voltando ao jardim. Tratava-se de um rapaz muito jovem, musculoso, mas de estatura baixa. Mal haviam saído para o gramado, atingiu Tyrell com o punho direito, porém o lorde revidou com um soco, quebrando-lhe o nariz. O homem urrou de dor, mas logo se recuperou, e começou a andar em volta de Tyrell, como um lutador de boxe. — Ande logo! — incentivou Honore da porta. — Não espere mais, milorde! Prendendo a atenção do adversário, Tyrell atingiu-o na boca do estômago com outro soco, e o homem se curvou em dois, voltando a ser golpeado no queixo por uma esquerda de Wesmont. Dessa vez o agressor de lady Alameda caiu sobre a grama, desacordado, o nariz e a boca sangrando. Tyrell esfregou os nós dos dedos, enquanto Honore se aproximava e fixava o olhar no homem que já recobrava os sentidos e começava a gemer. — Ouça-me, verme. Não quero voltar a ver seu rosto repulsivo. Se insistir em cruzar meu caminho, direi a todos da aristocracia o porco imundo que é, e mandarei gente especializada dar-lhe uma lição não tão caridosa quanto esta que recebeu de lorde Wesmont. Agora suma daqui! O sujeito tentou se levantar aos tropeções, mas não conseguiu. — Venham, Fiona e Wesmont. Há um rato morto aqui no jardim, e mandarei os criados providenciarem que tudo volte à ficar limpo. — Honore retornou com ar majestoso para a casa. —Muito bem, lorde Wesmont. Tenho uma dívida com milorde. — De jeito nenhum, milady. Proporcionou-me um pouco de exercício físico esta noite, e era isso que precisava para ativar os músculos. — Tyrell usou o espelho sobre a lareira da biblioteca para ajeitar o paletó e os cabelos. — Se as damas não se importam com minha gravata amassada, terei prazer em escoltálas até o salão. Voltou-se para Fiona e notou seu semblante desfeito. A jovem relanceou um olhar pela porta, vendo o homem ensangüentado e ainda caído. — Sente-se mal, srta. Hawthorn? — perguntou Tyrell com preocupação na voz. — Claro que está mal — respondeu Honore pela sobrinha. — Não está

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin acostumada a assistir a tais cenas de violência. Mas logo irá se recuperar. — Não — replicou Fiona, erguendo o queixo. — Creio que não irei me recuperar hoje. Tive uma noite movimentada. Se me derem licença, vou me retirar. Assim dizendo, voltou-se e saiu. Tyrell fez menção de segui-la, mas Honore o deteve. — Espere, Wesmont. Deixe-a ir. Por favor, me conte o que fez esta noite, pois não foi só a briga que aborreceu minha sobrinha. Ele baixou o rosto para a excêntrica dama. De fato, estava vestida como uma cortesã, os cabelos amarelos em um penteado parecido com um turbante, entretanto mantinha a postura nobre e severa como se fosse a esposa de um pastor, e qualificada para passar-lhe um sermão. Tyrell nada disse. — Sim, foi o que pensei — continuou lady Alameda. — Ouça-me, Wesmont. Sou-lhe grata pelo que fez por mim hoje, e tem todo o meu respeito, o que não é algo que ofereço a qualquer um. Mas tendo dito isso, devo acrescentar que não sabe lidar com minha sobrinha. Para ser franca, fez uma enorme confusão. Agora vamos voltar ao salão de baile. Pretendo lhe dar uma incumbência. A contra gosto, Tyrell permitiu que lady Alameda lhe desse uma aula sobre como se comportar com Fiona no presente e no futuro. O lorde franzia a testa de modo colérico, tendo ao lado a condessa, esquecida da música e dos risos ao redor, e muito concentrada em sua doutrinação. — O que me sugere é escandaloso. Pior! Abominável! — murmurou Tyrell entre os dentes semicerrados. — Então prefere continuar brincando com os sentimentos da menina como se fosse uma bola que se pega e se joga para longe? — Sabe muito bem que não é essa minha intenção. — Bem, então leve-a para a cama e acabe com isso. — Como pode insinuar tal coisa? É sua sobrinha! Ficaria arruinada! — Só se sair por aí se jactando que a possuiu, Wesmont. É claro que não ficará arruinada. Que noção arcaica! Além do mais, milorde ficará preso aos seus encantos, e desejará continuar dormindo com Fiona. — Não há nada de correto no que propõe, milady. — Bem, se deseja tudo da maneira tradicional, corteje minha sobrinha e case-se com ela. Wesmont cruzou os braços sobre o peito. — Sabe ser direta, não? — Não sou do tipo que divaga, meu caro. — Sem dúvida! — Não tente mudar de assunto. Pretende seduzir minha sobrinha ou casar com ela? — Não tem o direito de me forçar a dar uma resposta. — Honore arqueou as sobrancelhas. — Não? Está me desafiando? Então vamos ver se não posso! Decida-se, Wesmont, ou tratarei do assunto à minha maneira. Farei com que seja banido de nosso círculo até que Fiona descubra outros homens que a agradem. Talvez meu enteado Marcus. — Se Alameda encostar um dedo em Fiona — grunhiu Tyrell —, porei sua cabeça em uma bandeja. — Que ingênuo! — Honore riu. — Marcus não poria só um dedo em Fiona. O lorde tentou controlar a respiração e cerrou os punhos, sentindo que

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin estava inclinado a agir como o homem que surrara, e derrubar a dona da festa no chão, caso não parasse de provocá-lo. Com uma sensibilidade admirável, Honore percebeu a situação, ficou séria, e ajeitou a saia. — Vejo que não lhe agrada a perspectiva de Macus cortejar minha sobrinha. — Diante do silêncio de Tyrell, prosseguiu. — Então, milorde, caiu na minha armadilha. Dou-lhe dois dias para decidir se a torna sua amante ou sua esposa. Tem minha bênção de qualquer maneira. Do contrário, direi a meu enteado que o caminho está livre. Tyrell fitou Honore de uma maneira que teria envergonhado qualquer outra, menos a condessa. — Devia estar trancada em um asilo de loucos, milady. — Lady Alameda sorriu. — Pode ser, mas estou falando sério. — Não me deixa escolha. — Nem pretendia deixar. Saiba, Wesmont, que nunca faço ameaças em vão. Venha ver minha sobrinha na manhã do sábado. Leve-a a dar um passeio. Quando voltar, conte-me o que decidiu, e... Ouviu-se um tiro, e Honore gritou, segurando a cabeça: — Fui atingida! Em seguida, ficou branca como cera, e olhou para os lados, porém continuavam sozinhos, ela e o lorde. Tyrell segurou o braço da anfitriã. — Está ferida? — Não sei... — Honore mexeu a cabeça de um lado para o outro, a fim de se assegurar de que estava bem. — Não estou sangrando. Creio que a bala se alojou em meus cabelos. Tyrell franziu a testa. De fato, parecia que o elaborado penteado estava fora do lugar. Agarrou um castiçal e foi examinar a parede atrás da condessa, descobrindo um buraco de bala ali. Relanceou um olhar para o lado oposto, e viu uma porta. Por certo o tiro viera dali, refletiu. Correu para o outro salão, onde todos se divertiam e o barulho era ensurdecedor, pois ignoravam o incidente ocorrido com a condessa. Voltou para o lado de Honore e balançou a cabeça, desanimado. — Desculpe, milady, mas é impossível saber quem atirou. Quem sabe um de seus convidados carregava uma arma que disparou sem querer. Não é uma possibilidade a ser descartada. — Sim, tem razão. E algumas damas carregam pequenos revólveres na bolsa para sua proteção. Eu, por exemplo. Pode ser que... — Sim, pode ser. Mas eram todas suposições. — Excelente clarete! — exclamou Tyrell, observando o líquido cor de rubi dentro do copo. — Bem, o mínimo que podia fazer era encomendar uma garrafa para recebêlo. Anbel se sentava de roupão em uma poltrona em frente ao amigo. Estavam no confortável quarto de Robert, circundados por pilhas de livros e jornais. Dois cães dormitavam sobre o tapete. — Que bagunça, Anbel — comentou lorde Wesmont. — Sim. Maravilhoso, não acha? Mataria meu criado se tentasse arrumar alguma coisa aqui, portanto sempre deixa tudo do jeito que está.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Se Tyrell não estivesse tão mal-humorado, teria rido do comentário. — Pare de franzir o cenho, Ty. O lar de lady Alameda não pode ser assim tão mau. — Não? É um lugar inadmissível para uma jovem debutante, um antro de vícios! Não é puro nem simples. É depravado e caótico. A condessa é uma mulher sem moral, e não podemos esquecer de seu enteado. E a festa que deu... Já lhe contei que Cumberland estava presente? — Sim, mencionou o duque umas duas vezes. — Muito bem. Então lhe pergunto, que tipo de anfitriã convida um velho sem-vergonha como aquele quando sua sobrinha estará presente? Sem mencionar os poetas que copiam Byron, mas que de talento só possuem a vilania! Assim dizendo, Wesmont depositou o copo sobre uma mesa com tanta força que quase o espatifou. — E essa é a mulher que se julga no direito de falar do meu comportamento! Ainda não consigo engolir que tenha me oferecido Fiona em uma bandeja! Decida-se! Seduza minha sobrinha ou case-se com ela!, foram essas suas palavras. Robert engasgou, e quase derramou o clarete no chão. — Santo Deus! Não tinha me contado isso ainda! — Sua expressão tornou-se muito séria. —Proposta muito estranha, de fato. E conhecendo a aversão que nutre pelo casamento, fico imaginando qual será sua decisão. Pretende arruinar a reputação de lady Fiasco? Tyrell lançou um olhar assassino para o amigo. — Não seja estúpido. Planejo tirá-la daquele asilo de loucos onde mora. Anbel ignorou o mau humor do lorde e continuou. — Compreendo. E como deseja realizar seu intento? — Ainda não sei. Pretendia escrever uma carta para o pai de Fiona, mas a condessa louca só me concedeu dois dias de prazo para tomar minha decisão antes de permitir que Marcus faça avanços sobre a sobrinha. Isso não é tempo suficiente para que o correio vá e volte da Espanha. — Deus! Lady Alameda é maluca de verdade! — Não estou dizendo isso há muito tempo? E os problemas não param por aí. Hoje cedo fiquei surpreso ao receber um convite de lady Hawthorn, madrasta de Fiona. Está oferecendo um baile para sua filha Emeline, portanto é óbvio que estão em Londres. — Ora. O que poderia ser mais simples? Só precisa remover Fiona da casa de Alameda e entregá-la à madrasta. — Mas é esse o problema. Não sei se Fiona sabe da presença de lady Hawthorn aqui. Quando lhe disse que não deveria ficar em Alison Hall, Fiona replicou que não tinha outro lugar para ir, como se ignorasse a presença da família em Londres. E nem mencionou o baile de Emeline. — Está exagerando, meu amigo. Por certo, Fiona sabe a respeito do baile e foi convidada. Seria uma gafe da família se não fosse convidada. Tyrell serviu-se de mais bebida. — Isso mesmo. Imagine como Fiona se sentirá caso não seja convidada. — Ora! Não a excluiriam de maneira proposital. Isso não se faz! A menos que estejam zangados com ela. Mesmo que Fiona tivesse decepcionado seus familiares, bastaria uma reprimenda, não acha? — Reprimenda é uma coisa, mas não ser convidada para o baile de Emeline será uma bofetada no rosto, Robert! — Tem razão, Ty.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Por isso pretendo levá-la a dar uma volta de carruagem amanhã e saber mais a respeito. Robert sorriu. — Quer dizer que pretende cortejá-la? Tyrell franziu a testa. — Não seja tolo! A condessa me obrigou a isso, portanto devo obedecer. Não tenho escolha. — Sem dúvida. Enquanto Tyrell e Robert conversavam, Fiona e Maria se encontravam em frente a uma casa, e tomavam coragem para bater na porta. Logo atrás Lorraine resmungava, desaprovando o que as duas moças estavam fazendo. Fiona sorriu de modo encorajador para Maria, agarrou a aldrava de latão, e bateu com força. — Ânimo, Maria. Ouvi dizer que este é um dos melhores médicos de Londres. Ensina na universidade, e há rumores de que talvez seja sagrado cavaleiro pelos serviços inestimáveis que prestou na guerra. Tenho certeza de que ajudará com seus dentes. — E se mamãe descobrir? Poderá me matar! Nesse instante uma jovem criada abriu a porta, e Fiona passou o braço pelo da amiga, anunciando. — Srta. Hawthorn e... srta. Hawthorn, para verem o dr. Meredith, por favor. — Pois não. A criada fez uma reverência e indicou-lhes a escada. O dr. Meredith era mais jovem do que Fiona imaginara, e bonito demais para ser um cientista. Assim pensando, sentou-se ao lado de Maria diante da escrivaninha com manchas de tinta, enquanto Lorraine surgia atrás, postando-se a um canto como uma sentinela. O doutor sorriu de modo encorajador. — Por sorte tinha meia-hora vaga e não estava no hospital. Em geral meus pacientes marcam consultas com antecedência. Foi Fiona quem respondeu. — Sim, doutor, e pedimos desculpas, mas era muito importante vê-lo hoje. O dr. Meredith conteve um sorriso. — E qual seria esse assunto tão urgente que as trouxe aqui? — As duas amigas trocaram olhares hesitantes, e por fim Fiona explicou. —Trata-se de minha irmã, doutor. Algo deve ser feito em relação ao problema da sua boca. Tem alguns dentes podres, um hálito terrível, e gengivas infeccionadas. O dr. Meredith afastou uma mecha de cabelos negros da testa, e examinou as duas com atenção. — Para irmãs não são nada parecidas. — Fiona sorriu, pois previra esse tipo de dúvida. — Maria puxou a família de nossa mãe, e eu a de nosso pai. — Percebo. Seus pais já morreram? — Sim — respondeu Fiona com audácia. — E devo cuidar de Maria, pois sou a mais velha. Ouvi dizer que é o melhor médico em Londres. Por favor, não quer examinar minha irmã? Estamos preparadas para lhe pagar o dobro do que cobra, doutor. O dr. Meredith balançou a cabeça em negativa. — Guarde seu dinheiro, senhorita. Deveriam ter ido a um tira-dentes. — Creio que não entendeu, doutor. Não se trata apenas de extrair um ou dois dentes. As gengivas de Maria estão muito infeccionadas, e não creio que um

