História do Pensamento Cristão Vol 2

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UMA HISTÓRIA DO PENSAMENTO CRISTÃO Dos Primórdios ao Concílio de Calcedônia

Justo L. González

Volume I – Edição Revisada

Portanto, também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, ... corramos com perseverança a carreira que nos está proposta. Aos Hebreus 12:1


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PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO EM INGLÊS Já se passaram dez anos e 10 impressões desde a primeira publicação de Uma História do Pensamento Cristão – o primeiro volume foi publicado em inglês em 1970, e o terceiro em 1975. Estou extremamente satisfeito por seu uso muito difundido em universidades e seminários. Também sou grato aos colegas que, tanto em críticas publicadas como em correspondência pessoal, sugeriram meios pelos quais aquela primeira edição poderia ser aperfeiçoada. Na preparação desta edição revisada, tenho me esforçado para levar em consideração suas críticas e sugestões. É meu propósito, ainda, produzir um livro que possa servir como uma introdução ao assunto para leitores com pouco ou nenhum treinamento teológico, dando-lhes tanto o conhecimento básico necessário para estudos teológicos e históricos adicionais, quanto uma visão da rica variedade do pensamento cristão através dos séculos. Portanto, procurei evitar extensas generalizações ou conceitos puramente pessoais, o que poderiam fazer o livro mais interessante a meus colegas, mas menos proveitoso para meus futuros leitores. As mudanças nesta nova edição são muitas. Muitas delas são questões bibliográficas, atualizando referências e levando em conta as mais recentes pesquisas. Onde tais pesquisas me levaram a corrigir meus conceitos em um assunto particular, isto se refletiu em mudanças no texto. Alguns capítulos foram radicalmente reorganizados – em particular, o capítulo sobre a teologia protestante do século dezenove. Atendendo as sugestões dos numerosos críticos, também adicionei um capítulo sobre teologia contemporânea. Desde que a primeira edição foi publicada, tenho me conscientizado de dois fatores que afetam profundamente a história da teologia cristã, e raramente são suficientemente reconhecidas. O primeiro é o cenário litúrgico e comum no qual a teologia se desenvolve. Um entendimento mais pleno da teologia medieval, por exemplo, requereria uma consideração paralela sobre os tratados e discussões teológicas por um lado, e da liturgia monástica das horas por outro. Embora as relações entre a liturgia e a teologia apareçam repetidamente através destes três volumes, sinto que há muito mais trabalho a ser feito nesta área, e confesso que não tenho feito o suficiente para tecer os dois em um único tecido através de toda a história do Cristianismo. O segundo fator, na história da teologia cristã, do qual tenho me tornado mais profundamente consciente, é o contexto social e econômico e o conteúdo da teologia. Este é um campo ao qual tenho devotado muito interesse em anos recentes. Meus estudos ao longo destas linhas têm enriquecido minha apreciação por muitos dos teólogos discutidos nestes três volumes, e aprofundado meu entendimento sobre diversos temas teológicos aparentemente abstratos. Nesta edição revisada tenho me referido a questões econômicas em alguns poucos


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pontos. Contudo, dado ao propósito deste livro, servir como uma introdução a estudantes que necessariamente não conhecem as interpretações mais tradicionais, tenho me abstido de rescrever toda a história a partir da perspectiva deste discernimento particular. Espero fazer isto em dois trabalhos agora em preparação – um sobre a história dos conceitos cristãos sobre economia, e um outro sobre como os diferentes tipos de teologia, que podem ser discernidas na história do Cristianismo, relacionam-se com estes e outros temas. Em grande medida, história é autobiografia – ou talvez deveria ser dito que ela é o prolegomena à biografia de alguém. De qualquer modo, nosso conceito sobre quem somos, tanto como indivíduos quanto como uma comunidade de fé, depende em grande medida sobre o que entendemos ser nossa história. Quando esta edição for para impressão, é minha oração que seus leitores obtenham novo entendimento dela, e assim sejam ajudados no que é afinal a tarefa primária da comunidade cristã: ser fiel e obediente no mundo no qual fomos colocados. J. L. G. Decatur, Georgia 19 de Setembro de 1986


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PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO EM INGLÊS Este livro nasceu da necessidade. Ensinando em um seminário na América Latina, tornei-me dolorosamente consciente da necessidade de uma introdução geral à história do pensamento cristão, algo que fosse simples o suficiente para ser lido e entendido por principiantes, mas que ao mesmo tempo lhes desse um vislumbre da complexidade e rica variedade do campo onde estavam entrando pela primeira vez. Foi com esta diretriz em mente que o livro foi escrito, e portanto não procurei ser original no sentido de propor uma nova interpretação do curso histórico da teologia cristã. A edição em inglês, em um sentido, é um livro totalmente novo. Reuni observações e sugestões de colegas protestantes e católicos por toda América Latina que conheciam e tinham usado o livro, e as incorporei no que penso serem melhorias decisivas. Também, durante a tradução do livro para o inglês, introduzi correções em diversos pontos nos quais estudo adicional levaram-me a corrigir meus conceitos, bem como em outros pontos nos quais o uso atual do livro tem provado que eu não fui suficientemente claro. Quanto ao conteúdo deste volume – o primeiro de três – devo indicar que, por causa da clareza, tenho adiado para o segundo volume três assuntos que cronologicamente pertenceriam a este: a teologia de Agostinho, o desenvolvimento adicional da penitência após seus primórdios primitivos, e os problemas da forma e autoridade do ministério após seus primeiros estágios. Estes três assuntos o leitor encontrará interrompido e transportado para o segundo volume da História – o texto em espanhol o qual está sendo impresso aproximadamente ao mesmo tempo que este primeiro volume em inglês. Seguindo a sugestão quase unânime dos eruditos que leram este livro em espanhol, bem como meu texto original em inglês, decidi não incluir um capítulo sobre o Novo Testamento. É esperado que esta omissão seja adequadamente entendida, não como uma negação da importância do Novo Testamento, mas pelo contrário, como uma afirmação de que o campo de pesquisa do Novo Testamento é tão vasto e tão crucial que requer considerações separadas e especiais. Finalmente, uma palavra de gratidão. Tantas pessoa contribuíram para este livro que dificilmente posso chamá-lo de meu. Uma obra geral tal como esta, somente pode ser escrita porque, numa data muito antiga, milhares de monges e eruditos desconhecidos preservaram e copiaram manuscritos, produziram e publicaram edições de obras clássicas, fizeram exaustivos estudos monográficos sobre diversos assuntos, e prepararam o terreno que eu devo seguir. Outros me ensinaram tudo que sei sobre os métodos de pesquisa histórica, sobre as línguas antigas e modernas, e sobre outras ferramentas necessárias para uma obra como esta. Mais concretamente, o Dr. Roland H. Bainton e o Dr. David C. White me encorajaram em


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meu trabalho. O Dr. Bainton também honrou-me escrevendo o prefácio para este livro, enquanto que o Dr. White traduziu algumas seções dele. A Sra. Clara Sherman de Mercado também traduziu dois capítulos. A Sra. Ramonita Cortés de Brugueras muito bondosamente datilografou e redatilografou meu manuscrito em diversos estágios de produção. Com estes débitos de gratidão, eu ofereço este livro ao leitor, na esperança de que ele, de algum modo, o ajude a entender a fé da qual eu mesmo me considero herdeiro. Se ele cumprir este propósito, me sentirei mais do que amplamente recompensado. E estou certo de que os muitos crentes de todas as épocas que me ajudaram a escrevê-lo diriam o mesmo. J. L. G. Carolina, Porto Rico Julho de 1969


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CONTEÚDO Prefácio – Roland H. Bainton

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Lista de Abreviações

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I.

Introdução

15

II.

O Berço do Cristianismo

20

III.

A Teologia dos Pais Apostólicos

45

IV.

Os Apologistas Gregos

73

V.

As Heresias Primitivas: Desafio e Resposta

92

VI.

Irineu

120

VII.

Tertuliano

131

VIII.

A Escola de Alexandria: Clemente e Origenes

143

IX.

A Teologia Ocidental no Terceiro Século

175

X.

A Teologia Oriental após Origenes

189

XI.

A Controvérsia Ariana e o Concílio de Nicéia

200

XII.

A Controvérsia Ariana após Nicéia

208

XIII.

A Teologia de Atanásio

222

XIV. Os Grandes Capadocianos

231

XV.

248

A Doutrina Trinitariana no Ocidente

XVI. Os Primórdios das Controvérsias Cristológicas

256

XVII. A Controvérsia Nestoriana e o Concílio de Éfeso

270

XVIII. O Concílio de Calcedônia

281

XIX. Apostólico ou Apóstata?

291

Apêndice: Sugestões para leitura adicional

293

Índice de Assuntos e Autores

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PREFÁCIO Quando foi perguntado a Jesus, qual era o principal dos mandamentos, ele respondeu citando um versículo do Velho Testamento, mas ao fazê-lo ele efetuou uma adição importante. O texto que ele citou é a própria essência do Judaísmo: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força.” Deste modo ele lê os versículos em Deuteronômio 6:45. Mas Jesus adicionou: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu entendimento” (Mc 12:30). Esta adição fornece a raison d’être (razão de ser) deste livro. Tem havido uma contínua história do pensamento cristão porque o Mestre exortou seus discípulos a amarem seu Deus, não somente com o coração e a força, mas também com a mente. Contudo, se o Mestre nunca tivesse dado esta prescrição, seus discípulos provavelmente não poderiam ter escapado de usar suas mentes, porque eram compelidos a fazê-lo pelas exigências de sua situação no ambiente do mundo greco-romano, no qual os homens de mente aguçada propunham aos cristãos questões que exigiam profunda reflexão e distinções precisas. Os cristãos se recusavam a adorar o imperador como um deus. Assim também faziam os judeus. A razão dos judeus para se recusarem era óbvia e coerente, baseada naquele grande mandamento que Jesus citou: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus é o único Senhor”, e no mesmo lugar: “Não terás outros deuses diante de mim.” Os judeus não admitiriam a adoração de qualquer outro deus senão Yahweh, e eventualmente eles chegaram a negar a existência de qualquer outro deus. Sobretudo, eles não considerariam algum homem como um deus. Porém os cristãos se recusavam a adorar o imperador, um homem deificado, como incompatível com a adoração exclusiva de Cristo. Os pagãos, então, podiam dizer: “Por que vocês se recusam a adorar um homem como deus? Seu Cristo não era um homem?” Se o cristão respondesse: “Não, ele era um deus”, o pagão refutaria: “Neste caso vocês têm dois deuses, e por que então vocês nos acusam de politeísmo?” Deste modo, a rejeição da adoração do imperador exigia uma Cristologia. Em seus embates com o mundo pagão, os cristãos despojaram os egípcios. Exatamente como os israelitas, quando escaparam do Egito, vencendo alguns dos deuses de seus opressores, assim os cristãos utilizaram as idéias e os métodos intelectuais de seus oponentes ao dar forma a suas respostas. Falando de modo geral, as preocupações intelectuais dos cristãos, embora teológicas em vez de filosóficas, os colocou na tradição da filosofia grega; e mesmo aqueles que, como Tertuliano, censuravam o uso da erudição pagã, não obstante, na sutileza de seu raciocínio foram sucessores da herança clássica. Mas também havia um motivo no Judaísmo para as atividades intelectuais. A Sinagoga era única no mundo antigo, uma igreja sem um altar, somente uma escrivaninha para a leitura da Lei. E depois da leitura


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vinha a exposição, pois a Lei devia ser interpretada. A escrivaninha na Sinagoga era o atril1 de um professor, bem como o púlpito de um profeta. O rabi era ambos. Sugestivamente as primeiras igrejas foram modeladas conforme a Sinagoga. Assim, não havia separação categórica entre o mundo hebraico e o helênico. Eles tinham muito em comum para tornar possível uma fusão, e isto foi ensaiado antes do advento do Cristianismo. Filo, o judeu, vivendo na Alexandria de fala grega, foi o primeiro a fazer a união tão rica semelhante em riqueza e em tensão ao modo de pensar dos séculos porvir. Filo harmonizou amplamente o Judaísmo e o Helenismo, alegorizando o Velho Testamento em um sentido platônico. Os cristãos foram, na verdade, melhores hebreus do que Filo, pois embora abertos à influência platônica, todavia os cristãos, por sua insistência na encarnação de Deus na carne do homem Jesus, resistiram persistentemente a tendência platônica de menosprezar a carne como uma inimiga do espírito. A encarnação de Deus no homem Jesus envolve uma outra afinidade do Cristianismo com o Judaísmo e uma divergência da abordagem helênica da religião, porque o Judaísmo e o Cristianismo vêem a primeira auto-revelação de Deus ao homem nos eventos da história. O Eterno viola o tempo. Isto é o que supremamente acontece com a encarnação, em si mesma um evento no tempo, quando partiu um decreto de César Augusto de que todo o mundo deveria ser recenseado. O Verbo fez-se carne em um ponto no tempo. Portanto, o Cristianismo sempre deve ser orientado historicamente. Isto também significa que Deus, em Cristo, estava revelando-se a si mesmo ao homem. Isto é revelação. Ela desce de cima. Mas para o grego, embora o vidente possa experimentar visões e o devoto êxtase, todavia o conhecimento de Deus é antes o resultado de inferência do observável no mundo da natureza e do homem. Isto é essencialmente verdadeiro para a abordagem estóica e aristotélica e também amplamente no caso da platônica, onde, a partir das sombras que ele vê, o homem infere as realidades que ele não vê. Neste caso, revelação, se isto pode ser assim chamado, procede de baixo. Ela não é um depósito, mas o objeto de uma busca. Ela não é entregue em pronunciamentos, como Moisés entregou a Lei no Sinai, mas antes é esboçado no curso do diálogo no qual a mente do homem é combinada com a mente do homem. No processo, discernimentos prévios podem ser inteiramente rejeitados. Não há necessidade de ancoradouro no passado, e não há nada entregue de uma vez por todas. O Cristianismo, enraizado na história, afirma a revelação dada de uma vez por todas. Mas ainda, esta revelação deve ser explicada. E, sobretudo, ela não foi dada no Sinai em um conjunto de mandamentos ou rascunhada na forma de um conjunto de proposições. Ela foi dada em uma vida, e até mesmo na primeira geração a importância desta vida foi avaliada 1

NT – Atril, móvel feito em plano inclinado, onde se põe papel ou livro aberto, para se ler comodamente.


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diferentemente, apesar da surpreendente unanimidade dos documentos cristãos primitivos. A história do pensamento cristão é o registro da luta do homem com as implicações da autorevelação de Deus no homem Cristo Jesus. Além do mais, na maior parte, os cristãos tem estado prontos para considerar os discernimentos religiosos dos gregos como uma preparação para Cristo e valiosos para serem levados em conta no entendimento de Cristo. Consequentemente, através de toda a história do Cristianismo tem havido uma tensão entre o passado e o presente, entre o dado e o procurado, entre a revelação como um depósito em algum sentido e revelação como o alvo de um esforço, entre a fé a ser conservada e a verdade a ser adquirida. A tensão não foi resolvida pelos séculos de pensamento cristão, mas uma solução não pode ser tentada sem levá-los em conta. Este primeiro volume lida com o período primitivo. Os problemas então levantados ainda são nossos. O Dr. González tem um esplêndido domínio das idéias cardeais e uma capacidade requintada para separar o significativo do trivial e efêmero. Sua exposição é marcada por clareza singular. Ele domina as ferramentas lingüísticas para a leitura de obras antigas e modernas. Ele demonstra um amplo conhecimento da literatura recente. Sua obra pode ser entusiasticamente recomendada a leitores em qualquer língua. Roland H. Bainton Titus Street Professor Emérito de História Eclesiástica Universidade de Yale


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LISTA DE ABREVIAÇÕES ACW

Ancient Christian Writers

AkathKrcht

Archiv für katholisches Kirchenrecht

ANF

The Ante-Nicene Fathers

Ang

Angelicum

AnglThR

Anglican Theological Review

AnnTh

L’Année Théologique

Ant

Antonianum

AntCh

Antike und Christentum

Aug

Augustinus

Augm

Augustinianum

BAC

Biblioteca de Autores Cristianos

BLE

Bulletin de Littérature Ecclésiastique

BthAM

Bulletin de Théologie Ancienne et Médiévale

Byz

Byzantion

ByzZschr

Byzantinische Zeitschrift

BZNtW

Beihefte zur Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft

CAH

Cambridge Ancient History

CD

La Ciudade de Dios

CH

Church History

ChQR

Church Quarterly Review

CommVind

Commentationes Vindobonenses

CTM

Concordia Theological Monthly

DHGE

Dictionnaire d’Historie et de Géographie Ecclésiastiques

DivThom

Divus Thomas: Commentarium de Philosophia et Theologia

DKvCh

Das Konzil von Chalkedon: Geschichte und Gegenwart (ed. Grillmeier und Bacht)

DomSt

Dominican Studies

DTC

Dictionnaire fe Théologie Catholique

EphemTheolLovan

Ephemerides Theologicae Lovanienses

Est

Estudios


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EstEcl

Estudios Eclesiásticos

ExpT

The Expository Times

GitFil

Giornale Italiano di Filologia

Greg

Gregorianum

GrOrthThR

Greek Orthodox Theological Review

HD

A. von Harnack, History of Dogma (New York: Russell & Russell, 1958)

HE

Ecclesiastical History (geralmente a de Eusébio)

Hjb

Historisches Jahrbuch

HTR

Harvard Theological Review

IDB

The Interpreter’s Dictionary of the Bible

IER

Irish Ecclesiastical Record

IntkZtschr

Internationale kirchliche Zeitschrift

JBL

Journal of Biblical Literature

JEH

Journal of Ecclesiastical History

JES

Journal of Ecumenical Studies

JQR

Jewish Quarterly Review

JRel

The Journal of Religion

JRelSt

The Journal of Religious Studies

JRL

The Journal of Religious History

JTS

Journal of Theological Studies

Kairos

Kairos: Zeitschrift für Religionswissenschaft und Theologie

KΛH

Κληρονοµια

KuD

Kerygma und Dogma

Lat

Latomus: Revue d’Études Latines

LCL

Loeb Classical Library

LumVie

Lumière et Vie

MisMed

Miscelanea Mediaevalia


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MSscRel

Mélanges de Science Religieuse

MusHelv

Museum Helveticum

NAKgesch

Nerderlands Archief voor Kerkgeschiedenis

NDid

Nuovo Didaskaleion

NedTheolTschr

Nederlands Theologisch Tijdschrift

NPNF

The Nicene and Pós-Nicene Fathers

NRT

Nouvelle Revue Théologique

NT

Novum Testamentum

NTS

New Testament Studies

Numem

Numen: International Review for the History of Religions

OsCh

Orientalia Christiana Periodica

PG

Patrologiae cursus completus ... series Graeca (ed. Migne)

PL

Patrologiae cursus completus ... series Latina (ed. Migne)

PO

Patrologia orientalis

Prot

Protestantesimo

RAC

Reallexikon für Antike und Christentum

RelStRev

Religious Studies Review

RET

Revista Española de Teología

RevBénéd

Revue Bénédictine

RevBid

Revue Biblique

RevEtAug

Revue des Études Augustiniennes

RevEtGr

Revue des Études Grecques

RevScRel

Revue des Sciences Religieuses

RGG

Die Religion in Geschichte und Gegenwart. Dritte Auflage

RHE

Revue d’Historie Ecclésiastique

RicRel

Ricerche Religiose

ROC

Revue de l’Orient Chrétien

RScF

Rassegna di Scienze Filosofiche

RScPhTh

Revue des Sciences Philosophiques et Thélogiques

RStFil

Rivista Critica di Storia della Filosofia

RThAM

Recherches de Théologie Ancienne et Médiévale


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RUOtt

Revue de L’Université d’Ottawa

SBAW

Sitzungsberichte der bayrischen Akademie der Wissenschaften in München

SC

Source Chrétiennes

SCatt

La Scuola Cattolica

Sch

Scholastik: Vierteljahrschrift für Theologie und Philosophie

ScrVict

Scriptorium Victoriense

Sef

Sefarad: Revista de la Escuela de Estudios Hebraicos

SP

Studia Patristica

StCath

Studia Catholica

StTh

Studia Theologica

StVlad

Saint Vladimir’s Theological Quarterly

Th

Theology

ThBl

Theologische Blätter

ThGl

Theologie und Glaube

ThLit

Theologische Literaturzeitung

ThPh

Theologie und Philosophie

ThR

Theologische Revue

ThSK

Theologische Studien und Kritiken

ThSt

Theological Studies

ThViat

Theologia Viatorum

ThZschr

Theologische Zeitschrift

TIB

The Interpreter’s Bible

TQ

Theologische Quartalschrift

TrthZschr

Trierer theologische Zeitschrift

VetTest

Vetus Testamentum

VieSpirit

La Vie Spirituelle

VigCh

Vigiliae Christianae

WuW

Wissenschaft und Weisheit

Zkt

Zeitschrift für katholische Theologie


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ZntW

Zeitschrift f체r die neutestamentliche Wissenschaft und die Kunde der 채lteren Kirche

ZschrKgesch

Zeitschrift f체r Kirchengesschichte

ZTK

Zeittschrift f체r Theologie und Kirche


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I. INTRODUÇÃO Por causa da natureza do material com que ela lida, a história do pensamento cristão, deve inevitavelmente ser um empreendimento teológico. A tarefa do historiador não consiste em mera repetição do que aconteceu – ou, neste caso, do que foi pensado. Ao contrário, o historiador deve começar selecionando o material a ser usado, e as regras que dirigem esta seleção dependem de uma decisão que é, em um grau considerável, subjetiva. Seja quem for que escreva uma história do pensamento cristão, não pode abranger todo o conteúdo dos 382 grossos volumes de fontes originais editadas por Migne – e mesmo estes não vão além do décimo segundo século – porém é obrigado a fazer uma seleção, não somente quanto a quais obras incluir, mas também quanto às fontes a serem estudadas em preparação para a tarefa. Esta seleção depende, em grande parte, do autor, o que significa que toda história do pensamento cristão é, inevitavelmente, também um reflexo das pressuposições teológicas do escritor; e o historiador que sugere que sua obra esta livre de pressuposições teológicas, está claramente iludido. Harnack e Nygren, historiadores separados por décadas, bem como por posições teológicas diferentes, são exemplos de como as pressuposições teológicas influenciam o historiador do pensamento cristão a escrever a história de um modo diferente. Adolph von Harnack, possivelmente o mais famoso dos historiadores do dogma, publicou sua obra monumental, Lehrbuch der Dogmengeschichte, no período de 1886 a 1890. Sua posição teológica era derivada do pensamento de Ritchl, 2 a quem ele chama de “o último dos Pais da Igreja”. Ritchl se esforçava constantemente para limitar o envolvimento da filosofia no campo da religião, mostrando as distorções que ocorrem quando a metafísica está relacionada com as preocupações religiosas. Para ele, a religião é preeminentemente prática e não especulativa. Isto não quer dizer que a religião deveria ser dissolvida em mero subjetivismo. Pelo contrário, a religião estabelece aqueles valores morais que são os únicos meios pelos quais uma pessoa pode libertar-se das condições de escravidão que caracterizam a vida natural. Nem dogmas nem sentimentos místicos constituem a fé cristã, mas antes aqueles valores morais que elevam uma pessoa acima da presente vida de miséria. Começando com estas pressuposições teológicas, as conclusões de Harnack foram inevitáveis. Para ele, a história do dogma cristão era, em grande parte, a história da negação progressiva dos verdadeiros princípios do Cristianismo. Estes princípios deviam ser encontrados nos ensinos morais de Jesus. O ponto de partida, para Harnack, não era tanto a

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Uma introdução breve e boa à teologia de Ritchl pode ser encontrada em Hugh R. Mackintosh, Types of Modern Theology: Schleiermacher to Barth (Nova Iorque: Scribner’s, 1937), pp. 138-180.


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pessoa quanto os ensinos de Jesus.3 Portanto, todo o desenvolvimento doutrinário dos primeiros séculos, que giram em torno da pessoa de Jesus em vez de seus ensinos, somente poderia ser a distorção progressiva do significado original do evangelho. Portanto, o propósito da History of Dogma de Harnack é mostrar que o dogma – e especialmente o dogma cristológico – que no mundo moderno é obsoleto, nunca foi uma autêntica conseqüência do evangelho.4 Nygren começa com pressuposições muito diferentes. Sendo um dos principais expoentes da “Teologia Lundensiana”, 5 ele concebe a tarefa do historiador do pensamento cristão como sendo uma “investigação de motivos”. Esta investigação tem, em si mesma, certos fundamentos filosóficos e teológicos que determinam seu caráter. Como um exemplo disto podemos mencionar a antítese que Nygren estabelece entre o que ele considera o motivo cristão essencial, o amor do tipo agape, e o motivo judeu, a Lei ou nomos. Por causa desta antítese, Nygren acha-se incapaz de relacionar adequadamente a Lei com o evangelho, o que por sua vez produz não apenas dificuldades teológicas, mas também distorções históricas – como quando Nygren nos presenteia com um quadro de Lutero, no qual a Lei perde a importância característica que ela tinha para o Reformador.6 De sua parte, os historiadores Católicos Romanos tradicionais tendem a interpretar a história do pensamento cristão de um modo tal a enfatizar sua continuidade, pois como Vincent de Lérins disse (quinto século), somente isto deve ser crido “o que tem sido entregue em toda parte, sempre, e por todos”.7 As pressuposições e julgamentos de valor do historiador determinam a seleção do material, a construção de pontes sobre as lacunas nas fontes, e a própria maneira da apresentação, o que pode mostrar-se tão objetivo quanto divertir o leitor. Quais são as pressuposições do presente autor? É a pergunta que deve ser feita e honestamente respondida, para que o leitor possa exercitar melhor o direito de discordar. Ao lidar com o desenvolvimento da doutrina, este autor está convencido que é necessário fazer isso começando com um conceito teológico, isto é, um conceito cristão sobre 3

Harnack sumariza estes ensinos como segue: (1) o reino de Deus e sua vinda, (2) a Paternidade de Deus e o infinito valor da alma humana, (3) a justiça superior e o mandamento do amor. Das Wesen des Christentums (Leipzig: T. C. Hinrichs, 1902), p. 33. 4 Ver Joseph de Ghellinck, Patristique et Moyen Age, Vol. III: Compléments a l’étude de la Patristique (Gembloux: J. Duculot, 1948), pp. 1-102. 5 Ver meu Apêndice a Hugh R. Mackintosh, Corrientes teológicas contemporáneas (Buenos Aires: Methopress, 1964), pp. 129-165. 6 Agape and Eros (Philadelphia: Westminster Press, 1956), pp. 681-741. Conforme os comentários críticos de Gustaf Wingren, Theology in Conflict: Nygren, Barth, Bultmann (Filadélfia: Muhlenberg Press, 1958), pp. 85107. 7 Commonitorium 2. 3. Isto não significa, contudo, que a questão do desenvolvimento do dogma entre os teólogos católicos está acomodada. Pelo contrário, eruditos católicos tem produzido muitos estudos valiosos sobre temas complicados, e existe quase tanta variedade de conceitos entre eles quando há entre eruditos protestantes.


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a natureza da verdade, e que este entendimento da verdade – aqui não estamos falando sobre a verdade em si, mas somente sobre sua natureza – deve ser encontrado na doutrina da Encarnação. De acordo com esta doutrina, a verdade cristã é tal que ela não é perdida ou deformada ao unir-se com o concreto, o limitado e o transitório. Pelo contrário, a verdade – ou ao menos aquela verdade que é dada a nós – é dada precisamente ali onde o eterno une-se com o histórico; onde Deus torna-se carne; onde um homem específico, em uma situação específica, é capaz de dizer: “Eu sou a verdade”. A fim de elucidar este conceito de verdade, vamos compará-lo com dois outros com os quais ele é incompatível, e que, portanto, resultam em outras interpretações sobre a pessoa de Jesus Cristo, as quais negam a doutrina da Encarnação. Primeiro, poderíamos afirmar que a verdade existe somente dentro do domínio do eterno, do permanente e do universal, e portanto não pode ser dada no histórico, no transitório e no individual. Este conceito de verdade exerceu uma forte atração sobre a mente grega, e através dela, sobre toda a civilização ocidental. Mas um conceito como este, embora possa parecer atrativo, apenas tem levado à negação da Encarnação e à afirmação daquela doutrina conhecida como “Docetismo” (ver Capítulo VI), que, embora fazendo de Jesus Cristo um ser eterno, permanente e, até mesmo, universal, também o vê como completamente distinto daquele homem histórico e singular de que os evangelhos nos falam. Segundo, poderíamos dizer que toda verdade é relativa, que não há tal coisa como verdade absoluta entre os seres humanos. Este conceito de verdade tem estado em moda nos últimos dois ou três séculos, resultado dos enormes desenvolvimentos nos estudos científicos e históricos que nos têm feito conscientes do relativismo de todo conhecimento humano. Mas este ponto de vista, embora ele possa parecer atrativo, é incompatível com a doutrina mais fundamental do Cristianismo, a saber, a afirmação de que no evento histórico de Jesus Cristo é encontrado o próprio significado de toda vida e história, e que isto é tão verdade hoje quanto no primeiro século da era cristã. Um conceito de verdade como este poderia estar relacionado àquela doutrina cristológica chamada “Ebionismo” (ver Capítulo V), que, embora veja em Jesus Cristo um homem limitado, real e histórico, também o vê como completamente diferente daquele que os evangelhos nos apresentam como Senhor de toda vida e história – não que os Ebionitas em si mesmos fossem relativistas, mas que nos tempos modernos este entendimento da verdade freqüentemente coincide com uma cristologia ebionita. Encarado por estas duas posições, o Cristianismo afirma que a verdade é dada no concreto, no histórico e no particular, contido e escondido dentro dele, mas de um modo tal que nunca perde sua veracidade para todos os momentos históricos. Na humanidade histórica de Jesus Cristo a Palavra Eterna de Deus chega a nós que não o vimos “segundo a carne” nem


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experimentamos a proximidade com que ele confrontou os primeiros discípulos. Somente na sua encarnação histórica conhecemos esta palavra, todavia sabemos que é a Palavra eterna, que foi e será para nós “um refúgio de geração em geração”, e que chega até nós a cada momento em que proclamamos o Senhor encarnado. É este entendimento sobre a relação entre a verdade e a história que serve como um ponto de partida em nossa interpretação e avaliação do desenvolvimento doutrinário. A verdade da doutrina nunca será tal que possamos dizer: aqui está a verdade eterna e incomutável, livre de qualquer sombra ou conjuntura de relativismo histórico. A verdade da doutrina somente está presente para aquele grau em que, através de várias doutrinas, a Palavra de Deus (que é a Verdade) é capaz de confrontar a igreja com uma exigência por absoluta obediência. Quando isto acontece, esta doutrina, na verdade, torna-se o padrão de julgamento da vida e proclamação da igreja. Se isto não ocorre, então as doutrinas não são mais do que documentos que testemunham do passado da igreja. E quer isto aconteça ou não, não depende de nós, nem está intrínseca no caráter da doutrina em si mesma, porém depende antes de uma decisão do Alto. Então, todas as doutrinas são igualmente válidas? Certamente não. Além do mais, nenhuma doutrina é válida no sentido de ser capaz de identificar-se a si mesma com a Palavra de Deus.8 As doutrinas são palavras humanas com que a igreja procura testemunhar da Palavra de Deus – e neste sentido as doutrinas são uma parte da proclamação da igreja. Exatamente como no sermão, as doutrinas tornam-se a Palavra de Deus somente quando Deus as usa como instrumentos de sua Palavra, e nada podemos fazer para forçar Deus a falar por meio delas. Mas, porque Deus em Jesus Cristo chega a nós e até mesmo torna-se um objeto de ação humana, e porque a mesma coisa ocorre – embora de um modo derivado – nas Escrituras e nos Sacramentos, é possível proferir julgamento sobre a validade de uma ou de outra doutrina – sempre lembrando que tal julgamento é nosso não de Deus. É nas Escrituras – o “fundamento dos apóstolos e dos profetas” – que temos a vara de medir pela qual julgar uma doutrina. Por outro lado, as doutrinas não surgem por geração espontânea, elas não são enviadas diretamente do céu, não relacionadas com as circunstâncias humanas particulares. Os dogmas formam uma parte do pensamento cristão, do qual elas surgem e para o qual mais tarde elas servem como um ponto de partida. As doutrinas são forjadas através de longos anos de 8

Cf. Karl Barth, Church Dogmatics (Edinburgo: T. and T. Clark, 1936), 1:306: “Ali a Igreja do passado fala em dogmas – venerável, digna de respeito, autoritativa, non sine Deo, como sendo digno dela – mas a Igreja .... A Palavra de Deus está acima dos dogmas como os céus estão acima da terra.”


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reflexão teológica a partir de práticas de adoração estabelecidas, dentro do contexto de uma espiritualidade que se opõe aquelas doutrinas que poderiam parecer atacar o próprio centro da fé de uma época, e até mesmo como o resultado de intrigas políticas. Além disso, nunca houve concordância unânime entre os cristãos acerca de como e quando uma doutrina se torna um dogma. Esta é a razão de minha decisão de escrever uma “história do pensamento cristão”, em vez de uma “história do dogma”, a qual tenderia a dar mais atenção à declaração formal das doutrinas do que ao processo material pelo qual seu conteúdo se origina e eventualmente torna-se amplamente aceito. Na organização e apresentação do assunto exposto, fui guiado pelas necessidades de um livro texto para estudos teológicos. Aqui, existem duas possibilidades para cada historiador: uma ordem cronológica ou uma ordem tópica e temática. Em um livro no qual o propósito primário é servir como uma introdução à história do pensamento cristão, uma discussão de temas não se mostra aconselhável, pois o leitor que não é versado na história do cristianismo, facilmente será confundido quando presenteado com uma unidade do material que, ainda que muitíssimo, uma parte do pensamento cristão vem de períodos distintivos da história. A apresentação cronológica tem o valor indiscutível de evitar este tipo de confusão, mas sofre o defeito de enfatizar insuficientemente a continuidade das diversas correntes teológicas. É por esta razão que eu sigo um esboço que, embora essencialmente cronológico, procura manter em mente a continuidade de certos temas teológicos de importância primária.


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II. O BERÇO DO CRISTIANISMO De acordo com a tradição refletida no Evangelho de Lucas, o Cristianismo nasceu em uma manjedoura, uma cena que freqüentemente gostamos de pintar em cores tranqüilas. Porém, esta cena da manjedoura não era de fato um exemplo da indiferença tranqüila do mundo ameaçador, mas, muito pelo contrário, era o resultado de um engajamento ativo. José e Maria foram levados à cidade de Davi por causa das condições econômicas em casa e de um decreto de longe quando César Augusto ordenou a “toda a população do império para recensear-se” (Lucas 2:1). O propósito do censo era a cobrança de impostos, e o mundo ao redor da manjedoura estava repleto de amargas queixas. Em resumo, desde o começo, o Cristianismo existiu como a mensagem do Deus que “tanto amou ao mundo” que se tornou parte dele. O Cristianismo não é uma doutrina etérea, eterna, sobre a natureza de Deus, mas antes é a presença de Deus no mundo, na pessoa de Jesus Cristo. O Cristianismo é encarnação, e, portanto, existe no concreto e no histórico. O Cristianismo é inconcebível sem o mundo. Portanto, em um estudo tal como este, deveríamos começar descrevendo, ainda que sucintamente, o mundo onde a fé cristã nasceu e deu seus primeiros passos. O Mundo Judaico Foi na Palestina, entre os judeus, que o Cristianismo surgiu. Jesus viveu e morreu entre os judeus e como um judeu. Seus ensinamentos foram concebidos dentro da cosmovisão judaica, e seus discípulos os receberam como judeus. Mais tarde, quando Paulo viajou por todos os lados pregando o evangelho aos gentios, ele normalmente começava sua tarefa entre os judeus da sinagoga. Deste modo, devemos começar nossa história do pensamento cristão com um exame da situação e pensamento dos judeus entre os quais o Cristianismo nasceu. A invejável localização geográfica da Palestina causou muito infortúnio ao povo que a considerava sua Terra Prometida. A Palestina, pela qual atravessavam as rotas de comércio do Egito para a Assíria e da Arábia para a Ásia Menor,9 sempre foi objeto da cobiça imperialista dos grandes estados que surgiram no Oriente Próximo. Por séculos o Egito e a Assíria lutaram por esta estreita faixa de terra. Quando a Babilônia substituiu a Assíria, ela também herdou a Palestina, eventualmente destruindo Jerusalém e levando para o exílio parte do povo. Depois da conquista persa da Babilônia, Ciro permitiu o retorno dos exilados e fez da Palestina uma parte de seu império. Derrotando os persas em Issus, Alexandre anexou seu império, incluindo a Palestina, que ficou sujeita ao domínio dos governadores macedônios. Quando Alexandre morreu em 323 a.C., seguiu-se um período de inquietação por mais de vinte anos. 9

Ver Georges A. Barrois, “Trade and Commerce”, IDB, 4:677-683; Yohanan Aharoni, The Land of the Bible: A Historical Geography (Filadélfia: Westminster Press, 1967), pp. 39-57.


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No final deste período, os sucessores de Alexandre tinham consolidado seu poder, mas por mais de um século as duas principais famílias que nasceram dos generais de Alexandre, os Ptolomeus e os Seleucidas, lutaram pela posse da Palestina e seus arredores. No final, os Seleucidas obtiveram o domínio, mas quando Antioco Epifanes tentou força-los a adorar o deus sírio Baal-Shamin, identificando-o com Yahweh, os judeus se rebelaram sob a liderança dos macabeus ou asmoneanos, e como conseqüência eles obtiveram liberdade religiosa e, mais tarde, independência política. Esta independência, contudo, somente foi possível por causa da divisão interna da Síria, e ela desapareceu assim que o próximo grande poder apareceu: Roma. No ano 63 a.C., Pompeu tomou Jerusalém e profanou o Templo, entrando até mesmo no Santo dos Santos. Desde então, a Palestina ficou sujeita ao poder romano, e nestas condições a encontramos no advento de nosso Senhor. Sob os romanos, os judeus foram particularmente intratáveis e difíceis de governar. Isto ocorreu por causa da exclusividade de sua religião, que não admitia “deuses estranhos” diante do Senhor dos Exércitos. Seguindo sua política de respeitar as características de cada povo conquistado, Roma respeitou a religião judaica. Como conseqüência, muitos partidos na Palestina – particularmente os fariseus – assumiram uma postura pacífica e não se rebelaram contra Roma. Em pouquíssimas ocasiões, os governadores romanos interferiram nas práticas religiosas judias, mas a desordem e a violência resultante os obrigou a retornar novamente à política anterior. Nenhum governador romano teve sucesso em se tornar popular entre os judeus, embora aqueles que entendiam e aceitavam o caráter religioso de seus súditos não encontrassem oposição forte. Desta forma, os procuradores mais astutos tomavam cuidado para não cunhar pequenas moedas – as únicas usadas pelo povo comum – com a imagem do imperador, ou exibir a vistosa e idólatra insígnia romana na Cidade Santa.10 Tudo isso aconteceu porque os judeus eram o povo da Lei. A Lei, ou Torah, era o centro de sua religião e de sua nacionalidade, e esta Lei dizia: “Escuta, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor.” A Lei, como a conhecemos hoje, foi o resultado de um trabalho de compilação e organização empreendido pelos líderes religiosos do Judaísmo em uma tentativa de unificar as tradições de seu povo.11

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Sobre as circunstâncias políticas do período, ver: Stewart Perowne, The Later Herods: The Political Background of the New Testament (Nashville: Abingdon Press, 1958), Robert H. Pfeiffer, History of New Testament Times, with an Introduction to the Apocrypha (Nova Iorque: Harper, 1949); G. H. Stevenson, “The Imperial Administration”, CAH, 10:182-217: D. S. Russell, The Jews from Alexandre to Herod (Londres: Oxford University, 1967). Uma obra antiga mas ainda valiosa é a de Emil Schürer: A History of the Jewish People in the Times of Jesus Christ, 2a ed. rev. (Nova Iorque: Scribner’s, n.d.; reimpressão, Nova Iorque, Schöcken Books, 1961). Sobre o conflito com o Helenismo na Palestina, ver M. Hengel, Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine During the Early Hellenistic Period (Filadélfia: Fortress, 1974). 11 Arthur Weiser, The Old Testament: Its Formation and Development (Nova Iorque: Association Press, 1961), pp. 70-142; Otto Eisfeldt, The Old Testament: An Introduction (Nova Iorque: Harper, 1965), pp. 158-241; Outras teorias com relação a composição da Lei podem ser encontradas em Martin Noth, The Old Testament: An


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Com o passar dos anos e das lutas patrióticas, a Lei tornou-se o símbolo e o baluarte do espírito nacional judeu. Com o declínio do movimento profético, e especialmente depois da destruição do Templo em 70 A.D., ela veio a ocupar o centro da cena religiosa. Como conseqüência, a Lei, que tinha sido codificada pelos sacerdotes para regular a adoração no Templo e a vida diária do povo, tornou-se uma fonte da ascenção de uma nova casta religiosa, distinta do sacerdócio, e de um novo interesse espiritual centralizado não no Templo mas na Lei. Embora essa Lei desse mais atenção ao significado da história do que aos eventos em si mesmos, isto não significa que ela era de caráter doutrinal, mas antes que ela era cerimonial e prática. Os compiladores da Lei estavam menos interessados nos atributos de Deus do que no culto e adoração devidos a Deus. Este interesse na prática religiosa levou ao estudo e interpretação da Lei, pois era evidentemente impossível que ela pudesse tratar especificamente de todos os casos que pudessem surgir. À luz desta necessidade originou-se uma nova ocupação, a do escriba ou mestre da Lei. Os escribas eram os responsáveis pela preservação da Lei, bem como de sua interpretação. Embora diferenças de escolas e de temperamento os dividissem, eles produziram um grande corpo de jurisprudência concernente a aplicação da Lei em diversas circunstâncias. Guignebert, no parágrafo seguinte, dá uma indicação das aplicações minuciosamente detalhadas que eram feitas: O casuísmo que cresceu ao redor da Torah ... formou uma densa e quase impenetrável floresta, cujos caminhos tortuosos somente os iniciados podiam trilhar. Ele, e somente ele, teria a inestimável vantagem de saber se era ou não lícito comer um ovo posto no Sábado; se poderia, naquele dia de descanso, levantar uma escada contra seu pombal para examinar a causa de algum distúrbio ali, ou se a água derramada de um vaso limpo em um não limpo contaminava a fonte também. A observância do Sábado levantava pontos especialmente espinhosos e os judeus escrupulosos tinham que fazer uso de toda sua vigilância e discernimento para evitar as muitas armadilhas que ela apresentava.12 Isto aconteceu porque a religião hebraica estava se tornando cada vez mais pessoal numa época em que o interesse no ritual do Templo estava declinando. Em suas longas lutas, os fariseus estavam começando a vencer os saduceus; a religião da conduta pessoal estava substituindo a do sacrifício e do ritual. Isto não era, como é freqüentemente dito, uma repressão da religiosidade vital do povo judeu, pois havia muita atividade em se comentar a Introduction (Harper, 1965) e Georg Fohrer, Introduction to the Old Testament (Nashville: Abingdon Press, 1968). 12 Charles A. H. Guignebert, The Jewish World in the Time of Jesus (Londres: Kegan Paul, Trench, Trubner, 1939), p. 65.


