John stott ouça o espírito ouça o mundo

Page 149

Em um sermão de aniversário da Sociedade Missionária (creio que em 1805), John Venn, Reitor de Clapham, descreveu um missionário nos termos a seguir. Seu eloquente retrato aplica-se igualmente a todas as testemunhas cristãs: Com o mundo aos seus pés, com o céu em seus olhos, com o evangelho nas mãos e Cristo em seu coração, ele apela na qualidade de embaixador de Deus, nada mais j sabendo a não ser Jesus Cristo, nada mais desfrutando a não ser a conversão dos pecadores, nada mais esperando a não ser a promoção do reino de Deus, e gloriando-se unicamente na cruz de Jesus Cristo, pela qual está crucificado para o mundo e o mundo para ele. 862 CONCLUSÃO

O JÁ E O AINDA NÃO Eu comecei a Introdução com a tensão entre o "ontem" (passado) e o "hoje" (presente); termino agora com uma outra tensão, entre o "já" (presente) e o "ainda não" (futuro). A primeira concerne à conexão entre o histórico e o contemporâneo; a segunda, entre o contemporâneo e o escatológico. Mas as duas tensões andam juntas. Afinal, em Jesus Cristo e através dele o "ontem", o "hoje", o "já" e o "ainda não" —passado, presente e futuro — se conciliam em uma criativa relação. Os cristãos vivem no presente, mas o fazem em gratidão pelo passado e na expectativa do futuro. Este capítulo final é um ensaio a respeito do que eu gosto de chamar de "CBE". Não, eu não estou falando do "Congresso Brasileiro de Evangelização", mas de "Cristianismo Bíblico Equilibrado". Equilíbrio é uma coisa rara em nossos dias em quase todas as esferas, inclusive entre nós que professamos seguir a Cristo. Não estou dizendo que tenho um conhecimento pessoal mais achegado com o diabo; aliás, pode até ser que alguns de meus leitores o conheçam melhor do que eu! Mas o que eu sei é que ele é um fanático e o grande inimigo de todo bom senso, moderação e equilíbrio. Um dos seus passatempos prediletos é perturbar o nosso equilíbrio e desestruturar os cristãos (especialmente os evangélicos). Quando não consegue nos induzir a negar a Cristo, ele dá um jeito de nos fazer distorcê-lo. É por isso que se vê por toda parte um cristianismo desequilibrado, em que se superenfatiza um aspecto da verdade em detrimento do outro. Graças a Deus, porém, que ele nos deu dois ouvidos, a fim de que possamos ouvir em dobro e com sensibilidade, atentando cuidadosamente para ambos os lados de cada questão; deu-nos dois olhos, para que possamos enxergar bem e não pela metade; duas mãos, para que possamos agarrar os dois extremos de cada antinomia bíblica; e dois pés, que nos permitem caminhar com estabilidade e não sair manquejando pela vida. Uma compreensão equilibrada da tensão existente entre o "já" e o "ainda não" seria de muita ajuda para a unidade cristã, e especialmente para uma harmonia maior entre os crentes evangélicos. Eu confesso que fico profundamente confuso com as barreiras que se colocam entre nós, que compartilhamos da mesma fé bíblica. Eu não estou falando, agora, nem da divisão entre Roma e as igrejas da Reforma, nem do abismo que há entre cristãos liberais e conservadores, ou seja, entre aqueles que crêem no dom da verdade revelada e aqueles cuja maior autoridade é aquilo que eles chamam de "o consenso da opinião moderna". Pelo contrário, estou me referindo à desunião que reina dentro do próprio movimento evangelical. Isto sem falar que nós cremos no Credo dos Apóstolos e no Credo Niceno, como também na substância das grandes confissões da Reforma. E tem mais: não faz muito tempo que estabelecemos um conveniente ponto de referência através do Pacto de Lausanne (1974) e sua elaboração no Manifesto de Manila (1989). Assim, estamos todos de acordo quanto aos fundamentos éticos e doutrinários da fé. Mesmo assim, parece que, constitucionalmente, somos dados a discussões e divisões, ou simplesmente a seguir o nosso próprio caminho e construir o nosso próprio império. Parece que sofremos de uma incapacidade patológica de nos acertarmos uns com os outros ou de cooperarmos juntos na 862 Michael

Hennell, John Venn and the Clapham Sect (Lutterworth, 1958), p. 245

Pg.» 166

causa do reino de Deus. Nós não podemos ignorar esta situação deveras lamentável. Quem já leu o maravilhoso conto O Pecado Secreto de Septimus Brope, de Saki?863 Nele a Sra. Troyle expressa o seu desânimo ao pensar em perder Florinda, sua empregada. "Eu tenho certeza de que não sei o que fazer sem Florinda... Ela compreende o meu cabelo. Eu mesma já desisti há muito tempo de fazer alguma coisa com ele. Na minha opinião, o cabelo da gente é como um marido: conquanto que apareçamos juntos em público, não importam as nossas divergências na vida privada!" Mas nós não temos o direito de nos considerar uns aos outros assim como a Sra. Troyle considerava seu cabelo ou seu marido. As nossas divergências, tanto as públicas como as particulares, têm importância, sim. Afinal, elas são, sem dúvida alguma, desagradáveis a Deus e prejudiciais à nossa missão ao mundo. Um exemplo disso tem relação com o tremendo progresso das igrejas pentecostais e do movimento carismático no mundo inteiro. Eles têm crescido mais rápido do que qualquer outro grupo cristão. Mas certos cristãos têm contra eles uma reação tão negativa que parece que estão correndo o risco de apagar o Espírito, ao passo que certos carismáticos são tão triunfalistas que acham difícil escutar quem porventura tenha sérios questionamentos teológicos acerca de suas crenças e práticas pentecostais distintivas. Mas, então, será que os

149


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.