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin mero tira-dentes esteja qualificado para resolver tal problema. O dr. Meredith deu de ombros. — Muito bem. Faça sua irmã se sentar nesta cadeira sob a luz. Maria obedeceu, e Fiona achou que parecia uma bela mártir caminhando para a execução. Mas assim que abriu a boca, o médico deu um passo atrás de modo instintivo. Respirou fundo, pi-garreou, e voltou a se inclinar sobre a jovem, segurando um instrumento de metal parecido com uma colher. Examinou a boca, a garganta e as gengivas de Maria. —Meu Deus!—exclamou por fim, recolocando o instrumento sobre uma bandeja de metal. — Suas gengivas estão em carne viva! O que fizeram com sua boca? O queixo de Maria começou a tremer, lágrimas surgiram em seus olhos, e Fiona bateu no ombro do médico de modo discreto. — Não fale assim com ela, por favor. Não é sua culpa. Um médico velho que chamo de monstro, colocou sanguessugas em sua boca e esfregou pedra-ume nas gengivas. — Engoliu em seco porque lhe era penoso continuar. — Chegou a colocar ferros em brasa... O dr. Meredith voltou-se para Fiona com brusquidão. — Como pôde permitir tratamento tão bárbaro e imbecil para sua irmã? Pode ser uma prática comum entre os muito ignorantes, mas sem dúvida as senhoritas são damas da sociedade, elegantes e educadas. Como pôde ficar parada e ver um velho tolo torturar sua irmã caçula dessa maneira? Fiona engoliu em seco ante a fúria justificada do bom médico, mas dirigida à pessoa errada. — Não fiz isso, senhor. Como consegue imaginar que eu...? — Parou de falar, compreendendo que contara uma história e o dr. Meredith acreditara. — Bem, foi nosso pai... antes de falecer. Venerava o dr. Klimes, e nada pude fazer a respeito. Mas o mal foi feito e só o senhor poderá cuidar de Maria. — Fitou o dr. Meredith com ar de súplica. — Irá ajudá-la? O jovem médico volveu o olhar para Maria. Lágrimas jorravam de seus lindos olhos azuis. — Não entendo como alguém possa fazer tanto mal a uma criatura tão linda — murmurou, porém logo voltou a adotar uma postura profissional, e pegou um instrumento da bandeja. — Abra a boca, senhorita. Vejamos o que pode ser feito. Quando as duas amigas deixaram o consultório do dr. Meredith, Maria levava enormes bolas de algodão dentro da boca que fora medicada, e mal conseguia falar. Com gestos e murmúrios, explicou que tinha medo de voltar para casa com as bochechas parecendo balões. — Tem razão. Vamos para Alison Hall e quem sabe o inchaço desaparecerá daqui a pouco. Lorraine, que vinha logo atrás, arriscou um palpite. — Creio que gelo fará bem. Assim que chegarmos em casa, irei providenciar uma compressa. Mas foi muito valente, senhorita. Quase desmaiei quando o médico começou a limpar seus dentes com desinfetante e remédios. E a senhorita nem pestanejou. E todo o sangue que... Fiona lançou um olhar de aviso para a criada que logo se calou. — Maria, precisa se lembrar de passar todas as noites nas gengivas o ungüento que o dr. Meredith lhe deu, e usar o dentifrício em pó do modo como explicou. Nada mais de cravo-da-índia, pois não melhora seu hálito. Voltarei para

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin a segunda consulta com você, se for preciso. Fiona sentia-se muito bem no papel de irmã mais velha, e deu conselhos à amiga até chegarem em Alison Hall. Maria murmurava palavras ininteligíveis, quando lady Alameda surgiu. — O que fez com esta pobre criança? — perguntou Honore à sobrinha. — Está horrível! Fiona conduziu Maria até um divã e colocou uma almofada sob sua cabeça. Em seguida, fitou a tia. — Gosto da nova cor de seus cabelos, tia Honore. É um lindo tom castanho. Lady Alameda sorriu, pondo a mão nas trancas escuras. — Obrigada, querida. Monsieur Renellé esteve aqui hoje pela manhã. Também gostei muito do resultado. Assim dizendo, examinou-se no espelho sobre a lareira da sala, ajeitando os cachos na testa. Mas logo se voltou para a sobrinha. — Muito esperta, tentando distrair minha atenção. Ainda não me respondeu. O que houve com Maria? Está com as bochechas inchadas! Onde estiveram a manhã toda? Maria gemeu e ergueu os olhos para o teto, enquanto Fiona aprumava os ombros em desafio. — Levei-a a um bom especialista a fim de que algo seja feito em sua boca. Honore cruzou os braços sobre o peito. — Fez isso? De verdade? — Sim. — Fiona permaneceu impassível. — Alguém precisava tomar uma providência. Maria é linda e não deve sofrer com gengivas infeccionadas e dentes podres. — Suponho que lady Haversburg aprovou essa consulta médica — disse Honore. — Não, nem sabe que fomos. Estou certa de que quando souber ficará furiosa. Não tenho como justificar meu procedimento, mas fiz o que achava melhor. — Então a aconselho a arrumar uma boa desculpa, minha cara. Quando Louise descobrir o que fez com sua filha irá arrancar seu coração. — Não me importo. Era absurdo continuar impassível vendo a vida de Maria se arruinar pela confiança errada de sua mãe em um médico caduco. O homem é um criminoso, e deveria ser enforcado! Foi a vez de Fiona cruzar os braços sobre o peito, mas ficou surpresa ao ver a tia bater palmas e rir. — Ora, menina! Possui uma forte personalidade, afinal! Sempre soube disso. Tem tutano, querida, como eu! — É mesmo? A pergunta partiu de Marcus, que entrava nesse momento, abrindo e fechando uma caixinha de rape. — Claro que sim! Basta ver como deu uma sacudida na vida de Maria. E isso não é nem metade da história. Está desafiando a fúria de lady Haversburg. — E é isso que chama de ter tutano? A pobre Maria está pálida como um fantasma. — Sorriu com zombaria. — Sim. Fiona deu uma sacudida em sua vida porque parece que a pobre srta. Ha-versburg está morrendo. Parou em frente à madrasta. — Mudou a cor dos cabelos outra vez. Que pena! Gostava do amarelo gema de ovo. — Relanceou um olhar pelo traje matinal de lady Alameda. — E está usando um vestido muito recatado, querida. Parece uma matrona.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Embora sorrindo, seus olhos pareciam os de uma serpente, vigilantes e semicerrados, como a se preparar para dar o bote. — Meu advogado virá esta tarde e temos assuntos importantes para resolver — disse Honore, fitando Fiona com simpatia. Empertigou-se e avisou. — Estarei em meu escritório. Ah! Quase ia me esquecendo. Querida sobrinha, lorde Wesmont virá buscá-la para um passeio amanhã cedo. Pediu minha autorização na noite passada. Fiona arregalou os olhos, mas a tia já desaparecera. Marcus observou a madrasta sumir no corredor, e depois fitou Fiona. — Parece que é a herdeira de Honore pelo momento. — O que está dizendo? — murmurou a srta. Hawthorn sem compreender. — Nada. Por favor, continue a cuidar de sua doente. Sorriu de modo zombeteiro para a pobre Maria com as bochechas inchadas. Enquanto Fiona se debruçava sobre a amiga com solicitude, Marcus ergueu-lhe a barra da saia com a ponta da bota, e examinou seus tornozelos. Eram bonitos, sem dúvida, pensou. Ergueu ainda mais a saia, e sorriu de modo malicioso. Fiona sentiu o movimento na barra do vestido, e virou-se com um repelão. — O que está fazendo? O sorriso cínico de lorde Alameda transformou-se em outro, doce e infantil. — Não me repreenda, querida prima, mas estou sempre fascinado a seu respeito. — Não seja ridículo! — Mas é verdade. Minha paixão é incontrolável. Rolo todas as noites na cama, louco de desejo. Não consigo dormir. Por favor, case-se comigo, Fiona ou vá embora para algum lugar onde nunca mais possa vê-la. Senão a tortura será insuportável. — Observou-a com atenção, tamborilando os dedos nos braços da poltrona onde se deixara cair. — Do contrário, não serei responsável pelos meus atos. Maria gemeu, arregalando os olhos na direção de Marcus. — Ignore-o, querida — aconselhou Fiona, rindo e dando de ombros. — Marcus, pare de ser ridículo! Se rola na cama deve ser porque está com dor de cabeça por causa da bebida, pois só chega em casa ao amanhecer. Além disso, sei que dorme até depois do meio-dia. — Então fica acordada tomando conta de meu sono? — Claro que não! Todos os moradores de Alison Hall sabem a hora que volta para casa. Faz sempre tanto barulho que acorda até os mortos! Confesso que ponho o travesseiro sobre os ouvidos até se acalmar e ir para seu quarto. — Bem, se fosse minha esposa poderia me regenerar, dedicando toda a sua vida a me tornar um homem decente. — Ficaria desapontado, tenho certeza. — Fiona voltou-se para a amiga. — É hora de retirarmos o curativo, Maria. Lorraine vai trazer gelo, e isso talvez ajude a acabar com a dor e o inchaço. Os olhos grandes de Maria pareciam ainda maiores.