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Escritura – a midrashim – tanto em seus preceitos – midrash halakah – como suas narrativas e seções inspirativas – midrash haggada.13 Devemos parar para fazer justiça aos fariseus, tão mal entendidos nos tempos posteriores. O fato é que o Novo Testamento os ataca, não porque eles eram piores do que os outros judeus, mas porque eles eram melhores – a mais alta expressão da potencialidade humana diante de Deus. Vendo-os sendo atacados no Novo Testamento,14 nos inclinamos a considerá-los simplesmente um grupo do pior tipo de hipócritas, mas aqui erramos em nossa interpretação, não apenas do Farisaísmo, mas também do próprio Novo testamento.15 Ao contrário do que freqüentemente imaginamos, os fariseus enfatizavam a importância da religião pessoal. Por esta razão os judeus mais conservadores os acusavam de serem inovadores que atenuavam o jugo da Lei. Numa época em que a vitalidade da adoração no Templo estava em declínio, os fariseus esforçaram-se para interpretar a Lei de tal modo que ela pudesse servir como um guia diário para a religião do povo. Naturalmente, isto os levou a um legalismo que fez deles objeto de tanta crítica, e também foi a causa básica de sua oposição aos saduceus. Mas é necessário salientar que os fariseus não eram “legalistas” no sentido de que eles exigiam obediência cega e de má vontade à lei moral e aos preceitos rituais – halakah – pois uma grande quantidade de seus restos literários são devocionais, homiléticos e tentativas humanas de trazer à tona obediência voluntária à vontade de Deus – haggada. Os saduceus eram os judeus conservadores do primeiro século. Eles aceitavam apenas a Lei escrita como sua autoridade religiosa, não a lei oral que tinha sido desenvolvida da tradição judaica. Deste modo, eles negavam a ressurreição, a vida futura, a complicada angelologia e demonologia do Judaísmo recente, e a doutrina da predestinação.16 Nisto eles se 13

Além disso, até mesmo a midrash halakah era mais dinâmica do que é geralmente suposto. “A principal característica da Halakah, em todas as suas formas e em todos os estágios de sua formação histórica, é sua validade, sua habilidade para adaptar e para evoluir, o que corresponde a sua função essencial de construir uma ponte entre a letra estável da Torah de Moisés e a vida sempre variável.” R. Bloch, “Ecriture et Tradition dans le judaisme”, Cahiers Sioniens, 8 (1954), 17. 14 E. Haenchen, “Matthäus, 23”, ZTK, 48 (1951), 38 e seguintes, argumenta que estas acusações contra os fariseus tornaram-se mais fortes por causa da tensão entre a igreja emergente e a sinagoga. 15 George Foot Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Era (Cambridge: Harvard University Press, 1954), I:56-71; Robert T. Herford, The Pharisees (Nova Iorque: Macmillian, 1924); J. Z. Lauterbach, “The Pharisees and Their Teaching”, Hebrew Union College Annual, 6 (1929), 69-139; Louis Finkelstein, The Pharisees: The Sociological Background of Their Faith (Filadélfia: Jewish Publication Society of America, 1938); William D. Davies, Introduction to Pharisaism (Filadélfia: Fortress Press, 1967); Matthew Black, “Pharisees”, IDB, 3:774-781; E. Rivkin, “Pharisaism and the Crisis of the Individual in the Graeco-Roman World”, JQR (1970-71), 27-52. 16 Devemos tomar cuidado, contudo, para não fazer injustiça com os saduceus. “Não tem sido permitido aos saduceus falarem por si mesmos perante o tribunal da história: não existe nenhum documento que é demonstravelmente, ou até mesmo provavelmente, saduceu. Conhecemos esta seita apenas a partir de ralatos no NT e na literatura talmúdica, as quais são hostis, e de Josefo, que não é simpático.” Bernard J. Bamberger, “The Sadducees and the Belief in Angels”, JBL, 82 (1963), 433. Segundo Bamberger, os saduceus não negavam a existência dos anjos, mas somente a complicada angelologia que era encontrada na literatura extra-bíblica relativamente recente.


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opunham aos fariseus, que aceitavam todas estas coisas, e por esta razão o Talmude os chama – pensamento completamente errado – “epicurista”.17 Sua religião centralizada no Templo e seus ritos em vez de na sinagoga e seus ensinos. 18 Assim, não é surpreendente que eles desapareceram logo depois da destruição do Templo, enquanto que os fariseus foram duramente afetados por este evento. Em contraste com os saduceus, os fariseus se propuseram a tornar a religião uma parte da vida íntima diária. Como os saduceus, sua religião era centralizada não apenas na Lei, todavia a deles não era apenas a Lei escrita mas também a oral. Este legado oral, transmitido através de séculos de tradição e interpretação, servia para aplicar a Lei escrita às situações concretas da vida diária, mas também serviu para introduzir inovações dentro da religião de Israel. É por isso que os saduceus, conservadores por natureza, rejeitavam todo possível uso da Lei oral, enquanto que os fariseus – conjugando esforços com os escribas – apressavam-se em defendê-la. Os saduceus e os fariseus não abrangiam todo o Judaísmo palestino19 do primeiro século. Antes, existiam muitas seitas e grupos dos quais pouco ou nada é conhecido. Dentre eles, não devemos deixar de mencionar os essênios, a quem a maioria dos autores atribui os famosos “Rolos do Mar Morto”, e sobre quem, portanto, conhecemos mais do que sobre os outros grupos.20 Os essênios – que parecem ter sido uns poucos milhares – eram um grupo com tendências escatológicas e puristas. Eles consideravam a si mesmos como o povo da Nova Aliança, que, embora não essencialmente diferente da Velha, era sua culminação e finalmente alcançaria seu verdadeiro significado no “dia do Senhor”. As profecias estavam sendo cumpridas em seu tempo e em sua comunidade, e a expectativa escatológica era vívida entre eles.21 Esta expectativa consistia na restauração de Israel ao redor de uma Nova Jerusalém. Três figuras importantes contribuiriam para a restauração de Israel: o Mestre da Justiça, o 17

Guignebert, The Jewish World, p. 162. As origens da sinagoga ainda são discutidas entre os eruditos. O conceito tradicional, de que ela surgiu durante o Exílio como um substituto do Templo, tem sido contestada por aqueles que sustentam que sua formação não é estritamente religiosa, mas é encontrada nos lugares remotos desprezados como pontos de encontro, e por aqueles que alegam que elea realmente se desenvolveu fora da adoração do Templo da Diáspora, tais como aquele que existia no Egito no quinto século a.C. Ver Isaiah Sonne, “Synagogue”, IDB, 4:476-491. De qualquer modo, a sinagoga foi um fator importante na formação da adoração cristã. Sobre este último ponto, ver Clifford W. Dugmore, The Influence of the Synagogue upon the Divine Office (Londres: Faith Press, 1944). 19 Erwin R. Goodenough mostrou claramente que mesmo na Palestina haviam judeus helenizados que tinham suas próprias sinagogas: Jewish Symbols in the Greco-Roman Period, (Nova Iorque: Pantheon Books, 1965), 12:185-186. 20 Antes da descoberta dos Rolos do Mar Morto, conhecíamos os essênios através de Josefo (War 2:8. 2-13; Ant. 18.1.5), Filo (Apology, citado em Eusébio, Praep. ev. 8.11; Every Good Man 12.75-88), Plínio, o Ancião (Nat. hist. 5.15), e Hipólito (Refutation 9.27). 21 É por isso que o estudo dos profetas era uma característica central da comunidade de Qumran, pois este estudo era o meio pelo qual os “sinais dos tempos” poderiam ser discernidos. Ver Frederick F. Bruce, Biblical Exegesis in the Qumran Texts (Londres: Tyndale Press, 1960). 18


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Messias de Israel, e o Messias de Arão. O Mestre da Justiça já tinha vindo e já tinha realizado sua tarefa, a qual agora continuava entre os escolhidos da comunidade dos essênios até o dia em que o Messias de Israel empreenderia uma guerra e destruiria o mal. Então o Messias de Arão reinaria na Nova Jerusalém.22 A comunidade dos eleitos exercia um papel importante nas expectações escatológicas dos essênios, e por esta razão eles enfatizavam as leis de pureza cerimonial e se inclinavam a afastarem-se das grandes cidades e dos centros da vida política e econômica na Palestina, pois em tais lugares haviam um grande número de pessoas, objetos e costumes imundos, e todo bom essênio deveria evitar o contato com tais pessoas e coisas. Isto os levou a estabelecer comunidades como a de Qumran, onde os Rolos do Mar Morto foram descobertos, e que parece ter sido um de seus principais centros. Embora nem todos vivessem neste tipo de comunidade, seu interesse na pureza cerimonial e sua intensa expectação escatológica os atraía para um ambiente como este, porque somente ali eles poderiam evitar o contato como o imundo. O matrimônio criava um problema similar, pois embora não fosse proibido, era desaprovado. Sua disciplina era muito rígida; qualquer um que a violasse era julgado por um tribunal de não menos de cem pessoas, que poderiam decretar até mesmo a pena de morte. Seus ritos incluíam banhos purificadores, orações cantadas ao nascer do sol, e adoração pública – embora não no Templo de Jerusalém, o qual eles criam ter caído nas mãos de sacerdotes indignos. Embora seja necessário corrigir a reportagem sensacionalista que ocorreu quando os Rolos do Mar Morto foram descobertos, ainda é verdade que eles adicionaram muito a nosso conhecimento sobre o Judaísmo do primeiro século. Agora é possível descrever com alguma medida de exatidão uma importante tendência na espiritualidade judaica da época. É também possível reunir informação mais concreta com relação a história do texto hebraico do Velho Testamento.23 Finalmente, estas descobertas serviram para esclarecer a formação de uma quantidade de passagens do Novo Testamento que parecem originar-se de um tipo similar de religiosidade – particularmente Mateus 18:15 e seguintes.24 Os essênios eram parte de um círculo mais amplo da religião judaica na qual o apocalipsisismo era predominante. O Apocalipsisismo 25 é uma religião e uma perspectiva 22

Otto Betz, “Dead Sea Scrolls”, IDB, 1:790-802. Frank L. Cross, “History of the Biblical Text in the Light of the Discoveries in the Judean Desert”, HTR, 57 (1964), 281-299. 24 Helmer Ronggren, The Faith of Qumran (Filadélfia: Fortress Press, 1963), p. 249. O exato relacionamento entre os essênios e o Cristianismo ainda é debatido pelos eruditos. Ver Krister Stendahl, The Scrolls and the New Testament (Nova Iorque: Harper, 1957); Jean Daniélou, The Dead Sea Scrolls and Primitive Christianity (Baltimore: Helicon Press, 1958). 25 Martin Rist, “Apocalypticism”, IDB, 1:157-161; P. D. Hanson, The Dawn of Apocalyptic, ed. revisada (Filadélfia: Fortress, 1975); W. Schmithals, The Apocalyptic Movement: Introduction and Interpretation (Nashville: Abingdon, 1975). 23


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cósmica que provavelmente se originou no Zoroastrianismo, e entrou no mundo judaico durante e depois do Exílio. A partir do Judaísmo, ele se espalhou para alguns círculos, primeiro cristão e mais tarde muçulmano. O principal dogma do apocalipsisismo é um dualismo cósmico que vê no presente o começo da luta final entre as forças do bem e as do mal. O mundo atual – ou era – é governado pelo poder do mal; mas se aproxima o tempo quando, depois de uma imensa luta acompanhada de eventos cataclísmicos, Deus vencerá o mal e estabelecerá uma nova era na qual Deus estará presente e governará sobre os eleitos – geralmente um número predestinado. Enquanto isso, os fiéis oprimidos encontram forças e consolação no conhecimento de que o fim de seus sofrimentos está próximo. Entre os mais importantes apocalipses judaicos estão o livro de Daniel, I Enoque, e o Apocalipse de Baruque. Sua influência sobre alguns segmentos da comunidade cristã primitiva é atestada pela natureza apocalíptica do Apocalipse de São João, bem como no título de “Filho do Homem”, popular nos círculos apocalípticos judaicos e muito antes aplicado a Jesus. Tudo isto serve para dar uma visão geral da variedade das seitas e opiniões que existiam na Palestina na época de Jesus. Mas esta variedade não deve obscurecer a unidade essencial da religião judaica, que era centralizada no Templo, na Lei e na esperança escatológica. Se os fariseus diferenciavam dos saduceus sobre o lugar do Templo na vida religiosa do povo, ou acerca do alcance da Lei, isto não deve esconder o fato de que para o povo judeu tanto o Templo quanto a Lei eram aspectos fundamentais do Judaísmo. Não havia contradição clara entre eles, embora a diferença prática importante era que a adoração no Templo poderia ser celebrada somente em Jerusalém, enquanto que a obediência a Lei deveria ser praticada em todo lugar. Esta é a razão porque o último aspecto da vida religiosa judaica gradualmente substituiu o primeiro, até mesmo ao ponto em que a destruição do Templo em 70 A.D. não destruiu o coração da religião judaica. Por outro lado, esta discussão sobre as várias seitas do Judaísmo palestino do primeiro século não deveria dar a impressão de que a vida religiosa se tornara sem graça. Muito pelo contrário. A diversidade de seitas e interpretações era devida à profunda vitalidade do Judaísmo daquele tempo. Além do mais, todas estas seitas compartilhavam dos dois principais dogmas do Judaísmo: seu monoteísmo ético e sua esperança messiânica e escatológica. Desde os tempos mais antigos, o Deus de Israel era o Deus da justiça e da misericórdia, que exigia do povo uma conduta justa e limpa, não apenas no sentido cerimonial, mas também em suas relações pessoais. Este monoteísmo ético continuou a ser o centro da religião judaica, apesar da diversidade de seitas. Além disso, através dos rudes golpes que a história desferiu sobre eles, atirando-os sobre a misericórdia e justiça divina, os judeus chegaram a uma religião na qual a esperança exercia um papel central. De um modo ou de outro, todos esperavam que


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Deus salvasse Israel de suas desgraças políticas e morais. Esta esperança assumia diferentes tons de significado, às vezes centralizando no Messias e em outras vezes em um ser celestial que alguns chamavam de “Filho do Homem”. A esperança messiânica geralmente estava unida à expectativa de que o reino de Davi seria restaurado neste mundo, e a tarefa do Messias consistia precisamente em restaurar o trono de Davi e sentar-se nele.26 Por outro lado, a figura do Filho do Homem, a qual aparecia muito freqüentemente nos círculos apocalípticos, era de caráter mais universal do que o Messias, e viria para estabelecer, não um reino davídico nesta terra, mas antes uma nova era, um novo céu e uma nova terra. Diferente do Messias, o Filho do Homem era um ser celestial, e suas funções incluíam a ressurreição dos mortos e o julgamento final.27 Estas duas tendências foram contraídas com o passar dos anos, e antes do primeiro século apareceram em posições intermediárias, nas quais o reino do Messias seria o último estágio da presente era, e então se seguiria a nova era que o Filho do Homem devia estabelecer. De qualquer maneira, o povo judeu ainda era um povo de esperança, e seria errado interpretar sua religião simplesmente em termos legalistas. Um outro aspecto da religião judaica que mais tarde se desenvolveu em um dos pilares da teologia trinitariana foi o conceito de Sabedoria. Embora pareça que o Judaísmo rabínico não tinha ido tão longe a ponto de considerar a Sabedoria como substância completamente distinta, isto mais tarde forneceu para os cristãos a base para reivindicarem que Cristo – ou, se não, o Espírito Santo – é chamado de Sabedoria no Velho Testamento.28 Contudo o Judaísmo não estava confinado a Palestina. Pelo contrário, os judeus formaram importantes comunidades na Mesopotâmia, Egito, Síria, Ásia Menor e em Roma. Esses judeus, juntamente com os gentios prosélitos, foram bem sucedidos em atrair para si a Diáspora estabelecida, ou Dispersão, um fenômeno muito importante do Judaísmo do primeiro século,29 o que contribuiu notavelmente para a expansão e formação do Cristianismo em seus primeiros anos.30 26

Ernst Jenni, “Messiah, Jewish”, IDB, 3:360-365; R. Meyer, “Eschatologie; III, Im Judentum”, RGG, 2:662665; R. Meyer, “Messias; III, Im nachbiblischen Judentum”, RGG, 4:904-906. 27 A frase “Filho do Homem” tem sua raiz em Daniel 7 e mais tarde foi desenvolvida para um título neste texto pela midrashim. Segundo a tradição sinótica, Jesus reivindicou este título para si mesmo. Nossa exposição sobre este título e seu significado geralmente segue a de Sigmund Mowinckel, He That Cometh (Nashville: Abingdon Press, 1954), pp. 346-450. Contudo, Norman Perrin, Rediscovering the Teachings of Jesus (Nova Iorque: Harper, 1967), pp. 164-181, argumenta que “Filho do Homem” não era um título fixo no primeiro século do Judaísmo, e que foi a comunidade cristã que o transformou em um título e o aplicou a Jesus. Ver referências bibliográficas adicionais em N. Perrin, A Modern Pilgrimage in New Testament Christology (Filadélfia: Fortress, 1974), pp. 133-141. 28 Ver H. Jaeger, “The Patristic Conception of Wisdom in the Light of Biblical and Rabbinical Research”, SP, 4:90-106. 29 Um bom resumo do Judaísmo da Diáspora pode ser encontrado em William W. Tarn, Hellenistic Civilisation (Cleveland: World, 1961), pp. 210-238. 30 Adolph von Harnack, The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries (Nova Iorque: Harper, 1961), pp. 1-18; Kenneth Scott Latourette, A History of the Expansion of Christianity (Nova Iorque: Harper, 1937-1944), 1:31-43.


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Os judeus da Diáspora não foram assimilados pela população de sua nova terra natal, pelo contrário, eles formavam um grupo separado que gozava de uma certa medida de autonomia dentro do governo civil. Nos grandes centros da Diáspora – como no Egito – os judeus viviam em uma certa região da cidade, não tanto por obrigação quanto porque eles mesmos queriam assim. Ali eles escolhiam seu próprio governo local e estabeleciam uma sinagoga onde podiam estudar a Lei. O Império lhes garantia certo reconhecimento legal e providenciava leis para dar-lhes o devido respeito, tal como a lei que proibia forçar um judeu a trabalhar no dia de Sábado. Deste modo, a comunidade judaica tornou-se uma cidade dentro da cidade, com suas próprias leis e administração. Isto não é surpreendente, pelo contrário, era uma prática comum no Império Romano. Por outro lado, os judeus da Diáspora, espalhados por todo o mundo, sentiam-se unidos pela Lei e pelo Templo. Embora muitos deles tenham morrido sem mesmo ter colocado os pés na Palestina, todo homem judeu com mais de vinte anos de idade enviava uma quantia anual ao Templo. Além do mais, ao menos em teoria, os líderes da Palestina também eram os líderes de todos os judeus da Diáspora, apesar de seu poder começar a declinar em 70 A.D., quando os romanos destruíram o Templo e dispersaram a população judaica de Jerusalém.31 Quase deste o começo, as diferenças começaram a brotar entre o Judaísmo da Palestina e o da Diáspora. Dentre elas a mais importante era a língua. Tanto na Diáspora quanto na Palestina o uso do hebraico estava em declínio, e era mais e mais difícil entender as Escrituras em sua língua original. Como poderia ser esperado, a perda do hebraico foi muito mais rápida entre os judeus da Diáspora do que entre aqueles que continuavam vivendo na Palestina. Enquanto que entre os judeus palestinos o Velho Testamento logo começou a ser traduzido para o aramaico – primeiro oralmente e mais tarde em forma escrita32 - este processo de tradução foi muito mais rápido e completo na Diáspora, onde as sucessivas gerações de judeus estavam perdendo o uso do hebraico e começavam a usar as línguas locais, especialmente o grego, a língua do governo e do comércio. Foi em Alexandria que esta helenização lingüística do Judaísmo alcançou seu ápice. Ela era um grande centro de cultura helenista, e, como veremos mais tarde, os judeus alexandrinos desejavam apresentar sua religião de modo tal que ela pudesse ser acessível a seus vizinhos cultos. Com este propósito

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Mesmo nesta época, contudo, Johanan bem Kakpai, que tinha fugido de Jerusalém em 69 A.D., conseguiu organizar o Concílio de Jabneh, o qual manteve autoridade sobre o Judaísmo por vários séculos, e cujo cabeça foi reconhecido pelo Império Romano como o líder de todos os judeus sob autoridade romana. Entretanto, os judeus babilônicos desenvolveram sua própria hierarquia. 32 Sobre estas traduções, chamadas de Targuns, têm havido uma grande quantidade de pesquisa erudita significante e tem avançado em anos recentes. Ver M. McNamara, “Targums”, em IDB, volume suplementar, pp. 856-861.


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surgiu a tradução grega do Velho Testamento, que foi chamada de Septuaginta.33 De acordo com uma antiga lenda, que já aparece em uma obra escrita por volta do final do segundo século a.C. – a Carta de Aristeas34 - esta versão grega foi produzida no Egito na época de Ptolomeu II Filadelfo (285-247 a.C.), que trouxe setenta e dois anciãos da Palestina – seis de cada tribo – para traduzir a lei judaica. Mais tarde, para dar mais autoridade a esta versão, a lenda se tornou mais complexa. Ela alegava que os anciãos trabalharam independentemente, e quando chegou o tempo de comparar o resultado de seus trabalhos, descobriram que todas as traduções eram idênticas. Disto nasceu o nome Septuaginta, que é uma abreviação do antigo título: Interpretatio secundum septuaginta seniores. O numeral romano LXX também é usado para referir-se a esta versão. Separando a história da lenda, podemos declarar que a versão grega do Velho Testamento, a qual conhecemos como LXX, não é o produto de um único esforço. Pelo contrário, a LXX parece ter estado em produção por mais de um século, e quanto aos métodos e propósitos parece não ter havido acordo entre seus vários tradutores – enquanto que alguns são tão literalistas que seu resultado é quase ininteligível, outros tomam excessiva liberdade com o texto hebraico.35 Aparentemente a tradução do Pentateuco é a mais antiga, e pode muito bem ter sido feita no reinado de Ptolomeu II Filadelfo, como a lenda sustenta, embora de modo algum seja o resultado de um grupo homogêneo de tradutores. Mais tarde, outras traduções foram adicionadas a do Pentateuco, até que a nova versão abrangeu todo o cânon hebreu do Velho Testamento e alguns dos livros que mais tarde foram declarados apócrifos. 36 A LXX é de importância múltipla. Os eruditos que dedicam-se à crítica textual do Velho Testamento às vezes a usam para redescobrir o texto hebraico antigo. Aqueles que estudam a exegese rabínica estão interessados no modo que é refletido nos diversos métodos 33

A introdução padrão à Septuaginta ainda é a de Henry Barclay Swete, An Introduction to the Old Testement in Greek, 2a ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1914). 34 Traduzida por H. T. Andrews em R. H. Charles, The Apocrypha and Pseudoepigrapfa of the Old Testament (Oxford: Clarendon Press, 1913), 2:83-122. 35 De fato, se havia ou não uma tradução padrão da LXX ainda é uma questão aberta. P. Kahle tem promovido a teoria de que as variantes existentes no texto da LXX são devidas ao fato de que originalmente não havia uma LXX padrão, mas antes algumas traduções diferentes e freqüentemente fragmentárias que ainda eram usadas no começo da era cristã. Exceto no caso da Torah, os judeus não tentaram estabelecer um texto padrão. Isto foi feito mais tarde pela Igreja Cristã. Ver: Ernst Würthwein, The Text of the Old Testament (Oxford: Basil Blackwell, 1957), pp. 43-46. 36 A LXX inclui vários livros que não são incluídos no cânon hebreu do V.T. A interpretação tradicional é que os judeus alexandrinos eram mais liberais do que os da Palestina, e que isto os levou a aceitar a inspiração divina de livros que não tinham a mesma autoridade entre os judeus palestinos. Contudo, também é possível que estes livros tivessem grande autoridade na Palestina bem como na Diáspora, e que eles finalmente foram excluídos do cânon porque eles prestavam-se a interpretações heterodoxas. Devemos nos lembrar que o cânon hebreu foi fixado em 90 A.D., e que por este tempo o uso cristão da literatura apocalíptica hebraica tornou estes escritos suspeitos entre os líderes religiosos judeus. Ver: Albert Carl Sundberg, “The Old Testament in the Early Church”, HTR, 51 (1958), 205-225; Albert Carl Sundberg, The Old Testament of the Early Church (Cambridge: Harvard University Press, 1964). Para referências adicionais, ver S. P. Brock et al., eds., A Classified Bibliography of the Septuagint (Leiden: Brill, 1973).


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empregados pelos tradutores da LXX. Em nosso caso, ela nos interessa por causa de sua importância como parte da formação do cristianismo nascente. A LXX exerceu um papel importante na formação do pensamento judeu helenista. A fim de traduzir os antigos conceitos hebreus, foi necessário usar termos gregos que já carregavam conotações estranhas ao pensamento bíblico. Mais tarde, a fim de entender o texto grego, os intérpretes estudaram o sentido de seu vocabulário na literatura grega e helenista. Por outro lado, os gentios instruídos agora podiam ler o Velho Testamento e discutir sua validade e importância com os judeus. Para evitar serem derrotados nestas discussões, os judeus foram obrigados a familiarizarem-se melhor com a literatura da época, e interpretar a Bíblia de tal modo que sua superioridade fosse evidente. Assim, eles chegaram até mesmo ao ponto de afirmar que os grandes filósofos gregos tinham copiado o melhor de sua sabedoria da Bíblia. Quanto a história do Cristianismo, a LXX exerceu um papel incalculavelmente importante. A LXX foi a Bíblia dos primeiros autores cristãos conhecidos, a Bíblia que quase todos os escritores do Novo Testamento usaram.37 Os cristãos reivindicaram tanto a posse dela, que um judeu, Áquila, sentiu a necessidade de produzir uma nova versão para uso exclusivo dos judeus.38 Além disso, a LXX foi a matriz pela qual a linguagem do Novo testamento foi moldada, e é um dos melhores instrumentos que agora possuímos para entender esta linguagem. “O NT Koinê não é simplesmente o grego diário de um povo oriental no primeiro século cristão; seu vocabulário religioso se origina, em última análise, não do mundo grego, mas do mundo hebreu do Velho Testamento por meio do grego da LXX.”39 A LXX também era um indício do estado de espírito dos judeus da Diáspora, e sobretudo dos de Alexandria. A tendência helenizante tinha tomado conta deles, e eles se sentiram obrigados a mostrar que o Judaísmo não era tão bárbaro quanto se pensava, mas pelo contrário, que ele estava intimamente ligado ao genuíno pensamento grego. Um exemplo deste estado de espírito é encontrado na obra de Alexandre Polyhistor – um autor judeu do primeiro século a.C. – e dos autores que ele cita: Demétrio (terceiro século a.C.) relata a história dos reis de Judá, fazendo uso dos métodos da erudição alexandrina; Eupolemo 37

O livro de Apocalipse parece citar uma versão que é muito similar a geralmente conhecida pelo nome de Teodócio. Parece, contudo, que a versão citada ali não é a de Teodócio, mas uma versão mais antiga que Teodócio revisou posteriormente, e à qual foi dada seu nome. Isto explicaria as semelhanças bem como as diferenças entre o texto de Teodócio e o citado em Apocalipse 38 Áquila era um judeu prosélito do Ponto. Alguns escritores antigos afirmam que, antes de sua conversão ao Judaísmo, ele era um cristão. De qualquer modo, ele publicou sua tradução grega do Velho Testamento por volta de 130 A.D., e logo ela tornou-se popular entre os judeus. Talvez como uma reação contra o uso cristão da LXX, a versão de Áquila é extremamente literal. 39 John W. Wevers, “Septuagint”, IDB, 4:277.


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(segundo século a.C.) faz de Moisés o inventor do alfabeto, o qual os fenícios tomaram dos judeus e mais tarde introduziram no grego; Artafano (terceiro século a.C.) afirma até mesmo que Abraão ensinou os princípios de astrologia a Faraó, e que Moisés estabeleceu os cultos egípcios de Apis e Isis. Por volta da metade do segundo século a.C., um tal Aristóbolo escreveu uma Exegese da Lei de Moisés, cujo propósito era mostrar que tudo que havia de valor na filosofia grega fora tomado das Escrituras judaicas. Já citamos a obra que – sob o nome de Aristeas – tentou dar autoridade divina à LXX. Todos estes não são mais que poucos exemplos que chegaram a nós de qual deve ter sido o estado de espírito dos judeus da Diáspora, durante o período Helenista.40 A melhor expressão deste propósito, da parte dos judeus, de harmonizar sua tradição com a cultura helenista, é encontrada em Filo de Alexandria, um contemporâneo de Jesus, que empenhou-se em interpretar as Escrituras judaicas de tal modo que elas fossem compatíveis com os ensinamentos da Academia. De acordo com Filo, as Escrituras ensinam as mesmas coisas que Platão ensina, embora elas usem de alegorias para fazê-lo. Assim, a tarefa do intérprete sábio é mostrar o sentido eterno que pode ser encontrado por trás das alegorias bíblicas. Filo, salienta que Platão e os acadêmicos são posteriores a Moisés, e deve ser admitido que com toda sua erudição eles devem ter conhecido as Escrituras, donde eles tiraram o melhor de seus ensinos.41 Certamente, Filo gostava da vantagem de mover-se em círculos nos quais era costume interpretar alegoricamente as passagens mais difíceis da Escritura. A suposta epístola de Aristeas, a qual foi mencionada em relação a origem da LXX, já fazia uso deste método de interpretação bíblica, e mais tarde veremos como o Cristianismo alexandrino foi caracterizado por sua interpretação alegórica das Escrituras. Assim Filo poderia afirmar a revelação infalível das Escrituras, e ao mesmo tempo livrar-se daqueles aspectos que eram mais difíceis de harmonizar com o Platonismo.42 Como um exemplo disso, podemos citar a seguinte passagem, na qual Filo discute a maldição de Adão: “Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo” (Gn 3:18). 40

Moses Hadas, Hellenistic Culture (Nova Iorque: Columbia University Press, 1959), pp. 83-104; Tarn, Hellenistic Civilization, pp 233-235; E. R. Goodenough, By Light, Light: The Mystic Gospel of Hellenistic Judaism, ed. rev., (Amsterdam: Philo Press, 1969); M. Friedländer, Geschichte der jüdischen Apologetik als Vorgeschichte des Christentums: Eine historisch-kritische Darstellung der Propaganda und Apologie im Alten Testement und in der hellenistischen Diaspora (Amsterdam: Philo Press, 1973); M. Hengel, Jews, Greeks and Barbarians: Aspects of the Hellenization of Judaism in the pre-Christian Period (Filadélfia: Fortress, 1980). 41 “Filo reivindicava em nome do Judaísmo tudo que ele tirava dos gentios. A teoria do rei, ele supunha, era judaica; a metafísica de Platão, os números dos pitagóricos, a cosmologia da ciência grega, o misticismo, a ética e a psicologia do mundo helenista, tudo isto era, ele diz, nada que ele como um judeu tirou de fora, mas algo que os gregos tomaram de Moisés”. Erwin R. Goodenough, An Introduction to Philo Judaeus, 2a ed. (Nova Iorque: Barnes & Noble, 1963), p. 75. 42 Os gregos também faziam uso da interpretação alegórica a fim de dar novo sentido a antigos mitos que não pareciam mais confiáveis. Assim, por exemplo, Aftonio interpretou o mito da Dafne e Apólo como uma alegoria que tem a ver com a virtude da temperança. Por volta do advento do Cristianismo, tornou-se comum em alguns círculos interpretar Homero e Hesiodo alegoricamente, como referindo-se às verdades expostas pelos filósofos posteriores. Robert M. Grant, The Earliest Lives of Jews (Londres: S.P.C.K., 1961), pp. 45-46.


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Não, o que nasce e cresce na alma de um homem insensato, mas as paixões que a estimulam e envolvem? A estas, usando figuras, ele chamava de cardos.... Ele chama cada uma das paixões “abrolhos” ou “espinho de três pontas”, porque eles são triplos, a paixão em si, aquilo que a produz, e o resultado completo destas. Por exemplo, prazer, o agradável, sentimento de prazer: desejo, o desejável, desejando; dor, o doloroso, sentimento de dor; medo, o assustador, temendo.43 Como pode ser visto, esta doutrina, embora pareça muito útil, não é uma exegese de um texto bíblico, mas antes um esforço para entendê-lo de tal modo que a mente helenista o ache aceitável. Podemos salientar, contudo, que Filo não negava o sentido histórico e literal da Lei – tal negação teria sido uma apostasia do Judaísmo – mas antes, ele insistia que, em adição ao seu sentido literal, a Lei também tinha um sentido alegórico.44 O Deus de Filo é uma combinação do conceito de Platão sobre a beleza e o Deus dos patriarcas e profetas. Deus é absolutamente transcendente, tanto que não existe relacionamento direto entre Deus e o mundo. Além disso, como Criador, Deus está além das idéias do Bom e do Belo.45 Deus é um ser essencial, que não deve ser encontrado no tempo e no espaço, mas antes, estes são encontrados em Deus.46 Porque Deus ser absolutamente transcendente e porque – em seus momentos mais platônicos – Filo imagina que Deus é um ser impassivo, o relacionamento entre Deus e o mundo requer outros seres intermediários. 47 O principal destes é o logos ou a Palavra, que foi criado por Deus antes da criação do mundo. Este logos é a imagem do divino, e é o instrumento de Deus na criação. Nele estão as idéias de todas as coisas – no sentido Platônico da palavra “idéia” - tanto que vem a ocupar o lugar do demiurgo de Platão. Além do mais, Filo incorpora em sua doutrina de logos alguns elementos estóicos, de modo que ele também identifica o logos com a razão que constitue a estrutura de todas as coisas. De maneira a explicar estas duas funções do logos, Filo introduz a distinção entre o Verbo interno e o o Verbo expresso.48 A diferença é a mesma que existe entre a palavra em pensamento e a palavra falada. O Verbo interno corresponde ao mundo das idéias, enquanto que o Verbo externo corresponde à razão, que serve como forma para o mundo material. 49 Quanto ao caráter deste logos, deveria ser salientado que é diferente do logos do 43

Legum allegoria 3. 248-250 (LCL, Philo 1:469-471). De migratione Abrahami 89-91. 45 Harry A. Wolfson, Philo: Foundations of Religious Philosophy in Judaism, Christianity, and Islam (Cambridge: Harvard University Press, 1948), 1:200-204. 46 De somniis 1. 117. 47 Esta é uma interpretação tradicional do pensamento de Filo concernente ao relacionamento entre Deus e o mundo. Uma outra interpretação pode ser encontrada em Wolfson, Philo, 1: 282-289. 48 λογος ενδιαθετος e λογος προϕορικος. 49 De vita Mosis 2.127. 44


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Quarto Evangelho. O logos de Filo é um ser separado e inferior a Deus, e é encontrado em um quadro de referência que afirma a absoluta transcendência de Deus e que, portanto, nega o relacionamento direto entre o divino e o mundo. Tudo isto está muito longe do pensamento do Quarto Evangelho. Quanto ao fim da criatura humana, Filo sustenta – de modo tipicamente platônico – que é a visão de Deus. Não podemos entender a Deus, visto que entendimento implica em uma certa forma de possessão, e nunca podemos possuir o infinito. Mas podemos ver a Deus de modo direto e intuitivo. Esta visão é tal que transcendemos a nós mesmos e entramos em êxtase.50 O êxtase é o alvo e clímax de um processo longo e ascendente, através do qual a alma é purificada. O corpo serve como lastro para a alma, e a razão se opõe aos sentidos. A purificação consiste, então, na libertação de si mesmo das paixões sensuais que escravizam a alma ao corpo. Aqui Filo introduz a doutrina estóica, segundo a qual a ausência de paixão, ou apatia, deve ser o objetivo de cada ser humano. Todavia em Filo, a apatia não é – como entre os estóicos – o objetivo da moralidade, pelo contrário é o meio que levam ao êxtase. Muito disso é estranho ao pensamento bíblico, embora seja apresentado simplesmente como uma interpretação deste pensamento.51 Este é o perigo de uma exegese alegórica que tende a ofuscar o caráter singular da mensagem bíblica. Como será apresentado mais adiante, este também foi o ponto fraco dos teólogos cristãos que prosperaram em Alexandria durante o segundo e terceiro séculos. Finalmente, o quadro do Judaísmo do primeiro século deve ser completado com uma palavra sobre a tendência proto-gnóstica que circulava nele, como pode ser visto na midrashim da época. Estas inclinações gnósticas provavelmente desenvolveram-se do dualismo apocalíptico, cujos seguidores encontravam refúgio em uma salvação trans-histórica quando suas expectativas apocalípticas não eram satisfeitas. Sua especulação centralizou-se no trono de Deus, e desenvolveu-se no que foi chamado de “misticismo do trono”.52 Contudo, é impossível traçar, com algum grau de certeza, esta tendência gnóstica no Judaísmo, e determinar quando dele é um desenvolvimento autóctone do apocalipsismo – e através dele da forma de pensamento iraniana – e quanto é devido a influências externas – e cristãs.53 O mais 50

Wolfson, Philo, 2:27-30. Isto levou Erwin R. Goodnough, By Light, Light a reivindicar que a religião de Filo, na verdade, é uma religião de mistério, que está muito longe do Judaísmo como era mantido e praticado na Palestina. Contra este conceito, ver: W. Völker, “Neue Wege der Philoforschung?” ThBl, 16 (1937), 297-301. 52 Gershom G. Scholem, Major Trends in Jewish Mysticism (Nova Iorque: Schoken Books, 1961), p. 44. 53 Robert M. Grant, Gnosticism and Early Christianity (Nova Iorque: Columbia University Press, 1959), pp. 3969, tem colecionado uma quantia impressionante de evidências para provar que as principais características do gnosticismo já são encontradas na literatura judaica de tradição apocalíptica, e que foi da falha desta tradição que surgiu o gnosticismo. 51


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conhecido dos gnósticos judaizantes primitivos, Elcasai – ou Elxai, Elchasai – viveu no segundo século, e claramente foi influenciado pelo Cristianismo. 54 De qualquer modo, a existência deste tipo de Judaísmo especulativo e místico mostra, mais uma vez, que esta religião não era uma relíquia petrificada de uma época antiga, mas um movimento vital com várias ramificações muito interessantes. O Mundo Greco-Romano Ainda que por razões didáticas separamos o Judaísmo do restante do mundo no qual a igreja cristã se desenvolveu, a verdade é que no primeiro século A.D., a bacia do Mediterrâneo gozava de uma unidade política e cultural nunca igualada desde então. Esta unidade foi o resultado da disseminação do pensamento grego através das conquistas de Alexandre e da subseqüente consolidação romana. Disto nasceu uma cultura universal que – embora conservasse importantes variações regionais – unia todos os povos do império. As conquistas de Alexandre (334–323 a.C.) foram ao mesmo tempo causa e resultado de grandes mudanças no pensamento grego. Antes de Alexandre, e durante todo o período de Homero a Aristóteles, o pensamento grego seguiu um caminho sem o qual as grandes conquistas do quarto século teriam sido inconcebíveis. O pensamento grego antigo era tipicamente aristocrático e racista. Todos os povos não helênicos eram “bárbaros” por definição e eram, portanto, inferiores. Com o crescente comércio e intercomunicação entre vários grupos, o pensamento grego tornou-se cada vez menos exclusivo.55 Em Platão encontramos a afirmação de que todos eram livres, mas também encontramos a antiga idéia de uma diferença essencial entre os gregos e os bárbaros. Inspiradas pelo desejo de unir a humanidade em um único império e cultura, as conquistas de Alexandre colocaram um fim no exclusivismo grego. A partir deste momento, a superioridade grega em relação aos bárbaros passou a ser mais cultural do que racial. A filosofia não se preocupava mais com a participação do cidadão na vida da cidade, como na época de Platão, mas antes com o indivíduo no novo ambiente cosmopolitano. É precisamente esta uma das marcas distintivas do pensamento helenista como oposto ao helênico – seu cosmopolitanismo individualista. Mas as conquistas de Alexandre não ocorreram em um vácuo cultural. Antes, elas subjugaram países com culturas muito antigas, tais como Egito, Síria, Pérsia e Mesopotâmia. Em cada um desses países, a influência da cultura grega foi sentida antes mesmo da época de Alexandre, mas após as conquistas, a cultura local foi obscurecida por muitos séculos, apenas para reaparecer transformada e para expandir-se para muito além de suas fronteiras originais. 54

Hans J. Schops, Theologie und Geschichte des Judenchristentums (Tübingen: J.C.B. Mohr, 1949), pp. 325234; Jean Daniélou, The Theology of Jewish Christianity (Chicago: Regnery, 1964), pp. 64-67. As principais fontes sobre Elcasai são: Hipólito, Philos. 9.8,12; Eusébio, HE, 6.38; Epifânio, Pan. 19; Teodoreto, Haer. fab. comp. 2.7. Ver infra, pp. 95. 55 Um processo resumido por Hadas, Hellenistic Culture, pp. 11-19.


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Este reavivamento das antigas culturas do Oriente Próximo ocorreu simultaneamente ao primeiro século da era cristã. Por esta razão, enquanto estudamos a formação helenista do Cristianismo primitivo, deveríamos ter em mente, por um lado, a filosofia helenista, e por outro, as várias religiões orientais que tentavam invadir o ocidente. A estes fatores religiosos e culturais devem ser adicionados os fatores políticos e administrativos – isto é – o Império Romano. A filosofia grega sofreu uma grande mudança depois as conquistas de Alexandre. Aristóteles, que foi professor do próprio Alexandre, caiu em desuso. Ele não foi completamente esquecido, pois a escola peripatética continuou a existir através de Theofrasto e Strato. Mas a tendência metafísica da escola aristoteliana tornou-se secundária em relação ao estudo de botânica, música e outras disciplinas.56 A Academia platônica continuou sua existência até que Justiniamo a fechou em 529 A.D., e através dela Platão exerceu considerável influência durante o período helenista. Este domínio estendeu-se muito além dos limites da Academia, e é interessante notar que, embora o Museu de Alexandria tenha sido fundado pela inspiração do peripatético Demétrius de Faleros, foi logo capturado pelo espírito platônico e tornou-se um de seus principais baluartes. Assim, embora o helenismo não fosse ignorante quanto a contribuição de Aristóteles, seria Platão – e através dele, Sócrates – que exerceria maior influência em moldar a filosofia do período. Existiam alguns aspectos do Platonismo, contudo, que não se conformavam ao espírito da época melhor do que o Aristotelianismo. Entre estes, o mais importante tinha a ver com a situação política contemporânea. O pensamento de Platão, bem como o de Aristóteles, foi forjado dentro da estrutura da antiga cidade-estado grega. Seu objetivo não era tanto o indivíduo quanto o bem comum – embora não devamos esquecer que, sobretudo em Platão, o objetivo do bem comum é a felicidade do indivíduo. Em Platão e Aristóteles, o lugar de uma pessoa no mundo e na sociedade é mais ou menos certo e os deveres religiosos e morais são regulados por uma longa tradição. Em tal situação, as pessoas poderiam dar-se a especulação e poderiam considerar a ética como um aspecto da filosofia. Mas quando, no tempo de Alexandre, surge uma sociedade cosmopolita, as pessoas encontram-se perdidas na imensidão do mundo, os deuses competem com outras divindades, e as regras de conduta com os novos costumes. Neste ponto, é necessária uma filosofia que, além de falar ao indivíduo, proverá normas para a vida diária. Uma filosofia como esta não deve ser limitada pela antiga cidadeestado como quadro de referência, nem pela distinção entre gregos e bárbaros. O Estoicismo e 56

Frederick C. Copleston, A History of Philosophy, Vol. I: Greece and Rome, ed. rev. (Paramus, N.J.: The Paulist/Newman Press, 1959), pp. 369-371.


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o Epicurismo satisfizeram esta necessidade durante o período da filosofia grega. Mais tarde, como a incredulidade nos deuses antigos tornava-se mais desmedida, a filosofia tentaria tomar seu lugar – como tem tentado fazer freqüentemente na história humana – e daí surgiriam sistemas filosóficos de caráter religioso, tal como o Neo-Platonismo. Não podemos rever aqui toda a filosofia grega e helenista, mas podemos salientar alguns dos dogmas que deram às diferentes escolas uma participação na história do pensamento cristão. Entre todos os filósofos antigos, é Platão que tem a maior influência no desenvolvimento do pensamento cristão primitivo. De seus ensinos, os que mais nos interessam aqui são as doutrinas dos dois mundos, da imortalidade e da preexistência da alma, do conhecimento como reminiscência, e da Idéia do Bem.57 A doutrina platônica de dois mundos foi usada por muitos sábios cristãos como um meio de interpretar a doutrina cristã de “mundo”, e também a do céu e terra. Usando o ensino platônico poderia ser demonstrado que as coisas materiais ao nosso redor não são as realidades últimas, mas que existem outras de ordem diferente e de grande valor. É fácil entender a atratividade de uma doutrina como esta para uma igreja sofrendo perseguição. Mas alguns cristãos logo foram guiados a atitudes para com ao mundo material, que constituíam em uma negação da doutrina da criação. Isto foi agravado pela tendência platônica de fazer uma distinção ética entre os dois mundos, na qual o mundo visível é a terra natal do mal, enquanto que o mundo das idéias é o alvo da vida e moralidade humana. Desde os tempos antigos, a doutrina da imortalidade da alma atraía os cristãos que procuravam apoio na filosofia grega para a doutrina cristã da vida futura. Se Platão tinha afirmado que a alma é imortal, por que os pagãos deveriam agora zombar dos cristãos, que também afirmavam a vida após a morte? Os cristãos que argumentavam deste modo, normalmente não reconheciam a diferença entre a imortalidade da alma platônica e a esperança cristã da ressurreição. O sistema platônico fazia da vida futura, não um presente de Deus, mas o resultado natural do divino no ser humano. O ensino platônico afirmava a vida eterna da alma e a morte eterna do corpo, visto que somente o espiritual pode ter permanência. Ele ensinava não apenas a imortalidade, mas provavelmente também a preexistência e a transmigração das almas. Tudo isso era muito diferente do Cristianismo. Mas não poucos pensadores Cristãos, desejosos em expressar sua nova fé à luz da filosofia platônica, vieram a incluir uma parte ou o todo dele em seu sistema doutrinário.58 57

Adam Fox, Plato and the Christians (Londres: SCM Press, 1957), tentou colecionar aquelas passagens de Platão que se mostraram mais interessantes e influentes aos cristãos. 58 Ver Oscar Cullmann, Immortality of the Soul, or Ressurrection of the Dead? The Witness of the New Testament (Nova Iorque: Macmillan, 1958).