Capítulo IX Cedo na manhã seguinte Tyrell se encontrava no vestíbulo de Alison Hall, batendo com a ponta da bota no piso de mármore. Impaciente, relanceou um olhar para o relógio sobre um móvel, aprumou os ombros e tratou de assumir uma expressão alegre. Não desejava que Fiona o julgasse mal-humorado como

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin dissera lady Haversburg. Entretanto, mais três minutos se passaram, e voltou a franzir a testa. Começou a caminhar de um lado para o outro, as botas brilhantes fazendo um barulhão. As abas do paletó de equitação voejavam com o andar ritmado, e o relógio voltou a soar. Onde estaria Fiona? Então uma nuvem de tecido verde surgiu na escadaria e, sem esforço nenhum, lorde Wesmont se sentiu feliz. Logo o som delicado dos passos de Fiona em seu traje de montaria, reverberou no vestíbulo. — Desculpe tê-lo feito esperar, lorde Wesmont. Tia Honore não me disse a hora em que viria. Ficamos até tarde na casa de lady Castlereigh ontem à noite, e creio ter dormido demais. — Não se pode dizer que dormiu demais se não sabia a hora em que devia se levantar — desculpou Tyrell com cavalheirismo. Fez uma reverência e sorriu, obrigando Fiona a soltar uma risada. — Tem razão. — Segurando o braço do nobre com uma mão e o rebenque com a outra, perguntou. — Trouxe seu criado Kip hoje também? Pedi à tia Honore que me deixasse sair com um dos seus criados, mas ela me disse que estarei a salvo em sua companhia, milorde. — Fez uma breve pausa significava. — É claro que não o conhece tão bem quanto eu. As últimas palavras fizeram Tyrell se sentir como se recebesse um soco na boca do estômago. Eram verdadeiras, mas o ofendiam. Então resolveu revidar. — Trouxe Kip, mas apenas para segurar os cavalos enquanto a esperava. Entretanto, se tem tanto medo de ficar a sós comigo, farei com que meu criado monte no mesmo cavalo com a senhorita. — Isso seria ridículo. — Certo, portanto vamos esquecer o assunto. — Como quiser — replicou Fiona fingindo pouco caso. Mas Tyrell percebeu que ficara tão aborrecida quanto ele. Kip assobiou em tom muito baixo ao ver a expressão mal-humorada do amo e de sua acompanhante ao saírem da casa. Wesmont ajudou Fiona a montar em uma égua de patas brancas. — É um tanto arisca, senhorita — disse o criado —, mas mostre quem manda e obedecerá. Tyrell montou em Perseu, seu corcel branco, que saiu trotando pela rua. Fiona lançou-lhe um olhar furioso enquanto tentava acalmar a égua nervosa. Por fim, cravou as esporas nas ancas do animal, que saiu em disparada na frente de Perseu. Quando conseguiu dominar a montaria, sorriu consigo mesma. Que tola fora, pensou, A égua poderia ter empinado e a atirado na calçada. Tyrell alcançou-a nesse momento. — Conseguiu dominá-la? Por um instante pensei que fosse jogá-la no chão. — Minha culpa — penitenciou-se Fiona com um sorriso — Estava zangada com milorde e devo tê-la esporeado com muita força. — Fitou-o com atenção, sentindo o conhecido calor percorrer seu corpo. — Parece que nós dois estamos sempre em guerra. Quem sabe possamos começar do zero hoje. — Estendeu a mão. — Amigos? Sentindo-se mais livre, a égua recuou, e Fiona quase perdeu o equilíbrio, fazendo Wesmont rir. O lorde tocou a borda do chapéu com um dedo, e murmurou: — Amigos.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Ótimo! O sorriso encantador da srta. Hawthorn fez seu corpo vibrar. Surpreso, respirou fundo, levantou os ombros, e aproximou-se mais da égua, tomando as rédeas de Fiona e dominando o animal arisco. — Devo confessar um segredo negro em minha vida, milorde. Costumo montar no campo como os cavaleiros. Um hábito impróprio, reconheço. Aliás, sou conhecida como péssima amazona quando monto de lado como as damas bemeducadas fazem. Dá para perceber do modo como tive dificuldade em dominar esta égua. — Bobagem! O problema é que este animal esteve muito tempo preso na estrebaria, e está tentando gozar a liberdade. Deveria ter adivinhado que continuava montando como um menino. — Sorriu com compreensão. — Acha que consegue cavalgar até Hyde Park? Deve estar deserto a esta hora da manhã, e creio que poderemos apostar uma corrida sem sermos incomodados. — Seria maravilhoso. Os olhos de Fiona luziram de entusiasmo, e Tyrell achou que lady Alameda tinha razão, porque desejou arrancá-la da sela e beijá-la como louco bem no meio da rua. Entretanto, tratou de se dominar e calcular qual seria o caminho mais rápido até Hyde Park, que estaria quase deserto. Então um pensamento incrível começou a dominá-lo. Poderia fazer amor com Fiona na grama, sem que ninguém os perturbasse. Afinal, lady Alameda lhe dera permissão, e já não suportava mais dominar o desejo. Entretanto, no íntimo, sabia que não o faria. Era impossível. Sua consciência não lhe permitiria desonrar Fiona. Por que chegara a pensar em tal coisa? Era um homem insensível. Conhecia-a desde criança, e tinha certeza que ainda era inocente. Ou não? Claro que sim! Mas como podia ser ingênua vivendo em Alison Hall com a tia amalucada e cheia de modernidade, e o sem-vergonha do conde Alameda? Lançou um olhar enviesado para Fiona, e viu que ela também o observava. Corada, tratou de voltar o rosto para o outro lado. Tyrell não conseguia imaginar como a srta. Hawthorn conseguia despertarlhe tamanha paixão. Uma jovem inocente conseguiria tal coisa? Porém, Fiona parecia possuir um encanto secreto, uma espécie de experiência extrasensorial, que lhe dava um ar maduro e sensual. Talvez enquanto estivera fora, refletiu Tyrell, lutando contra Napoleão, Fiona adquirira uma certa experiência com os homens. Sim, concluiu consigo mesmo. Devia ser isso, pois como se explicava que uma menina pura e ingênua o provocasse tanto? Isso esclarecia o motivo de Honore oferecer-lhe a virtude da sobrinha com tanta ansiedade. Porque não existia virtude alguma!, resmungou o lorde. Então o que o impedia de aproveitar o que lhe era oferecido de bandeja? Desejava Fiona Hawthorn e iria possuí-la sem pensar nas conseqüências. Tentando enganar a si mesmo, fez Perseu trotar até Hyde Park, na expectativa de fazer calar a própria consciência. Por que não tornar Fiona sua amante? Sua família sabe que não é mais uma virgem inocente, por isso não foi convidada para a festa da irmã. Não desejam uma filha maculada para estragar o ingresso de Emeline na alta sociedade. Esse é o motivo de Fiona nem saber que seus estão em Londres. Eles não a querem. Bem, eu quero. Irei possuí-la e torná-la minha amante. Quando me fartar, lhe darei um belo e valioso bracelete de diamantes ou esmeraldas, ou seja lá o que Fiona desejar. É assim que se procede nesses casos. Irei deixá-la quando não