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A doutrina Platônica do conhecimento está baseada na desconfiança dos sentidos como meios de se alcançar o verdadeiro conhecimento. Não é culpa dos sentidos em si, mas é devido ao fato de que eles podem fornecer apenas informações sobre objetos deste mundo, não sobre idéias. Visto que o verdadeiro conhecimento somente pode ser o conhecimento de idéias, é óbvio que os sentidos não são os meios mais adequados para alcançá-lo. Platão utilizava a teoria da recordação ou reminiscência, que por sua vez requeria a doutrina da preexistência da almas.59 Naturalmente, a principal tendência do pensamento cristão, a qual nunca aceitou a preexistência de almas, não poderia interpretar o conhecimento como reminiscência. Mas uma desconfiança de percepção sensorial foi prontamente aceita pelos cristãos, e, através da epistemologia de Agostinho, dominou o pensamento cristão por muitos séculos. Finalmente, a idéia platônica do Bem influenciou notadamente a formulação do pensamento cristão sobre Deus. No Timaeus, Platão declara que a origem do mundo foi trabalho de um artesão divino, ou demiurgo, que tomou a matéria disforme e lhe deu forma, imitando a beleza da Idéia do Bem. Se Platão considerava isto um mito ou não, não nos interessa neste ponto. Nosso interesse é sua influência poderosa no pensamento cristão primitivo. Por causa de seu tema comum, não é difícil traçar paralelos entre o Timaeus e Gênesis. A diferenciação entre a Idéia do Bem e o demiurgo, ou artesão do universo, estabeleceu uma dicotomia entre o Ser Supremo e o Criador, que é inteiramente estranho ao pensamento bíblico, mas que logo se tornaria enraizado nas mentes de alguns eruditos que desejavam declarar a impassibilidade de Deus simultaneamente à atividade divina no mundo. A partir desta fonte – e também do monoteísmo que o diálogo de Platão parecia manter – surgiu o costume, profundamente entrincheirado em alguns círculos teológicos, de falar de Deus nos mesmos termos que Platão usava para referir-se à Idéia do Bem: Deus é impassivo, infinito, incompreensível, indescritível e assim por diante. Próximo ao Platonismo, o Estoicismo foi o sistema filosófico que mais influenciou o desenvolvimento do pensamento cristão. Sua doutrina do logos, seu elevado tom moral, e sua doutrina da lei natural produziu uma profunda impressão no pensamento cristão. De acordo com os ensinamentos estóicos, o universo está sujeito a uma razão universal, ou logos. Este logos não é simplesmente uma força externa, mas antes, é a razão que está impressa na própria estrutura das coisas. Nossa própria razão é parte deste logos universal, e desta maneira somos capazes de saber e de entender. Toda razão e toda energia são encontradas nesta razão, que é chamada de logos seminal. Este conceito sobre o logos, 59

Ver Francis M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge: The Thaetetus and the Sophist of Plato Translated with a Running Commentary (Londres: Routledge &Kegan Paul, 1935).


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originalmente independente de qualquer interesse especulativo, seria mais tarde unido ao pensamento platônico – como já ocorrera em Filo – para servir como o contexto dentro do qual a doutrina cristã do logos seria elaborada.60 Para os estóicos, a doutrina do logos era apenas uma parte de sua preocupação ética, e era esse interesse que produziu influência marcante em alguns pensadores cristãos. A partir da existência da razão universal segue-se a existência da ordem natural das coisas, e sobretudo, de uma ordem natural da vida humana. Esta ordem é o que os estóicos chamam de “lei natural”, e eles a encontram impressa em nosso próprio ser, de modo que devemos apenas obedecê-la para sermos virtuosos.61 No começo, o Estoicismo inclinava-se para ser uma doutrina para uma elite, e estabelecia uma distinção absoluta, predeterminada e inalterável, entre os “sábios” e os “insensatos”.62 Com o passar do tempo, contudo, o Estoicismo tornouse mais flexível, e quando foi confrontado com o Cristianismo já havia se tornado um dos sistemas filosóficos mais populares do Império. Os cristãos viam nele um aliado contra aqueles que zombavam da austeridade de seus costumes – apesar da perseguição sob Marcus Aurelius, que ao mesmo tempo era um dos maiores dos estóicos. Muitos logo chegaram a conclusão de que a lei natural da qual os estóicos falavam era também o fundamento da ética cristã. Desta forma foi construída uma ponte entre o mais alto código moral da época e a doutrina cristã, mas por um preço – o lançamento de dúvida sobre a singularidade e a novidade primitiva da mensagem cristã. Além do Neo-Platonismo – o qual não discutiremos ainda, visto que sua origem não remonta além do segundo século A.D. – os outros movimentos filosóficos do período helenista tiveram pouca influência sobre o Cristianismo. O Epicurismo perdeu seu apelo mesmo antes do surgimento do Cristianismo, e de qualquer forma, a disparidade entre as duas doutrinas era tal que teria sido difícil para uma ser influenciada pela outra.63 O Ceticismo, embora ainda não tivesse caído em desuso, era a filosofia de um grupo muito pequeno, e sua falta de ensinamento positivos reduziu sua influência sobre outros sistemas de pensamento. Aristóteles continuava a fazer-se sentir através de sua lógica e de sua doutrina do “primeiro impassível motor”, mas estas já tinham sido assimiladas pelo platonismo contemporâneo – o

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Wilhelm Kelber, Die Logoslebre von Heralkit bis Origenes (Stuttgard: Urachhaus, 1958), pp. 48-88. J. Stelzenberger, Die Beziehungen der frühchristlichen Sittenlehre zur Ethik der Stoa: Eine moralgeschichtlich Studie (Munique: M. Hueber, 1933); Felix Flückiger, Geschichte des Naturrechtes, Bd. I: Altertum und Frühmittelater (Zurique: Evangelischer Verlag, 1954), pp. 186-238; E. Galán y Gutierrez, Jus naturae (Valladolid: Meseta, 1954); Henri e Marcel Simon, Die Alte Stoa und ihr Naturdegriff (Berlim: Aufbau Verlag, 1956), pp. 53-73 e 85-93; M. Spanneut, Le stoïcisme des Pères de l’Eglise: De Clément de Rome à Clément d’Alexandrie (Paris: Éditions du Seuil, 1957); M. Spanneut, “La notion de nature des stoïciens aux pères de l’eglise”, RThAM, 37 (1970), 165-173. Sobre a influência do Estoicismo na teologia medieval, ver G. Verbeke, The Presence of Stoicism in Medieval Thought (Washington, D.C.: Catholic University of America, 1983). 62 Eduard Zeller, The Stoics, Epicureans and Sceptics (Nova Iorque: Russell & Russell, 1962), pp. 268-277. 63 Cp., contudo, Richard P. Jungkuntz, “Christian Approval of Epicureanism”, CH, 31 (1962), 279-293. 61


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assim chamado Médio Platonismo 64 - de modo que a influência de Aritóteles alcançou a igreja primitiva envolvida em sistemas que eram essencialmente platônicos, como o de Filo. De qualquer forma, devemos ter em mente que um espírito eclético caracterizava os primeiros séculos de nossa era, uma aceitação daquela parte da verdade que poderia ser encontrada em cada uma das escolas filosóficas. Por esta razão, algumas escolas influenciaram outras de tal forma que é impossível distingui-las claramente. Mesmo no caso dos dois sistemas mais claramente definidos – o Platonismo e o Estoicismo – é impossível encontrar nos primeiros séculos depois de Cristo um único adepto de um deles que não tenha se apropriado de alguns elementos do outro. Este espírito tornou-se manifesto na fundação da “escola eclética” em Alexandria durante o reinado de Augustus. Mas o espírito eclético tinha, não muito antes, tomado posse de várias escolas filosóficas – do Estoicismo com Boeto de Sidon (segundo século a. C.), do Platonismo com Filo de Larissa e Antioco de Ascalon (primeiro século a.C.), e do Aristotelianismo com Galin (segundo século A.D.).65 A mesma tendência de combinar doutrinas de diferentes fontes pode ser vista no sincretismo religioso da época, o que discutiremos mais tarde. Esse sincretismo combinava diferentes religiões, bem como as várias doutrinas filosóficas a que poderiam ser dadas uma inclinação religiosa. Ao mesmo tempo, estudos estritamente filosóficos eram privilégio de uma pequena minoria. Da população educada do Império, a maioria não ia além da Gramática e da Retórica, e sua familiaridade com as várias escolas de filosofia vinha apenas do uso de passagens filosóficas em seus exercícios de retórica, e talvez na leitura de algumas doxografias, nas quais a opinião de vários filósofos eram sumarizadas. 66 De fato, alguns dos antigos escritores cristãos, a quem fora dado o título de “filósofos”, parecem estar familiarizados com a filosofia clássica apenas através de algum sumário doxográfico. Como poderia ser suposto, esta falta de um profundo estudo do pensamento de cada filósofo contribuiu para o espírito eclético do período. Já dissemos que, a fim de entender a estrutura na qual o Cristianismo se desenvolveu, devemos levar em conta não apenas os sistemas filosóficos do período helenista, mas também as religiões que naquele tempo reivindicavam a fidelidade do povo. A religião Olímpica, como encontrada nos poemas Homéricos, não era aquela enfrentada pelos primeiros cristãos. Desde o tempo das conquistas de Alexandre, existia na Grécia, ao lado da adoração aos deuses olímpicos, outros cultos muito diferentes, que faziam parte de um grupo conhecido como “religiões misteriosas”. Estes cultos, dos quais os mistérios eleusinos são um exemplo 64

Copleston, History, 1:451-456; Nicolás Abbagnano, Historia de la filosofía (Barcelona: Montaner y Simón, S.A., 1955-1956), 1:173-174. 65 Abbagnano, Historia, 1: 164-171. 66 Donald Lemen Clark, Rhetoric in Graeco-Roman Education (Nova Iorque: Columbia University Press, 1957).


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clássico, não eram um fenômeno tipicamente grego, mas antes, eram um tipo de religiosidade que tendia a substituir as religiões nacionais decadentes.67 Uma religião nacional, que é distinguida por seu caráter coletivo e por sua íntima relação entre os deuses e a nação, não pode subsistir como tal quando a nação perde sua identidade individual, ou quando, em qualquer sociedade, o indivíduo alcança um certo grau de autonomia em relação ao grupo. A antiga religião egípcia não poderia permanecer intacta quando o Egito perdeu sua independência nacional. Do mesmo modo, a religião grega não poderia permanecer inalterada diante do avanço do individualismo. Daí a grande popularidade ganha durante o período helenista pelos cultos misteriosos, que erma muito diferentes das religiões nacionais. Aparentemente, as religiões de mistério têm sua origem na fertilidade de antigos ritos, que estavam o centro das práticas religiosa de muitos povos primitivos. O milagre da fertilidade, tanto em seres humanos quanto em plantas e animais, ocupam um lugar importante na origem de muitos mistérios, e é notável que mesmo depois que sua origem foi por um longo tempo esquecida, as festas conhecidas como “Dionisíacas Rústicas” incluíam símbolos que sugeriam a origem do culto a Dionísio como deus da fertilidade.68 O milagre da morte e ressurreição que se seguia a cada ano, com a mudança das estações no Norte e com a cheia do Nilo no Egito, exerciam um importante papel na origem dessas religiões. No inverno, o deus morria ou se afastava, para retornar somente na primavera com o inestimável presente da fertilidade. Disso seguiu-se, por um lado, o mito que explicava a morte e ressurreição anual da natureza, e por outro lado, a participação de toda a natureza na vida e morte do deus, que por sua vez era a base para a participação do indivíduo na morte e renovação da vida da divindade. Além desses aspectos mitológicos, que eram os centros dos mistérios, podemos salientar que todas estas religiões, em contraste com as religiões nacionais, eram individualistas. A membresia nelas não era através do mero nascimento físico, mas antes era necessário ser iniciado. Não sabemos exatamente no que consistiam essas iniciações, pois os mistérios eram célebres por causa do sigilo de seus ritos. Mas sabemos que a iniciação era um rito por meio do qual o neófito unia-se a deus e, desta maneira, participava no poder e imortalidade divina. O individualismo e o sigilo desses cultos os adaptavam para a difusão além dos limites nacionais, e assim, descobrimos que o culto a Ísis e Osíris alcançou até

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A decadência dos antigos deuses Olímpicos mesmo antes da era de ouro da cultura grega. A zombaria de Xenophanes é uma testemunha disso, como é também a tentativa dos pitagoreanos de reformar a religião olímpica. Não há dúvida de que Platão foi grandemente influenciado pelo Orfismo; e, afinal, Orfeu é Dionísio passando por um olímpico. Ver Francis M. Cornford, From Religion to Philosophy: A Study in the Origins of Western Speculation (Nova Iorque: Harper, 1957). 68 Angel Alvarez de Miranda, Las religiones mistéricas (Madri: Revista de Occidente, 1961), pp. 78-80.


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mesmo a Espanha e que o de Attis e Cibele, originalmente frígio, foram difundidos em Roma. 69 Os iniciados contavam a outros as experiências que proporcionadas a eles pelos mistérios, embora sem divulgarem os segredos, e deste modo, os cultos eram expandidos e misturados. Finalmente, devemos observar que esses cultos freqüentemente incluíam uma refeição cerimonial na qual o fiel ingeria o deus e tornava-se participante na divindade. Em Trace, os comungantes de uma certa divindade – que talvez pudesse ter sido o ancestral rudimentar do grego Dionísio, que era provavelmente de origem traciana70 - unia-se a uma caçada que terminava em uma festa orgiástica com os participantes dilacerando a carcaça do animal ainda vivo.71 Deste modo, eles criam, a vida do animal tornava-se deles. Outro exemplo disso pode ser encontrado nos antigos bacanais, nos quais o propósito de beber vinho era o ser possuído por Baco, e deste modo participar de sua imortalidade. O fato de que esses cultos, cujas características íntimas e ritos secretos são desconhecidos, parecer estranhos para nós, não deveria esconder de nós a grande atração que eles tinham no período helenista. De fato, sua popularidade era tão grande que alguns – especialmente o culto a Mitra – foram importantes rivais do Cristianismo em seu ímpeto missionário.72 Em geral, esta popularidade pode ser explicada pelo próprio caráter dos mistérios como religiões de iniciação. Em uma época individualista e cosmopolita, o povo não poderia estar satisfeito com religiões meramente coletivas e nacionais. Os mistérios, que apelavam para o indivíduo, e para indivíduos de todas as nacionalidades, respondiam eficazmente ao espírito da época e daí seu crescimento incomum. Contudo, não devemos esquecer que o caráter essencial dos mistérios torna impossível aos não-iniciados seu entendimento. Embora seja difícil para nós sentir as emoções que os mistérios despertavam em seus seguidores, devemos ao menos entender que um grande número de pessoas do período helenista encontravam neles um lar espiritual. 73 Com relação ao relacionamento entre os cultos de mistério e o Cristianismo, a opinião 69

Sobre o culto a Ísis e Osíris, ver E. A. Wallis Budge, Osiris: The Egyptian Religion of Ressurrection (New Hyde Park, N. Y.: University Books, 1961); J. G. Griffiths, The Origins of Osiris and His Cult (Leiden: Brill, 1980). Sobre Attis e Cibele e sua influência no Cristianismo, ver P. Touilleux, L’Apocalypse et les cultes deDomitien et de Cybèle (Paris: Libraire Orientaliste Paul Geuthner, 1935); M. J. Vermaseren, Cybele and Attis: The Myth and the Cult (Londres: Thames and Hudson, 1977). 70 Este é o conceito tradicional, baseado em autoridades antigas. Henry Jeanmaire, Dionysos: Historie du culte de Bacchus (Paris: Gallimard, 1951), propõe uma teoria diferente, que Dionísio era originalmente Grego e mais tarde foi fundido em Tracia com um dos deuses locais. 71 Alvarez de Miranda, Las religiones, p. 89. 72 Mitra parece ser de origem persa. Freqüentemente ele é descrito como o deus da luz. Diferente dos outros mistérios, o de Mitra não inclui uma divindade feminina. Ele tornou-se muito popular, especialmente entre os soldados nos postos fronteiriços, e por um tempo parece ter sido um poderoso rival do Cristianismo. Franz V. M. Cumont, The Mysteries of Mithra, 2a ed., tradução da 2a ed. francesa de 1902 (Nova Iorque: Dover, 1956) ainda é uma introdução valiosa ao Mitraísmo. 73 O melhor discernimento quanto à fascinação dos mistérios, pode ser obtido lendo-se Metamorphoses of Lucius Apuleius, geralmente conhecido como The Golden Ass.


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erudita tem variado. Durante as duas ou três primeiras décadas do século vinte, pensava-se que as religiões de mistério formavam uma unidade baseada em uma “teologia misteriosa” comum, e que o Cristianismo era simplesmente uma delas, ou quando muito, uma religião distinta na qual a influência dos mistérios era grandemente sentida. De acordo com os eruditos desta época,74 o Cristianismo tomou dos mistérios seu conceito sobre a paixão, morte e ressurreição de deus; seus ritos de iniciação – o batismo; sua refeição sacramental – a comunhão; seus crescentes estágios de iniciação – as ordens; e uma variedade de detalhes supérfluos para enumerar. Mas desde então, tem sido feito um estudo cuidadoso sobre os mistérios, e a conclusão obtida por quase todos os eruditos é que não existiu tal coisa como uma “teologia misteriosa” comum – pelo menos no primeiro século de nossa era. Muito pelo contrário, os cultos de mistério diferiam tanto um do outro, que é até mesmo é difícil explicar o termo “religião de mistério”. Além disso, os mistérios parecem não ter alcançado seu pleno desenvolvimento até o segundo e terceiro séculos, que é o período em que a maioria de suas características em comum com o Cristianismo aparecem. Segue-se que tais características podem ser mais facilmente explicadas como a influência do Cristianismo sobre os mistérios do que o oposto, mais ainda quando aprendemos que já neste período os cultos pagãos tentavam imitar algumas das características da nova fé dinâmica. Mas isto não deveria nos levar ao extremo de negar toda influência dos mistérios no Cristianismo. Por exemplo, a data, 25 de Dezembro, tão profundamente cultivada pelos cristãos, era uma importante festa pagã relacionada com o culto a Mitra.75 Não foi senão no final do terceiro século, ou no começo do quarto, que ela começou a ser observada como o aniversário de Cristo. A última data de tal inovação, contudo, parece confirmar que os mistérios alcançaram seu pleno crescimento depois que o Cristianismo tornou-se fixo em suas características centrais, e assim, sua influência foi apenas periférica. Existem outros dois aspectos da religião helenista que nos interessam: o culto ao Imperador e a tendência sincretísta da época. A adoração ao Imperador não se originou em Roma, mas é antes mais um exemplo da invasão do mundo romano pelas religiões orientais. O Egito adorava seus faraós; os persas 74

Wilhelm Bousset, Kyrios Christos (Göttingen: Vandehoeck & Ruprecht, 1965); Alfred F. Loisy, Les Mystères païens et le mystère chrétien (Paris: Emile Nourry, 1919); R. Reitzenstein, Die Hellenistischen Mysterienreligionen (Leipzig: B. G. Tübner, 1920); R. Reitzenstein, Das iranische Erlösungsmysterium (Bonn: Marcus und Weber, 1921). 75 O solstício de inverno, sendo o dia em que o sol começa a crescer novamente após seis meses de minguante (declínio), freqüentemente foi relacionado como os cultos de mistério e fertilidade. Na Roma pagã, a festa era considerada ser de grande importância e estava relacionada tanto com o culto ao Imperador como com o Mitraísmo. No quarto século, os cristãos se apropriaram desta data com base na fato de que Cristo é o sol da justiça com cura em suas asas. Bernard Botte, Los orígenes de la Navidad y de la Epifanía (Madri: Taurus, 1964), pp. 90-96. Contudo, Roland H. Bainton, “The Origins of Epiphany”, em Early and Medieval Christianity (Boston: Beacon Press, 1962), pp. 22-38, nos lembra que 6 de Janeiro, a data da epifania de Dionísio, era considerada como a data do nascimento de Jesus mesmo no segundo século.


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curvavam-se ante seus soberanos; os gregos adoravam seus heróis. Estas são as fontes da adoração aos imperadores no Império Romano. Numa época em que o mundo Mediterrâneo estava misturado em uma cultura mais ou menos homogênea, os costumes de uma região se refletiam em outras. Quando Alexandre conquistou o Leste, ele adotou as práticas que eram seguidas ali com relação aos governantes, e não teve dificuldade em ser aceito como um deus.76 Júlio César, e mais tarde Marco Antônio e Otávio, foram reverenciados como deuses pelos egípcios. Roma, contudo, era cuidadosa com tal extravagância. Mesmo Otávio, que permitiu-se ser adorado no Oriente Próximo, não pretendia ser mais do que um Imperador e Augusto enquanto em Roma e lidando com os romanos.77 Em Roma, os grandes eram endeusados apenas depois de mortos – assim disse Vespasiano brevemente antes de morrer: “Meu Deus, sinto que estou me tornando um deus!”78 E mesmo esta prática não era aceita sem crítica.79 Geralmente, eram os aristocráticos romanos que eram críticos, pois eles se oponham a importação de costumes e religiões orientais. Além disso, a adoração ao Imperador tropeçou na apatia das massas, que sentiam que o culto não satisfazia suas necessidades. Por estas razões, levou anos para que a adoração ao Imperador criasse raiz no Ocidente, e existiram alguns Imperadores que a levavam mais a sérios que seus súditos.80 De qualquer modo, este culto não era uma força vital na vida religiosa da maioria do mundo greco-romano, e se ele tornou-se uma dos principais pontos de conflito entre o Estado e o Cristianismo crescente, isto foi apenas por causa de seu uso como um critério de lealdade política. Por outro lado, o período helenista é caracterizado pelo sincretísmo religioso. O estabelecimento de relações culturais, comerciais e políticas entre as diferentes regiões do mundo Mediterrâneo levaria, inevitavelmente, a inter-relações e equivalência entre as várias divindades regionais. Isis foi identificada com Afrodite e Demeter, e Zeus foi fundido com Serapis. Visto que o politeísmo fazia parte de sua estrutura fundamental, cada religião de mistério se sentia autorizada a aceitar e a adaptar qualquer coisa que achasse de valor em outras religiões. Se existe uma característica da religião do período helenista, esta é o sincretismo. Um culto competia com os outros, não para ser o mais austero, mas para ser o mais amplo, para incluir as mais diversas doutrinas. Para nossa história, este espírito da época – que é paralelo ao ecleticismo filosófico e até mesmo se confunde com ele81 - é da mais alta importância. Somente em um contexto como este podemos entender a importância e a dificuldade da decisão que os cristãos primitivos tinham que tomar quando enfrentavam a

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Roland H. Bainton, Early Christianity (Nova Iorque: Van Nostrand, 1960), p. 22. O que é “augustus” é sagrado, mas não divino. Cp. Ovid, Fast., 1:607-612. 78 Suetonius, De vita Caesarum 8.23 (LCL, Suet. 2:318). 79 Cp. Cícero, Phil. 1.6.31. 80 Este foi o caso com Calígula. Suetonius, De vita 4.22. 81 Como é o caso de Plotino (ver Cap. VIII), bem como de Porfírio e Iamblichus. 77


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tentação de fazer do Cristianismo um culto sincretista, como os que estavam em moda. Finalmente, ao discutirmos o berço do Cristianismo não devemos passar por cima de um fator tão importante como o Império Romano, com sua unidade de estrutura e a facilidade de seus meios de comunicação, o Império Romano, embora perseguisse o Cristianismo, providenciou os meios necessários para sua expansão. A sábia organização administrativa do Império deixou suas marcas na organização da igreja, e o código legal romano serviu não apenas como lei canônica, mas também foi uma das pedreiras da qual o vocabulário teológico latino foi extraído. Mas a grande contribuição de Roma no desenvolvimento do Cristianismo foi seu interesse no prático, no moral e no humano. Isto deu ao Cristianismo ocidental seu caráter prático e seu profundo senso ético, e colocou o fundamento para obras de tão profunda percepção psicológica como as Confissões de Santo Agostinho. Tudo isso mostra o que já foi dito, isto é, que o Cristianismo não nasceu solitariamente, em um vácuo, mas que – encarnação que é – surgiu no meio de um mundo no qual devia tomar forma, e à parte do qual é impossível compreendê-lo, assim como é impossível entender a Jesus Cristo à parte de seu corpo físico no qual ele viveu.


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III. A TEOLOGIA DOS PAIS APOSTÓLICOS Os mais antigos escritos cristãos sobreviventes, à parte daqueles que agora fazem parte do cânon do Novo Testamento, são os escritos dos assim chamados Pais Apostólicos.82 Eles receberam este título porque na ocasião pensava-se que eles tinham conhecido os apóstolos. Em alguns casos isto parece completamente possível, mas em outros foi um mero produto de imaginação. O nome “Pais Apostólicos” apareceu no décimo sétimo século, quando foi aplicado a cinco escritos ou conjuntos de escritos. Mas através dos anos três outros membros foram adicionados a este grupo,83 de modo que agora os Pais Apostólicos são oito: Clemente de Roma, a Didaque, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Papias de Hierápolis, a Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas, e a Epístola a Diogneto. Com uma única exceção, a Epístola a Diogneto, todos estes escritos são endereçados a outros cristãos.84 Portanto, eles são muito úteis para dar-nos uma idéia sobre a vida e o pensamento da jovem igreja. Lendo os Pais Apostólicos, pode-se vislumbrar os problemas produzidos pelas divisões internas, pela perseguição e pelos conflitos tanto com o Judaísmo como com o paganismo. A natureza literária destes escritos não é uniforme. Entre eles existem várias epístolas, um tipo de manual de disciplina, um tratado exegético e teológico, uma coleção de visões e profecias, e uma defesa do Cristianismo. Em si mesmo, esta variedade aumenta o valor dos Pais Apostólicos, pois mostra diferentes aspectos da vida da igreja primitiva. Clemente de Roma O primeiro dos escritos dos Pais Apostólicos, o qual pode ser datado com algum grau de precisão, é a Primeira Epístola aos Coríntios85 de Clemente de Roma. Tudo que pode ser dito com certeza86 sobre Clemente é que ele foi bispo de Roma no final do primeiro século 87, 82

Existem também muitos epitáfios (inscrições tumulares) e outras inscrições. Cp. G. Wilpert, La fede della Chiesa nascente secondo i monumenti dell’arte funeraria antica (Cidade do Vaticano: Pontif. Instituto di Archeologia Cristiana, 1938). 83 G. Joussard, “Le groupement des Pères dits apostoliques”, MScRel, 14 (1957), pp. 129-134. 84 A Epístola a Diogneto deveria estar classificada entre os Apologistas do segundo século, e não será discutida neste capítulo, mas antes, naquele dedicado aos Apologistas. 85 Preservada no original grego em dois manuscritos, e em traduções para o Cóptico, Siríaco e Latim. Ver Antonio Casamassa, I Patri Apostolici (Roma: Facultas Theologica Pontificii Athenaei Lateranensis, 1938), pp. 39-40. 86 Clemente pertence em parte a história e em parte a lenda, pois mais tarde cristãos atribuíram a ele muitas ações que ele nunca realizou. Origenes (Comm. im Jó, 6. 36), Eusébio (HE, 3. 4, 15), Epifânio (Haer. 27. 6), e Jerônimo (De viris illus 15) afirmam que Clemente estava com Paulo quando o último fundou a igreja em Filipos. A base para esta tradição está em Fl. 4:3. Contudo, não há razão para identificar o “Clemente” mencionado ali com o Clemente de Roma. Outros constróem ao redor dele uma série de lendas que agora são chamadas de literatura “Pseudoclementina”. Este é o nome dado à série de escritos fictícios nos quais Clemente é o personagem principal. Eles tratam das viagens de Pedro, a conversão de Clemente ao Cristianismo, e as lutas de Pedro e de Clemente contra Simão o mágico. Entre estes escritos existem a Vinte Homílias, a qual reivindica ser de Pedro, e dez livros de Reconhecimentos. A Vinte Homílias realmente parece ter se originado nos círculos gnósticos Judeus. O Reconhecimentos conta a história da família de Clemente, dispersada pelas circunstâncias e mais tarde reunida por Pedro. Embora ele seja mais ortodoxo do que a Homílias, é completamente possível que isto seja o resultado de correções introduzidas pelo tradutor Rufino, pois o Reconhecimentos existe somente em


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e que naquele tempo – provavelmente em 96 A.D. – ele escreveu aos Coríntios uma epístola que é sua única obra literária genuína remanescente. Embora não haja razão para duvidar que Clemente a escreveu, sua Epístola – geralmente chamada de I Clemente – na verdade é uma carta da igreja em Roma para a igreja em Corinto.88 É uma carta de igreja para igreja, e não de bispo do Roma para uma outra igreja.89 A razão desta carta é totalmente clara desde o começo, e nos faz lembrar da igreja de Corinto que é muito bem conhecida através das epístolas de Paulo. Novamente os cristãos daquela cidade estão divididos, e alguns deles90 tinham assumido uma atitude de rebeldia que preocupava os cristãos em Roma, pois “ ‘o ignóbil’ levantava-se ‘contra o honrado’, aqueles de nenhuma reputação contra aqueles de reputação, o insensato contra o sábio, ‘o jovem contra seus anciãos’.”91 Portanto, a epístola é principalmente prática na natureza, tratando dos vícios que causam divisões e das virtudes que fortalecem a unidade, e tratando de outros assuntos teológicos apenas tangencialmente. sua tradução para o Latim, e reconhecidamente ele corrigia os erros que encontrava nas obras que traduzia. Tanto a Homílias como o Reconhecimentos parecem ter sido escritos no quarto século, embora provavelmente extraindo informações de fontes antigas. Também tem havido tentativas de identificar Clemente de Roma com Titus Flávius Clemens, um cônsul romano que foi condenado a morte por seu parente o Imperador Domiciano, no ano 95. Como Flavius Clemens foi acusado de “ateísmo” – isto é, de não adorar os deuses – e de ter passado para usos judaicos, é inteiramente provável que ele era um cristão (a história de sua morte: Dio Cassius, Hist. rom. 67. 14 e Suetonius, De vita caes. 8. 15). Mas parece completamente improvável que tenha sido o bispo conhecido por nós como Clemente de Roma. Ver também: L. W. Barnard, “Clement of Rome and the Persecution of Domitian”, NTS, 10 (1963-64), pp. 251-260. 87 Antigos escritores não concordam a respeito de fato de que a ordem de sucessão através da qual Clemente tornou-se bispo de Roma. Irienu (Adv. haer. 3. 3.3) reivindica que Clemente foi o terceiro bispo de Roma depois de Pedro, e Eusébio (HE, 3. 4, 15), e Jerônimo (De viris illus. 15) concordam com ele. Santo Agostinho (Ep. 53.2), a Apostolic Constitutions (7.46), e diversas outras fontes (o Liberian Catalog e Optatus, De schic. donat. 2. 3) dizem que ele foi o segundo depois de Pedro. Finalmente, Tertuliano (De praes. haer. 32) e a Pseudoclementina (na assim chamada Epístola de Clemente a Tiago, que introduz as Vinte Homílias: ANF, 8. 218-222) reivindicam que Clemente foi o sucessor imediato de Pedro, e são seguidas nisto por outros escritores (Jerônimo, Adv. Iovin. 1. 12 e In Isaiam 52. 13). Tem havido diversas tentativas para solucionar este conflito por meio de várias explicações – entre elas está a de Epifânio, que reivindica que Clemente foi bispo de Roma duas vezes (Haer. 27. 6). Alguns eruditos modernos argumentam que durante o primeiro século Roma não teve um episcopado monárquico, isto é, que não havia um bispo, pelo contrário, um colégio ou grupo de bispos. Conforme esta teoria, foi mais tarde que escritores, acostumados a pensar em termos de um episcopado monárquico, apresentaram a lista de bispos como uma sucessão cronológica, e esta foi a origem da confusão a respeito do lugar exato de Clemente dentro daquela suposta sucessão (E. Kohlmeyer, “Zur Ideologie des ältesten Papsttums: Sukzession und Tradition”, ThSK, 103 [1931], 230-242; Stanley Lawrence Greenslade, “Scripture and Other Doctrinal Norms in Early Theories of the Ministry”, JTS, 44 [1943], 162-176). Cp. P. Burke, “The Monarchical Episcopate at the End of the First Century”, JES, 7 (1970), 499-518; J. Fuellenbach, Ecclesiastical Office and the Primacy of Rome: An Evaluation of Recent Theological Discussion of First Clement (Washington, D.C.: Catholic University of America, 1980). 88 Uma carta em que talvez tenham sido inseridos dois fragmentos de homílias do mesmo autor. L. Lemarchand “La composition de l’Épitre de saint Clément aux Corinthiens”, RScRel, 18 (1938), pp 448-457. 89 A saudação esclarece: “A igreja de Deus que reside temporariamente em Roma à igreja de Deus que reside por pouco tempo em Corinto” (Robert M. Grant et al., The Apostolic Fathers, 7 vols., Camden, N.J.: Thomas Nelson. 1964-1968, 2:15). 90 Provavelmente um grupo de “espiritualistas” que se opunham às autoridades, usando como argumento a liberdade do Espírito. P. Meinhold, “Geschehen und Deutung im ersten Clemensbrief”, ZschrKgesch, 58 (1939), pp. 82-129. 91 3.3 (Grant, The Apostolic Fathers, 2:21).


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Clemente parece extrair seus argumentos contra os rebeldes de duas fontes: o Velho Testamento por um lado, e a doutrina Estóica da natureza harmoniosa do universo, por outro. Seu uso do Velho Testamento para este propósito é completamente simples: ele se refere aos principais personagens da história do Velho Testamento e mostra como eles foram obedientes, hospitaleiros e humildes. A seção dedicada a este tipo de argumento – que inclui os capítulos 9 a 19 – começam com um resumo muito retrospectivo de Hebreus 11: Tomemos como exemplo Enoque, que pelo fato de ter sido encontrado justo em sua obediência foi transladado e nunca viu a morte. Noé, porque foi encontrado fiel em seu serviço, proclamou a renovação do mundo, pois através dele o Mestre salvou os animais que entraram pacificamente na arca. Abraão, que foi chamado de amigo, provou fielmente naquilo que obedeceu as palavras de Deus. Pois ele foi obediente desde sua terra e parentela e desde a casa de seu pai, com o resultado que deixando um pequeno país, um clã fraco e uma pequena família ele tornou-se o herdeiro da promessa de Deus.92 Por outro lado, o ensino moral de Clemente também insiste sobre o tema da harmonia ou concórdia Estóica (οµονοια). A harmonia está manifesta em toda criação, pois ela se deriva do caráter de Deus, que a estabeleceu em todas as coisas. Deus é o criador (δηµιουργος) do universo. Mas a atividade divina, contudo, não está limitada à criação original, pois Deus também é o governador soberano (δεσποτης) sobre todas as coisas. 93 É possível que ao chamar Deus de “demiurgo” Clemente conceba a relação de Deus com o mundo em termos platônicos, como o artífice que toma um material preexistente e lhe dá uma forma imitando um ideal superior ou um modelo. Mas Clemente não diz o suficiente acerca da criação para nos permitir fazer um julgamento em relação as conotações que o título de “demiurgo” tem para ele. Contudo, o título de “soberano sobre todas as coisas”, aplicado a Deus e unido ao tema estóico de harmonia, mostra, sem qualquer dúvida, que o conceito estóico de providência influenciou Clemente – o que não é absolutamente surpreendente se levarmos em conta a força do Estoicismo em Roma naquele tempo. De qualquer modo, a doutrina sobre Deus de Clemente é claramente trinitariana, no sentido de que diversas fórmulas trinitarianas aparecem na epístola.94 Na cristologia de Clemente não há dúvida quanto a preexistência do Salvador. É por

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9.3-10. 2; 11.1a; 12.1 (Grant, The Apostolic Fathers, 2:30-32). Esta provavelmente é a razão porque uma tradição que chega ao menos desde Origenes (citada por Eusébio, HE 6. 25. 12-14) atribui Hebreus a Clemente (ver também HE 3. 38. 1-4 e Jerônimo, De viris illus. 15). 93 20.11 Aqui Deus é citado como o µεγας δηµιοργος και δεσποτης τωϖ απαντων. 94 46.6; 58.2. Cp. Jules Lebreton, Historie du dogme de la Trinité des origenes au Concile de Nicée, Vol. II, De Saint Clément à Saint Irenée (Paris: Beauchesne, 1928), pp. 249-281.


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esta razão que ele cita os Salmos como Palavra de Cristo através do Espírito Santo.95 Jesus é um descendente de Jacó, mas somente segundo a carne. 96 Além disso, é possível que um certo texto de leitura duvidosa refira-se aos sofrimentos de Cristo como os “sofrimentos de Deus”.97 Nesta epístola encontramos também a primeira reivindicação de autoridade com base na sucessão apostólica.98 Os apóstolos, inspirados por Jesus, sabiam que chegaria um tempo quando seria claramente necessário que a igreja estabelecesse autoridades. Isto os levou a designar alguns homens santos para sucedê-los, e estes por sua vez foram sucedidos por outros conforme tornava-se necessário. Estas pessoas não recebem sua autoridade da congregação, e portanto ela não pode depô-los. Clemente chama estas pessoas que estão encarregadas da direção da igreja de “bispos e diáconos”,99 embora algumas vezes ele se refira aos bispos como “presbíteros”.100 Muito claramente, nestas vezes não há uma distinção rígida entre bispos e presbíteros. A popularidade de Clemente foi a razão porque, desde uma data muito antiga, várias obras foram atribuídas a ele, com o propósito de circularem sob o manto de sua autoridade. A mais antiga destas obras, e a única que pode ser discutida aqui, é a Segunda Epístola de Clemente aos Coríntios. 101 Na verdade ela é uma homília, provavelmente escrita antes de 150 A.D. Os eruditos não concordam quanto a seu lugar de origem, embora a maioria argumente por Corinto ou Roma. Seu propósito é exortar os crentes ao arrependimento enquanto eles ainda estão neste mundo, pois não há possibilidade de arrependerem-se na vida futura.102 Como será visto mais tarde, esta chamada dos crentes a arrependerem-se é encontrada também em um outro documento romano do mesmo período, o Pastor de Hermas, e é uma testemunha de uma das preocupações centrais dos cristãos em Roma por volta da metade do segundo século.103 Além da doutrina da penitência, cuja proximidade com a de Hermas é tal que não precisa ser discutida separadamente, esta homília é interessante por causa de sua doutrina sobre a igreja e sua cristologia, ambas são desenvolvidas em oposição a algo que parecia crer que a carne nada tinha a ver com as questões espirituais. Contra estas, o autor diz: Pelo contrário, nenhum de vocês deixe de dizer que sua carne não é julgada nem que 95

32.1. 32.2. 97 2.1 (Códice Alexandrino). 98 44. 1-4. Clemente usa aqui o termo de gênero específico “homens”. 99 42. 4-5. 100 44. 4-5. 101 Tradução para o inglês: Grant, The Apostolic Fathers, 2:112-132. 102 8. 1-3. 103 “Encontra-se uma tal concordância entre o Pastor de Hermas e esta homília, naquilo que se refere a vida e a penitência cristã, que se está inclinado a ver na Segunda Clemente uma obra, se não do mesmo autor, ao menos do mesmo ambiente e tempo que o Pastor.” Pierre Batiffol, La littérature grecque, 3a ed. (Paris: V. Lecoffre, 1901), p. 64. 96


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ela não ressuscita. Considere: em que estado vocês foram salvos, em que estado recobraram sua visão, se não foi nesta carne? Por isso é necessário proteger a carne como o templo de Deus. Pois como vocês foram chamados na carne, na carne vocês virão. Se Cristo o Senhor que nos salvou, primeiro era espírito mas tornou-se carne e neste estado nos chamou, assim nós também receberemos nossa recompensa nesta carne.104 Dentro deste contexto de ênfase sobre a importância espiritual da carne, a homília desenvolve sua eclesiologia, na qual a característica saliente é a preexistência da igreja. Assim então, irmãos, fazendo a vontade de Deus nosso Pai, devemos pertencer à primeira Igreja, a espiritual, que foi criada antes do sol e da lua. ... Além do mais, os livros e os apóstolos declaram que a Igreja pertence não ao presente, mas existe desde o começo. Pois ela é espiritual, ... foi manifesta na carne de Cristo para nos mostrar que se qualquer um de nós guardar sua carne e não for corrompido, receberá seu retorno no Espírito Santo. Pois esta carne é a cópia do Espírito. Ninguém que corrompa a cópia receberá o original em seu lugar. Isto, então, é o que significa, irmãos: guardar a carne, para que vocês possam participar no Espírito. Se dizemos que a carne é a Igreja e o Espírito é Cristo, então aquele que faz violência à Igreja faz violência a Cristo. Um homem como este não participará no Espírito, que é o Cristo. Esta carne é capaz de receber uma vida e imortalidade tão grande porque o Espírito Santo está intimamente unido a ela. 105 A partir dos textos citados acima, parece que a cristologia deste documento é muito confusa. Por um lado, não há dúvida de que o autor afirma a divindade de Cristo bem como sua humanidade. Mas por outro lado, ele tende a confundir Cristo e o Espírito. Isto quer dizer que, embora haja nesta obra uma doutrina clara sobre a encarnação, sua doutrina da Trindade é ainda obscura.106 A Didaque A Didaque ou Doutrina dos Doze Apóstolos – a palavra grega Didaque significa “doutrina”- é, sem dúvida alguma, uma das mais importantes descobertas literárias dos tempos modernos. Esta obra esteve esquecida por séculos em antigas bibliotecas, até que foi 104

9. 1-5. (Grant, The Apostolic Fathers, 2:120-121). 14. 1, 5 (Grant, The Apostolic Fathers, 2:125-127). Cp. G. Hrüger, “Zu II. Klem. 14.2”, ZntW, 31 (1932), 204-295, e J. Beumer, “Die altchristliche Idee einer präexistierende Kirche und ihre theologische Auswertung”, WuW, 9 (1942), 13-22, que discute o relacionamento da noção da igreja preexistente com Hermas e com o Gnosticismo. 106 Isto bem pode ser por causa de uma maneira arcaica de referir-se às pessoas da Trindade sobrevivente. Cp. Jean Dabiélou, “Trinité et angélologie dans la théologie hudéo-chrétienne, RScRel, 45 (1957), 5-41. Cp. H. B. Bumpus, The Christological Awareness of Clement of Rome and Its Sources (Cambridge, Mass.: University Press, 1972).

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descoberta em Istambul em 1875. Ao lado deste texto grego, existem fragmentos de traduções em Latim, Árabe, Cóptico, Georgoriano e Siríaco. Desde sua publicação dez anos após sua descoberta, este documento tem sido estudado por um grande número de eruditos, e sua origem, autor e data foram e ainda são debatidos. Certamente não há como datar sua composição, pois alguns eruditos crêem que ela foi escrita antes da destruição de Jerusalém em 70 A.D., 107 enquanto que outros a colocam em uma data muito posterior.108 Parece possível que ela foi escrita perto do fim do primeiro século ou no começo do segundo, embora usando fontes antigas, e que seu lugar de composição foi alguma pequena comunidade na Síria ou Palestina, longe das principais correntes de pensamento cristão.109 Isto explicaria a grande dificuldade que os eruditos encontram ao tentar determinar a origem e a data deste documento, que é o contraste entre a proximidade deste documento aos tempos apostólicos em certos aspectos, e sua distância dos apóstolos em outros assuntos. A Didaque tem dezesseis capítulos, os quais podem ser divididos em três seções principais. A primeira destas seções (1:1-6.2) geralmente é chamada de “Documento dos Dois Caminhos”. Como será visto mais tarde, este documento é encontrado também na assim chamada Epístola de Barnabé. Parece que ele existiu independentemente tanto da Didaque quanto da Epístola de Barnabé, ambos a usaram e a modificaram. 110 Segundo este documento, existem dois caminhos, um de vida e um de morte. O caminho da vida é aquele seguido pelos que amam a Deus e seu próximo, que também evitam o mal em todas as suas manifestações e cumprem seus deveres cristãos. O caminho da morte é amaldiçoado, e aqueles que o seguem são dados à mentira, vícios, hipocrisia e avareza. A segunda parte (6:3-10.7) contêm uma série de instruções litúrgicas. O Capítulo 7 trata do batismo, o qual normalmente deve ser administrado por imersão em água natural – isto é, água corrente. Mas no caso de falta de água, o batismo podia ser administrado despejando água sobre a cabeça três vezes no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Este é o texto mais antigo no qual outro batismo senão por imersão é mencionado. Agora, concernente ao batismo. Batize como segue, quando você tiver recitado o ensino acima mencionado: Batize no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em 107

Jean-Paul Audet, La Didachè: Instructions des Apôtres (Paris: J. Gabalda, 1958), crê que a Didaque alcançou sua presente forma em 70 A.D., e que nesta ocasião já tinha recebido uma adição por seu próprio autor, e diversas interpolações por outros. 108 Jean Colson, L’évêque dans les communautés primitives (Paris: Éditions du Cerf, 1951), argumenta que o arcaísmo da Didaque é forjado. 109 Pella parece ser uma boa sugestão, embora isto seja impossível de se provar. Ver Alfred Adam, “Erwägungen zur Herkunft der Didaque”, ZschrKgesch, 68 (1957), 1-47. Por outro lado, existe a possibilidade de que a Didaque possa ser um mero documento complexo, incluindo diversas camadas de redação, como sugerido por S. Giet, L’énigme de la Didaqué (Paris: Éditions Ophrys, 1970). 110 Parece certo que o motivo do “Documento dos Dois Caminhos” deve ser encontrado no Judaísmo, provavelmente em sua variedade essênia. Ver Jean-Paul Audet, “Les affinités littéraires et doctrinales du ‘Manuel de discipline’,” RevBib, 59 (1952), 219-238; 60 (1953), 41-82.


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água corrente. Mas se você não tiver água corrente, use qualquer uma que estiver disponível. E se você não pode fazê-lo em água fria, use quente. Mas se você não tiver nem uma nem outra, despeje água sobre a cabeça três vezes – em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E antes do batismo, tanto aquele que está batizando quanto o que está sendo batizado deveriam jejuar, juntamente com qualquer outro que possa. E esteja certo de que a pessoa que deve ser batizada jejue por um ou dois dias antecipadamente.111 O Capítulo 8 distingue os cristãos dos “hipócritas” – isto é, os Judeus – em dois pontos: em seu jejum e em suas orações. Os hipócritas jejuam o segundo e o quinto dia da semana, enquanto que os cristãos devem jejuar em dois outros dias. No que diz respeito as orações, os cristãos são distinguidos dos hipócritas nisto, eles repetem a oração do Senhor três vezes ao dia. Os Capítulos 9 e 10, juntamente com o Capítulo 14, tem sido objeto de debates eruditos desde que a Didaque foi descoberta. Os Capítulos 9 e 10 tratam de uma refeição da qual somente o pão e o vinho são mencionados, e que é chamada de “eucaristia”, mas na qual estes representam comer sua suficiência. O décimo quarto capítulo, por outro lado, refere-se à refeição que ocorre no dia do Senhor, precedida por um ato de confissão, e que é considerada um “sacrifício”. A questão é se os vários capítulos devem ser entendidos como referindo-se a um único tipo de celebração, ou se os primeiros dois se referem ao ágape ou festa do amor, enquanto que o último se refere à eucaristia no estrito sentido.112 Também existe a possibilidade de que em certas ocasiões a eucaristia era celebrada dentro da festa do amor. A terceira parte da Didaque (capítulos 11-15) é um tipo de manual de disciplina. Os Capítulos 11 a 13 tratam do problema dos falsos profetas. Como eles deviam ser distinguidos dos verdadeiros profetas? A resposta da Didaque é que os profetas são conhecidos por seu comportamento. Se eles pedem dinheiro, ou ordenam que uma mesa seja colocada para que eles possam comer, ou não praticam o que eles ensinam, eles são falsos profetas e “mercadores de Cristo”. 113 Por outro lado, os verdadeiros profetas merecem ser sustentados, e a comunidade deve prover para eles. No décimo quarto capítulo, há uma outra referência à eucaristia. Ela é chamada de um 111

Grant, The Apostolic Fathers, 3:163-164. Um bom estudo deste texto: W. Rordorf, “Le baptême selon la Didaché”, em Mélanges liturgiques offerts au R. P. Dom Bernard Botte (Louvain: Abbaye du Mont César, 1972), pp. 499-510. 112 F. E. Vokes, The Riddle of the Didache (Londres: S.P.C.K., 1938), p. 183, oferece o seguinte resumo das possíveis soluções para esta questão: “São possíveis as seguintes soluções: (i) que a Didaque descreve nos capítulos IX, X e XIV a eucaristia, (ii) em IX e X o agape e a eucaristia e no XIV a eucaristia, (iii) no IX e X o agape e no XIV a eucaristia, (iv) no IX e X a eucaristia doméstica privada e no XIV a eucaristia pública dominical, (v) no IX, X e XIV a refeição cerimonial cristã quando o agape e a eucaristia ainda eram uma única liturgia.” Cp. Gregory Dix, The Shape of the Liturgy (Londres: Dacre Press, 1945), pp. 48-102. 113 11.6, 8-10; 12.5.


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“sacrifício”; porém parece não referir-se ao sacrifício de Cristo, mas à comunhão como um sacrifício que os cristãos apresentam perante Deus. O Capítulo 15 trata dos bispos e diáconos que deviam ser eleitos pela comunidade, contudo o relacionamento entre eles e os profetas não seja explicado. A conclusão (Capítulo 16) trata do fim do mundo e de como é necessário estar preparado para ele. Do ponto de vista da história do pensamento cristão, a Didaque é, antes de mais nada, importante como uma expressão do moralismo que muito cedo dominou algumas correntes teológicas. As vezes, isto parece tornar-se mero legalismo. Consequentemente, por exemplo, a distinção entre “hipócritas” e cristãos está baseada principalmente em seus dias diferentes de jejum ou no fato de que os cristãos repetem a oração do Senhor três vezes ao dia. Porém a Didaque também é importante do ponto de vista da história da liturgia, pois ela inclui instruções interessantes referentes ao batismo e a eucaristia. Com referência ao batismo, embora ela dê por certo que este rito seria normalmente administrado por imersão, ela permite o batismo por derramamento. Como já foi dito, este é o mais antigo texto no qual esta forma de batismo é mencionada. Com referência a história da eucaristia, a Didaque parece testemunhar de um tempo em que o ágape e a eucaristia não eram claramente diferenciados. Além disso, a oração de ação de graças que aparece no Capítulo 9 parece ter sido adaptada do ritual que os judeus seguiam na celebração do Kedosh, e isto mostra como a antiga celebração judaica serviu como uma fonte para a liturgia cristã. Como uma fonte para a história da organização eclesiástica, a Didaque revela um período de transição entre o sistema primitivo de autoridade carismática e a organização hierárquica que desenvolveu-se lentamente dentro da igreja. Na Didaque, ainda são os profetas os mais altamente estimados, mas o problema do reconhecimento da autenticidade dos dons carismáticos se tornou crítico, e os bispos e diáconos aparecem ao lado dos profetas. Mais tarde, os profetas desaparecerão, e será a hierarquia que conduzirá a vida da igreja. Inácio de Antioquia Por meio das sete epístolas de Inácio de Antioquia nos é dado um vislumbre da situação da igreja no começo do segundo século. Inesperadamente, em meio as sombras que cobriam o Cristianismo daquele tempo, estas sete epístolas aparecem como uma luz que ilumina uma ou duas semanas da vida da igreja na Síria e na Ásia Menor. Era o início do segundo século, e Inácio, bispo de Antioquia,114 foi condenado a 114

Fora suas sete cartas, as mais antigas fontes de informação sobre a vida de Inácio são: Policarpo, Phil. 9.1 e 13.2; Irineu, Adv. haer. 5.28; Origenes, Prol. In Cant. e Hom. VI in Luc.; Eusébio, HE 3.36. No décimo século surgiu a lenda segundo a qual Inácio foi o menino que Jesus usou como um exemplo (Mt. 18:2). Não há base para esta lenda, exceto que o título Theophorus – o portador de Deus – que Inácio dava a si mesmo em suas epístolas, pode ter sido interpretado no sentido passivo – aquele que tem sido sustentado por Deus. Quanto a ordem de sucessão que liga Inácio aos apóstolos, há uma confusão similar àquela que existe com relação a Clemente de Roma. Origenes, Hom. VI in Luc.; Eusébio, HE 3.22 e Apostolic Constitutions 7.46 não concordam.


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morrer na capital imperial, provavelmente a ser devorado por feras. Ele estava sendo levado para esta capital como prisioneiro pelos soldados romanos, quando escreveu as sete epístolas que sobreviveram. Haviam diversas preocupações profundas em sua mente. Em Antioquia havia a igreja que ele dirigira por vários anos. Ela provavelmente estava sem dirigente, exteriormente ameaçada por aquela perseguição que tinha feito Inácio uma de suas vítimas, e interiormente pelos falsos mestres que deturpavam o que ele ensinou ser a verdade essencial do Cristianismo. À frente estava Roma, a cidade do teste final, onde ele devia ganhar sua coroa como um mártir, ou sucumbir à fatiga e sofrimento. E ao redor dele, nesta Ásia Menor que ele estava atravessando agora, havia também uma igreja que precisava de conforto e direção. Ele estava preocupado com o que poderia acontecer na igreja de Antioquia, da qual ele não teve qualquer notícia por um certo tempo. Ele estava preocupado com o que poderia acontecer em Roma, onde era possível que os cristãos tentassem livrá-lo das garras daquele martírio, o qual ele já sofria em sua imaginação, ou até mesmo que ele mesmo pudesse fraquejar no último momento. E ele estava preocupado com a Ásia Menor, onde ele já via os primeiros sinais dos mesmos problemas que enfrentou em Antioquia. Tudo isto pode ser visto nas sete cartas que sobreviveram, quatro escritas de Esmirna e três de Troas. De Esmirna, Inácio escreveu às igrejas de Magnesia, Trales, Éfeso e Roma. As três primeiras igrejas tinham enviado alguns de seus membros para encontrá-lo e confortá-lo, e Inácio lhes envia uma palavra de gratidão, de conselho e confirmação na fé. O bispo Damas, dois presbíteros e um diácono vieram de Magnesia vê-lo. Como Trales era um pouco mais distante, apenas o bispo Polibius veio. Éfeso, contudo, enviou uma grande delegação encabeçada pelo bispo Onésimo – o Onésimo do Novo Testamento?115 – e um desses membros era o diácono Burrhus, que serviu Inácio como um escrevente. O caso de Roma era um pouco diferente. Parece que Inácio teve notícias de que alguns cristãos naquela cidade estavam planejando livrá-lo do martírio. Ele era contra tal projeto, pois ele já estava antecipando o momento de seu martírio. É por este motivo que ele escreveu aos cristãos de Roma a fim de pedir que eles não permanecessem no caminho que Deus tinha designado para ele,116 mas ao contrário, permitissem que ele fosse um imitador da paixão de seu Deus.117 De Troas, Inácio escreveu à Igreja de Esmirna, para seu bispo Policarpo, e para a igreja em Filadélfia. O tom destas três cartas é mais otimista do que daquelas outras quatro, pois Inácio recebeu notícias de sua igreja em Antioquia que ela estava se opondo as Assim, é possível argumentar que Antioquia, como Roma, também tinha um colegiado de bispos, que mais tarde desenvolveu-se para o governo de um bispo. Neste caso, esta evolução deve ter sido mais rápida em Antioquia do que em Roma. Cp. Jean Colson, “Aux origines de l’épiscopat” Tradition paulinienne et tradition johannique”, Vie Spirit., Suppl. 3 (1949-50), 137-169. 115 Ver John Knox, Philemon among the Letters of Paul (Chicago: Chicago University Press, 1935), pp. 50-56. 116 Rom. 4. 1-2. 117 Ibid., 6.3.


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dificuldades que lhe causavam preocupação. Em sua carta aos cristãos de Esmirna, Inácio agradeceu por sua bondade e procurou fortalecê-los em sua fé. Ele também escreveu uma carta para Policarpo, o bispo de Esmirna, dando-lhe conselhos a respeito de sua função episcopal, e pedindo que ele enviasse um mensageiro à Síria, congratulando a igreja em Antioquia por ter vencido suas dificuldades. Finalmente, ele congratulou a igreja em Filadélfia pelo caráter de seu bispo, e a preveniu contra os falsos mestres. Ninguém deveria esperar que estas sete epístolas de Inácio,118 escritas dentro de um período tão breve e sob tão grande pressão, fossem uma exposição detalhada, equilibrada e sistemática de sua teologia. Quando ele escreveu estas cartas, alguns problemas estavam em primeiro lugar em sua mente. Suas epístolas tratam principalmente deles. É inteiramente possível que Inácio teria tratado de outros assuntos se as circunstâncias fossem diferentes. De qualquer modo, ao escrever estas sete cartas, o bispo de Antioquia estava preocupado principalmente com as falsas doutrinas e com as divisões que elas causavam na igreja. Portanto, seu propósito principal era atacar aquelas doutrinas e fortalecer a autoridade do bispo como o ponto central para a unidade da igreja. Parece que Inácio estava lidando com dois diferentes tipos de falsas doutrinas.119 Por um lado haviam alguns que negavam a vida física de Jesus Cristo120 e abstinham-se de participar da comunhão.121 Parece que estas pessoas pensavam em Jesus como um ser celestial, sem nenhum contato com as situações concretas da vida humana, e principalmente que era o objeto de especulação sincretística.122 Por outro lado, haviam algumas tendências judaizantes que transformavam Cristo em um mero mestre dentro da estrutura do Judaísmo.123 Este não era, contudo, um Judaísmo do tipo farisaico, mas pelo contrário um Judaísmo 118

Por causa da fama muito difundida de Inácio, escritores posteriores tentaram atribuir a seu nome obras que ele nunca escreveu. Assim, a Idade Média produziu quatro epístolas que tentavam mostrar um relacionamento entre Inácio e a Virgem Maria. Esta coleção de quatro epístolas inclui duas de Inácio a São João, uma de Inácio a Maria, e uma de Maria a Inácio. Também existem três diferentes textos das epístolas genuínas, geralmente chamadas de recensio longior, recensio brevior e recensio brevissima. Em geral os eruditos concordam que a recensio brevior é genuína. A recensio longior inclui as sete epístolas genuínas, interpoladas extensivamente, e seis falsificações (de Maria de Cassobolon a Inácio, e de Inácio a Maria, aos Tarsianos, aos Filipenses, aos Antioquienses, e a Heron). A recensio brevissima é um resumo de três epístolas genuínas. 119 Alguns eruditos têm reivindicado que em Antioquia havia uma única heresia que combinava em seus ensinos as várias doutrinas que Inácio parece refutar em suas cartas. Este é o entendimento de E. F. von der Goltz, Ignatius von Antiochen als Christ und Theologe (Leipzig: Hinrichs, 1894), p. 81, n.1. Mais recentemente, este também é o conceito de Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament (Nova Iorque: Scribner’s, 1951), 1:171-172. Muitos eruditos, contudo, crêem que haviam dois grupos heréticos em Antioquia. Cp. Virginia Corwin, St. Ignatius and Christianity in Antioch (New Haven: Yale University Press, 1960), pp. 52-65; Cyril Charles Richardson, The Christianity of Ignatius of Antioch (Nova Iorque: Columbia University Press, 1935), pp. 79-85. 120 Tral. 10. 1; Smyr. 2. 5. 121 Smyr. 7.1. 122 Tral. 6 (Grant, The Apostolic Fathers, 4:75-76): “Portanto eu vos exorto – não eu mas o amor de Jesus Cristo – usem apenas alimentos cristãos e abstenham-se de toda planta estranha, o que é heresia. Pois eles misturam Jesus com eles mesmos, falsificando a fé, provendo algo parecido com uma droga mortal com vinho adoçado, que o homem ignorante alegremente toma com prazer; e por isso está morto.” 123 Mag. 9-10; Philad. 6.1.


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Essênio, semelhante àquele dos Rolos do Mar Morto, embora os judaizantes de Antioquia fizessem uso do nome de Jesus Cristo e não praticasses a circuncisão.124 De qualquer modo, Inácio estava certo de que os ensinos destes judaizantes, não menos do que aquele dos outros falsos mestres, colocava em perigo o próprio centro da fé cristã, pois eles negavam a encarnação de Deus em Jesus Cristo. Esta é a razão porque ele se opôs tão violentamente tanto aos docetistas125 quanto aos judaizantes. Foi na questão da cristologia que Inácio viu a doutrina cristã mais ameaçada. Portanto, ele era categoricamente contra à doutrina dos docetistas. Jesus Cristo era verdadeiramente da linhagem de Davi; ele era verdadeiramente nascido; ele verdadeiramente comeu e bebeu; ele realmente foi batizado por João Batista; ele realmente foi pregado na cruz; e ele verdadeiramente ressuscitou dos mortos.126 Pois ele sofreu tudo isto por nós para que pudéssemos ser salvos; e ele realmente sofreu assim como ele verdadeiramente ressuscitou – não, como alguns incrédulos dizem, que ele parece ter sofrido – eles são os únicos aparentes, e assim como eles pensam, assim acontecerá a eles quando forem incorpóreos e demoníacos.”127 Além disso, mesmo após a ressurreição e ascensão, Jesus Cristo ainda existe na carne e ainda revela-se, ainda mais claramente do que antes.128 Esta declaração sobre a realidade da humanidade de Cristo não levou Inácio a deixar de lado sua divindade. Pelo contrário, Inácio claramente declarou que Jesus Cristo é “nosso Deus”.129 Jesus Cristo é Deus feito ser humano. Há um Médico: tanto carne quanto espírito, gerado e não gerado, em homem, Deus, na morte, verdadeira vida, tanto de Maria quanto de Deus, primeiro passível e então impassível, Jesus Cristo nosso Senhor.130 124

Corwin, St. Ignatius, pp. 57-64. Sobre o significado do termo “Docetista”, ver abaixo, p. 99. 126 Smyr. 1. 127 Smyr. 2 (Grant, The Apostolic Fathers, 4:115). 128 Ibid. 3.1. 129 Eph. Salut.; 15.3; 18.2; Rom. 3.3; Pol. 8.3. Em Rom. 6.3, Inácio chama Cristo de “meu Deus”. O título “deus”, sem o artigo definido, é aplicado a Cristo em Eph. 1.1; 7.2; 19.3; Tral. 7.1; Smyr. 10.1. Von der Goltz, Ignatius, pp. 21-28, não pensa que este título deva ser entendido em seu sentido absoluto. Contra este conceito, ver M. Rackl, Die Christologie des heiligen Ignatius von Antiochen (Freiburg im Breisgau: Freiburger Theologische Studien, 1912), pp. 150-231. 130 Eph. 7.2 (Grant, The Apostolic Fathers, 4:38). 125


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Jesus Cristo “está acima de cada momento do tempo – eterno, invisível, por nossa causa visível, intangível, impassível, por nossa causa passível.”131 Inácio nunca propõe a questão de como é possível esta união da humanidade e divindade em Jesus Cristo.132 O mesmo pode ser dito sobre como a divindade de Jesus Cristo está relacionada à do Pai.133 Afinal, seu interesse não estava nos problemas especulativos propostos pela fé cristã, mas antes declarar que Deus está presente na existência histórica de Jesus de Nazaré. Inácio está mais perto de João do que de Paulo na interpretação da obra de Cristo. Para ele, o âmago do Cristianismo é a revelação. Deus não pode ser conhecido à parte da revelação em Cristo. Deus é silêncio, e Jesus Cristo é a Palavra que vem do silêncio, embora a unidade entre o silêncio e a Palavra seja tal que a última expressa a essência do silêncio. 134 Assim, a obra de Cristo é, antes de mais nada, uma obra de revelação.135 Jesus veio para tornar Deus conhecido de nós em vez de salvar-nos dos laços do pecado. Nisto Inácio difere de Paulo, para quem o grande inimigo é o pecado, o qual nos escraviza, e que vê a salvação, antes de mais nada, como uma libertação. De fato, nas epístolas de Inácio a palavra “pecado” aparece apenas uma vez. 136 Contudo, não se deveria exagerar este contraste entre Inácio e Paulo. Afinal, a revelação da qual Inácio fala não é um mero conhecimento intelectual de Deus, mas antes consiste na ação divina através da qual somos unidos a Deus, e deste modo libertos de nossos grandes inimigos, os quais, conforme Inácio, são a morte e a divisão. Nosso problema não é uma simples ignorância que pode ser vencida por uma iluminação intelectual. Pelo contrário, o Diabo exerce um papel importante na teologia de Inácio, e a obra de Cristo consiste, em parte ao menos, em subjugar o Diabo e tornar o crente um participante desta vitória. Assim toda magia foi dissolvida e todo laço de maldade desapareceu; a ignorância foi abolida e o velho reino foi destruído, visto que Deus tornou-se manifesto em forma humana para a novidade da vida eterna; o que foi preparado por Deus teve seu início. Portanto, tudo que foi derrubado, pela abolição da morte estava sendo planejado.137 Em Cristo e em sua vitória sobre o Diabo, Deus nos oferece a vitória sobre a morte e a 131

Pol. 3.2 (Grant, The Apostolic Fathers, 4:132). Rackl, Christologie, p. 284. 133 As claras declarações de Inácio referentes a divindade de Jesus Cristo têm levado alguns interpretes a acusálo de patripassianismo – isto é, a doutrina segundo a qual o Pai e o Filho são um de maneira tal que o Pai sofreu em Jesus Cristo. Esta é a interpretação de E. Kroymann em sua introdução a Adversus Praexeam de Tertuliano (Tübingen: Mohr, 1907). Contra isto, ver Rackl, Christologie, pp. 229-231. Talvez tudo que se possa dizer é que Inácio não é explícito sobre este ponto. 134 Mag. 8.1. Cp Eph. 19.1. 135 Isto, segundo a interpretação de Corwin, St. Ignatius, pp. 116-153. Hans Werner Bartsch, Gnostisches Gut und Gemeindetradition bei Ignatius von Antiochen (Gütersloh: Werner, 1940), não dá destaque a importância da revelação para Inácio. 136 Smyr. 7.1. O verbo “pecar” aparece em Eph. 14.2. 132


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divisão, os quais são instrumentos dos poderes do mal sobre nós. É por esta razão que Inácio constantemente enfatizava a importância da imortalidade e da unidade como resultado da obra de Cristo. Esta obra de Cristo chega até nós através da igreja e dos sacramentos. Inácio via a igreja como uma, e foi o primeiro a falar sobre a “igreja católica”.138 Esta unidade da igreja não é devida à harmonia, ou aos bons sentimentos entre os próprios cristãos, mas à presença do próprio Jesus Cristo na igreja. Isto não significa, contudo, que a unidade é uma questão puramente espiritual. Pelo contrário, ela está baseada em uma hierarquia que apresenta Deus o Pai, Cristo e os Apóstolos. “Semelhantemente todos são em relação aos diáconos como Jesus Cristo e o bispo como uma cópia do Pai e os presbíteros como o concílio de Deus e o grupo dos apóstolos. Pois à parte destes nenhum grupo pode ser chamado de igreja.”139 Inácio enfatiza a importância do bispo na igreja local, e realmente ele é a primeira testemunha da existência de uma monarquia episcopal. 140 Nada devia ser feito na igreja sem o bispo,141 e algo que não estivesse sujeito a ele não estava sujeito a Deus.142 Sem seu consentimento, não era lícito celebrar o batismo ou a eucaristia,143 e Inácio também aconselha que a união marital ocorresse com a aprovação do bispo.144 Na unidade desta igreja que está sujeita a Deus o Pai, a Cristo e aos apóstolos por meio dos bispos, presbíteros e diáconos, a pessoa é unida a Cristo. Isto ocorre especialmente por meio dos sacramentos. A igreja é mais do que uma instituição humana. A igreja dos efésios, por exemplo, foi predestinada antes do começo dos séculos, e também é digna de cada bênção.145 Todavia, isto não significava que Inácio tentava esconder ou ignorar a fraqueza dos cristãos. Ele conhecia muito bem as divisões e as baixezas das quais os crentes são capazes. Mas a despeito de tudo isto, é ainda verdade que na igreja, até mesmo no meio da mesquinharia humana, Cristo está 137

Eph. 4.3. (Grant, The Apostolic Fathers, 4:51). Smyr. 8.2. A. A. Garciadiego, Katholike Ekklesia: El significado del epíteto “Católica” aplicado a “Iglesia” desde San Ignacio de Antioquía hasta Orígenes (México: Editorial Jus, 1953), argumenta que o termo “católica” não é usado por Inácio no sentido de mundial, mas antes como aquilo que é inteiro, em oposição à parcialidade das seitas. Também deveria ser notado que Inácio é, até onde se sabe, o primeiro a chamar a nova fé de “Cristianismo”- Χριστιανισµος. Mag. 10. 1,3; Rom. 3.3; 3.3; Philad. 6.1. É significativo que a primeira pessoa a falar de “Cristianismo” foi precisamente o bispo daquela cidade na qual os seguidores de Jesus foram pela primeira vez chamados de “cristãos” (Atos 11:26). 139 Tral. 3.1 (Grant, The Apostolic Fathers, 4:73). Cp. Mag. 13; Smyr. 8.1. 140 A única epístola na qual Inácio não se refere ao bispo e à hierarquia tripartida é Romanos. Isto ocorre por causa da natureza particular desta carta, cujo propósito não é exortar ou ensinar, ao contrário, é pleitear que deve ser permitido que ele sofra o martírio? Ou antes é por causa da ausência de um episcopado monárquico em Roma, do que Inácio estava consciente ser o caso? Dado o pouco material disponível, é impossível responder a estas questões com algum grau de certeza. 141 Mag. 7.1; Tral. 2.2; Pol. 4.1. 142 Eph. 5.3. 143 Smyra. 8.1. 144 Pol. 5.2. 145 Eph., salut. 138


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presente.146 Na unidade da igreja, e especialmente através da eucaristia, os crentes são unidos a Cristo. Inácio não oferece uma exposição sistemática dos sacramentos, mas não há dúvida de que a eucaristia era de grande importância para ele. Ele a chamava de “a carne de Jesus Cristo”,147 e também de “o medicamento da imortalidade, o antídoto que resulta em não morrer mas em viver eternamente em Jesus Cristo.”148 Contudo isto não deve necessariamente ser entendido como uma clara afirmação de que o pão torna-se fisicamente a carne de Cristo, pois em outro contexto Inácio falava do evangelho e da fé como a carne de Cristo, e do amor como seu sangue.149 Quando Inácio dizia que o evangelho ou a eucaristia eram a carne de Cristo, ele simplesmente estava enfatizando a unidade que existe entre Cristo e o evangelho, ou entre ele e a eucaristia. Por outro lado, isto não sugere que Inácio via a eucaristia como um mero símbolo da unidade cristã. Pelo contrário, a comunhão é necessária para a vida cristã, e somente os hereges se afastam dela.150 Nela o crente é unido a Cristo, e especialmente a sua paixão,151 Além disso, na eucaristia “os poderes de Satanás são destruídos e sua força destrutiva é aniquilada pela concórdia de sua fé.”152 Seria um anacronismo perguntar se Inácio via a eucaristia em termos simbólicos ou realísticos. A verdade parece ser que Inácio – talvez influenciado pela religião de mistério – via na eucaristia um ato através do qual, ao representar a paixão de Cristo, o crente é unido àquela paixão. Isto concordaria com o que Inácio dizia acerca do batismo, no qual, quando os cristãos repetiam o rito ao qual Cristo submeteu-se, eles também participavam de seu poder purificador. Esta é a razão porque Cristo foi batizado, pois ao faze-lo ele purificou as águas com as quais nós mesmos somos purificados.153 Quais são as fontes da teologia de Inácio? Esta é uma questão que os eruditos têm debatido e sobre a qual eles não concordam; pois a resposta que se dá, depende da maneira pela qual se faz toda uma série de perguntas concernentes ao Cristianismo primitivo. Parece certo que Inácio leu o Evangelho de Mateus e a Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, embora seja mais difícil determinar se ele conhecia os outros Evangelhos Sinóticos, bem 146

“Isto proclama sua confiança de que não é em alguma igreja ideal abstrata que jaz a verdadeira santidade e glória, mas nestas congregações locais, com todas as suas persistentes dificuldades, as quais como bispo ele devia conhecer muito bem. A Igreja está nas igrejas, transformando o vil e o efêmero no nobre e no eterno. Assim as igrejas são mais do que instituições humanas, pois elas carregam o propósito divino, e são tocadas com a glória divina.” Corwin, St. Ignatius, p. 191. 147 Smyr. 7.1. 148 Eph. 20.2 (Grant, The Apostolic Fathers, 4:53). 149 Tral. 8.1; Rom. 7.3; Philad. 5.1. 150 Smyr. 7.1. 151 Philad. 4. 152 Eph. 13.1 (Grant, The Apostolic Fathers, 4:44). 153 Eph. 18.2; Foi também por uma razão similar que Cristo foi ungido: Eph. 17.1.


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como quais outras epístolas Paulinas ele leu. 154 De qualquer modo é totalmente claro que Inácio, em sua teologia, está mais perto dos Quarto Evangelho do que do Apóstolo Paulo.155 Contudo, o problema do relacionamento entre Inácio e os autores dos escritos Joaninos é muito complexo. Embora Jerônimo afirme que Inácio, juntamente com Policarpo e Papias, foi um discípulo de João em Éfeso,156 esta afirmação não é digna de confiança, pois outros escritores antigos não a mencionam, 157 e o próprio Inácio, em sua Epístola a Policarpo, sugere que ele não o tinha encontrado antes de uma data muito recente.158 De qualquer modo, não há dúvida de que há um estreito relacionamento entre Inácio e a teologia Joanina. Mas os eruditos não concordam quanto a natureza exata deste relacionamento. É possível que Inácio conhecia os Quarto Evangelho e as Epístolas de João; mas também é possível que sua proximidade é devida, não a influência de um sobre o outro, mas por ambos os escritores pertencerem à mesma escola teológica.159 Finalmente, há a questão de como Inácio está relacionado com o Gnosticismo por um lado e às religiões de mistério por outro. Seria plausível dizer que o relacionamento entre Inácio e o Gnosticismo é principalmente negativo, exceto talvez em alguns detalhes de vocabulário – como, por exemplo, o “silêncio” de Deus.160 O problema do relacionamento entre os mistérios e a teologia de Inácio é mais difícil de resolver, pois muitos dos documentos através dos quais os mistérios podem ser estudados são mais recentes do que Inácio, e por isso é muito difícil distinguir entre aqueles elementos comuns que passaram dos mistérios para a teologia de Inácio, e aqueles que, pelo contrário, refletem a influência do Cristianismo sobre os cultos de mistério.161 De qualquer modo, há um inegável ponto de contato entre Inácio e os mistérios na maneira pela qual o bispo de Antioquia enfatiza a realidade da participação dos crentes na unidade e vitória de Cristo através da refeição comum da eucaristia. Para concluir, pode-se dizer que Inácio é um teólogo que não é inclinado a construções sistemáticas ou especulativas, mas que tem um profundo senso da importância de algumas das doutrinas fundamentais do Cristianismo, bem como uma extensa visão das conseqüências destas doutrinas. Isto, unido a seu interesse eclesiástico e pastoral, e com sua atitude de total 154

Corwin, St. Ignatius, pp. 66-68. Ibid., pp. 66-69; von der Goltz, Ignatius von antiochen, pp. 178-196; Richardson, The Christianity of Ignatius of Antioch, pp 60-67; Walter von Loewenich, Das Johannes-Verständnis im zweiten Jahrhundert (Giessen: A Töpelmann, 1932). 156 Chron. Ad. an. Abr. 2122 (citado por Casamassa, I Patri, p. 105). 157 Ver supra, n. 32. 158 Pol. 1.1. 159 Ver Richardson, The Christianity of Ignatius of Antioch, pp. 68-75. 160 Muitos eruditos crêem que o Gnosticismo influenciou grandemente a teologia de Inácio. Seus argumentos básicos são bem resumidos por Corwin, St, Ignatius, pp. 11-13. Contudo, um destes argumentos de Corwin é que a influência do Gnosticismo sobre Inácio é antes periférico e negativo. 161 A bibliografia relevante para isto pode ser encontrada em Corwin, St. Ignatius, p. 211, n. 20. 155


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dedicação no começo do martírio, faz de suas epístolas um dos mais ricos tesouros transmitidos a nós pelos cristãos da antigüidade. Policarpo de Esmirna Entre os Pais Apostólicos também existe uma Epístola de São Policarpo aos Filipenses, escrita em conexão com o martírio de Inácio. 162 É provável que a Epístola atual originalmente não era uma mas duas cartas. Segundo esta hipótese, o Capítulo 13 e provavelmente o 14 são parte de uma primeira carta, na qual Policarpo respondia ao pedido dos filipenses para que ele lhes enviasse as cartas de Inácio que ele tinha, e também lhes pede notícias referentes a Inácio e seus companheiros. Os outros doze capítulos seriam então uma carta posterior de Policarpo, também endereçada à igreja em Filipos.163 Não importa se temos aqui uma ou duas epístolas, o fato importante é que este documento apresenta um esboço de teologia semelhante à de Inácio e do Quarto Evangelho, embora com um propósito mais prático. Policarpo não alcança a profundidade do Quarto Evangelho ou de Inácio, mas os segue dando ênfase a realidade da humanidade de Cristo,164 que ele coloca no centro de sua doutrina da salvação.165 De qualquer modo, a importância desta epístola não está tanto em sua doutrina, a qual não é original nem profunda,166 quanto em seu testemunho sobre a autenticidade das epístolas de Inácio. Este é, provavelmente, o melhor lugar para se mencionar o Martírio de Policarpo, o qual é o mais antigo documento de sua natureza que foi preservado.167 É uma carta escrita pela igreja de Esmirna à igreja de Filomelium e a toda igreja, logo após os eventos

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Policarpo não é conhecido somente por sua epístola e pelo que Inácio escreveu a ele, o que já tem sido mencionado, mas também através de seu discípulo Irineu, que mais tarde tornou-se bispo de Lyon na Gália (França) (Adv. haer. 3.3.4). Eusébio também preservou uma carta que Irineu escreveu a Vitor, bispo de Roma, na qual ele fala de uma entrevista que Policarpo teve com o Bispo Anicetus em cerca de 155 A.D., a fim de discutir a controvérsia que estava ocorrendo referente a data da celebração da Páscoa (HE 5.24). Existe também um relato do martírio de Policarpo que reivindica ter sido registrado pela igreja de Esmirna logo depois do evento (Grant, The Apostolic Fathers, 5:51-82). Outras fontes são: Tertuliano (De praes. haer. 32) e Jerônimo (De vir. Illus. 17), que aproxima Tertuliano e Eusébio. Algumas datas biográficas podem ser deduzidas a partir destas fontes. Policarpo parece ter sido um discípulo de João – seja quem for que possa ter sido – juntamente com Papias e, segundo algumas autoridades dúbias, Inácio (ver supra, n. 32). No início do segundo século, quando Inácio passou por Esmirna a caminho de seu martírio, Policarpo era bispo da igreja naquela cidade. Em 155 A.D., ele foi para Roma e ali encontrou-se com o Bispo Anicetus. Logo depois de seu retorno para Esmirna, possivelmente em Fevereiro de 156 A.D., Policarpo sofreu o martírio na mesma cidade onde ele conduzira o rebanho cristão por muitos anos. 163 Esta é a tese de P. N. Harrison, Polycarp’s Two Epistles to the Philippians (Cambridge: Cambridge University Press, 1936). Um sumário desta tese pode ser encontrado nas pp. 15-19. Ela em geral tem sido bem aceita pelos eruditos, pois ela resolve a contradição entre o décimo terceiro capítulo, onde Policarpo pede aos filipenses notícias a respeito de Inácio, e o restante do documento, no qual o martírio do bispo de Antioquia é tido como um fato. 164 Philip. 7.1. 165 Ibid. 8.1. 166 Cp. D. Ruiz Bueno em Padres apostólicos (BAC, 65), p. 648. 167 E mesmo assim na tradução para o Latim, pois somente uns poucos fragmentos do original grego sobreviveram.


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narrados.168 O dramatismo fino de sua narrativa e a sinceridade de seu estilo é suficiente para tornar este documento extremamente interessante. Mas de nosso ponto de vista ele é importante especialmente porque contém a mais antiga alusão ao costume de preservar as relíquias dos mártires,169 bem como porque ela lança luz sobre a natureza do conflito entre cristãos e pagãos, o que estudaremos no próximo capítulo. Papias de Hierápolis Papias estava também entre os discípulos de João, e mais tarde tornou-se bispo de Hierápolis. 170 Ele tomou sobre si a tarefa de colecionar cada declaração ou ensino do Senhor que ele ouvisse. Assim, ele compilou e compôs sua Exposição das Declarações do Senhor, de cujos cinco livros somente uns poucos fragmentos sobreviveram – e mesmos estes são de importância limitada para a história do pensamento cristão. Em tempos antigos, Papias muitas vezes foi questionado por causa de seu quiliasmismo (milenismo) – o conceito de que após o retorno de Cristo haverá um período de mil anos, durante o qual ele reinará sobre a terra. É geralmente a fim de criticá-lo a este respeito que Eusébio o cita, enquanto que Irineu o usa para apoiar esta doutrina. Em alguns casos o quiliasmismo de Papias ultrapassa as fronteiras entre o poético e o ridículo, como quando ele diz que Os dias virão quando os vinhais crescerão cada uma com dez mil vinhas, e sobre uma vinha dez mil ramos, e sobre um ramo dez mil brotos, e sobre cada broto dez mil cachos, e em cada cacho dez mil uvas, e cada uva, quando espremida, dará vinte e cinco medidas de vinho; e quando um dos santos pegar um cacho, um outro cacho gritará: “Eu sou melhor apanhe-me, glorifique o Senhor por minha causa.”171

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Embora provavelmente com algumas interpolações posteriores. Ver Grant, The Apostolic Fathers, 5:48-49. Mart. Pol. 28. 2,3. 170 As referências mais antigas a Papias são encontradas em Irineu (Adv. Haer. 5.33.4) e Eusébio (HE 3.39). Embora os eruditos o coloquem em datas diferentes, provavelmente ele escreveu no começo do segundo século. Ver E. Gutwenger, “Papias: Eine chronologische Studie”, ZkT, 69 (1947), 385-416. 171 Fragmento encontrado em Irineu (Adv. haer. 5. 33.3). Traduzido por Grant, The Apostolic Fathers, 5:95. Sobre as fontes de tal conceito na literatura helenista, ver H. J. de Jonge, “Βοτρυς βοησεi: The Age of Kronos 169


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Mais recentemente, os eruditos têm pesquisado os fragmentos de Papias porque eles se referem à autoria dos primeiros dois Evangelhos172 e à existência de dois Joãos, o apóstolo e o ancião.173 A Epístola de Barnabé Este é o título que foi dado a um antigo documento que algumas vezes foi incluído entre os escritos canônicos do Novo Testamento, e que provavelmente foi escrito em Alexandria por volta de 135 A.D.174 Embora alguns antigos escritores cristãos reivindiquem que seu autor seja Barnabé, o companheiro de Paulo, mais seguramente ele não produziu esta obra.175 Esta assim chamada Epístola de Barnabé é composta de duas partes claramente distinguíveis. A primeira (capítulos 1-17) é doutrinária no caráter, enquanto que a segunda (capítulos 18-21) é mais prática. A parte doutrinária é principalmente dedicada a uma interpretação alegórica de textos do Velho Testamento. A questão do próprio entendimento do Velho Testamento, por algum tempo, foi uma questão séria entre judeus helenistas. Assim, já temos visto como Filo ofereceu uma interpretação alegórica do Velho Testamento, o que tornava as antigas escrituras compatíveis com sua própria filosofia. Semelhantemente, os cristãos estavam enfrentando agora a aparente incompatibilidade entre alguns textos do Velho Testamento e os ensinos do Novo. Além disso, o aparecimento da igreja cristã produziu uma controvérsia entre os cristãos e os judeus, e esta controvérsia tinha a ver principalmente com a correta interpretação do Velho Testamento.176 Deste modo os cristãos acharam-se obrigados a procurar meios de interpretação que unissem os dois Testamentos. Um destes métodos foi a interpretação alegórica, um procedimento pelo qual era possível livrar os preceitos do Velho Testamento daquela natureza mais primitiva que os cristãos, e até mesmos alguns judeus, tinham dificuldade em aceitar. Foi em Alexandria que esta interpretação alegórica prosperou, primeiro entre judeus tais como Filo, e a seguir entre cristãos tais como o Pseudo-Barnabé, Clemente e Origenes. Esta é uma das razões porque tanto Clemente quanto Origenes and the Millenium in Papias of Hierapolis”, em M. J. Vermaseren, ed., Studies in Hellenistic Religions (Leiden: Brill, 1979). Pp. 37-49. 172 Fragmento encontrado em Eusébio (HE 3. 39.15-16). 173 Fragmento encontrado em Eusébio (HE 3. 39.4). 174 É impossível averiguar a data deste documento, pois a evidência interna parece ser contraditória. O Capítulo quatro levaria a datá-la por volta do final do primeiro século, enquanto que o capítulo sexto pareceria indicar um data por volta de 135 A.D.. Ver Ruiz Bueno, Padres, pp. 753-756; Grant, The Apostolic Fathers, 3:42-43. 175 O primeiro a atribuir esta obra a Barnabé é Clemente de Alexandria, que é simpático a sua exegese alegórica, e por isso a cita repetidamente: Paid, 2.10; Strom. 2.6, 7; 2.15; 2.18; 2.20; 5.8; 5.10. Origenes a cita como Escritura: Comm. in Rom. 1.18. 176 Um eco desta controvérsia pode ser ouvido na seguinte passagem do Pseudo-Barnabé: “Não seja como certas pessoas, que aumentam seus pecados clamando que seu pacto é irrevogavelmente seu. Mas eles o perderam completamente ...” (4.6, Grant, The Apostolic Fathers, 3:89-90).