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin mais me interessar, e continuaremos nossas vidas sem rancor nem remorsos. Sorriu consigo mesmo, e fez um carinho no pescoço de Perseu, continuando com seu monólogo interior. Que situação ideal! Nada de responsabilidades nem expectativas. Seria um idiota se perdesse tal oportunidade. Essa mulher me deixa louco, e talvez leve um ou dois anos até me cansar, porém valerá a pena. Ê linda e agradável. O que interessa se ficarmos juntos três ou quatro anos? Até que a paixão acabe... Entretanto uma voz no fundo de seu coração fez-se ouvir. E se ela engravidar? Pretende largar ao léu seu próprio filho e herdeiro? Tyrell engoliu em seco, mas a visão de Fiona nua e com o ventre protuberante, o deixou ainda mais excitado. Perseu relinchou, impaciente, desejando que o amo corresse mais, pois Fiona acabava de ultrapassá-lo. Tyrell abanou a cabeça, dissipando aos poucos as fantasias que o tinham transportado para um mundo imaginário. Então percebeu que a companheira galopava de modo selvagem. A égua estava fora de controle! Antes que tivesse tempo de tomar uma providência, o animal empinou, atirando sua amada ao chão. Tyrell esporeou Perseu que saiu a galope. Viu Fiona bater no solo como uma bola de borracha, e permanecer imóvel na grama. Ouviu-se um grito. Percebeu, apavorado, que o som desesperado partira de sua própria garganta. Pareceu-lhe passar uma eternidade antes de a alcançar. A impressão era de que tudo se movia como em um pesadelo, e não conseguia sair do lugar, embora Perseu estivesse galopando. Sem esperar que o cavalo parasse, saltou da montaria e ajoelhou-se junto ao corpo inerte de Fiona. Seu chapéu voara para longe, e os cabelos, adejando ao vento, emolduravam-lhe o rosto pálido. Os olhos estavam fechados, e havia lama em suas faces. Com um gemido, Tyrell ergueu-lhe a cabeça, embalando-a como se fosse um bebê. As imagens terríveis da guerra tornaram a assaltá-lo, e viu-se segurando seus companheiros feridos no campo de batalha. Soldados moribundos e indefesos... Como nesse instante Fiona, que não se movia. — Não! — gritou sem conseguir se conter, acariciando-lhe os cabelos. — Por favor, meu Deus, faça com que abra os olhos. Suplico! Eu a amo! A verdade não o chocou, mas o fez sentir remorso. — Perdoe-me, meu Deus. Fui um idiota. Sempre a amei. Por favor, traga-a de volta para mim! Sua dor era tão profunda e a abraçava com tanta força, que demorou a ouvir Fiona resmungar. — Está me machucando. Tyrell estremeceu, fitou-a, e começou a sorrir. — Pare de me apertar tanto, milorde! Recompondo-se, percebeu que o braço direito de Fiona repousava no chão, retorcido de um modo estranho. — Acho que quebrou o braço. Não se mova. Retirou a gravata branca sem perda de tempo. — Vou amarrar o braço contra o seu corpo para imobilizá-lo. Pode tentar se sentar? — Acho que sim. Fiona se moveu, mas fez uma careta de dor. Sem perder nenhum detalhe, Tyrell amarrou-lhe o braço. — Como está? — Melhor.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Mas Tyrell não ficou convencido. — Ouça-me, Fiona. Preciso erguê-la e colocá-la na garupa de Perseu. Vai ser dolorido, mas não há outro jeito. Tenho que levá-la a um médico. Ela aquiesceu, e quando Wesmont a ergueu nos braços, apertou os lábios e ficou muito pálida. Temeroso de que desmaiasse, seu salvador apressou-se a montar em Perseu. — Há um hospital aqui perto — murmurou Fiona, tentando não gritar de dor. — O dr. Meredith... Tyrell estalou a língua e o cavalo saiu a galope de maneira suave, a fim de não casuar mais sofrimento a ela. Sustentando a jovem com um dos braços, amparava-a junto ao peito. Acabaram parando em frente a um prédio de dois andares. Desmontou, amarrou Perseu a um poste, e tratou de fazer Fiona descer com todo o cuidado. Estava muito pálida, observou, alarmado. — Posso caminhar, Tyrell. Então, o lorde a amparou e foram andando até a porta. — E minha égua? — Fugiu, mas não importa. Não quero vê-la nunca mais! Poderia enfiar uma bala em seu cérebro imbecil! Assim dizendo, Tyrell fez soar a sineta. — Não precisa ficar aborrecido com ela, coitada. A culpa foi minha. Como disse, não sei montar de lado, como fazem as damas. Ficarei bem quando o dr. Meredith me consultar. Deixe-me com ele e vá procurar a égua. — Não diga tolices! — Mas... Fiona parou de falar, arregalou os olhos, e quase desmoronou se Tyrell não fosse rápido e a segurasse com toda a força. A porta se abriu e o dr. Meredith surgiu, sem paletó e com as mangas da camisa enroladas. Observou Tyrell e Fiona. — A dama me parece familiar. Não é a srta. Hawthornham? — Hawthorn. Caiu do cavalo. Ajude-me, por favor. Quando Fiona recobrou os sentidos, a manga de seu traje de montaria fora rasgada até o ombro, e os dois cavalheiros se encontravam ao seu lado, discutindo. — Asseguro-lhe que não está quebrado, só deslocado. — Como pode ter certeza? — Ora! Sou médico, e devo saber o que digo. Já examinei os ossos, e estão intactos, mas para usar uma linguagem compreensível. O antebraço está fora do lugar. — O que pretende fazer? — Bem, se milorde sair da frente, pretendo colocar o braço na posição correta. Tyrell esfregou a fronte. — Não! Deve haver outro modo. Isso vai doer muito! — Claro que sim, mas enquanto ficamos aqui parados, discutindo, os músculos e ligamentos ficam mais fracos. A dor aumenta a cada instante perdido. Tyrell respirou fundo, os dentes cerrados. — Tem certeza de que não existe outra maneira? Algo menos doloroso? — Não. Já teria agido se existisse. Agora me dê espaço para que possa pôr o braço no lugar. Tyrell suspirou, sentindo-se impotente e miserável, e recuando alguns passos.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Está certo, doutor. Pode trabalhar. O dr. Meredith fitou Fiona e sorriu. — Ouviu o que acabamos de dizer? A jovem aquiesceu com um leve gesto de cabeça. — Então vamos agir. Quando o médico segurou o braço e o colocou no lugar com um movimento rápido e seguro, Fiona voltou a perder os sentidos e mergulhar em um mundo de esquecimento temporário. Já estavam no final da tarde quando Tyrell acompanhou Fiona até a casa de sua tia Honore. A srta. Hawthorn andava devagar e o lorde a segurava com força, mas fora isso ambos sorriam, felizes. — Pelo menos dessa vez a Dama dos Desastres só machucou a si mesma — brincou Fiona. — Agora entendo o que minhas vítimas sentiram. Tyrell passou a mão pelos cabelos despenteados e fitou-a. — Reserve um pouco de sua simpatia para mim. É terrível ficar só olhando quando alguém que se... aprecia está sofrendo horrores. Acho que envelheci dez anos esta manhã. Fiona corou. Tyrell se importa comigo, pensou. Então a névoa que encobrira seu cérebro durante os acontecimentos da manhã começou a se dissipar, e ficou em dúvida pensando se o ouvira de fato dizer que a amava. — Agora que mencionou, parece mais velho. — Riu, de modo zombeteiro. — Lady Haversburg poderá chamá-lo de idoso mal-humorado. — É o que você pensa. Enquanto caminhavam pelo vestíbulo em direção à sala de estar, espezinhando um ao outro de modo carinhoso, o som das botas de Wesmont ressoou pelo chão de mármore. Com o canto do olho, viu algo branco caindo em sua direção, e os instintos de soldado o deixaram alerta. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, agarrou Fiona e encostou-se com ela na parede. Colocou o corpo a sua frente, como se fosse um escudo, e sentiu-a encostar o rosto em seu peito, enquanto um barulho ensurdecedor se seguia, e detritos atingiam suas costas. Quando alguns instantes se passaram, ousou olhar para trás e examinar o vestíbulo. Uma das colunas gregas do balcão sobre suas cabeças jazia espatifada a seus pés. Os dois se entreolharam, e Tyrell apertou-lhe os ombros. A vos de Fiona soou trêmula e amedrontada. — É a segunda vez em um só dia que me salva, milorde. Mas desta feita... ambos poderíamos ter morrido. — Está bem, Fiona? — Segurou-a com força e observou-lhe o rosto muito pálido. Depois inclinou-se sobre os destroços e examinou a base. Do outro lado do vestíbulo, Honore surgiu e ficou parada na soleira da porta, imóvel, examinando a cena que tinha diante dos olhos. Mattie irrompeu logo atrás, resfolegando e tomando ar. A seguir surgiram vários criados e lacaios, além do mordomo. — Ouvimos um grande barulho. O que aconteceu? O que é isso? Mattie se adiantou, examinando os destroços de gesso. Honore também se aproximou com passo calmo. — Isto, minha querida Mattie, é uma grande confusão — declarou. Tyrell fitou a condessa, e considerou sua escolha de palavras muito peculiar frente às circunstâncias. Em rápidas palavras, explicou o que acontecera com Fiona no parque. A dama ordenou, imperturbável. — Mattie, parece que a srta. Fiona passou por um choque ao cair do cavalo.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Necessita de uma boa xícara de chá e de repouso. Faça com que Lorraine fique ao seu lado durante a noite. — Não é necessário, tia Honore — protestou Fiona. — De verdade! — Insisto. Mattie, tome as providências. A velha ama se aproximou da sobrinha de lady Alameda e segurou-a com delicadeza. —Venha, querida. Precisamos colocá-la na cama e tomar conta do seu braço. Antes de ser arrastada para fora, Fiona estendeu a mão para lorde Wesmont e sorriu com simpatia. — Um mero agradecimento pelo que fez por mim é pouco. Entretanto estou muito grata, milorde. Mais do que possa imaginar. Tyrell nada disse, porém levou-lhe a mão aos lábios e beijou-a. Honore interrompeu a cena com o tom de voz de comando que lhe era peculiar. — Lorde Wesmont, desejo trocar uma palavra com o senhor em meu escritório. Mattie tratou de levar Fiona e, com relutância, Tyrell voltou-se para acompanhar a condessa, que fechou a porta atrás do convidado, mudando a expressão severa para outra de raposa esperta. — Suponho que deseja saber sobre minha decisão — começou o lorde com voz cansada. — Não seja ridículo! — dardejou Honore, — Tenho assuntos mais importantes para discutir no momento. E sobre sua decisão, soube qual seria desde a primeira vez que o vi ou quem sabe até antes. — Superestima suas qualidades de observação, milady. Não podia saber nem antes nem agora o que decidi, pois só cheguei a uma conclusão esta manhã. Honore respirou fundo e olhou para o teto como a pedir paciência. — Está certo — murmurou. — Mas vamos ver se cheguei perto? Descobriu esta manhã que está loucamente apaixonado por Fiona, que o excita e faz seu coração bater como nenhuma outra mulher até hoje conseguiu. Concluiu que não conseguirá ser feliz a não ser que se case com minha sobrinha. — Fitou-o e sorriu. — Acertei? A expressão de Tyrell tornou-se sombria, como a de um homem que acabava de descobrir que fora enganado em um jogo de cartas. Honore voltou a sorrir com malícia. — Vamos lá, rapaz! Percebi os sintomas da primeira vez que pus os olhos em você. Não é tolo para imaginar que lhe dei carta branca a respeito de minha sobrinha, é? Acha que sou irresponsável para oferecer uma virgem em sacrifício? Soltou uma risada e balançou a cabeça. Tyrell cerrou os dentes e ficou ainda mais carrancudo. Lady Alameda parou de rir e um brilho furioso surgiu em seu olhar. — Não é possível que tenha pensado tão mal a meu respeito! Fiona é sangue do meu sangue! — Sim, sou um tolo. Não só acreditei no que me propôs como a considerei uma pessoa sem caráter. — Meu caro lorde, está subestimando seu próprio caráter. Conheço-o o suficiente para saber que é um homem muito decente e que jamais aceitaria a oferta de tornar Fiona sua amante. Confesso que brinquei com fogo e blefei, mas tinha certeza de que se manteria íntegro. — De fato, milady, brincou com fogo e pôs em risco a virtude e a reputação de sua sobrinha. E se estivesse enganada a meu respeito? — Nunca me engano! Sou mestra em julgar o caráter dos outros. — Abanou

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin a mão em um gesto característico de pouco caso, mas logo ficou séria e pensativa. — Bem, em geral não me engano. — Franziu os lábios e fingiu examinar as estantes recobertas de livros. — Venha, Wesmont. Não o trouxe aqui para provocá-lo. Indicou-lhe uma poltrona que Tyrell recusou, e sentou-se atrás da escrivaninha. Fitando-o de modo distraído, começou a brincar com a pena no tinteiro. — Diga-me, lady Alameda, por que me trouxe ao seu escritório? — perguntou, começando a ficar impaciente. — Necessito de sua ajuda. — Tyrell arregalou os olhos e sorriu. — Difícil de acreditar, depois que acabou de me explicar como me manipulou como se fosse uma peça de um jogo de xadrez. — Não o manipulei, seu tolo. Apenas coloquei-o em uma posição que o obrigou a analisar seus próprios sentimentos. Foi assim tão terrível descobrir que ama minha sobrinha? Sente-se infeliz? Tem ganas de me dar uma surra? — Sim! Foi terrível! — Tyrell bateu com o punho no tampo da escrivaninha. — Não faz idéia como! — Baixou a cabeça e murmurou. — E não quero lhe dar uma surra. — Fitou-a com ar zombeteiro. — Talvez apenas estrangulá-la. E... não me sinto infeliz. — Ótimo. Então não vai se importar de me ajudar. No momento temos um problema maior para resolver, meu caro. — Parou de brincar com o tintureiro, e encarou Tyrell — Creio que a vida de Fiona corre perigo. Ante o silêncio sepulcral de lorde Wesmont, prosseguiu em voz baixa. — Tenho sérias dúvidas de que esteja a salvo aqui em Alison Hall. Talvez nunca tenha estado. Não sei... Meus instintos não me enganam e não se pode negar o que nossos olhos vêem. Deve ser verdade. Julguei mal uma certa pessoa, dei-lhe um valor errado, e no momento temo pela vida de minha sobrinha. Fitou Tyrell de modo especulador, tentando ver sua reação. — O que está dizendo, milady? — Wesmont semicerrou os olhos, procurando digerir o que acabara de ouvir. — Alguém está tentando ferir Fiona? Matá-la? — Sim, acredito nisso. Honore aguardou de maneira paciente que Tyrell colocasse os pensamentos em ordem. Por fim, o nobre compreendeu. — Alameda! Milady o viu agir? Serrou a base da coluna grega e a empurrou sobre Fiona? Assim dizendo, agarrou as bordas da escrivaninha como se fossem os ombros da condessa e pretendesse sacudi-la até obter uma resposta. Honore baixou os olhos por um instante e logo voltou a fitá-lo. A resposta era óbvia e não precisou dizer nada. — Vou matar aquele bastardo! — rugiu Tyrell. Virou-se para ir embora, mas lady Alameda correu em seu encalço, bloqueando-lhe a saída. — Se Marcus fosse de fato um bastardo, eu mesma lhe daria uma arma e seria sua madrinha no duelo. Mas Marcus é o único herdeiro de meu Francisco, e o pai o adorava. Permita-me resolver o problema a meu modo. Wesmont inclinou a cabeça e fitou-a com o olhar brilhante de ódio. — Afaste-se da porta, milady. Honore repousou as mãos sobre o peito de Tyrell. — Acredite em mim — murmurou com persuasão. — Faremos com que receba um castigo bem maior se agirmos do meu modo em vez de matá-lo em um duelo ou em qualquer outra circunstância. Seria muito fácil e rápido. Não haveria

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin beleza nem engenho nisso. Tyrell semicerrou os olhos de modo céptico. Pouco se importava com beleza ou engenho quando se tratava de Marcus Alameda! Só queria proteger a mulher que amava. — Pense com cuidado, Wesmont — prosseguiu Honore. — Quer ser exilado de seu país ou ir para a prisão apenas porque viu tudo vermelho na sua frente e atirou na cabeça confusa de meu enteado? Vai permitir que a raiva o possua sem tentar usar o cérebro? — Farei o que for preciso para proteger Fiona, milady. — Muito nobre de sua parte, mas minha sobrinha está a salvo por enquanto. Amanhã... Bem, por isso preciso de sua ajuda. — Sorriu com bondade. — Deixeme explicar... Wesmont hesitou por um segundo, mas então ouviu enquanto Honore expunha seu plano. Dessa vez, aceitou a poltrona que lhe fora oferecida pela dona da casa, e ambos juntaram as cabeças, sussurrando, conspirando, discutindo, concordando e discordando de detalhes, até chegarem a uma conclusão e se comprometerem com o plano. Só então Tyrell se levantou e foi embora, tendo mudado de opinião a respeito da condessa Alameda. Era sem dúvida uma mulher inteligente e de valor.