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conservam a assim chamada Epístola de Barnabé em alta estima, e até mesmo a incluíam entre os escritos canônicos do Novo Testamento. E é também uma das razões porque eruditos modernos crêem que Alexandria foi o lugar de composição deste documento. Como um exemplo da interpretação alegórica encontrada nesta Epístola, pode-se tomar a maneira pela qual ela entende a proibição do Velho Testamento de comer carne de porco. Segundo o autor deste documento, este preceito na verdade nos fala que não devemos nos unir a pessoas que são como porcos, que algumas vezes se lembram e em outras vezes se esquecem de seu mestre, segundo suas conveniências.177 Em uma outra passagem, ele afirma que o mandamento referente a circuncisão tinha apenas um significado alegórico, e que foi um anjo mal que levou os judeus a entenderem literalmente o que na verdade se referia à circuncisão dos ouvidos e do coração.178 Isto é, em geral, o modo pelo qual o Pseudo-Barnabé interpreta os mandamentos do Velho Testamento.179 Isto não significa, contudo, que a assim chamada Epístola de Barnabé nega o caráter histórico do Velho Testamento. Pelo contrário, muitas das narrativas do Velho Testamento são historicamente verdadeiras, e o Pseudo-Barnabé não duvida delas, embora ele afirme que elas apontam para Jesus. O sacrifício de Isaque,180 o bode que era enviado para o deserto,181 Moisés com seus braços estendidos na forma da cruz,182 e a serpente que foi erguida no deserto183 são figuras ou “tipos”184 de Jesus Cristo e sua obra de salvação. Todas estas coisas realmente aconteceram, mas seu significado mais profundo estava no fato de que elas anunciavam a Cristo.185 A segunda parte da Epístola de Barnabé repete o ensino dos dois caminhos que já encontramos no início da Didaque. Parece que o Pseudo-Barnabé extrai seu material do “Documento dos Dois Caminhos”, que também foi uma das fontes da Didaque.186 Embora o interesse doutrinário do Pseudo-Barnabé encontra-se principalmente no relacionamento entre o Velho Testamento e o Cristianismo, pode-se também descobrir outros 177

10.3. 9.4-5. 179 Cp. 5.3; 6.8-17; 10.4-8; 15.3-9. 180 7.3. 181 7.6-11. 182 12.2-3. 183 12.5-7. 184 O termo “tipo” aparece pelo menos uma vez em cada uma das passagens citadas nas notas 99-102. 185 O Pseudo-Barnabé parece hesitar sobre sua interpretação da circuncisão, pois primeiro ele nos fala que Deus não a projetou para ser tomada literalmente (ver supra, n. 96), e mais tarde chega a dizer que Abraão circuncidou 318 homens de sua casa “olhando adiante em espírito para Jesus” (9.7, Grant, The Apostolic Fathers, 3:108), pois as letras pelas quais 318 é escrito em grego podem ser entendidas como um sinal da cruz (T) e as duas primeiras lebtras do nome de Jesus (IH). Assim, encontra aqui elementos de uma interpretação puramente alegórica, que tenderia a dizer que o entendimento literal do mandamento foi devido a uma má influência, e uma outra interpretação, que diria ao contrário que o mandamento e o evento eram verdadeiros, mas que seu significado real deve ser encontrado em serem um “tipo” de Cristo. 186 Ver supra, n.29. 178


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aspectos de sua teologia em sua obra. Assim, por exemplo, ele afirmava a preexistência de Cristo bem como sua participação na criação.187 O filho de Deus “veio em carne por esta razão, para que ele pudesse trazer a soma total dos pecados daqueles que perseguiram seus profetas até a morte”,188 isto é, a fim de condenar os judeus; mas ele também veio a fim de tornar-se conhecido da humanidade, que não poderia vê-lo em sua glória preexistente, do mesmo modo como é impossível contemplar diretamente o Sol.189 Além disso, Cristo morreu a fim de “cumprir a promessa dada aos pais”, de “destruir a morte”, e “anunciar a ressurreição”, isto é, a fim de mostrar que “ele julgará depois que realizar a ressurreição”.190 Este julgamento ocorrerá no futuro próximo,191 pois o Pseudo-Barnabé crê que Deus cumprirá em seis mil anos tudo quanto o mundo é, em vista do fato de que Deus fez o mundo em seis dias, e mil anos são como um dia diante de Deus.192 O Pastor de Hermas A obra mais extensa no corpo de literatura reunida sob o título de “Pais Apostólicos” é o Pastor de Hermas, 193 que provavelmente viveu por volta do final do primeiro século e a primeira metade do segundo, 194 e cuja obra consiste numa coleção de materiais produzidos em diferentes estágios durante sua carreira como profeta na igreja romana.195 Sua principal preocupação parece ter sido a falta de zelo e dedicação de alguns crentes, e especialmente o problema proposto pelos pecados pós-batismal, isto é, pelos pecados cometidos após a conversão e batismo. Haviam muitos que tinham caído em apostasia por causa do medo da perseguição, e que mais tarde se arrependeram sinceramente de sua fraqueza. O próprio Hermas sentia-se culpado por ter olhado cobiçosamente para uma mulher por quem ele devia ter o maior respeito. Que esperança, então, resta para tais pessoas? Elas deveriam ser 187

5.5. 5.11. 189 5.10. 190 5.6-7. 191 4.3; 21.3. 192 Isto não indica uma teologia quialística por parte do Pseudo-Barnabé? 15.5,7 parece sugerir assim, embora sua rejeição de tudo que parece grosseiramente material faça seu conceito sobre o milênio muito diferente do de Papias. Ver Jean Daniélou, “La typologie millénairiste de la semaine dans le christianisque promitif”, VigCh 2 (1948), 1-16. 193 Herbert A. Musirillo, “The Need of a New Edition of Hermas”, ThSt 12 (1951), 382-387, fornece uma lista de diferentes manuscritos e versões do Pastor, e discute suas principais características. 194 Conforme o Cânon Muratoriano, Hermas era irmão do Bispo Pius, que foi bispo de Roma na quinta década do segundo século. Alguns eruditos têm questionado esta declaração e sugerido uma data anterior para o Pastor. Stanistas Giet, Hermas et les Pasteurs: Les trois auteurs du Pasteur d’Hermas (Paris: Presses Universitaires de France, 1963), propôs uma teoria segundo a qual Hermas pode ter sido o único que escreveu as visões; mais tarde um segundo escritor adicionou o que á agora a nona parábola; finalmente, uma terceira mão adicionou as outras nove parábolas e os mandatos. Embora esta teoria não tenha aceitação geral, as várias estruturas nas quais as diferentes partes do livro são colocadas requer ou uma teoria de múltipla autoria, ou uma de várias adições pelo autor original, talvez com algumas interpolações por uma não posterior. 195 A. V. Ström, Der Hirt des Hermas. Allegorie oder Wirklichkeit? (Uppsala: Wretmans Boktryckeri, 1936), estuda a personalidade e inspiração de Hermas de um ponto de vista psicológico, e conclui que os dados biográficos que aparecem no Pastor são autênticos, e que Hermas realmente pensava que era um profeta inspirado. 188


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abandonadas como completa e irremediavelmente perdidas? Se, por outro lado, elas fosses perdoadas, que garantia haveria de que elas não cairiam novamente? O Pastor de Hermas enfrenta estas questões em uma coleção de cinco visões, doze mandatos e dez parábolas. As cinco visões são uma exortação à penitência e à constância em face a perseguição. Hermas começa, na primeira visão, por confessar sua própria culpa por ter cobiçado Rhoda, a senhora cristã de quem ele tinha sido escravo.196 Mas o centro desta seção é a terceira visão, ou a “visão da torre”, que está intimamente relacionada com a nona parábola. Nesta terceira visão, a igreja vem a Hermas na forma de uma senhora, e mostra-lhe uma grande torre que está sendo construída. Seis moços constróem a torre com pedras que uma multidão traz, algumas do fundo do mar e outras de diferentes partes da terra. Aquelas que vem do fundo do mar estão prontas para serem colocadas na torre. Mas somente algumas que vem da terra podem ser usadas para a construção, enquanto que outras são rejeitadas. Então a senhora explica a Hermas que ela mesma – isto é, a igreja – é a torre, e as pedras são as pessoas com quem a igreja é construída. As pedras boas são aqueles que vivem em santidade, e as pedras trazidas do fundo do mar são os mártires que sofreram pelo Senhor. As pedras que são colocadas de lado são aqueles que têm pecado mas estão querendo arrepender-se, e por esta razão eles não são lançados muito longe da torre, pois em um tempo futuro eles encontrarão um lugar em sua construção. Entre estes estão os ricos, que são como pedras redondas que não se encaixarão até suas riquezas terem sido tiradas deles. Mas existem outras pedras que quebram-se em pedaços quando são rejeitadas, e estas são os hipócritas, aqueles que não abandonam o mal, e que por isso não têm esperança de salvação ou de pertencer a igreja. Os doze mandamentos são um resumo dos deveres de um cristão, e Hermas declara que em obedecê-los há vida eterna.197 É no quarto mandamento que encontra-se a mais clara expressão da doutrina de Hermas, segundo a qual é possível arrepender-se mais uma vez depois do batismo, e qualquer um que peque depois de seu segundo arrependimento encontrará muita dificuldade para ser perdoado. “Após aquela grande e santa chamada, se alguém peca porque foi tentado pelo diabo, ele tem um arrependimento. Mas se ele peca e se arrepende continuamente, não há nenhum proveito para tal homem no arrependimento, pois ele dificilmente viverá.”198 Esta doutrina da penitência para pecados pós-batismal tem sido interpretada de várias maneiras, pois é possível ver em Hermas um rigorista que está fazendo uma concessão à fraqueza humana, um reformador que chama a igreja à sua pureza perdida, ou um crente com uma expectação escatológica tão vívida que está convencido que não

196

Vis. 1. 1. 1-2. 1. No final de muitos deles, é feita a promessa de que aquele que os guarda “viverá para Deus”. 198 Mand. 4.3.6 (Grant, The Apostolic Fathers, 6:72). 197


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haverá possibilidade de arrependimento futuro.199 De qualquer modo, deveria ser notado que, segundo este documento, não existe pecado que seja imperdoável se o pecador recorrer à segunda oportunidade de arrepender-se.200 As dez parábolas agrupam os ensinos das visões com os dos mandamentos, e lidam especialmente com assuntos práticos e morais. Na nona parábola a visão da torre aparece novamente, embora seja agora falado que a construção foi temporariamente interrompida, a fim de permitir o arrependimento dos pecadores.201 Parece que para Hermas o Cristianismo é, antes de mais nada, uma série de preceitos que devem ser seguidos. Não se encontra aqui o profundo sentido místico de Inácio, nem a investigação teológica do Pseudo-Barnabé. Este interesse prático pelos pecados e sua remissão leva Hermas a oferecer, pela primeira vez na história do pensamento cristão, a teoria de que é possível fazer mais do que os mandamentos de Deus requerem, e assim alcançar uma glória maior.202 Embora não haja menção aqui de um tesouraria de méritos, ou de sua transferência, pode-se ver nesta doutrina algumas das primeiras raízes do que mais tarde se tornaria o sistema penitencial elaborado da Igreja Romana.203 Hermas refere-se ao Salvador como o “Filho de Deus”, e o identifica com o Espírito Santo.204 O Espírito Santo preexistente habita no Salvador, e o último obedecia de tal modo a vontade divina que foi feito co-participante do Espírito Santo. O Espírito Santo preexistente, que criou toda a criação, Deus fez habitar naquela carne que ele desejava. Assim esta carne, na qual o Espírito Santo habitava, serviu bem o Espírito, vivendo em reverência e pureza, e de forma alguma profanou o Espírito. Assim, porque ele conduziu-se adequada e puramente e trabalhou com o Espírito e colaborou em cada ação, agindo com força e coragem, ele o escolheu como coparticipante do Espírito Santo, pois o comportamento desta carne agradou a Deus, porque ela não foi profanada enquanto ela possuía o Espírito Santo sobre a terra. Assim ele tomou o Filho como um conselheiros, e os gloriosos anjos, que esta carne também, após ela ter servido o Espírito irrepreensivelmente, deveria ter algum lugar 199

Ver B. Poschmann, Poenitentia secunda: Die kirchliche Busse im ältesten Christentum bis Cyprian und Origenes (Bonn: P. Hanstein, 1940); J. Hoh, “Die Busse im Pastor Hermae”, TQ, 111 (1930), 253-288; J. Hoh, Die kirchliche Busse im II. Jahrhundert (Breslau: Müller und Seiffert, 1932); Serafino Prete, “Cristianesimo antico e riforma ortodossa: Note intorno al ‘Pastore’ di Erma (II sec.)”, Convivium (1950), 114-128. 200 Vis. 2. 2.4. 201 É possível que esta parábola tenha sido escrita algum tempo depois da visão paralela, e que o fato de que na parábola a construção foi detida reflete a perda progressiva da expectação escatológica durante o segundo século. 202 “Se você faz algo bom além do mandamento de Deus, você obterá maior glória para si mesmo e será mais honrado diante de Deus do que teria sido.” Parab. 5. 3.3 (Grant, The Apostolic Fathers, 6:103). 203 Contudo, quanto disto é a continuação do espírito prático Romano que já vimos em Clemente, e quanto é extraído do apocalipsismo judaico, ainda é uma questão aberta. Ver Erik Peterson, “Die Begegnung mit den Ungeheuer. Hermas, Visio IV”, VigCh, 8 (1954), 52-71; Erik Peterson, “Kritische Analyse der V. Vision des Hermas”, HJb 77 (1958), 362-369. 204 Parab. 9. 1.1.


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para habitar e não parece ter perdido a recompensa de sua servidão.205 É difícil coordenar, em um todo sistemático, a doutrina da igreja encontrada no Pastor. Não há dúvida de que seu autor crê que a igreja é de grande importância, pois é ela que o conduz a e interpreta suas visões. Ela é preexistente,206 e o mundo foi criado para ela.207 Mas Hermas não tenta esclarecer o relacionamento entre a igreja preexistente e esta igreja local de Roma, cheia de dificuldades, a qual ele se dirige. Sobre a questão da hierarquia, Hermas não é claro, pois ele se refere aos “apóstolos, bispos, mestres e diáconos”,208 enquanto que em uma outra passagem ele fala dos “anciãos que presidem sobre a igreja”.209 De qualquer modo, é interessante notar que estamos quase na metade do segundo século, e ainda não temos nenhuma palavra com relação ao episcopado monárquico em Roma. Outras Literaturas Cristãs do Mesmo Período Ao lado das obras que geralmente são incluídas entre os Pais Apostólicos, existem escritos cristãos do mesmo período que deveriam ser discutidos aqui. Muitos destes escritos reivindicam ser textos judaicos antigos nos quais a obra de Cristo foi prevista, e é por esta razão que geralmente eles são incluídos entre os pseudopigrafos do VelhoTestamento. Alguns destes livros pseudopigrafos cristãos são documentos judaicos que foram interpolados por cristãos, e que devem ser estudados a fim de se estabelecer a natureza exata das interpolações cristãs antes que se possa usá-los como uma fonte para o estudo da teologia cristã primitiva. Finalmente, existem algumas obras que reivindicam ser de origem apostólica, e deste modo são incluídas entre os livros apócrifos do Novo Testamento. Os livros cristãos mais importantes na pseudopigrafa do Velho Testamento são a Ascensão de Isaías, o Testamentos dos Doze Patriarcas, e o Segundo Livro de Enoque. O livro Ascensão de Isaías é um documento composto que parece ter tomado forma em Antioquia perto do final do primeiro século ou no começo do segundo.210 Sua seção mais interessante é aquela na qual o profeta é levado para cima em uma ascensão progressiva até o sétimo céu. Ali ele vê Deus, o Senhor “Cristo que será chamado Jesus”,211 e “o anjo do Espírito”.212 Assim é inegável a teologia trinitariana deste documento, mas ele ainda é formado dentro da estrutura da angelologia judaica.213 Do sétimo céu, o Senhor desce a terra 205

Ibid., 5. 6. 5-6 (Grant, The Apostolic Fathers, 6:107-108). Vis. 2.4.1. 207 Ibid., 1.1.6. 208 Ibid., 3.5.1. 209 Ibid., 2.4.3. 210 O livro é constituido de um Martírio de Isaías judaico, as Visões de Isaías cristã, e um breve apocalipse cristão. Provavelmente a Visão é a parte mais recente, pois ela data da primeira metade do segundo século. Ver Eugène Tisserant, Ascension d’Isaïe (Paris: Letouzey et Ané, 1909), pp. 59-60. 211 10.7. 212 10.4. 213 Cp. J. Barbel, Christos Angelos: Die Anschauung von Christus als Bote und Engel in der gelehrten und volkstümlischen Literatur des christlichen Altertums (Bonn: P. Hanstein, 1941). 206


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passando incógnito entre cada céu, pois em cada caso ele toma a forma do anjo daquele céu, de acordo com as palavras de Deus a ele: Não deixe nenhum dos anjos deste mundo saber que você está comigo o Senhor dos sete céus e de seus anjos. Não os deixe saber que você está comigo até eu ter chamado os céus, seus anjos e suas luzes ao sexto céu, de modo que você possa destruir os príncipes, os anjos e os deuses deste mundo e o mundo no qual eles governam. 214 Após um nascimento que ocorre com notáveis notas docéticas,215 Jesus é crucificado, ressuscitado e ascende em forma humana através de cada céu, onde existe uma grande tristeza porque o Senhor tinha passado previamente e não foi reconhecido ou adorado. Finalmente, no sétimo céu ele senta-se à mão direita da “Grande Glória” enquanto que o “anjo do Espírito Santo” senta-se à esquerda.216 O livro Testamentos dos Doze Patriarcas parece ser o resultado de um trabalho de compilação, correção e interpolação que alguns cristãos de formação essênia empreenderam, provavelmente também em Antioquia no fim do primeiro século. A obra como ela se encontra agora é de origem cristã, mas parece certo que o autor usou alguns “testamentos” de patriarcas que já circulavam entre os Essênios.217 O Segundo Livro de Enoque é semelhante ao anterior, e também parece ter sido escrito por volta do mesmo tempo e lugar.218 Entre os escritos judaicos interpolados, o mais importante é o Oráculos Sibilinos (Proféticos), cujo quinto livro contém interpolações cristãs do período que estamos estudando, ao passo que o sexto e o sétimo livros são uma obra cristã, provavelmente escrita no Egito na metade do segundo século.219 Finalmente, a literatura apócrifa do Novo Testamento é muito abundante, e é impossível discuti-la aqui. Mas entre os documentos que mais provavelmente pertencem ao período dos Pais Apostólicos, deveria ser mencionado o Evangelho de Pedro,220 a Revelação de Pedro,221 o Evangelho segundo aos Hebreus,222 e a Epístola dos Doze Apóstolos.223 Os 214

10. 11-12, Cp. Inácio, Eph. 19. 11.7-14. 216 11.32-33. 217 Jean Daniélou, The Theology of Jewish Christianity (Londres: Darton, Longman & Todd, 1964), pp. 14-16. Tradução inglesa: ANF 8:9-38; Robert Henry Charles, The Apocrypha and Pseudoepigrapha of the Old Testament in English (Oxford: Clarendon Press, 1913), 2: 296-367. 218 Daniélou, Theology, p. 16. Tradução inglesa: Charles, Apocrypfa, 2:431-469. 219 Daniélou, Theology, pp. 17-19. Ver Johannes Geffcken, Komposition und Entstehungszeit der Oracula Sibyllina (Leipzig: J. C. Hinrichs, 1902). Tradução inglesa: Milton S. Terrey, The Sibylline Oracles (Nova Iorque: Hunt & Eaton, 1890). 220 Tradução inglesa em Montague Rhodes James, The Apocrypha New Testament (Oxford: Clarendon Press, 1953), pp. 90-94. Breve introdução, texto grego e tradução para o espanhol: Aurelio de Santos Otero, Los evangelios apócrifos, BAC, 148 (1956), 398-417. 221 Texto Etiópico, fragmentos gregos e tradução francesa: Sylvian Grébaut, “L’Apocalypse de Pierre”, ROC, 5 (1910), 208 e seguintes, e 307 e seguintes. 222 Reconstrução do texto grego e e Latim e tradução para o espanhol: de Santos Otero, Los evangelios, pp. 3750. 215


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primeiros dois vieram da Síria perto do final do primeiro século ou no começo do segundo. O Evangelho segundo aos Hebreus provavelmente foi escrito no princípio do segundo século, embora seja difícil determinar de onde. Finalmente, a Epístola dos Doze Apóstolos parece ter sido escrita na Ásia Menor, provavelmente também no princípio do segundo século.224 Embora seja difícil determinar sua data exata, e ainda que sua linguagem enigmática freqüentemente torne difícil interpretar seu pensamento, estas obras também lançam luz sobre o período que estamos estudando, e portanto sobre a teologia de vários dos Pais Apostólicos. De fato, estas obras não pertencem a uma escola teológica distinta, pelo contrário refletem, de acordo com o lugar e data de sua composição, o tipo de teologia que era dominante ali e que pode ser vista também nos Pais Apostólicos que escreveram na mesma época e lugar. Visão Geral Quando se estuda os Pais Apostólicos, descobre-se a origem de certas escolas ou tendências teológicas cujo desenvolvimento posterior tornará esclarecedor como esta história progride. Mas também encontra-se a unidade básica por trás desta diversidade Entre as várias tendências, pode-se falar, em primeiro lugar, de uma compreendendo a Ásia Menor e a Síria. Mais adiante, o pensamento da Ásia Menor seria diferente do da Síria. Mas neste tempo estas duas regiões estavam unidas em contraste com Roma por um lado e com Alexandria por outro. Este Cristianismo da Ásia Menor é conhecido por nós pela literatura Joanina, as obras de Inácio, Policarpo e Papias, e diversas obras pseudopigrafas. Nestes escritos o Cristianismo não é principalmente um ensino moral mas uma união com o Salvador pela qual a imortalidade é alcançada. Assim, o que é fundamental não é simplesmente seguir um certo código de ética, mas antes estar intimamente unido com o Senhor Jesus Cristo. Por isso a importância da eucaristia para Inácio. Por isso seu apelo pela unidade da igreja, pois é na união dos cristãos entre si que eles encontram sua união com Cristo. As principais forças externas que influenciavam este Cristianismo da Síria e da Ásia Menor foram os cultos de mistério, o Gnosticismo e o Judaísmo Essênio. A influência dos mistérios provavelmente é encontrada sobretudo no entendimento da eucaristia como um ato de união com Cristo. O Gnosticismo também influenciou o Cristianismo desta região, sobretudo, com sua doutrina de revelação. Mas sua influência sobre a cristologia e a cosmologia também pode ser descoberta em documentos tais como Ascensão de Isaías, e negativamente na insistência de Inácio sobre a realidade histórica da encarnação. A influência 223

224

Texto Etiópico e tradução francesa: L. Guerrier, “L’Epître des Douze Apôtres”, PO, 9: 143-326.

As questões de data e lugar de composição destes e de outros documentos semelhantes estão resumidas em Daniélou, Theology, pp. 19-28.


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do Judaísmo sobre este tipo de Cristianismo vem do movimento Essênio em vez do Farisaísmo, e é completamente possível que esta seja a fonte de vários dos elementos deste tipo de Cristianismo, que alguns eruditos têm interpretado puramente em termos de influências mistéricas. Em Roma, vemos a origem de um tipo diferente de Cristianismo. Ali, como pode ser visto na Primeira Epístola aos Coríntios de Clemente e no Pastor de Hermas, o Cristianismo assume uma direção prática e ética que pode até mesmo conduzir ao moralismo e ao legalismo. Clemente e Hermas não estão interessados no pensamento especulativo nem na união mística, mas na obediência prática. Qualquer que possa ter sido sua intenção, Hermas já mostra o interesse na penitência por pecados pós-batismal, o que o Cristianismo Ocidental mais tarde desenvolveria em um complexo sistema penitencial, 225 ele também é o primeiro a falar de obras além daquelas necessárias para a salvação. Esta salvação é, então, não tanto um dom de Deus por meio da união com Jesus Cristo quanto uma recompensa que um Deus, que mostrou misericórdia em Cristo, dá àqueles que obedecem os mandamentos. E Jesus, em vez de o início de uma nova era, é o mestre de uma nova lei. Esta escola teológica se desenvolve sob a marca do Estoicismo e do espírito prático do povo romano. A influência do Estoicismo pode ser vista na maneira pela qual Clemente dá ênfase a harmonia como um elemento fundamental da vida cristã, enquanto que a influência do espírito prático romano pode ser visto através de toda a obra de Clemente e de Hermas. Na assim chamada Epístola de Barnabé, temos o primeiro documento da jovem escola alexandrina de teologia. Esta escola, que é caracterizada pela influência do Médio e Neoplatonismo sobre ela, e por sua interpretação alegórica do Velho Testamento, tem sua formação no filósofo judeu-alexandrino Filo, bem como na Epístola canônica aos Hebreus, que também faz amplo uso da tradição filônica.226 Ela combina o interesse ético que já encontramos em Roma com uma aproximação especulativa, e está menos interessada nos eventos históricos do Velho Testamento do que os outros dois tipos de Cristianismo que temos examinado. Assim, a realidade histórica do Velho Testamento freqüentemente desaparece atrás das interpretações alegóricas que transformam as antigas Escrituras judaicas em um ensino moral ou numa proclamação de Jesus Cristo. Por outro lado, e talvez em parte devido a sua falta de interesse nos eventos históricos, este tipo de Cristianismo tem pouco a dizer com relação a vida carnal de Jesus. A influência mais notável sobre esta escola alexandrina é a do helenismo judaico do tipo encontrado em Filo. Deveria ser salientado, contudo, que o sexto e o sétimo livros do 225 226

Paul Galtier, Aux origenes du sacrament de pénitence (Roma: Universitas Gregoriana, 1951), pp. 107-187. Ver TIB, 11:585.


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Oráculo Sibilinos, os quais parecem ser de origem alexandrina e que apresentam vários pontos de contato com a Epístola de Barnabé, tem uma natureza apocalíptica que dificilmente pode ser atribuída à influência de Filo. Com relação a organização e governo das igrejas, há uma grande variedade de formas. Em alguns dos Pais Apostólicos é dado ênfase ao episcopado monárquico e à hierarquia tripartida, enquanto que outros parecem não conhecer tal episcopado, nem distinguir entre bispos e presbíteros. Mas esta diversidade de perspectiva não deveria nos levar a pensar que não havia na igreja daquele tempo uma certa unidade de doutrina e pensamento. Pelo contrário, em certos aspectos encontra-se uma surpreendente uniformidade. Assim, com relação a pessoa de Cristo, os Pais Apostólicos concordam em declarar sua preexistência, bem como sua divindade e sua humanidade. A naquilo que se refere ao relacionamento entre Cristo, o Pai e o Espírito Santo, à parte da falta de clareza encontrada em Hermas, todos os Pais Apostólicos concordam em fazer uso de diversas fórmulas trinitarianas, não importa quão primitivas.227 Todos os Pais Apostólicos vêem no batismo o verdadeiro poder de purificação, mas parece que eles se esqueceram do simbolismo da morte e ressurreição que é encontrado no Apóstolo Paulo.228 Com relação a eucaristia, não há dúvida de que ela é o centro da adoração cristã, embora ainda não encontremos uma discussão sistemática ou mais clara sobre a presença de Cristo nela, nem há qualquer poder atribuído às palavras da instituição em si mesmas. Não apenas em seu entendimento sobre o batismo, mas também em sua perspectiva teológica total, sente-se uma distância entre o Cristianismo do Novo Testamento – especialmente o de Paulo – e o dos Pais Apostólicos. As referências a Paulo e a outros apóstolos são freqüentes; mas a despeito disto a nova fé torna-se mais e mais uma nova lei, e a doutrina da graciosa justificação de Deus torna-se a doutrina da graça que nos ajuda a agir corretamente.229 A influência dos Pais Apostólicos no desenvolvimento posterior do pensamento cristão não foi uniforme. Alguns deles eram praticamente desconhecidos dos cristãos posteriores. Outros, tais como Hermas e o Pseudo-Barnabé, algumas vezes foram incluídos no 227

O entendimento de Hermas das questões trinitarianas é semelhante a do Testamentos dos Doze Patriarcas, e não é devido a uma interpretação pessoal, mas é antes um sobrevivente de um esforço anterior para entender questões trinitárias por meio da angelologia judaica. Ver supra. Notas 25 e 131. 228 André Benoit, Le baptême chrétien au second siècle: La théologie des Pères (Paris: Presses Universitaires de France, 1953). 229 Cp. E. Aleith, Paulusverständnis in der alten Kirche (Berlim: A. Töpelmann, 1937); W. Roslan, Die Grundbegriffe der Gnade nach der Lebre der Apostolischen Väter (Rettenburg: A. Bader, 1938); Thomas Forsyth Torrance, The Doctrine of Grace in the Apostolic Fathers (Grand Rapids: Eerdmans, 1959).


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cânon do Novo Testamento. Mas os mais influentes de todos foram Clemente e Inácio, provavelmente porque sua teologia estava menos vinculada a padrões e temas judaicocristãos.230

230

Robert M. Grant, “The Apostolic Fathers’ First Thousand Years”, CH, 31 (1962), 421-429.


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IV. AO APOLOGISTAS GREGOS Perto da metade do segundo século, alguns dos autores cristãos tomaram para si a tarefa de defender sua fé em face das falsas acusações que estavam no centro das perseguições. Embora muitas destas obras sejam endereçadas aos imperadores, seus autores realmente tinham esperança de que elas seriam lidas por um amplo círculo de pessoas cultas. Isto era extremamente importante, pois a sorte das comunidades cristãs em cada região dependia grandemente da opinião pública. Durante a maior parte do segundo século, a política do Império para com o Cristianismo era aquela que Trajano tinha estabelecido em sua carta a Plínio, o Moço, que os cristãos não deviam ser perseguidos pelas autoridades, mas que era necessário puni-los se alguém se desse ao trabalho de acusá-los.231 Esta é a razão porque os cristãos da Ásia Menor podiam visitar Inácio, que já tinha sido condenado como um cristão, sem pôr suas vidas em perigo. No livro Martírio de Policarpo, é a multidão que realmente acusa, condena e sentencia o bispo de Esmirna.232 E na epístola na qual as igrejas de Lion e Viena falam da morte de alguns de seus membros por causa de sua fé em 177 A.D., novamente é a multidão que assume o papel principal em sua provação.233 Em sua tentativa de defender o Cristianismo, estes apologistas acharam ser necessário atacar o paganismo por um lado, e refutar as acusações feitas contra os cristãos por outro. Embora os próprios apologistas não estabelecessem esta distinção, pode-se dizer que estas acusações eram de dois tipos: algumas delas eram meramente boatos populares, enquanto que outras eram ataques mais sofisticados sobre a fé e a prática cristã. As acusações populares eram baseadas em rumores concernentes aos costumes e crenças dos cristãos. Deste modo, alguns alegavam que os cristãos cometiam incesto, que eles comiam crianças, que eles adoravam os órgãos sexuais de seus sacerdotes, que seu deus era um ignorante crucificado, e muitas coisas similares. Muitos destes rumores parecem ter surgido de um grosseiro mal-entendido sobre algumas práticas cristãs. Assim, por exemplo, o ágape ou festa do amor parece ter sido a base para a lenda segundo a qual os encontros cristãos eram orgias, nas quais, depois de comerem e beberem muito, as luzes eram apagadas e ocorriam as mais desordenadas uniões sexuais. Semelhantemente, a afirmação de que Cristo estava presente no banquete da eucaristia, provavelmente unida a algumas histórias da natividade, foi a origem do rumor de que os cristãos cobriam uma criança com farinha de trigo, e então, alegando que era um pão, eles ordenavam a um neófito cortá-lo. Quando o sangue da criança começava a jorrar, os cristãos a comiam. O neófito, um participante

231

Plínio, Ep. 10.97. Mart. Pol. 3.2; 12.2-13.1. 233 Eusébio, HE 5.1. 7-8. 232


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involuntário naquele crime, era assim envolvido nele e forçado a ficar em silêncio. 234 As acusações mais sofisticadas – as quais conhecemos principalmente através de Octavius de Minúcio Félix e Contra Celsum de Origenes235 - consistiam principalmente em mostrar a ignorância e incompetência dos mestres cristãos. Muito foi feito sobre o fato de que os assim chamados mestres cristãos realmente eram pessoas ignorantes, pertencendo às camadas mais baixas da sociedade. Esta é a razão porque os cristãos aproximavam-se somente daqueles que eram ignorantes – isto é, mulheres, crianças e escravos – pois eles sabiam que sua “ciência” não resistiria a uma sólida refutação.236 Estes cristãos, embora talvez não ateístas no estrito sentido, pelo menos adoram um deus indigno, que está constantemente envolvido em questões humanas insignificantes.237 Seus próprios evangelhos estão cheios de contradições, e o pouco benefício que pode ser encontrado em suas doutrinas, eles tomaram de Platão ou de outros filósofos gregos, se bem que até mesmo isto eles corromperam. 238 Este é o caso com a absurda doutrina da ressurreição, a qual não é mais do que um grosseiro malentendido das doutrinas platônicas da imortalidade e transmigração das almas.239 Além disso, os cristãos eram pessoas subversivas, que se opunham ao estado, pois não aceitam a divindade de César nem cumpriam suas responsabilidades civis e militares.240 São estas acusações que os apologistas gregos do segundo século enfrentaram. No caso dos rumores populares, muito claramente produto de fantasia, os apologistas acharam suficiente simplesmente negá-las.241 Mas os ataques mais sofisticados não poderiam ser colocados de lado com tal facilidade, mas deviam ser seriamente refutados. Foi a necessidade de responder a estas acusações que impeliu os apologistas a escrever as obras que devemos estudar agora, nas quais os cristãos, pela primeira vez, apresentaram e tentaram responder as diversas questões, que seriam de grande importância para o desenvolvimento posterior da teologia cristã. A resposta dos antigos apologistas às acusações de que os cristãos eram subversivos, foi simplesmente rejeitá-la, e mostrar que eles oravam pelo imperador. Esta era, contudo, a acusação mais séria, e a única que finalmente levou à perseguição. Era também a mais difícil de responder, pois embora os cristãos não conspirassem contra as autoridades estabelecidas, certamente eles não queriam obedecê-las em algo que contrariava sua 234

Embora estes rumores já circulassem no segundo século e podem ser descobertos por trás das obras dos apologistas, esta lista particular foi tomada de Octavius de Minúcio Félix, uma apologia cristã escrita em Latim no início do terceiro século, na qual um pagão lista estas acusações. (Octav. 9). Cp. Tertuliano, Apol. 7. 235 Pierre de Labriolle, La réaction païenne (Paris: L’artisan du livre, 1950), estuda estas acusações detalhadamente. 236 Minúcio Félix, Oct. 5; Origenes, Contra Cel. 3.50; 3.55. 237 Minúcio Félix, Oct. 10. 238 Origenes, Contra Cel. 6.1. 239 Ibid., 7.28. 240 Ibid., 8.68-69. 241 A negação mais detalhada destas acusações é encontrada em Athenagoras, Um Apelo aos Cristãos, 31-36.


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consciência. Visto que muito de nosso conhecimento sobre as perseguições é influenciado pelo relato de Eusébio, que tentava mostrar que a igreja e o Império não eram incompatíveis, o conceito comumente sustentado é que os cristãos não eram subversivos, e que a perseguição era basicamente um grande equívoco por parte dos imperadores. Mas a verdade não pode ter sido tão simples assim. Aristides Como a apologia de Codratos a qual Eusébio se refere parece ter sido perdida,242 a apologia mais antiga que sobreviveu é esta de Aristides, que endereçou sua defesa do Cristianismo ao imperador Adriano,243 e que por isso deve tê-la escrito antes do ano 138 A.D.244 Aristides começa com um breve discurso acerca da natureza de Deus e do mundo.245 Deus é o autor primeiro do mundo, que fez todas as coisas para a humanidade. Isto significa que qualquer um que teme a Deus deve também respeitar os outros. Deus não tem nome, e deve ser mencionado em termos negativos: sem começo, sem fim, sem composição, etc. Após esta breve introdução, Aristides classifica a humanidade em quatro categorias: os bárbaros, os gregos, os judeus e os cristãos.246 Tomando cada um destes grupos por vez, o apologista mostra que os bárbaros, bem como os gregos e os judeus, têm seguido uma religião que é contrária à razão. Os bárbaros fizeram deuses que devem ser guardados para não serem roubados; e sendo este o caso, como eles podem esperar que estes deuses tenham o poder de guardá-los?247 Os gregos fizeram deuses que são como eles, e até mesmo piores, pois eles cometem adultério e todo tipo de maldade. 248 Finalmente, os judeus, embora melhores do que os gregos e os bárbaros ao afirmarem que Deus é um só, também caíram em idolatria, pois

242

Ver mais adiante neste capítulo a seção dedicada à Epístola a Diogneto. Eusébio, HE 4.3.3; Eusébio, Chronica Ol. 226; Christus 125. Adr. 8. Os textos siríaco e armênio incluem o nome de Adriano na dedicatória. O texto grego não o faz; mas isto é claramente por causa de sua adaptação, a fim de fazê-lo concordar com o cenário da Legend of Barlaam and Joasaph. Ver n. 14. 244 Esta apologia esteve perdida por vários séculos, e foi redescoberta no final do décimo nono século em uma versão siríaca, no monastério de Santa Catarina no Sinai. Seu descobridor, J. Rendel Harris a publicou em 1893 na série Texts and Studies de Cambridge (I,1). Alguns anos antes (1878) um fragmento armênio foi publicado em Venice (do qual pode ser encontrada uma tradução em Latim em BAC, 116: 117-132). Através destas descobertas, J. Armitage Robinson foi capaz de reconhecer o texto grego da apologia perdida em dois capítulos de uma obra grega bem conhecida – a Legend of Balaam and Joasaph. Sua edição do texto grego pode ser encontrada no mesmo volume dos Texts and Studies. Contudo, a versão siríaca parece ser mais digna de confiança do que a adaptação grega que aparece na Legend. Não somente existem razões no próprio texto grego que pareceriam negar sua fidelidade ao original, mas o texto armênio, e até mesmo alguns fragmentos gregos descobertos mais tarde, parecem concordar com a versão siríaca em vez de com a versão grega da Legend of Balaam and Joasaph. Portanto, seguiremos a versão siríaca. 245 Apol. 1. 246 Ibid., 2.1. Isto segundo as versões siríaca e armênia. O texto grego diz que existem três grupos: os pagãos, os judeus e os cristãos. 247 Apol. 3.2. 248 Ibid., 8.1-13.8. Na metade desta passagem que trata dos gregos, há uma refutação da religião egípcia que parece não seguir o argumento ordenado do autor (Apol. 12). 243


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eles realmente adoram os anjos e suas próprias leis e não a Deus.249 Em oposição a estas pessoas estão os cristãos, que são os únicos que encontraram a verdade. Os cristãos são uma nova nação que tem um componente divino,250 e esta nova raça é conhecida por seus costumes superiores e pelo amor que seus membros trazem entre si. 251 Por causa desta maneira de apresentar o Cristianismo, Aristides diz pouco sobre as crenças desta nova nação.252 Além disso o que já foi dito sobre o caráter de Deus e como os cristãos constituem uma nova nação, é importante notar que é encontrada neste apologista uma clara expectação escatológica. O mundo estará sujeito a um “terrível julgamento que virá sobre toda humanidade por meio de Jesus”, 253 e enquanto isso ele somente subsiste por causa das orações dos cristãos.254 Finalmente, existe um texto no qual Aristides afirma que as crianças são inocentes.255 Justino, o Mártir Não apenas pelo número e extensão de sua obra, mas também pela profundidade e originalidade de seu pensamento, Justino, o Mártir, sem dúvida alguma, é o mais importante dos apologistas gregos do segundo século. Sua cidade de origem foi a bíblica Siquem, que era então chamada de Flávia Neápolis.256 No fundo um filósofo, ele veio ao Cristianismo após uma peregrinação intelectual, da qual ele mesmo fala em sua obra Diálogo com Trifo.257 Mas mesmo depois de sua conversão ele não colocou de lado o manto do filósofo, pelo contrário declarava que no Cristianismo ele tinha encontrado a verdadeira filosofia. Esta é a tese de suas duas apologias – as quais provavelmente são duas partes de uma única tese.258 Como é de se esperar em obras desta natureza, as Apologias de Justino não são tratados sistemáticos sobre a fé cristã. Na Primeira Apologia, após uma introdução muito breve, Justino diz que é razoável abandonar aquelas tradições que não são boas e amar somente a verdade. É precisamente isto que aqueles a quem esta obra é dirigida devem fazer, pois eles são conhecidos como pessoas sábias e filósofos, e a justiça requer que os cristãos não sejam condenados somente por seu nome, mas que se leve em consideração o que este

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Apol. 3.2. Ibid., 16.4. 251 15.2-10. 252 O texto grego tenta corrigir isto adicionando algumas linhas sobre Jesus, sua vida e seus discípulos, e sobre a Trindade (15.1-3). 253 Apol., 17.7 254 Ibid., 16.6. 255 Ibid., 15.9. “Quando um deles tem uma criança, eles louvam a Deus; e se também acontece de morrer em sua infância eles louvam grandemente a Deus, como por um que passou pelo mundo sem pecado.” 256 I Apol. 1. Um bom estudo geral: E. F. Osborn, Justin Martyr (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1973). 257 Dial. 2.3-8.2. ver J. Champonnier, “Naissance de l’humanisme chrétien”, Bulletin de la Association G. Budé, nouv. sér., 3 (1947), 58-68. 258 A II Apol. Não tem cabeçalho próprio, mas antes parece ser um apêndice à I Apol.. É impossível falar quanto tempo se passou entre a escrita destes dois documentos. Ver P. Keresztes, “The So-Called Second Apology of Justin”, Lat, 20 (1965), 858-869. 250


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nome envolve antes de condená-los. Por isso a necessidade de uma exposição do que o nome “cristão” realmente significa, e qual é o relacionamento dos cristãos com o Império, com os bons costumes e com o paganismo. Este é, em resumo, o argumento da Primeira Apologia, o qual é repetido diversas vezes com algumas variações. Além disso, existem neste documento alguns dados interessantes para a história da liturgia e sobre antigas heresias cristãs.259 Na assim chamada Segunda Apologia, Justino concentra sua atenção principalmente no relacionamento entre o Cristianismo e a filosofia pagã. O Diálogo com Trifo é um pouco mais recente que as Apologias e reivindica ser o relato de uma conversa concernente a correta interpretação do Velho Testamento, a qual Justino manteve com um judeu chamado Trifo.260 No início deste diálogo, Justino oferece um breve resumo do caminho que o levou ao Cristianismo. O restante é uma apologia contra o Judaísmo sobre a interpretação do Velho Testamento, a divindade de Jesus e o Novo Israel.261 Em sua tarefa de defender o Cristianismo, Justino enfrenta dois problemas básicos: por um lado, o do relacionamento entre a fé cristã e a cultura clássica, e por outro, o do relacionamento entre esta fé e o Velho Testamento. Justino fundamenta sua solução para o primeiro destes problemas sobre sua doutrina do logos ou Palavra. Isto certamente não é uma criação de Justino, pois a doutrina do logos tem uma longa história na filosofia grega e helenista. Na tradição judaico-cristã, Filo de Alexandria já tinha introduzido o conceito helenista do logos, e o Quarto Evangelho já tinha usado o mesmo termo para entender a natureza divina e preexistente do Salvador. De fato, a doutrina do logos de Justino segue muito de perto a de Filo, a qual parece ser sua principal fonte.262 Fazendo uso de um conceito muito comum entre os filósofos gregos, Justino afirma que todo conhecimento é produto do logos. Para ele, este logos não é apenas o princípio racional do universo, mas é também o Cristo preexistente do prólogo do Quarto Evangelho. Portanto, combinando estas duas tradições com relação ao logos, Justino conclui que todo conhecimento é um dom de Cristo, e que Aqueles que vivem racionalmente são cristãos, ainda que eles tenham pensamentos ateístas; como, entre os gregos, Sócrates e Herácleto, e homens como eles; e entre os 259

P. Keresztes, “The Literary Genre of Justin’s Firts Apology”, VigCh, 19 (1965), 99-110; Wolfgang Schmidt, “Die Textüberlieferung der Apologie des Justins”, ZntW, 40 (1941), 87-138. 260 Talvez o mesmo que Tarfo no Talmude. Eusébio (HE 4.18.6) diz que ele era o mais famoso judeu de seu tempo. Ver Marie Joseph Lagrange, Saint Justin (Paris: J. Gabalda, 1914), p. 28. 261 F. M. M. Sagnard, “Y-a-t-il um plan di ‘Dialogue avec Tryphon’?” Mélanges Joseph de Ghellinck, I (Gembloux: J. Duculot, 1951), 171-182; J. C. M. van Winden, An Early Christian Philosopher: Justin Martyr’s Dialogue with Trypho, Chapter One to Nine (Leiden: Brill, 1971). 262 Ao lado da encarnação, a diferença principal entre Justino e Filo em sua doutrina do logos, é que Justino afirma a natureza pessoal da Palavra.