Capítulo X A manhã seguinte surgiu resplandecente. O sol brilhava como uma enorme vela que desejasse incendiar Londres. Criados circulavam em silêncio por Mayfair, no aguardo de que seus patrões aristocratas acordassem. Mal-humorado, Marcus apeou de um coche e subiu, cambaleante, a escadaria de Alison Hall. Após perambular pela casa fazendo muito barulho e gritando pelos criados, despiu-se e caiu sobre a cama, mergulhando o rosto nos travesseiros macios, mas seu estupor foi interrompido por um grito agudo. Um segundo grito se seguiu, empanando a paz e a beleza da manhã. Um terceiro grito penetrou o cérebro de Marcus como um punhal agudo, fazendo-o abrir os olhos. Os sons de passos apressados no corredor o fizeram despertar completamente e agir. Levantou-se da cama e abriu a porta do quarto com um repelão, encostando-se no batente e berrando: — O que está acontecendo... Suas palavras foram interrompidas, pois do outro lado do corredor, na ala seguinte, ouviu os gemidos de Honore. Uma criada passou por ele correndo, e estremeceu ao ver o nobre parado ali. Só então Marcus percebeu que estava nu. Voltou para o quarto, agarrou um roupão do armário, e seguiu par a ala leste. Gritando com todas as forças de seus pulmões, lady Alameda se fazia ouvir na casa toda. — É culpa dela! Tudo por causa daquela moça miserável! Tragam-na aqui! Fiona! Fiona! O motivo do alarido já corria para o quarto da tia, os pés descalços soando nas tábuas de madeira do assoalho, a camisola branca flutuando à sua volta, e os cabelos soltos dançando ao vento. Fiona parou à porta aberta do quarto da tia, e tampou a boca com as mãos. Do lado de dentro, Honore a fitava da cama, com o rosto vermelho, inchado e

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin quase irreconhecível. Os cabelos revoltos emolduravam-lhe as feições congestionadas. Lady Alameda estendeu uma mão deformada pelo inchaço, e Fiona percebeu que todo o corpo da tia devia estar no mesmo estado. — O que é isso? O que lhe aconteceu?—murmurou a sobrinha, correndo para a beira da cama. Honore a fitou de modo incrédulo. — Ousa me perguntar o que aconteceu? Vou dizer! Você! Foi sua presença na minha vida! Está cega? Não percebe? Sua maldição recaiu sobre mim! Do lado de fora os criados se aglomeravam, e entre eles surgiu Marcus com o roupão pendendo dos ombros. Fiona virou-se e fitou aquele mar de rostos, esperando que alguém tivesse uma explicação melhor para lhe dar, mas era óbvio que todos estavam chocados e curiosos também. — Por certo não fui eu... Fiona mordeu o lábio. Uma onda de desespero a possuiu e, arrasada, não conseguiu raciocinar direito. Sua tia sempre fora tão sensata a respeito dos boatos sobre sua falta de sorte... Por que mudara de repente? A boca inchada de Honore voltou a se mover, e Fiona a ouviu falar como se o som viesse de muito longe e um túnel se estendesse entre as duas, dificultando o entendimento. As mãos vermelhas e deformadas de lady Alameda apontaram para a sobrinha. — Isso é sua culpa! Como ousou atirar sua maldição sobre mim? Dedos grossos como salsichas seguraram o queixo de Fiona, aproximando seu rosto das feições contorcidas da tia. — Olhe para mim! Pareço uma romã madura! Culpa sua! Bem, não vou aceitar isto! Fora daqui! Suma! Do outro lado do túnel invisível, Fiona ouviu as últimas palavras da condessa que selavam seu destino. Afastou-se da cama, cambaleando. Alguém a segurou pelos ombros e levou-a para fora do quarto. Uma hora mais tarde, Fiona se viu sentada em um baú na porta de Alison Hall. Várias caixas de chapéus a rodeavam, e mal conseguia recordar o que acontecera, enquanto criadas se apressavam para arrumar seus pertences. Não se lembrava de ter descido as escadas da casa, pois tudo acontecera depressa demais. Observara o movimento como se estivesse muito longe, em meio a uma densa névoa, como um coelho encolhido de medo, à espera da faca do açougueiro. De modo muito lento, a distância que a separava da realidade começou a diminuir, e sentiu o metal duro e frio da fechadura do baú. Lorraine desceu a escada e colocou mais uma caixa ao seu lado. — Pronto. Está tudo aqui, senhorita. — A criada amassou a barra do avental, constrangida. — Sinto muito, de verdade. Não parece próprio de minha senhora agir como agiu. Por certo foi a terrível alergia, mas a senhorita verá que logo a condessa mudará de idéia. — Fitou Fiona com pesar. — E não se culpe pelo inchaço de lady Alameda. Sem dúvida foi alguma coisa que comeu. Certa vez a vi inflar como um balão depois que tomou uma sopa de moluscos. Foi só um prato, mas se cocava sem parar. Fiona olhava para Lorraine e piscava os olhos, tentando acompanhar a torrente de palavras da empregada. Às suas costas a porta se abriu, e o mordomo fez um sinal para a criada entrar. — Preciso ir, senhorita. — Sem poder se conter por mais tempo, a pobre Lorraine começou a chorar. — Não suporto me separar da senhorita. Olhe para

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin mim! Pareço uma represa com as comportas abertas! Sabe que lhe serei grata pelo resto de minha vida. Assim dizendo, plantou um beijo no rosto de sua salvadora e correu escada acima. O mordomo fechou a porta, e Fiona se viu sozinha na calçada. De uma janela do segundo andar, Honore e Mattie observaram Fiona sentada em seu baú. — Creio que correu tudo bem, não acha? O rosto congestionado da dama se abriu em um sorriso. Mattie deu-lhe um tapinha no ombro. — Sim, minha querida. Atuou como uma verdadeira atriz, e a menina engoliu a história com muito sofrimento. — Irá se recuperar. Ficou vigiando Marcus? — Claro que sim. Está convencido de que sua raiva foi autêntica. — Ótimo. Engolir aquelas ostras não foi nada fácil para mim, acredite. Mattie riu. — E os pobres animaizinhos cumpriram sua obrigação. Milady está pavorosa, inchada e vermelha como os meus cabelos. Sempre fica assim quando come ostras. — Esperemos agora que Wesmont faça a sua parte. — Garanto que não irá desapontá-la. E falando no diabo... Aí está o lorde. Honore deu mais uma olhada pela janela. — Excelente. Bem na hora. Que homem pontual! — Irá levar nossa Fiona para aquela antipática lady Hawthorn, não? — Sim. Se fosse menos convencional poderia fugir com minha sobrinha e deixar a sociedade matraquear por algumas semanas. Seria divertido, não acha? — Sim, mas será que a srta. Hawthorn concordaria em fugir com lorde Wesmont? — Talvez. É mais audaciosa do que imaginava no início. Puxou a mim, sem dúvida. — A srta. Hawthorn é uma ótima moça. Sentirá saudade, milady. Honore deu as costas para a janela e cocou os braços já marcados por suas unhas. — Deus! Arde e coca como se todas as abelhas do mundo tivessem me picado. Quero tomar meu banho, Mattie. Agora mesmo! Mattie testou a temperatura da água na banheira de cobre. — Tudo ficará bem, milady. Encontraremos uma outra menina para ser sua protegida. Seu instinto materno é muito forte, e precisa sempre estar ocupada com o bem-estar de alguém mais jovem. Honore não respondeu nem olhou para sua antiga babá, pois tinha os olhos marejados de lágrimas. — Mattie, coloque o pó medicinal na água. Esperemos qu alivie a coceira. Sentado em sua carruagem, Tyrell viu Fiona no meio da bagagem dispersa pela calçada, muito antes de mandar o cocheiro se deter. Tocou a aba do chapéu, mas a jovem pareceu não vê-lo. Kip saltou da traseira do veículo e abriu a porta para lorde Wesmont descer, fingindo não perceber a bagagem volumosa. — Bom dia, Fiona. Vim saber se deseja dar um passeio esta manhã. O dia está lindo e... A srta. Hawthorn voltou o rosto para o nobre, exibindo a tez pálida e marcada pelas lágrimas. Tyrell sentiu o remorso invadir seu coração. O diabólico plano de Honore estava causando muito sofrimento à sua amada, refletiu,

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin penalizado. Parou de fingir alegria, e pousou a mão em seu ombro. — Vejo que não mora mais na casa de sua tia. Venha. Vou levá-la para sua família. Quando Fiona não se moveu, inclinou-se e fitou-a nos olhos. — Não pode ficar sentada na calçada o dia todo, concorda? — Fiona aquiesceu com um gesto de cabeça. — Certo. Vai me deixar ajudá-la? Após rápida hesitação, Fiona murmurou com voz débil: — Sim, obrigada. Começou a soluçar como uma criança perdida, de modo silencioso. Tyrell entregou-lhe um lenço e ajudou-a a subir na carruagem. Sem perda de tempo, Kip reuniu toda a bagagem e colocou dentro do veículo. — Creio que não irá acreditar, milorde, se lhe disser que em geral não choro — sussurrou Fiona. — Claro que acredito, minha querida, pois sei que é uma pessoa muito corajosa. Isso provocou um olhar de dúvida e Wesmont continuou. — Não estou tentando agradá-la se é isso que pensa. Admiro seu espírito intrépido desde que era criança. Nunca teve medo de nada. Costumava prender o fôlego quando a via saltar obstáculos sobre um cavalo, e não compreendia como seu pai permitia que praticasse esportes. — Então creio que perdi sua estima quando passei de corajosa a descuidada. Tyrell riu, satisfeito por ver que voltara a ser irônica. — Bem, pode imaginar como eu e meus amigos nos sentíamos ao ver uma garotinha pular obstáculos que nós, rapazes, temíamos. O pobre Freddie Boxstrom fraturou a perna quando pulou uma sebe que você acabara de saltar com toda a tranqüilidade. O coitado jurou que nunca mais caçaria comigo se você estivesse presente também. — Soltou uma gargalhada. — Chamou-a de filha atrevida de um pai muito benevolente. — Fico encantada em ouvir isso. — Sim, Freddie se intimidou com sua audácia. — Não sou audaz. Jogue-me em uma sala cheia de gente, e ficarei inibida. — Oh?! Então também tem seu calcanhar de Aquiles! A carruagem deu um solavanco e Fiona viu-se atirada nos braços de Tyrell, o que era muito agradável, mas perigoso. Deixou que Wesmont a enlaçasse pelos ombros, e continuou a conversa. — É muito mais fácil lidar com animais e a natureza do que com as pessoas. Por mais que tente, sempre aborreço os outros. — Todos nós aborrecemos quem amamos de vez em quando. Os seres humanos são mais complicados, porém também sabem retribuir e nos dão alegrias e prazer. Fitou-a de maneira proposital. Observou como suas palavras provocavam um rubor que descia das faces sedosas até o pescoço longo de sua amada. Retirou o braço que a enlaçava, não por medo de seus sentimentos, mas por compreender que não era o momento certo. Fiona precisaria estar serena e racional quando chegassem a casa de Londres de lady Hawthorn. Entretanto, não se conteve e acariciou-lhe o rosto, desejando que as circunstâncias fossem outras. Pigarreou e começou a falar em tom professoral. — Prometa-me que irá enfrentar as pessoas ao seu redor com a mesma coragem que demonstra ao saltar cercas. Talvez precise dessa valentia daqui a