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bárbaros, Abraão, Ananias, Azarias, Misael, Elias e muitos outros cujas ações e nomes nos recusamos a contar um por um, porque sabemos que seria tedioso.263 Estes “cristãos” dos tempos antigos conheciam a Palavra apenas “parcialmente”.264 Eles apenas conheceram aquelas verdades que a Palavra lhes revelou,265 mas eles não puderam ver a Palavra. Esta Palavra, contudo, fez-se carne, e deste modo os cristãos conhecem a Palavra “toda”.266 Os cristãos vêem como um todo o que ao antigos viam somente em parte. Em outras palavras, Justino fazia distinção entre o logos seminal e as sementes do logos.267 Ele tomou este vocabulário emprestado dos estóicos, mas o usa de um modo diferente da deles.268 Para os estóicos, as sementes do logos eram dados universais concernentes a moralidade e a religião que todos conhecem. O logos seminal é a razão universal, da qual a razão individual participa e que age sobre as sementes do logos a fim de desenvolvê-las. Para Justino, ao contrário, as sementes do logos não eram nem universais nem naturais, mas antes o resultado da ação direta e individual do logos seminal. Além disso, estas não são os dados básicos que a mente humana deve aperfeiçoar, mas antes são iluminações que somente o logos pode levar à perfeição. Esta é a razão porque Justino prefere usar o termo não filosófico “parte do logos”: pois a parte somente pode ser completada pelo todo. A parte do logos que Platão tinha nunca poderia ter sido completada pela mente de Platão, mas somente pelo logos.269 A filosofia possui apenas uma parte da verdade, mas por si mesma ela não pode nem mesmo distinguir esta parte da verdade da grande quantidade de falsidade na qual ela está envolvida.270 Somente a Palavra, que é a verdade e a medida de toda verdade, pode ser a base desta distinção. A Palavra, que era conhecida em parte pelos filósofos, é agora conhecida como um todo pelos cristãos. Esta é a razão porque os cristãos podem dizer que esta ou aquela afirmação dos filósofos é verdadeira, e que esta ou aquela outra afirmação é 263

I Apol. 46.3-4 (ANF, 1: 178). II Apol. 10.2. 265 De acordo com Justino, os gregos fizeram uso de uma outra fonte de conhecimento, ao lado da direta inspiração da Palavra: as Escrituras hebraicas. Foi delas que Platão extraiu algo de se conhecimento, embora ele não as entendesse corretamente (I Apol. 44. 8-10; 60). 266 II Apol. 10.3. 267 Ibid., 7.3. 268 Em geral, o “Platonismo” de Justino é realmente o Médio-Platonismo de seu tempo, que já incluía diversos elementos estóicos. Carl Andersen, “Justin und der mittlere Platonismus”, ZntW, 44 (1952-53), 157-195. Cp. R. Joly, Christianisme et philosophie: Études sur Justin et les apologistes grecs du deuxième siècle (Brussels: Université de Bruxelas, 1973). 269 Sobre o logos seminal e suas sementes, ver: Jean Daniélou, Message evangélique et culture hellénistique aux IIe at IIIe siècles (Paris: Desclée & Co., 1961), pp. 45-46; Ragnar Holte, “Logos Spermatikos: Christianity and Ancient Philosophy According to St. Justin’s Apologies”, StTh, 12 (1958), 109-168; Jan Hendrik Waszink, “Bemerkungen zu Justins Lehre vom Logos Spermatikos”, Mullus: Festschrift Theodore Klauser (Münster: Aschendorff, 1964), pp. 380-390. 270 Os erros dos pagãos são devidos, não apenas à natureza parcial de seu conhecimento da Palavra, mas também ao trabalho dos demônios, que estão constantemente se esforçando para levar as pessoas ao mal e ao erro, e um daqueles artifícios favoritos é implantar mitos e ritos que são, de fato, parodias das doutrinas e práticas cristãs. I Apol. 54; 56; 58; 62.1-2; 64.4; II Apol. 4.3-4. 264


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falsa: porque eles conhecem a verdade encarnada. Em resumo, como um verdadeiro médio-platonista e também como um cristão, Justino toma elementos do Estoicismo e os adiciona à sua filosofia basicamente platônica, embora sempre afirmando que a verdade total somente pode ser conhecida na Palavra encarnada. Esta é a razão para o caráter um pouco estranho do pensamento de Justino, tão claramente platônico, mas ao mesmo tempo tão profundamente Cristocêntrico. Justino discute o problema do relacionamento entre o Velho Testamento e a fé cristã em seu Diálogo com Trifo.271 Para ele, o Velho Testamento refere-se ao Novo de duas maneiras: por meio de eventos que apontam para outros eventos no Novo Testamento, e por meio de profecias que falam do que torna-se uma realidade no Novo Testamento.272 Os primeiros destes eventos são “tipos” ou “figuras”,273 e os últimos são “declarações”.274 As “declarações” nas quais Justino encontra um testemunho para a mensagem cristã não precisam deter-nos aqui, pois, com algumas exceções, elas são os textos proféticos que parecem ter circulado em livros de Testimonia.275 Os “tipos” são muito mais interessantes, pois aqui vemos o desenvolvimento de uma tradição exegética que se tornará muito importante na teologia patrística. De acordo com esta interpretação tipológica, existem no Velho Testamento alguns eventos que prefiguram outros eventos por vir. Assim, Justino afirma que o cordeiro pascal, cujo sangue foi usado para ungir as casas dos israelitas, era um “tipo” de Cristo, pois aqueles que crêem são salvos pelo sangue do Salvador. Semelhantemente, o cordeiro que devia ser sacrificado e assado apontava para a paixão de Cristo, pois o cordeiro é assado na forma da cruz. E a prova de que este, e outros mandamentos semelhantes no Velho Testamento, eram apenas temporários foi dada por Deus com a destruição de Jerusalém, pois agora é impossível cumprir tais mandamentos.276 A interpretação tipológica não deve ser confundida com alegoria. Na última, a importância das realidades históricas dos eventos do Velho Testamento ameaça desaparecer atrás de um novo significado místico – o Pseudo-Barnabé chega ao extremo de alegar que a interpretação literal do Velho Testamento era devida a um anjo mau277 - enquanto que na 271

L. W. Barnard, “The Old Testament and Judaism in the Writings of Justin Martyr”, VetTest, 14 (1964), 395406, mostra que a educação de Justino era puramente helenista, e que ele chegou ao Velho Testamento por meio do Cristianismo, e não vice-versa. Contudo, sua informação com relação a exegese e tradições judaicas esta correta. 272 Dial. 114.1 (ANF, 1:256): “Pois o Espírito Santo às vezes fez com que algo, que era o tipo do futuro, se tornasse mais claro; as vezes ele pronunciou palavras sobre o que esta para acontecer, como se estivesse então acontecendo, ou tivesse acontecido.” 273 τυποι. 274 λογοι. 275 Ver Daniélou, Message, pp. 196-197. Sobre o uso da profecia por Justino, ver: J. Gervais, “L’argument apologétique des prophéties messianiques selon sanit Justin”, RUOtt, 13 (1943), seção especial, 129-146, 193208. 276 Dial. 40.1-3. 277 Embora, como já foi dito, o Pseudo-Barnabé também faça uso da exegese tipológica.


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tipologia de Justino a importância deve ser encontrada no fato histórico em si, embora transcenda a ele.278 Justino concebe o logos que falava nos filósofos e profetas à maneira do MédioPlatonismo. De acordo com ele, Deus é totalmente transcendente, sem qualquer nome exceto o de Pai.279 A fim de comunicar-se com o mundo, Deus gerou o logos, cuja função é agir como um intermediário entre o Pai e a criação. As múltiplas manifestações de Deus no Velho Testamento são teofanias não do Pai, mas do logos, que é o mediador e revelador de Deus,280 pois até mesmo “aquele que tem apenas a menor inteligência não se arriscará a afirmar que o Criador e Pai de todas as coisas, tendo deixado todas as questões super-celestiais, foi visível numa pequena porção da terra.”281 Daí uma certa tendência de estabelecer uma distinção entre o Pai e a Palavra em termos de transcendência e imutabilidade de um e de imanência e mutabilidade do outro, e também a tendência de falar do Pai e da Palavra como se eles fossem dois deuses, um absoluto e o outro secundário. Justino até mesmo chama a Palavra de “um outro Deus”.282 Contudo, isto não deve ser entendido de um modo que negue o monoteísmo cristão, pois segundo Justino a unidade entre Deus e a Palavra é semelhante àquela existente entre o sol e sua luz, “exatamente como eles dizem que a luz do sol sobre a terra é indivisível e inseparável do sol nos céus”.283 Mais precisamente, Justino tenta interpretar o relacionamento entre o Pai e o Filho combinando elementos tomados da angelologia judaica com outros tomados do Médio-Platonismo. A primeira fonte o levou a dar ênfase na unidade de Deus, e ver na Palavra um atributo ou “poder” daquele único Deus. A segunda fonte o levou a enfatizar a transcendência divina, e então a Palavra torna-se um deus subordinado que serve como uma ponte entre o mundo e aquele Deus supremo, que existe apenas em transcendência absoluta. Esta tensão entre estas duas fontes não é característica somente de Justino, mas pelo contrário aparece na teologia em geral dos primeiros séculos. Como será 278

Também deveria ser notado que a tipologia de Justino inclui não apenas o Velho Testamento, mas também a estrutura total do universo, pois ele vê “tipos” da cruz por toda parte. “Pois considere todas as coisas no mundo, quer elas possam ser administradas sem esta forma (de cruz) ou ter qualquer semelhança. Pois o mar não é atravessado exceto que troféu, que é chamado de vela, permaneça segura no navio; e a terra não é arada sem isto: escavadores e artífices não fazem seu trabalho, exceto com ferramentas que têm esta forma. E a forma humana difere da dos animais irracionais em nada mais do que em seu ser ereto e ter as mãos estendidas, e tendo na face estendendo da testa o que é chamado de nariz, através do qual há a respiração para a vida da criatura; e isto mostra nenhuma outra forma senão a da cruz.” (I Apol. 55. 1-2; ANF, 1:181). 279 Sobre a transcendência divina em Justino, ver Goodenough, Theology, pp. 123-138. De acordo com Goodenough, o pensamento hebreu concebe a transcendência em termos de distância espacial, enquanto que o pensamento grego o concebe em termos de imutabilidade. Justino combina ambas as tendências. 280 Ver B. Kominiak, The Theophanies of the Old Testament in the Writings of St. Justin (Washington: Catholic University of America Press, 1948); D. C. Trakellis, “The Pre-existence of Christ in the Writings of Justin Martyr: An Exegetical Study with Reference to the ‘Humiliation and Exaltation’ Christology”, HTR, 66 (1974), 510. 281 Dial. 60.2 (ANF, 1:227). 282 Ibid., 56.11. 283 Ibid., 128.3 (ANF, 1:264).


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visto mais tarde, foi somente através de longas e amargas controvérsias que foi possível esclarecer a doutrina cristã nesse aspecto.284 A importância de Justino para o historiador é encontrada não apenas no que ele tem a dizer a respeito do ao relacionamento da fé cristã com a filosofia pagã e com o Velho Testamento, mas também na informação que ele preservou concernente a adoração cristã primitiva, e especialmente sobre o batismo 285 e a eucaristia. 286 Com referência a eucaristia, Justino afirma que o alimento que é recebido é a carne e o sangue de Jesus; mas ele também declara que ele ainda é alimento no sentido de que ele nutre os corpos daqueles que dele participam. Pois nós os recebemos não como pão comum e bebida comum; mas da mesma maneira como Jesus Cristo nosso Salvador, tendo sido feito carne pela Palavra de Deus, tinha tanto carne como sangue para nossa salvação, assim igualmente temos sido ensinados que o alimento, o qual é abençoado pela oração de Sua palavra, e do qual nosso sangue e carne são nutridos pela transmutação, é a carne e o sangue daquele Jesus que tornou-se carne.287 Embora as apologias de Justino tentem usar a filosofia helenista a fim de apresentar a fé cristã, isto não significa que seu autor menospreza a distância que separa o Cristianismo da filosofia. Sua percepção do caráter próprio do Cristianismo é claramente visto no modo pelo qual Justino dá ênfase a doutrina da encarnação e da ressurreição dos mortos. Mais tarde veremos outros, dos assim chamados defensores da fé cristã, tentando livrá-lo deste embaraço com o histórico, o particular e o material. Justino não tenta negar, ou mesmo deixar de lado, a doutrina da encarnação, mas antes a coloca no centro de suas Apologias. Por outro lado, a doutrina de uma vida após a morte também era objeto de zombaria entre os pagãos, e em face de tais zombarias alguns cristãos procuraram apoio na doutrina platônica da imortalidade. Isto deu ao Cristianismo uma certa aparência intelectual, mas levou a uma confusão entre a doutrina grega da imortalidade da alma e a doutrina cristã da ressurreição dos mortos. Esta confusão poderia facilmente ser seguida por uma longa série de doutrinas e valores de natureza platônica em vez de cristã. Aqui novamente, Justino não se permite ser seduzido pela aparente semelhança entre as doutrinas platônica e cristã, mas pelo contrário afirma que a 284

Embora Justino não exponha seu pensamento sobre o Espírito Santo, não há dúvida de que ele crê na existência de “um terceiro” junto ao Pai e ao Filho. Ver I Apol. 60.6. 285 I Apol. 61: Dial. 87-88. Justino faz distinção entre batismo e confirmação? Cp. E. C. Ratcliff, “Justin Martyr and Confirmation”, Th, 51 (1948), 133-139; P. Carrington, “Confirmation and St. Justin”, Th, 52 (1949), 448452. 286 I Apol. 65, 67. Ver H. B. Porter, “The Eucharistic Piety of Justin Martyr”, AnglThR 39 (1957), 24-33. 287 I Apol. 66.2 (ANF, 1:185). J. Beran, “Quo sensus intelligenda sint verba Iustini Martyris ‘οση δυναµις αυτω’ na I Apologia, N. 67”, DivThom, 39 (1936), 46-55, argumenta com base em I Apol. 57.5 que Justino sabia de um poder sacerdotal especial que era empregado na consagração da eucaristia. Isto é um pouco duvidoso, pois o texto pode ser interpretado de um outro modo.


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alma é por natureza mortal e que os cristãos colocam sua esperança, não em uma imortalidade universal, mas na ressurreição dos mortos.288 A escatologia de Justino289 inclui não apenas a doutrina da ressurreição dos mortos, mas também a do retorno de Cristo em glória real, 290 e o estabelecimento de um reino de mil anos na Nova Jerusalém.291 Em resumo, pode-se dizer que a teologia de Justino, como é conhecida através de suas obras que sobreviveram, é uma tentativa de se conseguir uma interpretação cristã do Helenismo e do Judaísmo. Ambos têm um lugar dentro do plano divino.292 Isto não leva Justino a negar o caráter único do Cristianismo a fim de torná-lo mais agradável ao mundo ao seu redor. Pelo contrário, o Cristianismo é a única perspectiva da qual o Judaísmo, bem como o Helenismo, podem ser corretamente julgados. Isto sugere uma doutrina da história da qual alguns vislumbres já podem ser vistos na obra de Justino,293 mas que, mais tarde, se desenvolveria em outros teólogos que construiriam sobre seus fundamentos, notavelmente Irineu. Talvez, se a posteridade tivesse poupado algumas das obras de Justino que se perderam,294 poderíamos encontrar dimensões em seu pensamento que sua obras existentes podem apenas sugerir. Taciano Taciano é uma daquelas personalidades na antigüidade cristã que estão cercadas por uma barreira de escuridão a qual nenhum esforço parece capaz de penetrar. Nascido no oriente – se não na Assíria ao menos na Síria295 - Taciano pare ter sido convertido ao Cristianismo em Roma através do esforço de Justino, que então ensinava na cidade imperial. Após o martírio de Justino, por volta de 165 A.D., Taciano fundou seu próprio centro de ensino. Alguns anos mais tarde ele deixou Roma e foi para a Síria, onde somos informados que ele fundou uma escola herética. Antigos escritores cristãos concordam em asseverar que 288

Dial. 5.1, 3; 80. L. W. Barnard, “Justin Martyr’s Eschatology”, VigCh, 19 (1965), 86-98. 290 Jean Leclercq, “L’idée de la royauté du Christ dans l’oeuvre de saint Justin”, AnnTh, 7 (1946), 83-95. 291 Dial. 80.5. Ver Oronzo Giordano, “S. Giustino e il millenarismo”, Asprenas, 10 (1962), 155-171. 292 O plano, dispensação, ou οικονοµια de Deus, um termo que Justino toma de Paulo, é básico em seu pensamento, como também o será no de seu discípulo Taciano, e mais tarde em Irineu e Tertuliano. 293 B. Seeberg, “Die Geschichtstheologie des Justins des Märtyres”, ZschrKgesch, 58, (1938), 1-81; Antonio Quacquarelli, “La storia nella concezione di S. Giustino”, RScF, 6 (1953), 323-339. 294 Eusébio (HE 4.18) menciona Discurso aos Gregos, Refutação, Sobre a Monarquia Divina, Saltério, Sobre a Alma e Contra Marcião. O próprio Justino menciona uma obra Contra Todas as Heresias (I Apol. 26), e as notas de seu Debate com os Crescens, que circularam em Roma (II Apol. 8.5). As várias obras com alguns destes títulos que têm sido atribuídas a Justino não são genuínas. Pierre Prigent, Justin et l’Ancien Testament: L’argumentation scripturaire du traité de Justin contre toutes les hérésies comme source principale du Dialogue avec Tryphon et de la première Apologie (Paris: Lecoffre J. Gabalda, 1964), crê que porções da obra Contra todas as Heresias estão por trás da I Apol. e da Dial., bem como em alguns fragmentos preservados por João de Damasco. Mas estas últimas provavelmente devem ser atribuídas a Melito, como demonstrado por Walter Delius, “Ps.-Justin: ‘Über die Auferstehung’”, ThViat, 14 (1952), 181-204. 295 O próprio Taciano afirma que nasceu na Assíria (Discurso aos Gregos 43). Mas naquele tempo era costumeiro incluir a Síria do Leste na Assíria. 289


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ele fundou a seita dos encratitas, mas muito pouco é conhecido sobre sua heresia. 296 Depois disto, possivelmente por volta do ano 180, Taciano simplesmente desaparece da história. 297 Em sua obra Discurso aos Gregos, Taciano tenta mostrar a superioridade do que ele chama de “religião bárbara” sobre a cultura e religião dos gregos. Ele começa lembrando os gregos sobre a origem bárbara das invenções das quais eles agora se orgulhavam. Além disso, os próprios filósofos gregos eram pessoas indignas, como pode ser claramente visto nas muitas anedotas que eram ditas sobre eles. Finalmente, a religião grega não tem direito de considerar-se melhor do que a dos “bárbaros”, pois os gregos adoram em seus deuses as mulheres livres que serviam como modelos para os escultores, e de qualquer modo as estórias que circulavam com relação aos próprios deuses não eram muito dignas de imitação. E se tudo isso não fosse suficiente, lembra os gregos de que Moisés era mais antigo do que Homero, e que qualquer bem que possa se encontrado na religião helênica, simplesmente foi tomada do Velho Testamento.298 É dentro deste ataque sobre a civilização grega que Taciano expõe o que ele chama de a “religião bárbara” dos cristãos. Naturalmente, ninguém pode esperar uma exposição sistemática da teologia de Taciano dentro de um contexto como este. Mas está claro que o centro de sua teologia cristã é Deus e a Palavra ou logos. Este logos nasce de Deus de um modo similar àquele pelo qual a partir de uma luz outros podem ser iluminados, sem perda para a primeira. Este logos fez o mundo, não de um material preexistente, pois nada é sem começo exceto Deus. Deus estava no começo; mas o começo, temos sido ensinado, é o poder do Logos. Pois o Senhor do universo, que é em si mesmo a causa necessária (υποστασις) de todo ser, visto que nenhuma criatura ainda existia, estava sozinho; mas visto que Ele era todo poder. Ele mesmo a causa necessária das coisas visíveis e invisíveis, com Ele estavam todas as coisas; com Ele, pelo poder do Logos (δια λογικης δυναµεως), também o próprio Logos, que estava Nele, subiste. E por Sua simples vontade o Logos emana; e o Logos, não aparecendo em vão, torna-se a primeira obra gerada do Pai. Sabemos ser Ele (o Logos) o começo do mundo. Mas Ele veio a ser pela participação, não por 296

As principais fontes sobre a vida de Taciano e sobre a seita dos Encratitas são: Irienu, Adv. haer. 1:28; Tertuliano, Sobre o Jejum 15; Hipólito, Philos. 2.8.10 e 10.18; Clemente de Alexandria, Strom. 3.12-13; Origenes, De orat. 24; Eusébio, HE 4.18, 19. Era proibido pelos encratitas casar. Provavelmente eles também se abstinham do vinho. Algumas destas fontes reivindicam que os encratitas defendiam uma cristologia e uma doutrina da divindade semelhante a de Valentim e Marcião ( sobre estes dois ver o capítulo seguinte). 297 Ao lado de sua obra Discurso aos Gregos, Taciano compôs a Diatessaron, que é a primeira tentativa de harmonizar os Quatro Evangelhos, e tratados: Sobre ao Animais, Sobre os Demônios, Sobre a Perfeição segundo o Salvador, e Sobre os Problemas. Exceto por traduções da Diatessaron, todas estas obras se perderam. 298 A prioridade cronológica de Moisés sobre Homero é uma das principais teses de Taciano, que tenta prová-lo através de várias cronologias. Em resumo, ele reivindica que “Moisés era mais velho do que os antigos heróis, guerras e demônios. E devemos antes crer naquele, que é antes deles em relação a idade, do que os gregos, que, sem estar conscientes disto, extraíram suas doutrinas [como] de uma nascente.” (Discurso 40; ANF, 2:81).


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amputação; pois o que é cortado está separado da substância original, mas aquilo que vem pela participação, fazendo sua escolha de função, não o entrega deficiente de quem é tomado. Pois como de uma tocha muitas fogueiras são acesas, mas a luz da primeira tocha não é diminuída por acender muitas tochas, assim o Logos, vindo do poder do Logos do Pai, não têm despojado o poder do Logos daquele que o gerou. Eu mesmo, por exemplo, falo, e você ouve; todavia, certamente, quem conversa não torna-se destituído da fala (λογος) pela transmissão da fala, mas pela expressão de minha voz eu me esforço para reduzir a ordem o material não organizado em nossas mentes. E como o Logos, nascido no começo, gerou por sua vez nosso mundo, tendo primeiro criado para si mesmo a matéria necessária, assim também eu, em imitação ao Logos, sendo novamente gerado, e tendo me tornado possuído pela verdade, estou tentando reduzir a ordem a matéria confusa que está relacionada comigo. Pois a matéria não é, como Deus, sem começo, nem, como não tendo começo, é de igual poder com Deus; ela é gerada, e não produzida por outro ser, mas trazida a existência pelo único Criador de todas as coisas.299 Dentro desta criação, os seres humanos bem como os anjos foram feitos livres, e fomos nós que através do uso errado de nossa liberdade criamos o mal. Nosso livre arbítrio nos destruiu; nós que éramos livres nos tornamos escravos; fomos vendidos pelo pecado. Nenhum mal foi criado por Deus; nós mesmos temos manifestado maldade; mas nós, que a temos manifestado, somos capazes novamente de rejeitá-la.300 A alma não é imortal, mas ao contrário morre com o corpo e mais tarde é ressuscitada com ele a fim de sofrer uma morte eterna. Mas a alma que conhece a verdade continua vivendo mesmo após a destruição do corpo.301 Atenágoras Atenágoras “o filósofo” foi contemporâneo de Taciano, embora seu espírito e estilo estejam muito longe dos do discípulo de Justino. Muito pouco é conhecido sobre Atenágoras, mas através de seus escritos pode-se descobrir um espírito refinado e ardente. Seu estilo, embora não clássico, é o mais fino, mais claro e mais correto de todos os escritores cristãos do segundo século. Duas de suas obras foram preservadas para a posteridade: Um Apelo aos Cristãos e Sobre a Ressurreição dos Mortos. No Apelo aos Cristãos, após uma breve dedicatória e introdução que têm levado os

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Discurso 5 (ANF, 2:67). Robert M. Grant, “Studies in the Apologists”, HTR, 51 (1958), 123-134, enfatiza que esta maneira de entender o logos nasce mais da gramática e retórica do que da filosofia. 300 Discurso, 11 (ANF, 2:70). 301 Ibid., 13.


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eruditos a datar a obra por volta de 177, Atenágoras continua a refutar as três principais acusações contra os cristãos: ateísmo, banquetes de orgia (Thyestean) e incesto. Ele responde à acusação de ateísmo citando uma longa lista de poetas e filósofos que disseram coisas sobre Deus semelhantes àquelas que os cristãos diziam agora, e que apesar disto não eram ateístas Sua doutrina do relacionamento entre Deus e a Palavra está claramente sumariada na seguinte citação: O Filho de Deus é o Logos do Pai, em conhecimento e em operação; pois segundo o seu modelo e por Ele foram feitas todas as coisas, o Pai e o Filho sendo um. E, o Filho, estando no Pai e o Pai no Filho, em unidade e poder do espírito, o entendimento e a razão (νους και λογος) do Pai é o Filho de Deus. Mas se, em sua inteligência superior, ocorre a você inquirir o que quer dizer pelo Filho, eu declaro brevemente que Ele é o primeiro produto do Pai, não como tendo sido trazido a existência (pois desde o começo, Deus, que é a mente eterna (νους), tinha o Logos em Si mesmo, sendo desde a eternidade imbuído com o Logos (λογικος); mas visto que Ele veio a ser o conceito e o poder energizante de todas as coisas materiais.... O próprio Espírito Santo também, que opera nos profetas, declaramos ser uma influência de Deus, fluindo Dele, e retornando novamente como um raio luminoso do sol. Quem, então, não estaria espantado ao ouvir homens que falam de Deus o Pai, e de Deus o Filho, e do Espírito Santo, e que declaram tanto seu poder em união quanto sua distinção em ordem, chamados ateístas.302 Como pode ser visto a partir deste texto, a doutrina da Palavra sustentada por Atenágoras é semelhante a de Justino, embora Atenágoras coloque mais ênfase na unidade da Palavra com o Pai.303 Quanto as acusações de imoralidade apontadas contra os cristãos, Atenágoras simplesmente as rejeita categoricamente. Como alguém poderia crer que os cristãos são capazes de tais ações, as quais todos acham repulsivas, quando sua doutrina moral é tão palpavelmente mais alta do que a dos outros? Os cristãos certamente não podem comer crianças, pois homicídio e até mesmo aborto são proibidos por eles. Nem podem eles cometer incesto, pois eles condenam o mais fugaz pensamento contra a castidade e louvam a virgindade acima de qualquer outro modo de vida. Em seu tratado Sobre a Ressurreição dos Mortos, Atenágoras tenta mostrar que a ressurreição do corpo é possível, demonstrando por um lado que isto concorda com a natureza 302

Apelo 10 (ANF, 2:133). Cp. Ibid., 24 (ANF 2:141): “Reconhecemos um Deus, e um Filho seu Logos, e um Espírito Santo, unidos em essência, - o Pai, o Filho, o Espírito, porque o Filho é a Inteligência, a Razão, a Sabedoria do Pai, e o Espírito uma influência, como a luz do fogo.”

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de Deus, e por outro lado que a própria natureza humana a requer. Ele não vê contradição entre a ressurreição dos mortos e a imortalidade da alma, pelo contrário, afirma que a última doutrina requer a primeira, pois um ser humano somente é ser humano quando a alma está unida ao corpo.304 A atitude de Atenágoras com relação ao relacionamento entre a filosofia e a teologia é semelhante a de Justino. Justino vê um valor positivo nas verdades que são encontradas na filosofia pagã; e no Apelo somos informados que Platão conhecia os pontos essenciais da doutrina cristã sobre Deus.305 Porém Atenágoras afirma que a grande diferença entre os filósofos e os cristãos é que os primeiros seguiam os impulsos de suas próprias almas, enquanto que os últimos seguem a revelação de Deus.306 Esta é a razão porque os filósofos se contradizem uns aos outros – embora Atenágoras não dê ênfase a tais contradições, como seria feito por alguns apologistas mais tarde. Teófilo de Antioquia Teófilo, bispo de Antioquia, escreveu seus Três Livros a Autólico por volta do ano 180 ou um pouco depois disso.307 Seu propósito nestes livros era persuadir seu amigo, Autólico, de que o Cristianismo é verdadeiro. Mas sua obra não é tão profunda quanto a de Justino, nem tão elegante quanto a de Atenágoras. Seu conhecimento sobre a cultura clássica parece ter sido muito superficial, e assim também acontece com sua defesa do Cristianismo.308 O primeiro dos Três Livros a Autólico trata de Deus; o segundo, da interpretação do Velho Testamento e dos erros dos poetas; e o terceiro, da superioridade moral do Cristianismo. Não é necessário resumir aqui o conteúdo de cada um destes três livros, mas apenas examinar o que Teófilo tem a dizer acerca do conhecimento e natureza de Deus. De acordo com Teófilo, somente a alma pode conhecer a Deus. A Autólico, que lhe pediu para mostrar-lhe seu Deus, Teófilo responde que ele deve primeiro ver seu ser humano – isto é, que seu amigo deve primeiro mostrar a pureza que é necessária a fim de ver a Deus. A alma é como um espelho, o qual deve estar limpo a fim de ser capaz de refletir uma imagem.309 304

Sobre a res. 15. Apelo 23. 306 Apelo 7. 307 Eusébio, HE 4.24. Por meio de seu relato e do de Jerônimo (De viris illus. 25) é sabido que Teófilo também escreveu Contra a Heresia de Hermógenes, Contra Marcião, diversas obras catequéticas e comentários bíblicos. Todas estas obras se perderam. Friedrich Loofs, Theophilus von Antiochen Adversus Marcionem und die anderen theologischen Quellen bei Irenaeus (Leipzig: Hinrichs, 1930), crê que uma das fontes de Irineu, a qual ele chama IGT, é a obra de Teófilo Contra Marcião. Sua tese foi refutada por F. R. M. Hitchcook, “Loofs’ Asiatic Source (I.Q.A.) e a Pseudo-Justino De Resurrectione”, ZnTW, 36 (1937), 35-60; “Loofs’ Theory of Theophilus of Antioch as a source if Irenaeus”, JTS, 38 (1937), 254-266. 308 Daniel Ruiz Bueno, normalmente moderado em suas críticas, diz que ele é “um caráter profundamente desagradável, que despreza aquilo que não é capaz de entender”. (Padres Apologistas, BAC, 116:578). 309 I Disc. Autol. 2. 305


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Este Deus, que pode ser conhecido por aqueles cujas almas são puras, é triuno. De fato, Teófilo é o primeiro autor cristão a usar o termo “trindade”.310 Teófilo, assim como Justino, Taciano e Atenágoras, chama a segunda pessoa da Trindade de logos, e introduz na doutrina cristã da Palavra a distinção que Filo já fazia entre a Palavra imanente, que já existia na mente ou no coração de Deus, e a Palavra expressa, que foi gerada antes de todas as coisas, de modo que é neste último sentido que é dito que a Palavra é “o primogênito de toda criação”.311 A introdução desta distinção no campo da teologia cristã é de grande importância, pois ela foi logo aceita e usada por alguns dos mais influentes teólogos, e teve um papel importante nas controvérsias dos séculos posteriores. Hermías O livro Zombaria dos Filósofos Pagãos, escrita por Hermías, geralmente é incluído entre os apologistas gregos do segundo século. Contudo, sua data de composição é muito duvidosa, e alguns críticos o colocam no segundo século, enquanto que outros o colocam até no sexto.312 Embora Hermías receba algumas vezes o título de filósofo, sua obra não requer mais conhecimento de filosofia do que poderia ser encontrado em qualquer manual da época. Ela é totalmente deficiente de elegância literária, bem como de interesse teológico. Seu autor diz muito pouco sobre a teologia cristã, pelo contrário concentra-se na maneira pela qual os vários filósofos da antigüidade se contradizem, esperando assim mostrar que nenhum deles é digno de respeito. Se há algum valor positivo neste breve documento, é como uma testemunha do senso de humor de um antigo cristão A Epístola a Diogneto A situação é muito diferente quando chegamos a um outro apologista que também é difícil de datar.313 Este é o autor desconhecido da Epístola a Diogneto, cujo estilo se compara favoravelmente com outros escritores cristãos do mesmo período. Em doze breves capítulos – isto é, se os últimos dois são genuínos314 - este cristão desconhecido apresenta uma das mais belas e nobres defesas da nova fé. Sem ir aos extremos de Taciano ou Hermías, a Epístola a Diogneto refuta tanto a religião pagã quanto os costumes τριας (Disc. Autol. 15). II Disc. Autol. 22. 312 Ver a discussão desta questão em O. Bardenhewer, Geschichte der altkirchlichen Literatur; Erster Band: Vom Ausgang des apostolischen Zeitalters bis zum Ende des zweiten Jahrhunderts (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1962), pp. 326-328. 313 Alguns críticos a tem datado no décimo terceiro século, e até mesmo na Renascença; mas estas últimas datas são muito improváveis, e há razões para crer que temos aqui um documento que é mais ou menos contemporâneo com os outros que temos estudado neste capítulo. Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos, BAC, 65:818-820, resume a discussão erudita sobre esta questão. Ele mesmo vê algum valor na teoria de D. P. Andriesen, segundo a qual este documento é a apologia perdida de Codratos (pp. 820-830). F. Ogara, “Aristidis et epistolae ad Diognetum cum Theophilo Antiocheno cognatio”, Greg 25 (1944), 74-102, argumenta em favor de Teófilo como seu autor, mas sem muito sucesso. 314 Argumentos de estilo, vocabulário e conteúdo levaram alguns críticos a sugerir que eles são uma adição posterior. Ver SC, 33:219-240. 310 311


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judaicos, e expõe de um modo positivo e simples a natureza da fé cristã, a qual não vem da sabedoria humana mas de Deus que criou o universo, como pode ser visto na vida de seus seguidores. Pois os cristãos são diferenciados dos outros homens não pelo país, nem pela linguagem, nem pelos costumes que eles observam. Pois eles não habitam em suas próprias cidades, nem empregam uma forma peculiar de linguagem, nem levam uma vida que é marcada por qualquer singularidade. O modo de conduta que eles seguem não foi determinado por alguma especulação ou deliberação de homens curiosos; nem, como alguns, proclamam-se a si mesmos os advogados de algumas doutrinas meramente humanas. Mas, habitando na Grécia bem como em cidades bárbaras, conforme a sorte de cada um deles tem determinado, e seguindo os costumes dos nativos com respeito ao vestuário, alimento, e o resto de sua conduta ordinária, eles exibem para nós seu maravilhoso e reconhecidamente extraordinário método de vida. Eles habitam em seus próprios países, mas simplesmente como hóspedes. Como cidadãos, eles participam de todas as coisas com os outros, e todavia suportam todas as coisas como se estrangeiros. Toda terra estranha é para eles como seu país nativo, e toda terra de seu nascimento como uma terra de estrangeiros. Eles se casam, como fazem todos [os outros]; eles geram crianças; mas eles não destroem sua descendência. Eles têm uma mesa comum, mas não uma cama comum. Eles estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Eles passam seus dias na terra, mas são cidadãos do céu. Eles obedecem as leis prescritas, e ao mesmo tempo excedem as leis por suas vidas. Eles amam todos os homens, e são perseguidos por todos. Eles são desconhecidos e condenados; eles são entregues à morte, e restaurados à vida. Eles são pobres, todavia feitos muito ricos; eles têm falta de todas as coisas, e todavia abundam em tudo; eles são desonrados, e todavia em sua própria desonra são glorificados. Eles são mal falados, e todavia são justificados; eles são ultrajados e louvados; eles são insultados, e retribuem o insulto com honra; eles fazem o bem, todavia são punidos como malfeitores. Quando punidos, eles se regozijam como se estimulados para a vida; eles são atacados pelos judeus como estrangeiros, e são perseguidos pelos gregos; todavia aqueles que os odeiam são incapazes de apontar qualquer razão para seu ódio.315 Melito de Sardes Várias apologias que são mencionadas pelos antigos escritores cristãos se perderam, 316

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Disc. Diog. 5. (ANF, 1:26-27). De acordo com Eusébio (HE 4.3), a primeira apologia foi a de Codratos. Ariston de Pela escreveu a primeira obra contra os judeus (HE 4.6; Origenes, Contra Cel. 4.52). Milcíades (HE 5.17) e Apolinário de Hierápolis (HE 4.27) escreveram, entre outras obras, apologias em favor do Cristianismo. Sobre o uso dos escritos de Melito por 316


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e não há meio de saber qual pode ter sido seu conteúdo teológico. No caso de Melito de Sardes, contudo, embora sua apologia tenha se perdido,317 há uma homília que sobreviveu. 318 Nela, ele resume a história de Israel, dando ênfase especial ao Êxodo e a instituição da Páscoa, e interpretando a totalidade desta história tipologicamente, de modo que ela se refere a Jesus Cristo. Este é aquele que nos salvou da escravidão para a liberdade, da escuridão para a luz, da morte para a vida, da opressão para um reino eterno, e nos constituiu em um novo sacerdócio e um povo escolhido para sempre. Ele é a Páscoa de nossa salvação, ele é aquele que em muitos homens sofreu muitas coisas. Este é aquele que em Abel foi assassinado, em Isaque foi amarrado, que em Jacó habitou em terra estranha, que em José foi vendido, que em Moisés foi desterrado, no cordeiro foi sacrificado, e em Davi foi perseguido, nos profetas foi desonrado.319 Esta homília difere das apologias que temos estudado em que os conceitos filosóficos que não representam um papel nela. Mas sua teologia concorda com a dos outros apologistas. Cristo é preexistente e divino, e isto é enfatizado a tal ponto que a distinção entre o Pai e o Filho é quase apagada.320 Como no caso de Justino, Melito crê no Espírito Santo, porém não desenvolveu uma doutrina do relacionamento do Espírito com o Pai e o Filho. Finalmente, Melito afirma claramente que Cristo é “por natureza Deus e homem”. 321 Visão Geral Ao passar dos Pais Apostólicos para os Apologistas Gregos do segundo século, encontramos uma atmosfera totalmente diferente. Agora estamos testemunhando os primeiros embates do Cristianismo com a cultura circundante, e os vários esforços dos pensadores cristãos para interpretar o relacionamento entre eles. Assim, alguns estão querendo dar validade à centelha da verdade que eles criam poder ser encontrada na filosofia pagã, enquanto que outros não vêem nenhum outro relacionamento possível entre o Cristianismo e o

outros, ver R. Cantalamessa, “Questioni melitoniane: Melitone e i latini; Melitone e i quartodecimani”, RStLet, 6 (1970), 245-267. 317 Melito foi um escritor profícuo, mas toda sua produção pereceu, exceto sua Homília Pascal. Ver Eusébio, HE 4.26. 318 Uma sugestão muito iluminadora concernente a natureza desta homília é oferecida por Παναγιωτης Κ. Χρηστου, “Το εργον του Μελιτωνος περι Πασχα και η ακολουθια του Πασθους”, ΚΑΗ, 1 (1969), 65-77. 319 Hom. Pascal 68-69. (Tradução Campbell Bonner, The Homily on the Passion by Bishop Melito of Sardis, Londres: Christophers, 1940, p. 176). 320 “A teologia de Melito, na medida em que esta homília a revela, é dominada pela concepção da divindade e preexistência de Cristo.... Mas esta ênfase sobre sua divindade e preexistência torna natural e quase inevitável que na linguagem ingênua, descuidada, a distinção pessoal entre Deus o Pai e Deus o Filho seriam obscurecidas.” Bonner, The Homily, pp. 27-28. 321 Hom. Pascal 8. Ele também fala de “duas substâncias (ουσιαι)” de Cristo, e para ele “substância” e “natureza” parecem intercambiáveis. Bonner, The Homily, pp. 28-29.


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Helenismo senão uma guerra até a morte.322 Por outro lado, em seu esforço para apresentar a fé de modo tal que ela poderia ser entendida pelos pagãos, os cristãos viram-se forçados a sistematizar seu pensamento, e assim pode ser dito que os apologistas são os primeiros teólogos sistemáticos do Cristianismo.323 A importância destes escritores para a história do pensamento cristão está precisamente nesta tarefa de sistematizar a teologia cristã, bem como em sua doutrina do logos, a qual abre o caminho para o diálogo entre a fé e a cultura. Existem, contudo, alguns perigos envolvidos nesta obra, pois o modo como eles definem a fé da igreja também dá origem a novos problemas que os cristãos primitivos não suspeitavam. Deste modo, o desenvolvimento da doutrina do logos, com todas as suas implicações filosóficas, será mais tarde a causa de graves controvérsias teológicas. Já nos apologistas, vê-se a diversidade entre Justino, que afirma que a Palavra é “um outro Deus”, e Melito, que tende a identificar o Filho com o Pai. Em algum lugar entre eles está Teófilo, que faz distinção entre uma Palavra interior, que existe eternamente na mente do Pai, e uma Palavra falada ou expressa, que é o agente criador que mais tarde se tornará encarnado em Jesus Cristo. Em geral, os apologistas parecem considerar o Cristianismo como uma doutrina, seja ela moral ou filosófica. Cristo é, sobretudo, o mestre de uma nova moralidade ou da verdadeira filosofia. Mas não se deve esquecer que na homília de Melito, Cristo aparece como o conquistador da morte e dos poderes do mal, e o Cristianismo é apresentado como participação nesta vitória. Isto quer dizer, é possível que os apologistas, que dirigindo-se aos pagãos falam de Cristo quase exclusivamente como um mestre e iluminador, tinham um entendimento mais amplo e mais profundo desta obra salvadora do que aquele que pode ser visto em seus escritos que sobreviveram. De qualquer modo, os apologistas contribuíram para a progressiva helenização do Cristianismo. Suas posições diante dos filósofos não é uniforme, como pode ser visto no contraste entre Justino, Atenágoras, e Teófilo por um lado, e Hermías e Taciano por outro. Mesmo entre aqueles que mais fazem uso de instrumentos filosóficos, tais como Justino e Atenágoras, as doutrinas da encarnação e da ressurreição dos mortos, as quais não eram agradáveis ao espírito helenista, não perdem sua centralidade. Mas apesar disso, deve-se dizer que o conceito de Deus, que os apologistas tomaram da filosofia helenista e que enfatizava a imutabilidade divina, teria um grande peso sobre a teologia cristã e seria um fator causador de mais dificuldades às controvérsias trinitarianas e cristológicas dos séculos posteriores. 322

Contudo, todos eles fazem uso da cultura clássica, mesmo que alguns o façam de má vontade. Ver G. L. Ellspermann, The Attitude of the Early Christian Writers Toward Pagan Literature and Learning (Washington: Catholic University of American Press, 1949). 323 “Por seu intelectualismo e teorias exclusivas, os apologistas construíram um Cristianismo filosófico e dogmático”. Harnack, HD, 2:228.


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Enquanto isso, os problemas que ameaçavam a vida interior da igreja eram outros, e seria errôneo interpretá-los primeiramente em termos da oposição entre o espírito hebreu e a mente grega. Estes problemas foram as primeiras heresias, às quais voltaremos agora.


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V. AS HERESIAS PRIMITIVAS: DESAFIO E RESPOSTA Desde muito cedo a igreja cristã teve de lutar contra várias interpretações de sua fé, as quais para muitos parecia pôr em perigo um aspecto crucial desta fé. Vinham para o Cristianismo convertidos de várias religiões e formações culturais diferentes. Como era de se esperar, estas várias origens influenciavam sua interpretação do Cristianismo. Ao mesmo tempo, outros movimentos religiosos tomavam importantes elementos da fé cristã incorporando-os a seus sistemas. Isto era suficiente para chamá-los de cristãos? Onde deveria ser traçada a linha entre o verdadeiro Cristianismo, e o que de fato era uma religião diferente com elementos cristãos? Claramente, esta linha não poderia ser traçada, a priori, por aqueles que eventualmente eram considerados hereges, que não trabalhavam fora da comunidade cristã – ele consideravam-se cristãos fiéis, tentando explicar o evangelho em termos que seus contemporâneos pudessem entender. Igualmente, aqueles que eventualmente eram declarados ortodoxos não concordavam em todas as questões: um observador contemporâneo teria grande dificuldade de distingui-los dos outros. Assim surgiu uma diversidade de doutrinas, todas reivindicando ser o correto entendimento do Cristianismo, porém muitas delas pareciam contradizer, ou ao menos deixar de lado, alguns dos dogmas fundamentais da fé cristã tradicional. A existência desta diversidade de doutrinas já pode ser vista no Novo Testamento, cujos autores constantemente tentam pôr um fim nelas. Gálatas, Colossenses, a assim chamada literatura Joanina e I de Pedro mostram a luta dos cristãos primitivos contra tais doutrinas. Já vimos como Inácio de Antioquia se opôs àqueles que negavam a encarnação real de Jesus Cristo. Poucos anos mais tarde, Justino novamente atacou os mestres do que ele entendia ser um falso Cristianismo. Além disso, quase todos os apologistas escreveram obras contra os hereges, embora estas não tenham sido preservadas. Durante o segundo século, e especialmente em seus últimos anos, estas doutrinas tornaram-se tão difundidas que provocaram, na igreja como um todo, uma reação que devia ser de enorme importância para a história do pensamento cristão. Portanto, antes do exame daqueles teólogos que a igreja mais tarde considerou serem os grandes defensores da ortodoxia, devemos dar um breve resumo das doutrinas às quais eles se opuseram. Cristianismo Judaizante O primeiro problema doutrinário que confrontou a igreja primitiva foi o de seu relacionamento com o Judaísmo. A solução progressiva deste problema pode ser vista em Atos bem como nas Epístolas de Paulo. Existiam, contudo, algumas pessoas que nunca aceitaram a solução de Paulo, a qual – com algumas variações importantes – eventualmente tornou-se a da imensa maioria dos cristãos.


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É difícil determinar a exata natureza das doutrinas sustentadas por cada um dos diversos movimentos judaizantes, bem como fazer distinção entre eles. Esta dificuldade, que em parte é devida a escassez de fontes para seu estudo, já era enfrentada pelos escritores antigos que examinavam os judaizantes, pois eles também parecem confusos em relação aos vários grupos e suas doutrinas. A razão para isto provavelmente seja que, a princípio, estes cristãos não estavam organizados em grupos claramente definidos, como as igrejas, mas simplesmente formavam movimentos que freqüentemente uniam-se. Contudo, em consideração à clareza, parece possível distinguir vários níveis em que o tema do relacionamento entre o Cristianismo e o Judaísmo era proposto. Inicialmente isto tinha a ver somente com a questão se um cristão deveria seguir a Lei do Velho Testamento ou não. Neste nível, haviam alguns judaizantes moderados, que obedeciam eles mesmos a Lei, mas não tentavam constranger outros a fazer o mesmo; e aqueles de uma posição mais extrema, que não somente seguia a Lei mas sentiam que todos os cristãos verdadeiros deveriam fazê-lo.324 Num outro nível, contudo, existiam alguns cristãos judaizantes que afirmavam, não apenas que era necessário obedecer a Lei do Velho Testamento, mas também que Paulo era um apóstata da verdadeira fé, e que Cristo não era Filho de Deus desde o começo, mas foi adotado por causa de sua excelência moral em cumprir a Lei. Esta era a posição dos “ebionitas”, uma seita que parece ter continuado a existir por vários séculos. 325 As fontes de nosso conhecimento sobre o Ebionismo são, ao lado do testemunho dos antigos escritores anti-heréticos,326 as traduções do Velho Testamento pelo ebionita Simaco, bem como certas porções da literatura Pseudo-Clementina. Entre as fontes que vieram a formar este corpo de literatura, os eruditos crêem que é possível distinguir aquilo que eles chamam de “Pregações de Pedro”, cuja teologia concorda com o que estamos falando sobre o Ebionismo por outros escritores cristãos. Portanto, se crê que as “Pregações de Pedro” é ebionita em sua origem, e que por isso temos nela um testemunho direto da doutrina desta seita.327 A partir destas fontes, é possível reconstruir a teologia ebionita, ao menos em suas características principais. Parece que em sua origem o Ebionismo está relacionado com o Judaísmo Essênio, pois alguns de seus princípios parecem ter sido tomados daquele tipo de 324

Justino, Dial. 47. O termo “ebionita” aparece pela primeira vez em Irineu, Adv. haer. 1. 26.2. Sua origem etimológica é geralmente encontrada na palavra hebraica para “pobre”. 326 Justino, Dial¸ 47; Irineu, Adv. haer, 1.26; Origenes, Contra Cel. 2.1,3; 5.61, 65; Epifânio, Pan. 29-30; Eusébio, HE. 3.27; Hipólito, Philos. 7.34. 327 Esta fonte, a Kerygmata Petrou, não deve ser confundida com a Kerigma Petrou, à qual tanto Clemente de Alexandria como Origenes se referem. A última é aparentemente apologética em seu caráter, e alguns eruditos crêem que seu material foi usado por alguns dos apologistas do segundo século. 325


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Judaísmo – a rejeição de sacrifícios de animais, a doutrina da existência de um princípio do bem e um princípio do mal, embora ambos venham de Deus, e vários detalhes menores.328 De acordo com os ebionitas, há um princípio do bem e um princípio do mal. O último é o senhor desta era, mas o primeiro governará na era porvir. Enquanto isso, o princípio do bem é revelado neste mundo através de seu profeta, o qual veio em várias encarnações. Adão, Abel, Isaque e Jesus são encarnações do profeta do bem. Mas, desde o tempo de Adão, cada encarnação do profeta do bem é acompanhada por sua contraparte, que serve aos propósitos do princípio do mal. Caim, Ismael e João Batista, são manifestações do princípio do mal, o qual também é chamado de o princípio feminino.329 Dentro deste sistema de pensamento, Jesus é sobretudo um profeta do princípio masculino, ou princípio do bem. À parte deste Jesus é simplesmente um homem a quem Deus escolheu para proclamar sua vontade. Jesus não nasceu de uma virgem, e foi em seu batismo que ele recebeu do alto o poder que o habilitou a cumprir sua missão. Esta missão não consistia em salvar a humanidade – uma obra que está além das capacidades humanas – mas em chamar a humanidade à obediência da Lei, que foi dada pelo princípio masculino. De fato, a Lei era o âmago da espiritualidade ebionita e, embora eles não oferecessem sacrifícios sangrentos, eles enfatizavam a circuncisão e a observância do Sábado.330 As leis do Velho Testamento que se referem aos sacrifícios não foram dadas por Deus, mas ao contrário foram adicionadas ao texto sagrado por meio da influência do princípio feminino.331 Esta é a razão porque, a despeito de sua estrita observância da Lei, Epifânio nos diz que os ebionitas não aceitavam o Pentateuco em sua totalidade. 332 Quanto ao relacionamento de Jesus com a Lei, os ebionitas insistiam que ele não tinha vindo para abolir a Lei, mas cumpri-la. Este cumprimento da Lei por Jesus não significa de modo algum que a Lei foi consumada, e que por isso ela não é mais obrigatória, mas ao contrário que Jesus coloca-se como um exemplo a ser seguido por todos. Foi Paulo quem introduziu o conceito de que ao cumprir a Lei Jesus o fez para outros. Era de se esperar este ensino da parte de Paulo, pois ele também era um servo do princípio feminino. 333 Assim, este tipo de Cristianismo Judaizante era uma variante do Judaísmo Essênio, do qual ele se distinguia principalmente pelo papel que Jesus representava em sua teologia.334 328

Jean Daniélou, The Theology of Jewish Christianity (Londres: Darton, Longman & Todd, 1964), pp. 56-58, oferece uma comparação valiosa entre o Ebionismo e os Rolos do Mar Morto. 329 Hom. 2. 15-17. 330 O precedente foi sumarizado por Daniélou, Theology, pp. 63-64. 331 Hom. 2.38. 332 Pan. 30. 18. 333 Paulo não atacado diretamente na literatura Pseudo-Clementina. Mas há freqüentes referências a um “inimigo” ou um “homem hostíl” que provavelmente seja Paulo. 334 Este é o conceito de Daniélou, Theology, pp. 55-64. Nisto ele segue Oscar Cullmann, “Die neuentdeckten Qumrantexte und das Judenchristentum der Pseudo-Klementinen”, em Neutestamentliche Studien für R.


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O Ebionismo nunca foi uma doutrina muito difundida, e parece ter desaparecido quando a igreja tornou-se cada vez mais gentílica e menos judaica. Isto não significa, contudo, que ele não representou um desafio para a igreja dos primeiros séculos. Pelo contrário, o que estava em jogo aqui era a singularidade de Jesus Cristo, em contraste com a possibilidade de adaptá-lo de tal modo que ele simplesmente poderia ser sobreposto à antiga religião judaica. Quando isto foi feito, Jesus não era mais único e central. Ele não era mais o Filho unigênito de Deus, mas um mero profeta dentro da seqüência de profetas. Ele não era mais o Salvador, mas simplesmente um elemento – algumas vezes secundário – da ação de Deus dentro desta era. Finalmente, em um outro nível haviam discussões sobre o relacionamento entre o Cristianismo e o Judaísmo, que tentavam reinterpretar não apenas o Cristianismo em si, mas o Judaísmo também. Este era o caso de um certo tipo de cristianismo judaizante que, embora provavelmente tendo uma íntima relação com o Ebionismo, também foi influenciado pelo Gnosticismo. O principal expoente deste tipo de Cristianismo Judaizante parece ter sido Elcasai (Também chamado de Elkesai, Elcesai ou Elchasai). Ele viveu na primeira metade do segundo século, mas dificilmente algo pode ser conhecido sobre sua vida.335 Sua doutrina é claramente ebionita, embora com uma forte influência gnóstica. Ela é baseada numa revelação que Elcasai reivindicava ter recebido de um anjo que tinha noventa e seis milhas de altura. Este anjo era o Filho de Deus. Perto dele havia um outro anjo de proporções similares, embora feminino, e este era o Espírito Santo. O conteúdo desta revelação de Elcasai é conhecido apenas por meio de citações e outras referências encontradas nos escritores cristãos que o atacavam. A partir de seu testemunho pode-se concluir que o Elcasaísmo era apenas uma forma de Ebionismo – era necessário guardar a Lei e ser circuncidado, e Jesus era apenas um profeta – com algumas influências gnósticas – especulações astrológicas, numerologia, e tendências dualistas.336 Sua principal concentração parece ter sido no Leste, especialmente além do Eufrates, onde provavelmente o próprio Elcasai nasceu. De qualquer modo, esta seita, embora pequena, é importante, pois ela pode ter influenciado Maomé, o fundador do Islamismo. Bultmann, BZNtW, 21 (1954), 35-51. Cp. Joseph A. Fitzmeyer, “The Qumran Scrolls, the Ebionites, and Their Literature”, em Krister Stendhal, ed., The Scrolls and the New Testament, pp. 208-231. 335 Hipólito, Philos. . 9. 8-12; Eusébio, HE. 6.38; Epifânio, Pan. 19; Teodoreto, Haer. fab. comp. 2.7. 336 Isto é sustentado por Hans Joachim Schoeps, Theologie und Geschichte des Judenchristentum (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1949), pp. 325-334. Cp. Daniélou, Theology, pp. 64-67. Enquanto o último crê que o Elcasaísmo é um Ebionismo que foi influenciado pelo Cristianismo ortodoxo, o primeiro afirma que as influências gnósticas devem ser atribuídas a diferença entre o Ebionísmo e o Elcasaísmo. Esta última teoria está mais em acordo com os escritores antigos; mas deve-se admitir que os dados existentes são insuficientes para se pronunciar um veredicto definitivo. Ver também, sobre o relacionamento entre o Elcasaísmo e o Gnosticismo, Ethel Stefana Drower, “Adam and the Elkasaites”, SP 4 (1961), 406-410.


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Gnosticismo Sob o título geral de “Gnosticismo” estão incluídas diversas doutrinas religiosas que prosperaram no segundo século, e cuja principal característica era seu sincretísmo.337 Os gnósticos tomavam qualquer doutrina que achavam valiosa, sem qualquer consideração a sua origem ou ao contexto do qual ela era tomada. Quando eles vieram a conhecer o Cristianismo primitivo e ver seu grande apelo, eles tentaram tomar aqueles aspectos do Cristianismo que pareciam mais valiosos para eles e os adaptaram a seus sistemas. Este procedimento propôs um desafio urgente para aqueles cristãos que não o aceitavam, por isso tornou-se necessário mostrar que o Gnosticismo deturpava a doutrina cristã, e mostrar as razões porque não se deveria converter Jesus Cristo em um mero elemento dentro de um sistema gnóstico.338 Tem havido um debate erudito muito grande com relação as origens do Gnosticismo, mas provavelmente este debate nunca poderá ser decidido, por causa da própria natureza sincretista do Gnosticismo, que faz uso do dualismo persa tanto quanto dos mistérios orientais, da astrologia babilônica, da filosofia helenista e praticamente de cada doutrina que circulava no segundo século. Portanto, o ditado de Harnack, de que o Gnosticismo é “uma acentuada helenização do Cristianismo”, não é inteiramente preciso. Embora seja verdade que haviam fortes influências gregas no Gnosticismo, é também verdade que esta é apenas uma das muitas fontes das quais os mestres gnósticos beberam. 339 Embora hajam elementos especulativos muito importantes no Gnosticismo, sua apresentação comum, consistindo em primeiro lugar de vários sistemas de especulações numerológicas, tem tornado impossível entender como ele poderia ter sido um forte rival da igreja. O fato de que o Gnosticismo tornou-se uma alternativa atraente ao Cristianismo 337

Alexander Böhlig, “Synkretismus, Gnosis, Manichäismus”, em Koptische Kunst: Christentum am Nil (Essen: Villa Hügel, 1963), pp. 42-47; M. Mazza, “Gnosticismo e sincretismo: Osservazioni in margine alla letteratura recente sulle origine gnostiche”, Helikon, 5 (1965), 570-587. 338 As melhores introduções em inglês ao Gnosticismo ainda são: Robert M. Grant, Gnosticism and Early Christianity (Nova Iorque: Oxford University Press, 1960), e Hans Jonas, The Gnostic Religion: The Message of the Alien God and the Beginning of Christianity (Boston: Beacon Press, 1958). Uma introdução enfatizando as razões da fascinação do Gnosticismo e procurando redescobrir seu verdadeiro significado por trás das caricaturas e condenações dos cristãos ortodoxos está em E. Pagels, The Gnostic Gospels (Nova Iorque: Random House, 1979). Ver também, sobre questões mais técnicas, B. Layton, ed., The Recovery of Gnosticism: Proceedings of the international Conference on Gnosticism at Yale, March 28-31, 1978, 2 vols. (Leiden, Brill, 1980-81). 339 Começando no décimo-oitavo século, tem havido um debate erudito muito grande com relação as origens do Gnosticismo. A única conclusão que pode ser extraída deste debate é que o Gnosticismo não pode ser entendido como fluindo de uma única fonte, mas antes como uma mistura de várias correntes de pensamento religioso. Sobre este tema, ver o resumo bibliográfico em Eugène de Faye, Gnostiques et Gnosticisme: Etude critique des documents du Gnosticisme chrétien aux IIe et IIIe siècles (Paris: Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1925), pp. 499-540. Depois desta data, tem havido um aumento de interesse nos elementos judaicos no Gnosticismo. Ver: Grant, Gnosticism; Gershon Gerhard Scholem, Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (Nova Iorque: Jewish Theological Seminary, 1960); Willen Cornelis van Unnik, “Die jüdische Komponente in der Entstehung der Gnosis”, BigCh, 15 (1961), 65-82; Hans-Martin Schenke, “Das Problem der Beziehung zwischen Judentum und Gnosis: Ist die Gnosis aus dem Judentum ableitbar?”Kairos, 7 (1965), 124-133; C. L. Albanese, “Inwardness: A Study of Some Gnostic Themes and Their Relation to Early Christianity with Specific Reference to the Gospel According to Tomas”, RThAM, 43 (1976), 64-88.


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ortodoxo foi devido, sobretudo, a seu interesse soteriológico. A fim de entender este apelo, deve-se interpretar o Gnosticismo acima de tudo como um modo de salvação. O cosmopolitanismo, que acompanhou as conquistas de Alexandre, tinha sua contraparte no individualismo das pessoas, que achavam que as antigas religiões nacionais não eram mais capazes de satisfazer suas necessidades. Por esta razão, os séculos nos quais o Cristianismo começou a abrir seu caminho no mundo, foram caracterizados por uma procura pela salvação individual, e pelo conseqüente crescimento daquelas religiões que reivindicavam oferecê-la – além do Cristianismo, os mistérios e o Gnosticismo. O Gnosticismo é então, sobretudo, uma doutrina de salvação. Mas, qual é a natureza desta salvação?340 De acordo com o Gnosticismo, ela consiste na libertação do espírito, o qual está escravizado por causa de sua união com coisas materiais. Nos seres humanos o corpo e a “alma animal” pertencem ao mundo material, pois a alma é apenas aquilo que dá ao corpo sua vida, desejos e paixões.341 O espírito realmente não pertence a este mundo, mas é parte da substância divina. Por alguma razão que é normalmente explicada mitologicamente, ele caiu neste mundo e tornou-se um prisioneiro da matéria. Então é necessário libertar o espírito desta prisão; e isto é obtido através do conhecimento ou gnosis – por isso o nome de Gnosticismo. Este conhecimento não consiste em mera informação, mas é antes uma iluminação mística como resultado da revelação do eterno. O conhecimento é, então, um entendimento da situação humana, do que nós fomos outrora, e o que deveríamos nos tornar; e através dele podemos ser libertos dos laços que nos prendem ao mundo material. Por outro lado, como estamos escravizados por nossa união com a matéria, de tal modo que somos incapazes de conhecer a verdade eterna por nossos próprios meios, é necessário que um mensageiro seja enviado do mundo espiritual transcendente para trazer-nos sua revelação libertadora. Este mensageiro é característica de todos os sistemas gnósticos, e no Gnosticismo cristão será Cristo quem realizará esta missão.342 Contudo, a doutrina da salvação deve estar baseada em um entendimento de nosso lugar no universo, e esta é a função das complicadas construções especulativas dentro dos vários sistemas gnósticos. Se o espírito está aprisionado na matéria, deve haver uma razão para esta condição; e esta razão os gnósticos tentam oferecer em suas especulações.343 340

J Zander, “Gnostic Ideas on the Fall and Salvation”, Numen, 11 (1964), 13-74. Embora deva ser salientado que o status da alma não é nem uniforme nem claro em muitos sistemas gnósticos. 342 Referências a respeito deste mensageiro colecionadas de várias fontes gnósticas podem ser vistas em Jonas, Gnostic Religion, pp. 75-80. 343 Contudo, a importância da longa série de eras das especulações gnósticas não é meramente como uma explicação de nossa presente situação, mas também como uma descrição religiosa dela. “A importância religiosa desta arquitetura cósmica jaz no conceito de que tudo que se interpõe entre aqui e o além serve para separar o homem de Deus, não simplesmente pela distância espacial mas por meio de uma força demoníaca ativa.” Jonas, Gnostic Religion, p. 43. 341


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Existem duas características principais nestas especulações: seu dualismo derivado e sua numerologia. O dualismo do Gnosticismo, o qual muitos eruditos têm enfatizado como uma de suas principais características, não é um dualismo primário ou inicial, mas ao contrário resulta de um monismo inicial.344 As especulações gnósticas traçadas a partir de um único princípio eterno, do qual outros princípios ou eões (seres imaginários do Gnosticismo) são produzidos em um processo declinante, até – geralmente através de um erro de uma das eras inferiores – o mundo material ser produzido. Assim aparece o dualismo derivado entre a matéria e o espírito, ou entre o celestial e o terreno. Dentro do processo de produção dos vários níveis de eões, a numerologia – uma característica muito comum na especulação helenista – representa um papel importante, pois os eões geralmente são produzidos seguindo certos modelos numéricos. A cosmologia gnóstica nasce desta combinação de dualismo derivado e especulação numerológica, e é caracterizada pela complexa série de eões que ficam entre o mundo absoluto e o mundo material. Estes seres são freqüentemente vistos como esferas que o espírito deve atravessar em seu retorno à eternidade. Finalmente, a ética dos gnósticos está baseada em sua antropologia e cosmologia. Se há qualquer bem em nós deve ser encontrado em nosso espírito, e o corpo é por natureza mau, podem ser tiradas duas conclusões opostas: ou deve-se sujeitar o corpo a estrita disciplina e viver uma vida ascética, ou qualquer coisa que o corpo faça não faz diferença, pois ele não pode danificar a pureza do espírito, e por isso pode-se permitir ao corpo fazer o que lhe agrada. É por esta razão que algumas seitas gnósticas eram extremamente ascéticas enquanto que outras eram libertinas.345 Quando o conceito geral gnóstico foi combinado com o ensino cristão, houveram três pontos básicos nos quais muitos cristãos sentiram que sua fé era ameaçada: a doutrina da criação e do governo divino sobre o mundo, a doutrina da salvação e a cristologia. O Gnosticismo era oposto à doutrina cristã tradicional da criação porque ele via no mundo material, não a obra do Deus eterno, mas o resultado de um erro cometido por um ser inferior e mal ou ignorante. De acordo com os gnósticos, as coisas deste mundo não são simplesmente inúteis, mas até mesmo más. Nisto eles eram opostos a principal corrente da tradição judaicocristã, que afirmava que todas as coisas foram feitas por Deus, que ainda age na história do mundo. Desta primeira discordância entre o Gnosticismo e o Cristianismo tradicional, seguiuse uma discordância similar com relação a doutrina da salvação. Segundo o Gnosticismo, a salvação consiste na libertação do espírito divino e imortal que está aprisionado dentro do

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Um ponto claramente provado por Antonio Orbe, Estudios valentinianos, Vol. I, Pt. I, Hacia la primera teologia de la procesión del Verbo (Roma: Apud Aedes Universitatis Gregorianae, 1958), pp. 203-285.


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corpo humano. O papel do último no plano da salvação é simplesmente negativo. Em oposição a este conceito, muitos cristãos afirmavam que a salvação incluía o corpo humano, e que o cumprimento final do plano de Deus para a salvação não acontecerá sem a ressurreição do corpo.346 Finalmente, o dualismo gnóstico teve conseqüências devastadoras quando aplicado a cristologia. Se a matéria, e sobretudo esta matéria que forma nosso corpo, não é o produto da vontade divina, mas antes de algum outro princípio que é oposto a esta vontade, segue-se que esta matéria e o corpo humano não podem servir como um veículo para a revelação do Deus supremo. Portanto Cristo, que veio para fazer-nos conhecer este Deus, não pode ter vindo em carne. Seu corpo não pode ter sido um verdadeiro corpo físico, mas apenas um corpo aparentemente carnal. Seus sofrimentos e sua morte não podem ter sido reais, pois é inconcebível que o espírito divino daria-se deste modo a si mesmo ao poder mal e destrutivo da matéria. Assim os gnósticos são levados à doutrina cristológica que é conhecida como Docetismo – do grego δοκεω, parecer ou supor – a qual já encontramos ao discutir os oponentes de Inácio de Antioquia.347 Em oposição a esta teoria, muitos cristãos afirmaram que em Jesus de Nazaré – em seu corpo, em sua vida, seus sofrimentos, sua morte e ressurreição – é encontrada a revelação salvadora de Deus. Esta é a razão porque tais cristãos viam o Gnosticismo, não como uma versão diferente de sua própria fé, mas como uma tentativa de despojar esta fé do próprio coração de sua mensagem. Embora as escolas gnósticas fossem muitas, e o relacionamento entre elas não seja claro, deve-se tentar descrever algo de seus sistemas como um meio de ilustrar suas características gerais. Nosso conhecimento do Gnosticismo deriva de seus escritos e das obras nas quais alguns antigos escritores cristãos os atacaram. Até poucas décadas atrás, somente um número muito limitado de escritos gnósticos parecia ter sobrevivido, e os eruditos eram forçados a seguir apenas o testemunho de escritos dirigidos contra eles. Naturalmente, a questão que sempre foi deixada sem resposta era até que ponto estes escritos anti-gnósticos são confiáveis. Recentemente grande quantia de materiais gnósticos foram descobertos e com isso nosso conhecimento do Gnosticismo foi grandemente ampliado e esclarecido.348 345

Sobre o libertinismo gnóstico ver de Faye, Gnostiques, pp. 413-428. Cp. B. Layton, The Gnostic Treatise on Resurrection from Nag Hammadi, Edited with Translation and Commentary (Missoula, Mont.: Scholars Press, 1979). 347 O Docetismo dos gnósticos, contudo, deve ser nuançado, pois ele variou de escola para escola. Ver A. Orbe, Cristología gnóstica, 2 vols. (Madri: BAC, 1976), 2:380-412, que mostra que haviam relativamente poucos “Docetistas absolutos” entre os gnósticos. 348 Ver: Jean Doresse, The Secret Books of the Egyptian Gnostics: An Introdution to the Gnostic Coptic Manuscripts Discovered at Chenoboskion (Nova Iorque, Viking Press, 1960); Hendrick Grobel, ed., and trad., The Gospel of Thuth: A Valentinian Meditation on the Gospel (Nashville: Abingdon Press, 1960); Johannes Leipoldt and Hans-Martin Schenke, Koptisch-gnostiche Schriften aus den Papyruscodices von Nag Hamadi 346


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De acordo com uma tradição muito antiga, cujo primeiro expoente é Justino,349 Simão, o Mágico, foi o fundador do Gnosticismo.350 A verdade histórica parece ser, não que Simão fundou este tipo de religião, mas que no capítulo 8 de Atos temos um relato de um dos mais antigos embates entre o Cristianismo e o Gnosticismo. Em Samaria, onde Simão vivia, haviam pessoas de várias partes do mundo antigo, e assim se desenvolveu uma atmosfera que era muito adequada a uma doutrina sincretista tal como o Gnosticismo. De acordo com Justino e outros antigos escritores cristãos, Simão, o Mágico, tinha bastante seguidores. Ele reivindicava que era o próprio Deus, ou que tinha o poder de Deus, e que sua companheira Helena era o Espírito Santo. O livro de Atos afirma que ele foi batizado como um cristão. Embora não haja evidência de que ele apropriou-se de outras doutrinas cristãs, este episódio exemplifica o espírito sincretista do Gnosticismo. Menandro, um discípulo de Simão, o Mágico, é uma pessoa obscura que parece ter sido um judeu gnóstico em vez de um cristão. Segundo antigos heresiologistas,351 Menandro era especializado em magia, como seu mestre tinha sido antes dele. Ele declarava que ele mesmo era o salvador, enviado pelos seres celestiais como seu mensageiro, a fim de ensinar os procedimentos mágicos pelos quais se poderia vencer os anjos que criaram este mundo e que ainda mantinham a humanidade na escravidão. Provavelmente o primeiro gnóstico que tentou reinterpretar o evangelho cristão foi Cerinto.352 Ele viveu em Éfeso perto do fim do primeiro século, e em seu sistema encontra-se o dualismo derivado que é característico do Gnosticismo em geral. Ele também fez distinção entre Jesus e Cristo: Jesus era o homem, filho de Maria e José, enquanto que Cristo era o ser divino que desceu sobre Jesus em seu batismo. Portanto, Cerinto não era um docetista no sentido estrito, embora ele solucionasse o problema da união da humanidade com a divindade em Cristo estabelecendo uma distinção radical entre elas. Quando Cristo completou sua missão como um mensageiro para a humanidade, ele abandonou a Jesus, e foi o último que sofreu, morreu e ressuscitou dos mortos, pois o próprio Cristo é invulnerável. De acordo com (Hamburgo: H. Reich, 1960); J. D. McCaughey, “The Nag Hammadi or Chenoboskion Library and the Study of Gnosticism”, JRH, 1 (1961), 61-71; Bertil Gärtner, The Theology of the Gospel According to Thomas (Nova Iorque: Harper, 1961); Hans Jonas, “The Secret Books of the Egyptian Gnostics”, JRel, 42 (1962), 267-273; A edição mais acessível é a de J. M. Robinson, ed., The Nag Hammadi Library (Nova Iorque: Harper & Row, 1977). 349 Justino, I Apol. 26. Também a Pseudo-Clementina, pass.,; Irineu, Adv haer, 1.23; Tertuliano, De anima 34, 57; Pseudo-Tertuliano, Adv omn. haer. 1; Hipólito, Philos. 6.2-15; Epifânio, Pan. 21. 2, 4. Justino viu uma estátua erigida em Roma a Sabine Deus Semo Sancus, e com base nisto declarou que os romanos tinham construído uma estátua a Simão, o Mágico. Seu erro foi descoberto quando a inscrição romana foi desenterrada em 1574. 350 Ver Eizo Kikuchi, “A Type of Primitive Gnosticism Represented by Simon Magus”, JRelSt, Vol 36 (1962), no. 172. 351 Somente Justino, I Apol. 26, 56, parece ter conhecimento de primeira mão sobre ele. Contudo, de Faye vai além dos limites em lançar dúvidas sobre sua existência (Gnostiques, p. 432). 352 Irineu, Adv. haer. 1.26. 1 e 3.3.4; Eusébio, HE 3.28 e 7.25. De acordo com este último texto, alguns oponentes do livro de Apocalipse do Novo Testamento reivindicavam que ele tinha sido escrito por Cerinto.


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a tradição, o grande oponente de Cerinto em Éfeso foi São João – seja quem for que possa ter sido.353 Deveria-se saber que a Primeira Epístola de João em nosso Novo Testamento parece ser diretamente contra ele.354 Satornilus – ou Saturnino – foi um discípulo de Menandro.355 Segundo ele, o mundo foi feito por sete anjos, um dos quais era o Deus dos judeus. Estes anjos tentaram fazer algo segundo a imagem do Deus supremo, mas falharam e em vez disso criaram a humanidade. Então o Deus supremo, movido por misericórdia, deu a um que tinha sido criado pelos anjos uma porção da substância eterna, e mais tarde enviou Cristo para dar-nos os meios para sermos libertos da escravidão da matéria. O mais importante destes meios parece ter sido a abstenção sexual e observâncias dietéticas especiais. A seita dos Carpocratianos parece ter sido nascida em Alexandria, onde é dito que seu mestre Carpocrates viveu por volta do ano 130 A.D.356 A escola filosófica que dominou o pensamento alexandrino nos primeiros séculos da era cristã foi o Neoplatonismo, e já vimos como o Judaísmo e o Cristianismo alexandrino receberam uma forte influência desta escola filosófica. O mesmo é verdade sobre os Carpocratianos, que incluíram em seu sincretismo gnóstico, não apenas certos elementos cristãos, mas outros que eram Neoplatônicos em sua origem. De acordo com eles, o mundo foi criado por espíritos que eram inferiores ao Pai. As almas humanas existiam antes de seu nascimento, e a salvação é obtida por recordar esta preexistência. Aqueles que não conseguem tal recordação são condenados a uma série de reencarnações. Jesus era um homem, o Filho de José e Maria, mas um homem perfeito, que relembrou sua existência prévia com total clareza e proclamou as realidades eternas que tinham sido perdidas. Alexandria também foi o lugar de atividade de Basílides, 357 que prosperou entre os anos 120 e 140 A.D., e reivindicava ter sido um discípulo do apóstolo Matias. De acordo com ele, a origem de todas as realidades celestiais é o Pai, de quem diversas ordens de seres emanam até o número de 365 céus. Os anjos que criaram este mundo, um dos quais é o Deus do Velho Testamento, habitam no último destes céus. O Deus do Velho Testamento escolheu um povo e tentou estabelecer seu governo sobre o mundo todo; mas os outros anjos o

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Ver Eduard Schwartz, “Johannes und Kerinthos”, em seu livro Gesammelte Schriften, 5 (Berlim: W. de Gryter und Co., 1963), 170-182. 354 Ver 1 João 2:22; 4:1-3; 5:1, 5, 20. 355 Justino, Dial. 35; Irineu, Adv. haer. 1. 24.1-2; Hipólito, Philos. 7.16. 356 As estórias referentes a Carpocrates e seu filho Epifânio são tão lendárias que se está inclinado a duvidar da própria existência destes dois homens. Além disso, Origenes (Contra Cel. 5.62) menciona uma seita de “Harpocratianos”. Isto tem levado os eruditos a sugerir que o nome dos Carpocratianos não é derivado de seu fundador, mas do Deus egípcio Horus-Carpocrates, adorado sob o nome de Harpocrates. Ver H. Leisegang, La Gnose (Paris: Payot, 1951), pp. 176-184. As principais fontes são: Irienu, Adv, haer. 1.25; Clemente de Alexandria, Strom. 3.2-18; Tertuliano, De anima 35; Hipólito, Philos. 7.20; Eusébio, HE 4.7.


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impediram de fazer isso. Como todos os anjos eram ignorantes quanto a natureza do Pai, de quem eles estavam separados por 364 céus, sua criação foi extremamente imperfeita. Mas mesmo na imperfeição desta criação ainda existe uma porção do espírito divino, aprisionado em corpos humanos. A fim de libertar este elemento divino o Pai enviou seu Filho Unigênito. Este Filho não se tornou homem, mas antes parecia ser homem. Sua missão era despertar nos espíritos que tinham caído no sono a recordação das realidades celestiais. Para fazer isto, não era necessário sofrer. Portanto, Jesus não foi crucificado, ao contrário Simão de Cirene é quem sofreu a paixão e morreu. Finalmente, devemos dedicar uns poucos parágrafos a Valentim, que também viveu parte de sua vida em Alexandria. Não se sabe onde ou como ele desenvolveu suas posições teológicas, pois tudo que se sabe dele é que ele foi para Roma perto da metade do segundo século e que foi expulso da igreja naquela cidade por volta do ano 155 A.D. Valentim é importante para a história do pensamento cristão, não somente por suas doutrinas, mas também porque em seu caso é possível comparar o testemunho dos heresiologistas cristãos ortodoxos com os escritos do próprio herege – ou pelo menos de sua escola. Também, nele a expansão do Gnosticismo da Síria e do Oriente alcançou Roma, e foi depois deste tempo que a ala ocidental da igreja cristã começou a demonstrar uma consciência mais profunda da ameaça proposta pelo ensino gnóstico. A partir das obras dos heresiologistas,358 o seguinte esboço da doutrina de Valentim pode ser traçado: O princípio eterno de todos os seres é o Abismo (Bythos). Este é incompreensível e insondável, e nele é encontrado o Silêncio (Sigê). No Silêncio, o Abismo gerou dois outros seres: Mente (Nous) e Verdade (Alêtheia). Assim, a primeira “tétrade” foi completada: Abismo, Silêncio, Mente e Verdade. Mas Mente (masculino), unindo-se a Verdade (feminino), deu origem a Palavra (Logos) e a Vida (Zoê). Destes, por sua vez, Humano (Anthrôpos) e Igreja (Ekklêsia) são gerados, e o “ogdoad” é assim completado. Contudo, isto ainda não é o fim das emanações divinas, pois cada um dos últimos dois casais ou eões desejavam honrar o Abismo multiplicando-se, e com isso mais vinte e dois seres foram originados, dez da Palavra e Vida e doze do Humano e Igreja. Assim o Pleroma ou Plenitude foi concluído, sendo formado por trinta eões arranjados em quinze casais. O último destes eões é Sabedoria (Sophia),359 e é a partir dela que o mundo material tem sua origem. 357

Frag. Murat.; Irineu, Adv. haer. 1.24; 2.35; Clemente de Alexandria, Strom. 2.8; 3.1; 4.12, 24, 26; 5.1; Pseudo Tertuliano, Adv. omn. haer. 1; Hipólito, Philos. 7.1-15; 10.10; Eusébio, HE. 4.7. Ver Werner Foerster, “Das System des Basilides”, NTS, 9 (1962-1963), 233-255. 358 Irineu, Adv. haer. 1.1-93; 11; 2.14; Clemente de Alexandria, Strom. 2.8; 4.13; 5.1; Tertuliano, Adv. Valent. pass.; Adv. Prax. 8; Hipólito, Philos. 6.12, 24-32; 10.9; Eusébio, HE 4.11. 359 O mito de Sophia tem uma longa e complicada história. Ver G. C. Stead, “The Valentinian Myth of Sophia”, JTS, 20 (1969), 75-104; G. W. McRae, “The Jewish Background of the Gnostic Sophia Myth”, NT, 12 (1970), 86-101.


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Isto ocorreu quando Sabedoria foi além dos limites de suas possibilidades ao tentar conhecer Abismo – do que somente Mente é capaz. Isto levou Sabedoria a uma paixão tão violenta que ela produziu um novo ser, embora sem a participação de seu companheiro. Devido a sua origem, este novo ser é um “aborto”, e por isso cria uma desordem dentro do Pleroma. Finalmente, Abismo decide dar origens a dois novos eões. Cristo e o Espírito Santo, a fim de restabelecer a ordem dentro do Pleroma. Isto é realizado, mas sempre há o produto da paixão de Sabedoria, o qual é chamado de Achamoth. Achamoth é expulso do Pleroma e mantido fora pela Cruz ou limite. Os eões, desejando ajudar este aborto da Sabedoria, dão origem a um novo eão, Jesus, em quem sua plenitude é encontrada. Jesus liberta Achamoth de suas paixões, que tornam-se matéria; então ele a leva ao arrependimento, e deste arrependimento origina-se a alma; finalmente, ele concede a Achamoth a gnosis do alto, e esta iluminação é a origem do espírito. Estes três elementos – matéria, alma e espírito – ainda são encontrados neste mundo, embora seu criador não saiba da existência do terceiro. O criador deste mundo é um Demiurgo formado pela Sabedoria a fim de dar forma à matéria e a alma. Então a própria Sabedoria colocou dentro do povo que tinha sido criado pelo Demiurgo as sementes do espírito. Estas sementes desenvolveram-se até que, uma vez prontas, Cristo veio para resgatálas apresentando-se a si mesmo no homem Jesus – que não deve ser confundido com o eão do mesmo nome. Cristo desceu sobre Jesus em seu batismo, e então o abandonou antes de sua paixão. A missão de Cristo era trazer gnosis, de modo que através dela nossos espíritos, que verdadeiramente pertencem ao Pleroma, possam retornar para lá. O exposto acima é um sumário do que os heresiologistas nos relatam com relação ao sistema de Valentim.360 Mas os ensinos deste gnóstico, - ou pelo menos de seus discípulos – também são encontrados em um documento recentemente descoberto que é conhecido como o Evangelho da Verdade.361 Segundo Irineu, a seita Valentiniana tinha um Evangelho da Verdade, 362 e parece seguro assumir que o documento recentemente descoberto é o evangelho ao qual o antigo escritor se referiu.363 Contudo, existem diversos pontos de contraste entre este Evangelho da Verdade e o que aprendemos do próprio Irineu bem como de outros heresiologistas com relação a teologia de Valentim. Dado este contraste, três teorias básicas tem se desenvolvido a fim de explicá-las: primeira, que os heresiologistas não devem ser 360

Deveria salientar-se, contudo, que os heresiologistas não concordam em vários detalhes. O exposto acima segue a reconstrução de Jonas, Gnostic Religion, pp. 174-197. 361 Editado por Michel Malinine, Henri-Charles Puech e Gilles Quispel, Evangelium Veritatis (Zurique: Rascher, 1956). Uma tentativa de reconstruir o texto grego: Jacques E. Ménard, L’Evangile de Vérité (Paris: Letouzey et Ané, 1962). Tradução para o inglês por K. Grobel citado acima, n. 25. 362 Adv. haer. 3.11.9. 363 Hans Jonas, “Evangelium Veritatis and the Valentinian Speculation”, SP, 6 (1962), 96-111, defende esta identificação, bem como o conceito de que tanto o Evangelho da Verdade quanto os heresiologistas são dignos de confiança como testemunhas da doutrina plenamente desenvolvida de Valentim.


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confiáveis; segunda, que o Evangelho da Verdade foi escrito por Valentim antes de seu rompimento definitivo com a igreja, e portanto antes que seu sistema tivesse alcançado sua plena maturidade; terceiro – e mais provável – que tanto o Evangelho da Verdade quanto o testemunho dos heresiologistas são basicamente dignos de confiança,364 e que suas divergências podem ser explicadas por seus diferentes propósitos. Segundo esta teoria, os heresiologistas tentavam salientar os aspectos menos plausíveis das especulações gnósticas, precisamente a fim de miná-los, enquanto que o Evangelho da Verdade está muito mais interessado na questão da salvação, que era o principal interesse do Gnosticismo e a razão para seu apelo. Além disso, existem no Evangelho da Verdade algumas alusões cosmogônicas que não seriam compreensíveis a parte do testemunho dos heresiologistas. Isto parece confirmar o que foi dito anteriormente: a grande atração do Gnosticismo durante os primeiros séculos da era cristã não pode ser entendida com base em suas especulações cosmogônicas, mas pelo contrário, com base em sua doutrina e promessa de salvação. Portanto os heresiologistas, embora servido a igreja ortodoxa mostrando os aspectos menos favoráveis do Gnosticismo, agiram em detrimento da exatidão histórica obscurecendo a grande atração espiritual do Gnosticismo como uma religião de salvação. Por outro lado, o Gnosticismo estava admiravelmente bem ajustado ao espírito sincretista de seu tempo. Cada mestre tirava dos outros qualquer coisa que parecia conveniente, e as seitas e escolas estavam tão misturadas que os historiadores modernos simplesmente devem confessar que são incapazes de estabelecer distinções precisas entre as várias tendências gnósticas. Assim o Gnosticismo, que propõe um problema acadêmico para o historiador, propôs um problema urgente para os cristãos no segundo e terceiro séculos, que viam sua fé ameaçada não somente por violentos ataques externos, mas também e até mesmo mais pelas doutrinas que tentavam considerar o que eles compreendiam ser os aspectos mais valiosos do Cristianismo e apresentá-los mais facilmente aceitáveis a seus contemporâneos. Marcião Entre as mais variadas interpretações de sua mensagem, que a igreja cristã primitiva teve de enfrentar, nenhuma foi mais perigosa do que a proposta por Marcião, um natural de Sinope, no Ponto, onde seu pai era bispo.365 Depois de deixar a cidade, ele viajou para Ásia

364

Com a devida concessão para os detalhes em que os heresiologistas discordam entre si. A principal fonte é Tertuliano, Adv. Marc. pass. Também: Justino, I Apol. 58; Irineu, Adv. haer. 1.27; Clemente de Alexandria, Strom. 3.3; Origenes, Contra Cel. 5.54; 6.53, 74; Comm. im Job. 5.4; 10.4. Hipólito, Philos. 7.17-19; 10.15; Eusébio, HE, 4.9; 5.13; O estudo clássico é o de Adolph von Harnack, Marcion: Das Evangelium von fremden Gott, reedição (Darmstadt: Wissenchaftliche Buchgesellschaft, 1960). Ver também R. J. Hoffmann, Marcion and the Restitution of Christianity: An Essay on the Development of Radical Paulinist Theology in the Second Century (Chicago, Califórnia: Scholars Press, 1984). 365


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Menor e depois para Roma, onde ele foi expulso da igreja, provavelmente em 144 A.D.366 Então ele fundou uma igreja marcionita, e foi este passo que fez dele um dos mais perigosos rivais do Cristianismo ortodoxo. Os vários mestres gnósticos eram apenas isto: mestres que nunca fundaram mais do que escolas. Marcião fundou uma igreja para rivalizar aquela que já existia, e esta igreja logo teve tantos membros que por algumas vezes o resultado final do conflito esteve seriamente em dúvida. Embora após o terceiro século o Marcionismo tenha começado seu declínio e logo desapareceu da parte ocidental do Império, antes deste tempo ele representou um desafio muito real. Tradicionalmente Marcião tem sido contado entre os gnósticos. Harnack, o grande historiador das doutrinas, protestou contra isto, pois ele via em Marcião um pensador original que, em alguns pontos, tinha uma compreensão mais clara dos ensinos essenciais do Cristianismo do que os gnósticos. A decisão final sobre esta questão depende grandemente do que se entende por “gnóstico”, pois não há dúvida de que existem alguns elementos na teologia de Marcião que o levam para muito perto do Gnosticismo, enquanto que outros levaria o historiador a discuti-lo separadamente, como eu decidi fazer aqui. A teologia de Marcião é dualista no mesmo sentido derivado em que o Gnosticismo é dualista.367 Neste mundo material, reinam a lei e a justiça. Em oposição a este, a graça é o centro do evangelho cristão, o evangelho do Deus que ama perdoar até mesmo o pior dos pecadores. Portanto, o evangelho é a palavra de um deus que melhor pode ser descrito como o “outro”, ou o “deus estranho”, e que é radicalmente diferente do deus que governa este mundo. O deus que governa este mundo é o mesmo que os judeus adoraram. É este deus que fez todas as coisas “e viu que eram boas”; que requer sacrifícios com sangue; que conduz seu povo na batalha; que ordena que populações inteiras para serem massacradas; que é melhor descrito como “um deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração” (Ex 20:5). Muito acima deste deus vingativo, há um outro, o “deus desconhecido” que é amor. Este deus não está relacionado com este mundo, mas antes é “o deus estranho”. Enquanto o Criador é justo, violento e belicoso, este deus supremo é amoroso, pacífico e infinitamente bom.368 É provável que Marcião tenha começado afirmando que o Criador era um deus mau, e que foi mais tarde – talvez através da influência do gnóstico Cerdon – que ele veio a descrever 366

Sobre esta data, ver Edwin Cyril Blackman, Marcion and His Influence (Londres: S. P. C. K., 1948), pp. 20-

21. 367

Não há, contudo, nenhum texto que esclareça o relacionamento entre o Criador e o Deus Supremo, de modo que a declaração de que o dualismo de Marcião não é inicial, mas derivado, somente pode estar baseado em inferências que podem estar erradas. Ver Orbe, Hacia la primera teologia, pp. 259-265. 368 Tertuliano, Adv. Marc. 1.6.