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin pouco, quando estiver com sua família. — Oh! Mas levará mais de um dia de viagem até chegarmos ao campo... Wesmont franziu a testa. — Não sabia que sua madrasta e Emeline estão em Londres? — Como?! Deve estar enganado! Mas nesse instante a carruagem se deteve em frente a uma residência elegante. Aquele dia provou ser cheio de lances inesperados. Fiona reconheceu o mordomo de sua família, que a fez entrar com Wesmont. — Um momento, srta. Hawthorn. Vou chamar sua madrasta. Estão todos correndo de um lado para o outro porque amanhã será o baile da srta. Emeline. Assim dizendo, o mordomo deixou a sala. — Não sabia que Em teria um baile — murmurou Fiona. — E não me avisaram que estariam em Londres. Nem um bilhete para tia Honore ou um convite... Deus! Não me querem aqui, Tyrell! O lorde balançou a cabeça em negativa, embora no íntimo concordasse com a suposição. Porém, odiava ver Fiona magoada. — Deve ter sido um mal-entendido ou erro dos correios, minha querida. — Não! Sei que minha madrasta me julga azarada. Querem evitar que estrague a festa de Em. Leve-me embora daqui, por favor! Ficarei em um hotel e pela manhã tomarei uma carruagem de aluguel até Thorncourt. Dirigiu-se para a porta, mas Tyrell a deteve. — Espere! Pelo menos fale com seus parentes. É óbvio que precisam saber o que aconteceu com você. Se não ficarem felizes em vê-la, eu mesmo a levarei a Thorncourt. Nesse instante a voz de lady Hawthorn se fez ouvir. — Não! Não! — gritou para um criado que passava com um vaso com palmeiras. — Já disse para pôr na sala de jantar. O salão de jogos está repleto de plantas. O homem parou de supetão e murmurou com má vontade: — Muito bem, milady. Virou-se para cumprir a ordem, mas Emeline o fez se deter de novo. — Pare aí! Gritou de modo ríspido, surgindo de outra porta, enquanto o pobre mordomo esperava sua vez para anunciar os visitantes. — Esqueceu, mamãe? Passei todas as plantas do salão de jogos para o de baile, que estava sem nada. Não queremos ambientes vazios, concorda? E tenho certeza que os convidados irão preferir muitas plantas ao lado da pista de dança. Essas palmeiras são tão pequenas... Pode colocá-las no salão de jogos. — Como ousa dizer que o salão de baile está vazio? Gastei uma pequena fortuna no florista! — Claro, mamãe. As flores são lindas e têm um perfume divino. Mas deve admitir que não são em número suficiente... para garantir privacidade. — Do que está falando? Não vou transformar minha casa em um parque onde os casais se escondem atrás das plantas para namorar. Nesse momento Tyrell pigarreou a fim de se fazer notar. Lady Hawthorn se voltou e o viu parado no saguão. Então divisou Fiona com um braço na tipóia e o outro pousado sobre o de Wesmont. A dama engasgou, mas logo tratou de se aprumar. Emeline levou a mão aos cabelos a fim de constatar que estava bem penteada, e o criado colocou o vaso com a palmeira no chão, suspirando, aliviado pela interrupção.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Meu caro lorde Wesmont... e Fiona, que bom vê-los! — Lady Hawthorn se aproximou com as mãos estendidas, um sorriso desenhado no rosto, e Emeline a seguiu. Tyrell não largou o braço de Fiona para cumprimentá-las, com medo de que a jovem saísse correndo. De fato, a força que fazia para se soltar o convenceu de que era isso mesmo que pretendia fazer se pudesse. Segurou-a com firmeza, e fez um cumprimento de cabeça para as damas. Fiona relanceou um olhar para o companheiro e depois fitou a madrasta. — Lamento ter chegado em momento tão impróprio — murmurou. — Já vamos embora. Assim dizendo, tentou se virar, mas Tyrell a reteve no mesmo lugar. — Infelizmente, lady Hawthorn, viemos aqui trazidos por circunstâncias desagradáveis — disse Tyrell com voz severa. — Lady Alameda está com uma terrível alergia e achou melhor que Fiona deixasse Alison Hall. Sua bagagem está em minha carruagem aí fora. Fiona arregalou os olhos, fitando-o. O lorde estava torcendo os fatos para que a família a recebesse. Bem, não daria certo. — Não tem importância — falou com firmeza. — Arranjarei outro lugar para ficar até voltar a Thorncourt. Garanto, minha madrasta, que não teria vindo se soubesse que planejava um baile para Emeline. — Ora, Fiona, pare com isso. O que lorde Wesmont irá pensar? É claro que sabia do baile — dardejou Emeline. — Estou certa de que mamãe lhe enviou um convite, não é verdade? Voltou-se para lady Hawthorn, mas com os olhos cravados em Tyrell. A mãe franziu a testa, contrariada. Era óbvio que a filha tentava jogar-lhe toda a culpa da gafe. Semicerrou os olhos, porém continuou sorrindo, e falou com voz plácida e doce. — Querida Em, tenho certeza de que pedi a você para enviar. — Emeline tratou de esconder a irritação. —Que tolice da minha parte! Pensei que seria a senhora a avisar minha irmã. — Levou os dedos aos cachos louros com um movimento sedutor, sempre olhando para Tyrell. — Deve estar nos julgando duas tontas, milorde. Nossa única desculpa para tamanha falta é que estávamos muito ocupadas com a mudança para Londres. — Fez beicinho com os lábios rosados. — E os preparativos do baile têm sido exaustivos. Mas por certo será a sensação da temporada. O rosto de Fiona era uma máscara de mágoa e confusão ao fitar a irmã. — Não sabia que viria a Londres para a temporada, Em. Nunca me disse uma palavra a respeito. — Bem, escrevi-lhe antes de deixar o campo. O correio deve ter feito alguma confusão, como sempre acontece. Essa é a única explicação possível. — Sim, creio que foi isso. — Fiona mordeu o lábio. — De qualquer modo, não quero incomodá-las em um dia tão agitado. Lorde Wesmont irá me instalar em um hotel não é, milorde? Lady Hawthorn, que não era tola para se deixar ver uma madrasta má, deu um tapinha conciliador no ombro da enteada, e assumiu um ar maternal. — Tolice, querida. Ficará conosco. Seria absurdo deixá-la ir para um hotel. Enlaçou a cintura da enteada, e falou com o criado que continuava imóvel com o vaso de plantas aos pés. — Traga a bagagem da srta. Fiona que está na carruagem de lorde Wesmont. O homem tratou de obedecer, e lady Hawthorn se afastou da enteada,

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin virando-se para Tyrell. — Milorde, agradeço-lhe por trazer minha outra filha até nós. Estamos muito agradecidas, e esperamos vê-lo no baile amanhã. Tyrell aquiesceu com um gesto elegante e sorriu para Emeline. — Não perderia acontecimento tão importante. Então voltou-se para Fiona, tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios, desejando apagar todo o seu sofrimento. — Precisa me conceder a primeira valsa. — Obrigada, milorde, mas creio que ficarei em meus aposentos. Meu braço ainda não está bem para que possa dançar. — Mas uma valsa apenas... — Não posso — insistiu Fiona, buscando com o olhar o apoio da madrasta. — Por certo, milady, compreende meus motivos. — Tratou de ser franca e direta. — Se comparecer ao baile, sem dúvida, provocarei algum acidente. Alguém irá se machucar, e o evento estará arruinado. A expressão de lady Hawthorn tornou-se calculista. — Mas, pelo que ouvi dizer, minha cara, é a grande atração da temporada. Não tem recebido dezenas de convites? Claro que sim, porque muitas senhoras vieram me procurar para saber seu endereço, e dei-lhes o de Alison Hall. — Bateu com a ponta do dedo no rosto. — Creio que sua presença irá abrilhantar a festa de Emeline. E se algum pequeno incidente ocorrer... Bem, será motivo de sensação. Sim, Fiona, é preciso que compareça e dance a valsa com lorde Wesmont. Assim dizendo, sorriu para os dois, satisfeita com o próprio raciocínio. Emeline, porém não parecia muito feliz. Sabendo que fora vencida, Fiona murmurou: — Então vamos rezar para que ninguém se machuque. Nos últimos tempos tenho causado muitos danos... O incidente da coluna grega voltou-lhe à mente, e estremeceu de leve. Tyrell nada mais desejava além de apertá-la entre os braços e consolá-la, mas jurara à Honore que não contaria sobre o plano até que tudo estivesse esclarecido. —Tudo dará certo, confie — replicou com segurança. — Devo partir agora, mas nos veremos no baile amanhã. Wesmont deixou a casa dos Hawthorn com o pensamento voltado para Marcus Alameda. O sem-vergonha nunca mais iria incomodar Fiona, disse a si mesmo. Na manhã seguinte a condessa Alameda permaneceu deitada em seus aposentos, bebericando chocolate quente e lendo os jornais. A vermelhidão e o inchaço haviam desaparecido quase que totalmente. Marcus entrou em seu quarto, usando o roupão e massageando as têmporas. A madrasta ergueu o rosto e sorriu. Como era lindo com os cabelos negros despenteados e os olhos cheios de sono, pensou. Parecia ainda o menino que conhecera. — Mandou me chamar, milady? — Sim, meu caro. Mattie trouxe uma bandeja para você também com uma omelete de queijo e cogumelos, como gosta. Tome o café da manhã comigo e vamos discutir alguns assuntos. Marcus franziu a testa e olhou com relutância para a bandeja. — Jamais como antes do meio-dia.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Bem, acabei de ouvir onze badaladas, e será o suficiente. Sei que ficará muito interessado no que lhe direi, entretanto me recuso a conversar se não comer. Ante tais palavras, Marcus pareceu se animar, e deixou-se cair em uma poltrona. — Quando fui chamado, pensei que estivesse morrendo e queria me comunicar seus últimos desejos — brincou. — Bobagem! Jamais faria minha última confissão para você. Além disso, só os bons morrem jovens, e sem dúvida ainda não sou velha. — Já não é uma menina também — provocou-a o enteado. — Que quer dizer com isso? — Nada. Mas devo admitir que sua aparência está bem melhor hoje. — É verdade. — Honore serviu-se de sua omelete. — Coma antes que esfrie, Marcus. Porém, o enteado brincou com a comida e deixou-a no prato. — Trate de ficar forte, rapaz! Quero ter bastante atividade hoje, pois ontem fiquei o tempo deitada ou tomando banhos. Estou muito entediada, e tenho mil coisas a fazer antes do baile das Hawthorn hoje à noite. Marcus arregalou os olhos. — Não pode estar falando sério. Como irá comparecer depois que expulsou a garota daqui? De modo automático, enfiou um pedaço da omelete na boca e sentiu o gosto delicioso de creme de cogumelos. Honore sacudiu o garfo no ar. — Claro que irei. Não me recordo de ter recebido um convite, mas isso é o de menos. Não podem me expulsar, podem? Afinal, pertenço à família. Marcus continuou a comer com apetite. — E por que deseja ir? Já se esqueceu do que Fiona lhe fez? — A condessa partiu uma torrada. — Quer dizer pelo fato de ter inchado como um sapo e ficado toda vermelha? — Sim. Foi culpa de sua sobrinha, você mesma disse. A tal maldição. — Olhou para o prato, encantado. — Excelente omelete! Mattie se superou. — Direi à Fiona o que falou a seu respeito. — Honore fitou o enteado e sorriu. — Meu querido rapaz, não acredita nessa história de azar e maldições, não é verdade? É uma pena que Fiona esteja convencida de que carrega má sorte, e que sua madrasta tola concorde com isso. Mas você não crê nessas coisas. — Bem, talvez não sempre, porém no caso de Fiona os acidentes costumam acompanhá-la. Entretanto, por que a expulsou de Alison Hall se não acredita nisso? Honore pareceu não ouvi-lo. — Sim, várias coisas aconteceram com ela. — A condessa mordeu a torrada com vontade. — Entretanto fico pensando qual foi sua parcela de culpa em tudo isso, meu querido. Marcus engasgou com a omelete, e engoliu com dificuldade. Tratou de se recompor, e perguntou com voz inocente: — O que quer dizer? — É um homem inteligente. Diga-me você. Quantas tentativas falhas executou para eliminar Fiona? Vejamos. A queda de Lorraine no mar... Será que foi a mulher errada quem caiu? E quando o coche de Wesmont foi abalroado da primeira vez que levou minha sobrinha a passear? Ele me contou que, se não tivesse dominado os cavalos, seria um desastre terrível. E será que o acidente de Fiona com o cavalo foi mesmo... uma fatalidade? — Encarou Marcus com olhos

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin brilhantes. — Ou você providenciou algum rasgo na sela? E o tropeção do príncipe regente... — Pare! — Marcus se levantou com um pulo, vermelho como um pimentão. — Nada tive a ver com a queda do príncipe no meio do salão! Isso não foi culpa minha! — Percebo. — Honore bebericou o chocolate com toda a calma, contente por ver que o enteado estava se traindo aos poucos. — Porém por que tramar contra Fiona? Pensou que não deixaria meu dinheiro para você? Lorde Alameda passou os dedos pelos cabelos e empalideceu. De modo desconfortável, olhou em torno, percebendo que se traíra. — O que esperava que fizesse? Como viveria sem dinheiro? Estava planejando deixar tudo para Fiona, não? Impossível permitir que uma menina do campo me usurpasse a fortuna. Fitou Honore nos olhos, mas a condessa estava com o rosto abaixado para o prato, e brincava com o garfo. — Então, milady? Confesse. Pretendia deixar tudo para Fiona. Honore ergueu os olhos. — Não havia necessidade. Soube desde o início que Fiona se casaria com Wesmont que é muito rico. Marcus a encarou de boca aberta, e balançou a cabeça com descrédito. — Está mentindo, é claro. Pensou em modificar seu testamento em favor de Fiona. Chegou a insinuar isso. — Pode ser. E você em seguida tentou me eliminar com um tiro para que não mudasse o testamento, mas graças a meu cabeleireiro francês, por quem rezo todas as noites desde então, mirou um pouco acima de minha cabeça, porque meu penteado era muito alto, e a bala passou sem me atingir. Arqueou as sobrancelhas e sorriu, enquanto Marcus passava a língua pelos lábios ressequidos. — Não, meu caro, nunca pensei em tornar Fiona minha herdeira. Estava brincando com você, provocando-o, porque isso me dá prazer. Por isso falei mal de Fiona na sua presença, dizendo que a julgava uma carola maçante. Só queria ver sua reação, e quase ri ao notar que suspirava de alívio. Gosto de observar como passa da alegria para a tristeza todas as vezes que menciono alguém como provável herdeiro de minha fortuna. — Tomou um gole de chocolate e prosseguiu. — Na verdade, queria lhe deixar tudo porque tinha esperanças de que passasse a tomar conta do que é seu. Por falar nisso, sabe quem é meu herdeiro no momento? Vendo que Marcus permanecia imóvel, prosseguiu com toda a calma: — Fiz de tudo para proteger Fiona. Sabe que o vi empurrar a coluna grega para cima de minha sobrinha? Confesso que fiz de tudo para que pensasse que estava contra ela, a fim de lhe dar uma falsa sensação de segurança. Entretanto, acho que não vou lhe contar quem é meu herdeiro. Marcus deixou-se cair de novo na poltrona. — Não importa. Por certo não sou eu. — Seria tolice de minha parte dar-lhe tudo, pois em questão de meses dilapidou a fortuna que seu pai lhe deixou. Está certo que Francisco não era nenhum Modas, mas... — Por Deus, Honore! Quando vai aprender a usar as palavras certas? É Midas! Rico como Midas, o rei que transformava tudo que tocava em ouro! — Tanto faz. Entendeu o que quis dizer. Seu pai não era nenhum rei Midas, mas deixou-lhe bastante, e você esbanjou tudo. Meu Francisco lhe deu uma boa

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin quantia em dinheiro e uma vasta propriedade em Portugal. Quase nada mais resta disso tudo. Honore balançou a cabeça com desânimo, enquanto Marcus ficava mais nervoso a cada instante. Sentia na boca um gosto amargo como fel. — Joga muito, e em breve minha fortuna também sumiria em suas mãos — prosseguiu Honore. — Quer parar com isso? — gemeu o enteado. — Não estou disposto a ouvir sermões. Honore pareceu não ouvi-lo, e continuou: — Deixarei minha herança para quem lhe der valor. Gosto muito de você, meu caro Marcus, mas foi estragado por mimos. Sabe que tenho cinco irmãos? Todos casados, e cada um com vários filhos. Tenho dezesseis sobrinhos e sobrinhas e terá que matar todos para alcançar minha herança total. — Sorriu, como se estivesse dando uma boa notícia. — Sem falar nos meus amigos que cuidam de vários negócios para mim. Em síntese, tenho vinte e duas pessoas que podem se candidatar a herdar meu dinheiro. Marcus gemeu, e a condessa riu. — Seria uma carnificina para que pusesse as mãos em tudo e gastasse nas mesas de jogos e nos bordeis. O enteado enterrou o rosto entre as mãos, e assim ficou por vários minutos. Por fim ergueu a cabeça com ar cansado. — Podemos discutir isso mais tarde? Não me sinto bem. — Sei como se sente, meu querido, mas precisamos finalizar nossa conversa, já que irá embarcar em um navio para uma longa viagem. Gostou da omelete? Mattie fez especialmente para você e usou um tipo raro de cogumelo. Marcus arregalou os olhos, apavorado. — Deus! Fui envenenado! Honore examinou as unhas com ar entediado. — Ora, Marcus! Envenenamento é uma palavra muito forte. Não o envenenei, pode ficar sossegado. Já não disse que gosto de você? Poderia ter se transformado em um homem digno, porém seu pai sempre fez questão de afastar todos os problemas de seu caminho, fazendo-lhe qualquer vontade, e isso foi um grande erro. — Ergueu os olhos toldados de tristeza. — Não irá morrer se é isso que o aflige. Pelo menos creio que não morrerá se conseguir chegar em Portugal a tempo. — Fitou-o dessa vez com frieza. — Mandei um emissário na frente com o antídoto, que o aguarda em suas terras. Assim dizendo, pôs de lado a bandeja, e afastou as cobertas. — Precisamos nos apressar, querido. Meu cocheiro já está pronto para leválo ao cais e comprei uma passagem no navio mais veloz disponível com destino a Portugal. Deverá chegar em dois ou três dias, tempo suficiente para correr até sua propriedade e beber todo o conteúdo da garrafa com o antídoto. Então ficará saudável dentro de poucos dias... ou semanas. Marcus a fitava de modo incrédulo, pensando que a madrasta estava completamente louca. Honore aproximou-se, sem deixar de fitá-lo um só instante. — O intendente de Francisco, Rodrigo, concordou em cuidar de você até que se recupere, e depois o ajudará na tarefa de reconstruir suas propriedades. Está ansioso para fazer isso. É uma pessoa de bom coração e sempre se queixa comigo de sua negligência... Espero que aprenda a lição e se transforme em um novo Marcus. Não se esqueça de que, do contrário, o enviarei para a forca. Marcus levantou-se e dirigiu-se para a condessa aos tropeções. Queria matá-

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin la, estrangulá-la, apertar seu pescoço até ver seus olhos saltando das órbitas. Se ao menos o quarto parasse de girar e suas pernas o sustentassem... Lançou-se para frente e caiu com o rosto sobre o colchão. Soltou um grito angustiado e depois ficou móvel. Honore sentiu uma estranha sensação. Pena. Uma semente de compaixão começou a germinar em seu peito e, de modo hesitante, acariciou os cabelos negros do enteado. — Meu querido, não percebe? Não poderia levá-lo ao tribunal. Sei que bastaria uma palavra minha para fazê-lo ser conduzido à forca ou à prisão. E Wesmont... Queria enfiar uma bala na sua cabeça! Mas todos merecem uma nova chance, não acha? E peço a Deus que o perdoe também. Marcus gemeu e a condessa continuou: — Essa foi a melhor saída. Dentro de alguns meses perceberá que sua madrasta tinha razão. Deverá me prometer que ficará em suas terras em Portugal pelo menos por um ano, do contrário terei que tomar providências muito desagradáveis a seu respeito. Aguardarei de meus amigos portugueses e do sr. Rodrigo relatórios de seu desempenho como proprietário. Afastou-lhe os cabelos da fronte. — Tente não me decepcionar, Marcus, meu querido rapaz. Prove que é mais do que uma criança mimada e bonita. Trabalhe duro e mereça seu dinheiro com honestidade. Marcus começou a tremer de modo incontrolável, e Honore puxou a corda da campainha. Não havia tempo a perder. Lady Hawthorn abanou-se com o leque e ajeitou o vestido de baile da enteada. Não era branco nem possuía laços, rendas ou fitas, mas as linhas simples e harmoniosas revelavam cada curva do corpo de Fiona. Na opinião da dama, não era um traje apropriado para uma jovem solteira, e o tecido furta-cor passava do verde para o tom de ameixa escuro, dependendo da posição da luz. — Precisava usar tal tonalidade, minha cara? É tão... estranha. — Fiona examinou o vestido. Gostava muito. — Estranha? — repetiu. — Sim. Mais apropriada para uma mulher madura, não uma menina. — Já estou quase ficando para tia, minha madrasta, não sou mais tão jovem. Pensei em usar um turbante, porém nenhum combinava com o vestido. — Um turbante?! Graças a Deus que não achou! — Lady Hawthorn suspirou. — Não tem importância. Esse traje vai servir. Onde está Emeline? Nossos convidados logo começarão a chegar. Vá ver o que minha filha está fazendo. Fiona subiu as escadas até o terceiro andar e encontrou Emeline mirando-se no espelho do quarto e sorrindo, satisfeita. Voltou-se e segurou a saia. — O que acha? Fiona sorriu para a irmã. — Está adorável. — Sei disso, tola. Quero saber se devo usar as pérolas ou os brilhantes de mamãe. O vestido de Emeline era de voile branco todo bordado, com uma saia de baixo em seda. Rendas de Bruxelas enfeitavam o decote, um laço de seda cor-derosa ornava o corpete, e outros menores pontilhavam a barra da saia. Segurou em uma das mãos um colar de pérolas e na outra, um de brilhantes. Fiona analisou as escolhas, com um dedo sobre o queixo.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Creio que deva usar as pérolas. São discretas e chamarão mais atenção para o vestido. Emeline voltou-se de novo para o espelho de corpo inteiro. — Não. Os brilhantes são mais vistosos. Vou com eles. A criada de quarto se aproximou para colocar a jóia no pescoço da jovem ama. — Como quiser, Emeline, mas apresse-se. Nossa mãe solicita sua presença. Em breve os convidados chegarão. — Fiona, tenho um pedido a lhe fazer. Assim dizendo, Emeline examinou o efeito dos brilhantes sobre o colo delicado. — Pois não? — Espero que se lembre de que este é o meu baile — murmurou a dona da festa com voz tranqüila. — Não gostaria que chamasse muita atenção ou monopolizasse meus amigos. Fiona ergueu os ombros e o queixo com dignidade. — Não tenho a menor intenção de fazer isso. Como sempre, prefiro passar despercebida, e sabe disso muito bem. — Dispenso os discursos. — Emeline virou-se e fitou a meia-irmã com raiva. — Não quero que monopolize um certo convidado em especial. Lorde Wesmont, para ser mais precisa. Fiona abriu a boca e voltou a fechá-la, surpresa. Aquela era a última gota! Sua paciência com Emeline se esgotara, e replicou com uma certa rispidez. — Então é disso que se trata. Está interessada em Wesmont. Bem, deixe-me garantir, Emeline, que Tyrell Wesmont não é um fantoche que poderá manipular á vontade. Além disso, para mim, seria impossível monopolizá-lo, como disse, a não ser que ele quisesse. Tenho certeza de que não deseja fazer par constante com você, comigo ou com qualquer outra. Fiona bateu com o leque na coxa, e continuou. — Porém vou lhe dizer uma coisa. Se Wesmont resolver ficar comigo na festa, assim será! Dirigiu-se à porta do quarto, parou, e girou nos calcanhares a fim de encarar a irmã outra vez. — E mais uma coisa. Lorde Wesmont não aprecia jovens debutantes vestidas como bolos de casamento. Agradeceu em silêncio a companhia de tia Honore que lhe ensinara a dar boas respostas, e desceu as escadas para o salão. Furiosa, Emeline bateu com o pé no chão, e tornou a se olhar no espelho, a fim de se assegurar que estava elegante. Sorriu para a própria imagem, desfez as rugas na testa, e tratou de se convencer de que não estava parecida com um bolo de noiva. Tocou o colar no pescoço. — Tire os brilhantes — ordenou à criada. — Usarei as pérolas. Ninguém ficou mais espantada naquela noite quanto Fiona ao ver Honore surgir na fila dos convidados. Com exceção do decote profundo, o vestido da condessa era bastante respeitável com sua cor púrpura, quase beirando o negro. Ostentava um colar de ônix, e os cabelos apresentavam uma linda coloração castanha. Estava magnífica, mas um tanto ameaçadora. Quando lady Alameda veio se aproximando, Fiona não soube o que esperar. Será que provocaria um escândalo antes mesmo do baile começar? Porém Honore tomou a mão da sobrinha e sorriu com sinceridade. — Querida, sentimos sua falta em Alison Hall. Tudo ficou triste sem você.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin Seu primo Marcus foi para Portugal, e estou desolada. A casa se tornou uma tumba. Deve voltar já. — Sem esperar resposta, continuou. — Veja quem trouxe comigo! Lady Haversburg e Maria. Fiona ergueu os olhos para a fila de convidados onde sua amiga se encontrava, e Honore inclinou-se para sussurrar ao seu ouvido de modo conspirador. — E observe que Maria está acompanhada por um belo cavalheiro, o dr. Meredith, cirurgião famoso. Mas creio que já o conhece, não? Fiona permaneceu estática, sem compreender a súbita reviravolta na atitude da tia. Honore piscou um o olho com malícia para a sobrinha, antes de se afastar para cumprimentar lady Hawthorn, que precisou fazer força para conter a surpresa. — Feche a boca, minha cara — disse lady Alameda. — Vai deixar entrar moscas. Sim, aqui estou. Tenho certeza de que foi um erro involuntário de sua parte não me enviar um convite, mas fique tranqüila. Está perdoada e, como pode ver, trouxe também alguns de meus amigos. Honore segurou o queixo de Emeline. —E quem é esta? Nossa pequena Emeline? Está divina, querida. Como um bolo branco decorado em uma vitrine de confeitaria. Com um sorriso, a dama se afastou. Maria Haversburg foi cumprimentar Fiona, segurando o braço do dr. Meredith. — Espero que não se importe que tenhamos vindo sem ser convidados, mas lady Alameda insistiu. Disse que você estava muito triste depois que deixou Alison Hall, e que precisávamos alegrá-la. — Sorriu de modo encantador. — Sabe que sou sua grande amiga, não? Fiona aquiesceu, notando, satisfeita, a ausência do costumeiro odor ruim que a boca de Maria sempre exalava. Sentiu-se triunfante. — Estou muito feliz por revê-la. Lançou um olhar hesitante para o médico, lembrando-se de como o enganara dizendo ser a irmã de Maria. A srta. Haversburg pareceu adivinhar sue temores. — Está tudo bem, Fiona querida. Expliquei tudo ao dr. Meredith, que nos perdoou pela pequena mentira. Mamãe foi a primeira a notar o sucesso do tratamento e logo voltou comigo ao consultório para a segunda aplicação dos medicamentos. Ficou muito arrependida por ter confiado no outro médico por tanto tempo. — Riu, feliz. — Passou a ser a maior admiradora do dr. Meredith. O médico sorriu. — É um prazer revê-la, srta. Hawthorn. Como vai seu braço? — É verdade — interrompeu Maria. — Soubemos de seu acidente no parque, e fiquei muito aliviada quando ouvi que o dr. Meredith colocou o osso no lugar. Que sofrimento, minha querida! — Baixou o tom de voz. — Fiona, nunca disse à mamãe que foi você quem me levou a ele. Quando minha mãe viu os resultados surpreendentes e rápidos, ficou radiante, imaginando que tomei a iniciativa por conta própria, e passou a me dar mais valor. Não se importa? Tudo está se encaminhando tão bem! O dr. Meredith fitou Fiona com amigável severidade. — Poderia ter-me dito a verdade logo no início, srta. Hawthorn. Não teria recusado o tratamento. — Virou-se para Maria. — Aliás, desde o momento em que pus os olhos na srta. Haversburg não poderia lhe negar nada. Maria riu.

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin — Não é maravilhoso? O médico e a paciente se fitaram de um modo que não deixava dúvidas sobre o que sentiam um pelo outro, e Fiona tratou de se afastar, sorridente e contente pela amiga. Uma hora mais tarde o baile teve início, e Fiona permaneceu sentada, abanando-se e fechando o leque sem parar. Tyrell não viera. A tia jogava cartas em outro salão. Emeline era cortejada por vários cavalheiros, e Maria Haversburg fora à varanda com o dr. Meredith, por certo para trocar juras de amor. E eu sozinha, pensou consigo mesma. O fato de não ter provocado nenhum acidente com sua legendária má sorte não a consolava. Mesmo um escândalo seria preferível ao vazio que a rodeava. Por que lorde Wesmont não comparecera ao baile?, perguntou-se pela centésima vez. E era tudo culpa sua se estava triste, pois se permitira ter esperanças. Seus olhos tristonhos ergueram-se de novo na direção da porta principal, e dessa vez viu Tyrell no umbral. Piscou diversas vezes com medo de que sua imaginação estivesse lhe pregando peças, mas o mordomo anunciou o nome com perfeita dicção, e por todo o salão os olhares femininos convergiram para o belo nobre. Tyrell veio! O coração de Fiona parecia repetir aquelas palavras como se fosse a letra de uma doce canção. Ignorando as dezenas de olhares femininos, o lorde procurou no salão o único rosto que desejava ver, e logo descobriu Fiona sentada a um canto. Ela se ergueu para ir ao encontro de Wesmont, mas uma mão a deteve e uma voz sussurrou-lhe. — Deixe que ele venha até você, querida. — Tia Honore! Pensei que estivesse jogando. — Precisava lhe falar sobre sua volta a Alison Hall. Amanhã será ótimo. — Se não me falha a memória, a senhora me expulsou de lá, alegando que minha má sorte a fez ficar com alergia. — Aquilo foi provocado por meia dúzia de ostras que comi sabendo muito bem que me dão alergia. Meu objetivo era afastá-la da casa porque temia que Marcus lhe fizesse mal. — Sorriu ao ver os olhos arregalados da sobrinha. — Sim, querida. A esta hora meu enteado está a caminho de Portugal, e não me pergunte mais nada. As duas permaneceram paradas, fltando-se, os olhos falando mais do que as palavras. Então Tyrell aproximou-se. — Oh! Wesmont! Por favor, convença Fiona a voltar para Alison Hall amanhã. Recuso-me a vê-la morando nesta casa com a madrasta tola e a irmã invejosa. — Lamento, lady Alameda, mas isso não irá acontecer — replicou Tyrell com toda a calma. — Como disse? — Cheguei tarde ao baile porque passei o dia movendo céus e terras. — Tyrell retirou do bolso um documento dobrado. — Quando Fiona deixar esta casa será para ir morar na minha. — Ele sorriu de modo provocador. — Venci, cara condessa. Fiona olhava de um para o outro. — Parem de falar como se eu fosse um fantoche para ser puxado de um lado ao outro, sem vontade própria! E como ousa, Tyrell, dizer que me mudarei para a sua casa? — Consegui uma licença de casamento, e já que seu pai está na Espanha

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CH 336 – Amor à toda prova – Kathleen Baldwin peço à sua tia que... Fiona deu meia-volta e desapareceu quase correndo. Após procurar muito, Tyrell a encontrou em uma saleta afastada. — Quer me ouvir, por favor? — Fiona o fitou, furiosa. — Se não me engano, sempre disse que não desejava se casar, foi rude no lago naquela tarde, e afirmou que sou insuportável. De repente, surge com uma licença de casamento, sem nunca me ter consultado nem confessado... — Fitouo, percebendo a verdade. — Então me ama, Tyrell? Em resposta, Wesmont se aproximou, tomou-a nos braços e beijou-a com paixão. Os primeiros acordes de uma música soaram a distância. — Uma valsa! A nossa valsa, querida! Vamos dançar. — Fiona o deteve pelo braço. — Quer mesmo se casar comigo? Não teme as humilhações que poderei lhe causar com meus desastres? — A vida seria um tédio sem surpresas, meu amor. Amo você, Fiona, e tranqüilidade é a última coisa que desejo agora. — Também o amo, Tyrell. Desde que era criança. — Então vamos dançar, e desta vez tenho certeza de que ninguém vai tropeçar e cair.

FIM

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