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o Criador como um deus justo.369 Assim, o contraste torna-se não tanto aquele que existe entre o bem e o mal, mas entre o amor e a justiça. O dualismo de Marcião o leva para muito perto do Gnosticismo. O problema do mal parece ter sido uma preocupação primária para Marcião, tanto quanto para os principais mestres gnósticos. Como muitos deles, Marcião tinha um conceito negativo sobre a matéria, e portanto sobre o corpo, e especialmente do sexo. Como muitos deles, ele estava disposto a conferir alguma verdade ao Velho Testamento, mas somente como a revelação de um deus ou princípio inferior. Além disso, o conceito de um “deus desconhecido” que está acima do criador não é original de Marcião, mas parece ter sido extraído da doutrina de Cerdon, Cerinto e Basílides. A conseqüência destes pontos de contato com o Gnosticismo, é que a teologia de Marcião também exclui este mundo da esfera na qual o Deus Supremo governa. Esta é a razão porque Tertuliano, com sua perspicácia característica para descobrir os pontos fracos da doutrina de um oponente, fez o Deus Supremo de Marcião objeto de zombaria, que tinha demorado muito tempo para ser revelado370 e que, enquanto isso, não foi capaz de produzir nem mesmo uma pequena planta inferior.371 Mas também existem outros aspectos da teologia de Marcião que são diferentes do Gnosticismo. Em primeiro lugar, Marcião não reivindica ter um conhecimento secreto através do qual a salvação possa ser alcançada. De acordo com ele, sua doutrina resulta de um estudo cuidadoso da mensagem cristã como foi pregada por Paulo. Esta mensagem é encontrada nas Epístolas de Paulo e no Evangelho de Lucas, embora seja necessário revisar aqueles escritos, a fim de eliminar as muitas interpolações judaizantes que foram introduzidas neles. Paulo era o arauto de uma mensagem radicalmente nova, da mensagem de revelação de um deus até então desconhecido. O Velho Testamento não pode ser tomado como a palavra do deus que é revelado em Jesus Cristo. Consequentemente, as referências ao Velho Testamento encontradas nas Epístolas Paulinas são adições posteriores. E o mesmo pode ser dito com relação ao Evangelho de Lucas, companheiro de Paulo. Assim, Marcião formulou o primeiro cânon do Novo Testamento.372 Sua doutrina é então baseada sobre o estudo destas Escrituras, pois ele não reivindica ser um profeta ou ter qualquer fonte secreta de conhecimento, mas apenas ser um verdadeiro expoente das Escrituras cristãs. 369

Como é sustentado por Blackman, Marcion, pp. 66-71. Adv. Marc. 1.15. 371 Ibid. 1.11. 372 A importância de Marcião para a história do cânon do Novo Testamento é grande, mas não deve ser exagerada. O conceito de um cânon bíblico era comum entre os cristãos, que continuamente faziam uso do Velho Testamento. Nem era nova a noção de que alguns escritos apostólicos eram divinamente inspirados. A contribuição de Marcião foi unir ambos os conceitos – o que ele foi compelido a fazer uma vez que rejeitava o Velho Testamento sem reivindicar uma revelação ou tradição particular para tomar seu lugar. 370


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Em segundo lugar, Marcião não apresenta o interesse especulativo que é característico dos sistemas gnósticos. A numerologia e a astrologia não têm nenhuma importância em seu pensamento. Seu entendimento da condição humana não o leva a construir a série interminável de eões que eram tão importantes no Gnosticismo. Finalmente, Marcião foi além do pensamento gnóstico mediante seu interesse na organização. Os mestres gnósticos fundaram escolas. Marcião fundou uma igreja. Isto provavelmente resultou de sua convicção de que sua doutrina não era uma revelação individual que ele recebera, mas a correta interpretação da mensagem que a igreja tinha adulterado completamente. Com base nesta convicção, era necessário fundar uma nova igreja que restauraria a proclamação da mensagem original. Ao fundar esta igreja, Marcião propôs um grande desafio à igreja em geral. Porém o que tornou os ensinos de Marcião absolutamente inaceitáveis a maioria dos lideres cristãos, foi a mesma coisa que tornou o Gnosticismo inaceitável: o Docetismo. Como os gnósticos, Marcião negava que Cristo era verdadeiramente humano. O grande obstáculo que ele encontrou na história comum da vida de Cristo foi seu nascimento. Se o Salvador nasceu como uma criança, ele teria sido colocado sob o governo do Criador, o que por sua vez negaria a novidade radical do evangelho.373 Esta é a razão porque Marcião afirma que Cristo parecia como um homem plenamente crescido no décimo quinto ano do reinado de Tibério. Contudo, os dados que sobreviveram não são suficientes para determinar se Marcião pensava que o corpo de Cristo era uma mera aparência, ou antes que era feito de uma substância etérea. Em resumo, pode-se dizer que a doutrina de Marcião é um Paulinismo exagerado. Ele mesmo, ao compor o cânon do Novo Testamento somente com as epístolas Paulinas e com o evangelho escrito pelo companheiro de Paulo, mostrou crer que o Cristianismo deve ser entendido somente à luz da mensagem do Apóstolo dos Gentios. O contraste entre a lei e o evangelho, a doutrina da graça divina e seu cristocentrísmo radical, mostrou que em alguns aspectos Marcião tinha um entendimento mais claro da mensagem de Paulo do que muitos de seus contemporâneos. Como foi dito antes, já no tempo dos Pais Apostólicos havia uma tendência de transformar o Cristianismo em uma nova doutrina moral e, assim, esquecer a ênfase Paulina sobre o livre dom de Deus. Uma palavra de admoestação era necessária, e Marcião tentou dá-la. Mas em sua ênfase extrema sobre o contraste entre a mensagem de Paulo e a proclamação da igreja, ele foi levado a algumas posições que eram claramente opostas à mensagem Paulina, tais como sua teoria de dois deuses, seu conceito negativo sobre o Velho Testamento e seu Docetismo. Sua chamada por uma nova descoberta da graça 373

Blachman, Marcion, p. 100.


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imerecida de Deus era necessária e relevante em meio ao legalismo que ameaçava varrer a igreja. Mas sua negação da ação de Deus na história de Israel, e sua interpretação dualista da história da salvação, fez a igreja atacá-lo com tal vigor que os valores positivos de sua doutrina não receberam a atenção que mereciam. Montanismo Montano foi em sacerdote pagão que converteu-se ao Cristianismo e foi batizado por volta de 155 A.D.374 Algum tempo depois de seu batismo, ele declarou-se possuído pelo Espírito Santo, e começou a profetizar com base nesta possessão.375 Logo uniram-se a ele duas mulheres, Priscila e Maximila, que também profetizavam. Isto não era exclusivo, pois o costume de permitir, àqueles que eram inspirados, profetizar ainda continuava em muitas regiões. O que era novo era o conteúdo das profecias de Montano e suas companheiras, que reivindicavam que uma nova dispensação tinha começado com a nova revelação dada pelo Espírito a eles. Esta nova revelação não contradizia o que tinha sido dado no Novo Testamento, mas o ultrapassa no rigor de sua ética e em alguns detalhes escatológicos. O código de ética montanista era muito rigoroso, e era de fato um protesto contra a facilidade com que o resto da igreja perdoava os pecadores, bem como contra a adaptação progressiva da igreja aos requerimentos da sociedade secular. Com relação ao martírio, ele se opunham ao conceito tradicional de que ele não devia ser procurado, pelo contrário evitado se fosse possível fazê-lo sem negar a fé. O casamento não era totalmente mau, mas não era visto como um grande bem, e não era permitido às viúvas e aos viúvos casarem-se novamente.376 Este código era baseado em uma iminente expectação escatológica. De acordo com Montano e suas profetisas, o período de revelação tinha chegado ao fim com eles, e imediatamente depois disso viria o fim do mundo. A Nova Jerusalém seria estabelecida na cidade de Pepuza na Frígia – e muitos montanistas reuniram-se ali a fim de testemunhar os grande eventos dos dias finais. Montano e seus seguidores eram organizadores sérios que não viam contradição entre a nova revelação do Espírito e a boa organização eclesiástica. Por isso, logo eles adotaram uma estrutura hierárquica, e a igreja que foi assim fundada rapidamente se espalhou por toda a 374

As principais fontes para o Montanismo são os escritos Montanistas de Tertuliano. Também Epifânio, Pan. 48-49 e Eusébio, HE 5.14-19. 375 Suas palavras, nas quais ele parecia reivindicar que era o Parácleto, não devem ser tomadas literalmente, mas ao contrário como oráculos dados no nome de Deus. De qualquer modo, mais tarde os montanistas identificaram Montano com o Espírito Santo. Ver Jaroslav Pelikan, “Montanism and Its Trinitarian Significance”, CH, 25 (1956), 100-104. A tese geral de todo o artigo (pp. 99-109), de que o Montanismo foi de menos importância no desenvolvimento da doutrina trinitariana do que é geralmente suposto, está correta. A contribuição do Montanismo foi principalmente em chamar atenção para o Espírito Santo. 376 Hans Lietzmann, The Foundings of the Church Universal (Nova Iorque: Scribner’s, 1950), pp. 260-261, reivindica que o Montanismo primitivo rejeitava o casamento. Se este é o caso, a oposição de Tertuliano ao novo casamento deve refletir um estágio posterior no desenvolvimento do Montanismo.


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Ásia Menor, e mais tarde para Roma e Norte da África, onde ela foi capaz de conseguir a adesão de Tertuliano que, sem dúvida alguma, era o mais notável teólogo latino cristão de seu tempo. Portanto, não se deveria interpretar o Montanismo como um protesto contra a excessiva organização da igreja, e a favor de uma estrutura puramente carismática. Além disso, em sua origem o Montanismo não parece ter advogado um retorno à prática de profecias, mas antes reivindicava que Montano e suas duas profetisas tinham recebido uma revelação especial e final, de modo que não se deveria esperar que o espírito profético fosse estendido ao restante dos cristãos. Foi apenas em um período posterior que os montanistas em geral, tentando imitar seus fundadores, reivindicavam o dom de profecia. As razões porque outros cristãos se opuseram ao Montanismo foram duas: praticamente, o Montanismo enfraquecia a estrutura emergente da igreja, a qual parecia para muitos necessária para opor-se as várias heresias; teologicamente, a reivindicação montanista de ter recebido uma nova revelação, colocava em perigo a finalidade daquela dada em Cristo. Monarquianismo Enquanto muitos se voltando para o Gnosticismo, a fim de encontrar o que eles pensavam ser um entendimento mais claro do Cristianismo, outros tentavam esclarecer as relações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. As menções mais antigas sobre os assim chamados monarquianos, mostram que originalmente este termo era usado em defesa da “monarquia” ou unidade de Deus, em oposição a multiplicidade de eões proposta pelos gnósticos e a dualidade de deuses de Marcião. Alguns dos mais antigos monarquianos – que eram chamados “alogoi” em virtude de sua oposição a doutrina do logos – rejeitavam o Quarto Evangelho, o qual eles declaravam ter sido escrito por Cerinto, e cuja doutrina do logos parecia servir como base para as várias especulações gnósticas referentes a multiplicidade dentro da divindade. De acordo com a alogoi, a divindade de Cristo não pode ser de modo algum distinguida da do Pai, pois tal distinção destruiria a monarquia divina. 377 Depois da primeira e mais obscura alogoi, desenvolveram-se duas doutrinas sem conexão que tentavam salvaguardar a unidade de Deus. Estas doutrinas são geralmente chamadas de Monarquianismo Dinâmico e Monarquianismo Modalista. Apesar de sua impropriedade, o termo “Monarquianismo Dinâmico” é tradicionalmente usado para referir-se à tentativa de preservar a unidade divina, reivindicando que a divindade que estava em Cristo era um poder impessoal procedente de Deus, mas não era o próprio Deus. Ele é chamado de “dinâmico” por causa do termo grego dynamis, que significa “poder” ou “força”, e que era empregado para referir-se ao poder impessoal que habitava em Cristo. A pessoa mais antiga conhecida por ter sustentado esta doutrina foi 377

Irineu, Adv. haer. 3.11; Epifânio, Pan. 51.


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Teódoto, que se recusava a dar a Jesus o título de Deus, e por causa de quem os monarquianos dinâmicos são freqüentemente chamados de “teodocianos”.378 Esta seita ou escola – condenada pela igreja em Roma desde 195 A.D. – foi continuada por Artemon, que tentou sustentá-la com base nas Escrituras e numa tradição muito antiga que ele dizia ter sido abandonada por seus contemporâneos.379 Mas seu maior expoente foi Paulo de Samósata, cujas doutrinas serão estudadas mais adiante.380 Embora o Monarquianismo Dinâmico tivesse alguns seguidores durante o terceiro e quarto séculos, ele não foi difundido o suficiente para representar uma ameaça real para a igreja. Sua cristologia estava muito próxima da dos ebionitas, transformando Cristo em pouco mais do que um simples homem, e isto diminuía seu encanto entre os cristãos. Havia, contudo uma outra doutrina que também enfatizava a unidade de Deus e que, ao mesmo tempo, não limitava de modo algum a divindade de Jesus Cristo. Esta doutrina é geralmente chamada de “Monarquianismo Modalista” – embora deve-se tornar claro que o nome comum de Monarquianismo não significa que havia qualquer relacionamento direto entre esta doutrina e a do “Monarquianismo Dinâmico”, à qual, de fato, ela era radicalmente oposta. O Monarquianismo Modalista não negava a plena divindade de Cristo, mas simplesmente a identificava com o Pai. Por causa desta identificação, que implicava que o Pai tinha sofrido em Cristo, esta doutrina é algumas vezes chamada de “Patripassianismo”. Seus mais antigos mestres parecem ter sido Noeto de Esmirna381 e Praxeas, 382 uma pessoa obscura a quem alguns identificaram com o Papa Calisto. Embora os escritores cristãos tentassem refutar o Modalismo desde uma data muito antiga, eles não foram capazes de destruí-lo. No início do terceiro século ele encontrou seu grande mestre em Sabélio, por causa de quem também recebeu o nome de Sabelianismo. É impossível saber precisamente o que o próprio Sabélio ensinava;383 mas provavelmente ele negava toda distinção dentro da Divindade, a qual ele chamava de “Filho-Pai” (hyiopatôr), e afirmava que o Filho e o Espírito eram 378

Parece ter havido dois homens com o mesmo nome que sustentaram esta doutrina. O primeiro parece ter vindo de Bizâncio para Roma no fim do segundo século. O outro era um romano, e provavelmente um seguidor do primeiro Teódoto. 379 Eusébio, HE 5.28; Agostinho, Conf. 7.19. Ver James Franklin Bethune-Baker, An Introduction to the Early History of Christian Doctrine to the Time of the Council of Chalcedon (Londres: Methuen & Co., 1903), pp. 99100. 380 Capítulo X. 381 Hipólito, Contra Noetum, passim. 382 Tertuliano, Adversus Praxeam, passim. Ver Raniero Cantalamessa, “Prassea e l’eresia monarchiana”, SCatt, 90 (1962), 28-50. 383 “Infelizmente, estamos pessimamente informados sobre sua autêntica doutrina: sabemos suficientemente bem o que seus discípulos disseram, e as autoridades do quarto século apresentam sob o nome de Sabelianismo uma doutrina muito complexa, que em diversos pontos aproxima-se de Marcelo de Ancyra.” E. Amann, “Monarchianisme”, DTC, 10:2201-2202. As principais fontes são Hipólito, Philos. 9.11-12; Epifânio, Pan. 62, 69.7; (onde Ario é citado sobre o assunto); Atanásio, Orat. contra Ar. 3. 4. 36; Pseudo-Atanásio, Orat. contra Ar. 4, em várias referências espalhadas.


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simplesmente modos pelos quais Deus aparecia – tanto quanto o sol aparece em seus raios – com os propósitos de redenção e inspiração.384 Como era de se esperar, estas diversas doutrinas e tentativas de entender a fé cristã serviu de vários modos como um desafio e um ponto de partida para o desenvolvimento teológico do segundo e terceiro séculos, e estavam entre os principais fatores que deram impulso aos teólogos que floresceram naquele tempo. Mas antes de voltarmos a estes teólogos, devemos tentar esboçar alguns dos meios pelos quais a igreja em geral tentou refutar e neutralizar os vários sistemas que ela via como uma ameaça a sua fé. A Resposta Embora a organização da igreja durante o segundo século não fosse tal que a permitisse tomar decisões rápidas e finais, a igreja em geral reagiu às heresias de um modo surpreendentemente uniforme. Realmente haviam diferenças de escolas – e nos próximos três capítulos estudaremos representantes de três diferentes tendências teológicas – mas, apesar destas diferenças, os cristãos ortodoxos por todo o mundo Mediterrâneo apelaram para instrumentos similares a fim de combater a heresia. Na verdade, estes vários instrumentos eram simplesmente variações práticas e particulares do argumento fundamental que poderia ser apresentado contra as várias heresias: a autoridade apostólica. Esta autoridade é o argumento final que jaz por trás dos instrumentos anti-heréticos, tais como o cânon do Novo Testamento, a regra de fé, os credos, e a ênfase sobre a sucessão apostólica. O cânon do Novo Testamento era considerado ser não mais do que a coleção de livros apostólicos, ou pelo menos daqueles cuja doutrina podia reivindicar ser apostólica, porque foram escritos pelos companheiros ou discípulos dos apóstolos. A regra de fé é uma tentativa de esboçar e resumir a fé dos apóstolos. Os credos são a expressão daquela fé que o crente aceita no batismo – e é importante notar aquela lenda eventualmente desenvolvida segundo a qual um dos credos mais comuns tinha sido composto pelos apóstolos. A importância da sucessão apostólica está precisamente na reivindicação de que as igrejas que possuem tal sucessão podem julgar o que é e o que não é doutrina apostólica. Finalmente, aqueles teólogos que estudaremos nos próximos três capítulos, de quem grande parte de sua obra foi dedicada à refutação da heresia, criam que sua tarefa consistia em esclarecer e confirmar a fé dos apóstolos, e que seus vários argumentos e métodos eram subsídios para esta tarefa. Por causa do desafio das heresias, bem como do desenvolvimento normal dos movimentos humanos, a igreja durante o segundo século progrediu para uma organização 384

Provavelmente Sabélio não usava o termo prosôpon no sentido de “mascara, disfarce” para referir-se ao Pai, o Filho e o Espírito Santo, ao contrário falava de todos os três como uma prosôpon. Foi mais tarde, quando tornouse claro que o prosôpon poderia ser entendido como aparência externa, que os teólogos ortodoxos acusavam de Sabelianismo aqueles que falavam de três prosopas.


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estável e muito uniforme, e isto deu origem ao que é normalmente chamado de “Velha Igreja Católica”. O que marca o começo desta Velha Igreja Católica – cuja diferença da igreja apostólica e sub-apostólica não deve ser exagerada – é precisamente o surgimento dos vários instrumentos anti-heréticos que já temos mencionado, e cuja conseqüência direta é uma tendência geral para a uniformidade. Portanto, devemos parar para considerar pelo menos os primeiros estágios no desenvolvimento destes instrumentos, e seu relacionamento com a luta para preservar a pureza da fé. O primeiro destes instrumentos anti-heréticos que devemos discutir aqui é a ênfase na sucessão apostólica. Como era de se esperar, os apóstolos, e mais tarde seus discípulos, tiveram grande autoridade sobre as primeiras gerações de cristãos. Já no fim do primeiro século, Clemente de Roma apelava para a sucessão apostólica, embora não contra as heresias mas contra os cismáticos.385 Alguns anos mais tarde, Inácio de Antioquia, agora contra os heréticos, enfatizou a autoridade dos bispos e dos anciãos como representantes de Cristo e dos apóstolos. Deste modo, Clemente apelava para a sucessão mesmo sem mencionar o episcopado monárquico, enquanto que Inácio apelava para a autoridade dos bispos sem mencionar a questão da sucessão. Logo o impacto das heresias levou os cristãos a unir os conceitos da sucessão apostólica e do episcopado monárquico, e assim originou-se a ênfase na cadeia ininterrupta de bispos que unia a igreja presente com a dos tempos apostólicos. Segundo este argumento – que logo tornou-se uma doutrina geralmente aceita – os apóstolos eram os depositários da verdadeira fé, a qual eles comunicaram a seus melhores discípulos, que também fizeram seus sucessores no episcopado das igrejas que eles fundaram. Estes discípulos dos apóstolos fizeram o mesmo com seus próprios discípulos, e assim sucessivamente, de modo que, mesmo no segundo século, é possível apontar igrejas que podiam provar que seus bispos são sucessores diretos dos apóstolos. Embora estas igrejas sejam apenas umas poucas, pois os apóstolos não fundaram muitas igrejas, elas são as verdadeiras depositárias da fé. Porém as outras igrejas também são apostólicas, pois sua fé concorda com a daquelas fundadas pelos apóstolos. O que temos apenas sumariado é aquilo que pode ser encontrado nos escritores antiheréticos primitivos tais como Irineu e Tertuliano. Deve-se salientar que neste tempo o entendimento sobre a sucessão apostólica ainda não era igual aquela sucessão que é requerida para conferir validade ao ofício episcopal. Pelo contrário, alguns bispos tinham esta sucessão e outros não; mas todas as igrejas eram apostólicas porque sua fé concordava com a fé dos apóstolos como ela tinha sido preservada nas igrejas cujos bispos estavam em sua sucessão. 385

Outras indicações contemporâneas da crescente autoridade dos apóstolos podem ser encontradas no Novo Testamento: Ef 2:20; Ap 21:9-14. Ver G. Blum, Tradition und Sukzession: Studium zum Normbegriff des Apostolischen von Paulus bis Irenaeus (Berlim: Lutherisches Verlagshaus, 1963).


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Mais tarde, e através de um processo que levaria vários séculos, esta doutrina da sucessão apostólica seria desenvolvida a um ponto que nunca seria reconhecida por aqueles que primeiro a advogaram – requerendo que toda ordenação, para ser válida, deve ser capaz de reivindicar sucessão apostólica direta. O cânon do Novo Testamento foi um outro instrumento que a igreja usou em sua luta contra a heresia. Este instrumento tem a peculiaridade de ter sido tirado dos próprios heréticos, pois o primeiro cânon do Novo Testamento parece ter sido proposto por Marcião. Contudo, embora a igreja tenha tirado de Marcião o conceito de cânon ou de uma lista fixa de livros cristãos inspirados, ela não tirou dele a noção sobre a existência de tais livros. Pelo contrário, desde sua própria origem a igreja cristã adotou o Velho Testamento como sua Escritura, e numa data muito antiga haviam os escritos cristãos que eram usados como Escritura juntamente com o Velho Testamento. Como devia ser esperado, os Evangelhos, que continham as próprias palavras de Jesus, logo foram colocados lado a lado com o Velho Testamento. Justino, o Mártir, é uma testemunha disto quando ele diz que na adoração cristã eram lidas porções dos escritos dos profetas ou das “memórias dos apóstolos” – como ele chama os Evangelhos.386 Portanto, o que a igreja tomou de Marcião não foi o conceito de literatura canônica, mas antes o impulso que a levou a determinar quais dos muitos livros cristãos deveriam ser considerados como parte da Escritura. Além disso, até mesmo este processo não deve ser atribuído exclusivamente a Marcião, pois outros hereges, com sua constante produção de livros que reivindicavam ser inspirados, tornou necessário determinar quais livros deviam ser contados como Escritura e quais não deviam ser contados assim. Levou séculos para o cânon do Novo Testamento alcançar sua forma final; mas seu esboço básico foi fixado durante a segunda metade do segundo século. Depois deste tempo a estrutura geral do Novo Testamento foi aceita como composta dos “evangelhos” e dos “apóstolos”, talvez seguindo o exemplo colocado por Marcião. Embora após a metade do segundo século a inclusão do Quarto Evangelho no cânon ainda era discutida, como é demonstrado por sua apaixonada defesa por Irineu,387 depois deste tempo o quádruplo testemunho ao evangelho foi aceito.388 É completamente possível que os vários evangelhos foram incluídos a fim de mostrar que a fé da igreja não estava baseada sobre o testemunho de um único apóstolo, como era reivindicado por Marcião e por alguns gnósticos. Quanto aos “apóstolos”, o livro de Atos e as epístolas Paulinas gozavam de grande autoridade desde o tempo de sua publicação. O cânon de Marcião não incluía Atos; mas inclui 386

I Apol. 57.3. Adv. haer. 3. 11.8. 388 É digno de nota que a Diatessaron de Taciano, que tentou proporcionar um Evangelho unificado, usou quatro Evangelhos canônicos e nenhum outro. 387


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as epístolas Paulinas. Depois deste tempo, todas as listas de livros sagrados que sobreviveram incluem Atos bem como as epístolas Paulinas. As Epístolas Pastorais, provavelmente compostas no início do segundo século a fim de combater as heresias, logo foram adicionadas as genuínas epístolas de Paulo. Hebreus foi primeiramente incluída em Alexandria, onde sua doutrina e ponto de vista geral encontrava audiência mais simpática do que em outros círculos. Quanto as epístolas universais de Tiago, Pedro, João e Judas, sua aceitação não foi unânime nem uniforme. A primeira a ter sido universalmente aceita parece ter sido a Primeira Epístola de João. As outras aparecem em algumas listas mas estão ausentes em outras. O mesmo pode ser dito com relação a Apocalipse, que levou algum tempo para ser aceito universalmente por causa da suspeita com que alguns setores dentro da igreja consideravam o pensamento apocalíptico – e, depois que o Império tornou-se cristão, porque alguns sentiam que as palavras de Apocalipse sobre Roma eram muito ásperas. Haviam também outros escritos que, embora eventualmente excluídos do cânon do Novo testamento, foram considerados inspirados em algumas épocas e lugares. Estes são: Primeira Epístola aos Coríntios de Clemente, Segunda Clemente, a Epístola de Barnabé, a Didaque, o Pastor de Hermas, os Atos de Paulo, e outros escritos do mesmo período. De qualquer modo, o que nos interessa aqui não é a história do cânon em si, 389 mas como esta história reflete a resposta dos cristãos ao desafio da heresia. O cânon levou séculos para alcançar sua forma definitiva, e não há lista de livros escrita antes de 367 A.D. que concorde exatamente com o cânon atual. Mas o próprio conceito de um cânon aparece e é firmemente estabelecido no segundo século como uma resposta à necessidade de se encontrar normas para distinguir a “doutrina apostólica” das muitas heresias que reivindicavam ser fundadas sobre a autoridade de um apóstolo. Enquanto que para nós a sucessão apostólica e a fixação do cânon aparecem como atos de fechamento, de fato eles foram ao mesmo tempo atos para abrir a tradição. Enquanto que muitos dos hereges reivindicavam a autoridade de um apóstolo particular de quem eles diziam ter recebido uma tradição secreta, ou de um único evangelho que levava o nome de um dos apóstolos, a igreja em geral insistia na abertura da tradição de todos os apóstolos, conhecida a todos os seus sucessores e baseava-se numa variedade de testemunhas – os evangelhos – os quais, embora nem sempre em total concordância, concordavam sobre os temas básicos em jogo. Por outro lado, é verdade que o processo de definir autoridade também levou à crescente privação de alguns – em particular, das mulheres.390 389

Ver Frank W. Beare, “Canon of the NT”, IDB, 1:520-532; Edgar J. Goodspeed, “The Canon of the New Testament”, TIB, 1:63-71; L. Vischer, “Kanon: II, Kirchengeschichtlich”, RGG, 3:1119-1122. 390 Ver E. Pagels, “The Demiurge and His Archons: A Gnostic View of the Bishop and Presbyters?”, HTR, 69 (1976), 301-324; E. Pagels, The Gnostic Gospels, pp. 28-69.


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Contudo, a ênfase na sucessão apostólica e a formação do cânon do Novo Testamento não eram suficientes para determinar se uma doutrina era apostólica ou não. A sucessão apostólica poderia garantir uma certa medida de continuidade, e foi uma norma muito valiosa, mas ela não incluía uma exposição da doutrina correta. O Novo Testamento, por outro lado, expunha esta doutrina, mas o fazia de um modo tão amplo e não sistemático que por si mesmo era insuficiente para um rápido e definitivo reconhecimento da doutrina não ortodoxa. Portanto, era necessário desenvolver um resumo sistemático da fé da igreja – um sumário de uma natureza tal que poderia servir para distinguir claramente entre esta fé e as várias doutrinas que a modificavam ou substituíam. Foi esta necessidade que deu origem à idéia de uma regra de fé, e que ao mesmo tempo aumentou a importância dos credos como uma prova de ortodoxia. Enquanto o Novo Testamento estava sendo formado, a igreja Romana estava desenvolvendo uma fórmula que mais tarde se tornaria o núcleo de nosso Credo Apostólico atual, e que geralmente conhecido como o “Símbolo Romano Antigo” – abreviado por “R”. Parece que R apareceu primeiro, não como uma fórmula afirmativa, mas como uma série de questões que eram feitas ao catecúmeno no batismo.391 Estas questões eram três, seguindo a mais antiga fórmula tripartida do batismo, e inicialmente se limitavam a perguntar se o candidato ao batismo cria no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Logo a igreja Romana viu a crescente necessidade de usar estas questões como um modo de garantir a ortodoxia do recém batizado. Como o ponto em debate tinha a ver principalmente com a cristologia, diversas cláusulas foram adicionadas à segunda questão. Deste modo desenvolveu-se uma fórmula batismal que deve ter sido muito parecida àquela que é citada por Hipólito em sua Apostolic Tradition (no início do terceiro século): Você crê em Deus Pai todo-poderoso? Você crê em Cristo Jesus, o Filho de Deus, Que foi gerado pelo Espírito Santo da Virgem Maria, Que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, e morreu, e ressuscitou ao terceiro dia dos mortos, e subiu aos céus, e sentou-se à mão direita do Pai, e virá para julgar os vivos e os mortos? Você crê no Espírito Santo,

391

Aqui seguimos John Norman Davidson Kelly, Early Christian Creeds (Londres: Longmans, Green & Co., 1950), pp. 100-130, com relação a forma interrogativa original de R. Mas divergimos dele em seu esforço para negar a importância das preocupações anti-heréticas na formação de R.


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na santa igreja, e na ressurreição da carne?392 Esta fórmula batismal mais tarde foi adaptada a fim de servir como uma declaração de fé e como base e clímax do catecismo. Assim foi estabelecida a prática da traditio et redditio symboli, na qual o bispo ensinava o símbolo ou o credo ao catecúmeno, que então o repetia como uma declaração de fé.393 Embora já encontremos em Tertuliano um texto que parece refletir um certo conhecimento de uma fórmula semelhante àquela citada por Hipólito,394 é no quarto século, com Marcelo de Ancyra395 e Rufino de Aquiléia,396 que encontramos os primeiros usos de R como uma fórmula claramente afirmativa. Com base no testemunho de Marcelo e Rufino, foi reconstruído o seguinte texto de R como ele existiu no quarto século: Eu creio em Deus o Pai Todo-Poderoso (pantokratora); e em Cristo Jesus seu filho unigênito, nosso Senhor, que foi gerado do Espírito Santo e da virgem Maria, que sob Pôncio Pilatos foi crucificado e morreu, no terceiro dia ressuscitou dos mortos, subiu aos céus, e sentou-se à direita do Pai, de onde deverá vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo, na santa igreja, na remissão dos pecados e na ressurreição da carne.397 Facilmente será visto que a transformação de R, desde os tempos de Hipólito até os tempos de Rufino e Marcelo é praticamente zero no que diz respeito a seu conteúdo – sendo a principal adição, a cláusula que se refere ao perdão de pecados – enquanto que, em sua forma, a fórmula interrogatória tornou-se afirmativa. A ausência de grandes mudanças no conteúdo mostra que já no início do terceiro século o núcleo de R era tido como uma fórmula fixa. Além disso, dado ao caráter conservador de Hipólito, não é muita ousadia dizer que o texto que ele cita provavelmente é muito mais antigo, e que as características básicas de R foram fixadas perto de 170 ou 180 A.D. Quanto a sua estrutura, R simplesmente é um desenvolvimento da antiga série tripartida de questões batismais.398 Este desenvolvimento foi maior com referência à questão cristológica, pois o que estava em jogo na segundo século era, sobretudo, a cristologia da igreja. O propósito anti-herético – e especialmente anti-marcionita – de R é evidente a partir 392

393

Kelly, Creeds, p. 114.

Sobre a origem do termo “símbolo” como um nome para o credo, ver Kelly, Creeds, pp. 52-61. De virg. vel. I. Note, contudo, que neste texto a cláusula sobre o Espírito Santo está ausente. 395 Citado por Epifânio, Pan. 72.3. 396 Comm. in symbolum, passim. 397 Traduzido de textos gregos e latinos como reconstruído por Arthur Cushman McGiffert, The Apostles’ Creed: Its Origins, Its Purpose, and Its Historical Interpretation (Nova Iorque: Scribner’s, 1925), pp. 42-43. 398 Um desenvolvimento no qual é possível que uma fórmula cristológica independente foi previamente juntada à segunda cláusula da fórmula trinitariana. 394


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do modo pelo qual ele repetidamente nega conceitos gnósticos e marcionitas. O fato de que ele usa termos que são mais antigos do que as heresias que ele combate não deveria ser uma razão para negar seu propósito anti-herético. O que parece realmente ter acontecido é que a igreja, estando convencida de que estava defendendo doutrinas apostólicas tradicionais, usou termos tradicionais a fim de refutar as inovações dos hereges. Na primeira cláusula, a união do termo “Pai” com “Todo-Poderoso” é importante. O termo grego399 que é usado aqui – e não há dúvida de que o grego era a língua original de R – a fim de descrever a natureza de Deus, não significa simplesmente “todo-poderoso” no sentido de ter poder para fazer tudo que acontece ser vontade de Deus, mas significa antes “todo-dominante”. Isto quer dizer que o Deus que governa este mundo físico no qual vivemos é também o Deus Pai, e que por isso não é possível fazer distinção entre o mundo espiritual no qual Deus reina e um mundo material que existe à parte da vontade divina – em contraste ao que estava sendo afirmado em Roma naquele tempo por Marcião e Valentim. Não há dúvida de que a segunda cláusula tem um acentuado interesse anti-herético. Em primeiro lugar, o adjetivo possessivo, “seu”,400 estabelece ainda mais claramente a identidade entre o Pai de Jesus Cristo e o Deus que governa este mundo – uma identidade que Marcião negaria. A seguir, a referência a Maria, “a virgem”, que excluía os ebionitas, também serviu para salientar que Jesus foi gerado de uma mulher e de uma mulher em particular – uma doutrina que muitos docetistas não aceitavam. A referência a Pôncio Pilatos serve para estabelecer uma data e para realçar a natureza histórica da crucificação e sepultamento de Cristo. Finalmente, a cláusula sobre o julgamento contradiz a doutrina de Marcião sobre o contraste entre o Deus justo do Velho Testamento e o Deus amoroso e perdoador do Novo Testamento. A menção sobre o Espírito Santo na terceira cláusula é mais antiga que a formação de R; mas a menção a ressurreição da carne provavelmente tem um propósito anti-herético. Os gnósticos, bem como Marcião, rejeitava a doutrina da ressurreição e preferiam falar da imortalidade do espírito humano. Começando no fim do segundo século, e muito mais freqüentemente durante o terceiro, a “regra de fé” é repetidamente mencionada pelos escritores cristãos. O primeiro a usar este termo é Irineu.401 Mas o fato de que logo depois ele também aparece em Clemente de Alexandria, escrevendo praticamente no outro extremo do mundo Mediterrâneo,402 mostra que o conceito de uma regra de fé já circulava a algum tempo. Nos tempos modernos, alguns παντοκρατωρ. tον υιον αυτου. 401 Epideixis 3. 402 As referências poder ser encontradas em Richard Patrick C. Hanson, Tradition in the Early Church (Londres: SCM Press, 1962), p. 77. 399

400


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eruditos têm identificado esta regra de fé com algumas formas primitivas do Credo – ou de vários credos. Esta identificação não parece ser justificada, pois as variações encontradas nesta regra de fé de um escritor para outro, e até mesmo dentro das obras de um único autor, são muito grandes para permitir crer que havia uma fórmula fixa por trás delas. Pode-se ilustrar esta situação com o caso de Tertuliano, em cujas obras podem ser encontradas três diferentes exposições da regra de fé.403 Uma delas, é verdade, é muito parecida a R; mas o fato de que as outras duas nem mesmo seguem a mesma ordem mostra que, embora Tertuliano visse em R – ou em algum outro credo da mesma família – um resumo adequado da regra de fé, esta regra não era exatamente o mesmo que aquele credo. Portanto, parece possível dizer que a regra de fé não era um texto fixo, o qual era necessário ser repetido palavra por palavra, mas que era antes um resumo do conteúdo fundamental da mensagem cristã, provavelmente realçando aqueles aspectos desta mensagem que os hereges negavam. Este modo de entender a regra de fé como um resumo variável sobre os eventos básicos da história da salvação, explicaria porque em várias regiões do Império a regra de fé era essencialmente a mesma, mas ao mesmo tempo refletia a influência e as tendências de cada escola, e até mesmo de cada teólogo. Assim, Irineu inclui sua doutrina de recapitulação na “regra de fé”; Tertuliano, sua doutrina da nova lei; e Origenes, a distinção entre os vários significados da Escritura.404 Deste modo, o desafio apresentado pela heresia provocou uma série de reações que teriam grandes conseqüências na vida futura da igreja. O credo, o cânon do Novo Testamento, e a doutrina da sucessão apostólica são três destas reações.405 É completamente possível que todos teriam eventualmente se desenvolvido até mesmo sem o desafio da heresia. Mas não há dúvida de que durante o segundo século, as várias tentativas dos cristãos de entenderem sua fé de modo que parecia aos outros cristãos negar a verdade do evangelho, foi um agente catalítico que levou ao desenvolvimento destes novos fenômenos. Por outro lado, o desafio proposto pelas heresias provocou uma outra resposta, cujas conseqüências também foram grandes: a atividade teológica. Os pensamentos e as penas de muitos cristãos foram estimuladas pelo desafio daqueles que tentavam mostrar que outras versões do Cristianismo eram mais razoáveis do que a versão tradicional, e assim muitos 403

Adv. Prax. 2; De praes. 13; De virg. vel. 1. Hanson, Tradition, pp. 91-92. 405 Deveria ser salientado, contudo, que os vários instrumentos anti-heréticos que foram discutidos aqui não eram aplicados independentemente uns dos outros, mas pelo contrário corrigiam e complementavam uns aos outros. Assim, por exemplo, a regra de fé era às vezes usada para determinar a ilegitimidade de um livro que reivindicava ser escrito por um apóstolo – se a doutrina do livro não concordava com a regra de fé, seu autor não poderia ter sido um apóstolo – e a autoridade que os bispos tinham como sucessores dos apóstolos também era usada a fim de refutar as interpretações escriturísticas dos hereges. Portanto, estes vários instrumentos, que temos separado aqui para seu breve estudo, eram uma unidade orgânica na mente daqueles que os usavam. 404


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trabalhos teológicos foram produzidos, cuja influência foi muito além da negação direta da heresia. Estes escritores anti-heréticos que prosperaram no final do segundo século e no início do terceiro eram expoentes de várias tradições teológicas. Na Gália vivia Irineu, um natural da Ásia Menor, que representava este tipo de teologia que já temos visto nos antigos escritores da Ásia Menor. Tertuliano em Cartago, embora afastado de Irineu, também foi um expoente dos interesses práticos e morais que temos visto na igreja ocidental. Finalmente, Clemente e Origenes, cujas atividades teológicas estavam centralizadas em Alexandria, refletiam a atmosfera intelectual daquela cidade.


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VI. IRINEU Durante o segundo século, muitos cristãos incumbiram-se de refutar as várias doutrinas nas quais eles viam uma ameaça a sua fé. Como já dissemos, Justino escreveu Contra todas as Heresias e Contra Marcião, e Teófilo de Antioquia escreveu Contra Marcião e Contra Hermógenes. Todas estas obras, bem como muitas outras que o historiador Eusébio menciona, se perderam. Por isso o autor antiherético mais antigo, cujas obras sobreviveram, é Irineu de Lion. Sabe-se muito pouco sobre a vida de Irineu. Parece que ele nasceu na Ásia Menor – provavelmente em Esmirna – em aproximadamente 135 A.D. Ali ele conheceu Policarpo de Esmirna, embora fosse um moço quando o idoso bispo terminou sua vida em martírio. Mais tarde – provavelmente por volta de 170 A.D. – ele foi para a Gália e estabeleceu-se em Lion, onde havia uma comunidade cristã da qual alguns membros também eram imigrantes da Ásia Menor. Em 177 A.D., quando ele era um presbítero naquela comunidade, ele foi encarregado de levar uma carta ao bispo de Roma. Depois de retornar de sua missão, ele descobriu que o bispo de Lion, Pothinus, tinha sofrido martírio, e que ele devia ser seu sucessor no episcopado. Como bispo de Lion, Irineu guiou a igreja naquela cidade, evangelizou os celtas que viviam na região, defendeu seu rebanho contas as heresias, e buscou a paz e a unidade na igreja.406 Esta última preocupação o levou a intervir na controvérsia Pascal quando Vítor, o bispo de Roma, estava a ponto de quebrar a comunhão com as igrejas da Ásia Menor durante uma discórdia com relação a data de celebração da Páscoa.407 Contudo, o que deu a Irineu sua grande importância para a história do pensamento cristão foi sua luta contra a heresia, e sua preocupação em fortalecer a fé dos cristãos, pois estas eram as razões que o levaram a escrever suas duas obras sobreviventes. Quanto a sua morte, é dito que ele morreu como um mártir, embora nenhum detalhe seja dado. Provavelmente ele morreu em 202 A.D., quando muitos cristãos foram mortos em Lion. As duas obras de Irineu que sobreviveram são: Denuncia e Refutação da Assim Chamada Gnosis e Demonstração da Pregação Apostólica. Suas outras obras, as quais foram muitas, se perderam.408 O livro Denúncia e Refutação da Assim Chamada Gnosis, geralmente conhecido como Adversus haereses, consiste de cinco livros dos quais o original grego já está inteiramente

406

Porém ver: Bertrand Hemmerdinger, “Saint Irénée évêque em Gaul ou em Galatie?” RevEtGr, 77 (1964) 291292; Jean Colin, “Saint Irénée était-il évêque de Lion?” Lat, 23 (1964), 81-85; Sante Rossi, “Ireneo fu vescovo di Lione”, GItFil, 17 (1964), 239-254. 407 Ver Marcel Richard, “La lettre de saint Irénée au Pape Victor”, ZntW, 56 (1965), 260-281. 408 Uma lista de suas obras pode ser vista em Albert Houssiau, La christologie de saint Irénée (Louvain: Publications Universitaires, 1955), pp. 3-5.


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perdido; mas há uma tradução para o Latim409 e uma versão armênia dos dois últimos livros.410 No primeiro livro da Adversus haereses, Irineu simplesmente expõe as doutrinas dos gnósticos, e “especialmente dos discípulos de Ptolemeu” – que foi discípulo de Valentim. Sua pressuposição aqui é que o Gnosticismo é absurdo, e que sua atração está tão baseada em seus supostos segredos que a mera exposição do ensino gnóstico é, em si mesmo, uma vitória sobre ele.411 Nesta exposição, Irineu dá mais atenção a Valentim e seu discípulo do que a outros gnósticos, embora ele faça uma lista dos principais mestres gnósticos e tente estabelecer o relacionamento entre eles.412 A razão para sua concentração sobre o sistema de Valentim foi que ele sentiu-se primeiramente impelido a escrever sua obra quando soube que um amigo seu tinha sido seduzido pelo Gnosticismo de Ptolemeu; mas de qualquer modo ele sente que ao refutar um sistema gnóstico ele refuta todos, pois, como ele diz, “Não é necessário beber o oceano a fim de saber que sua água é salgada.”413 Em seu segundo livro, Irineu tenta refutar o Gnosticismo com base no bom senso. Aqui ele ataca as doutrinas do Pleroma e eões com uma lógica implacável, embora não tente desenvolver uma alternativa especulativa. O humor não está totalmente ausente. Como em seu primeiro livro, muito do espaço é dedicado a Valentim e seu discípulo, e é somente próximo ao fim do livro que Irineu tenta fazer sua refutação estender-se a outros sistemas gnósticos.414 Finalmente, os últimos três livros são dedicados à refutação do Gnosticismo com base nas Escrituras. Inicialmente Irineu esperava incluir isto em seu segundo livro; mas posteriormente ele achou necessário dedicar três livros separados ao assunto. Em geral, nestes três livros seu uso do Velho Testamento é similar a doutrina de Justino com relação as “profecias” e “tipos”. As doutrinas que Irineu estava atacando pendiam quer para a rejeição do Velho Testamento quer para sua adulteração por meio da interpretação alegórica. Elas reivindicavam que a redenção era radicalmente descontínua com a criação, e que por isso existia uma oposição explícita entre o Deus do Velho Testamento e o Deus Supremo. Em oposição a isto, Irineu tenta mostrar a continuidade entre os eventos do Velho Testamento e os do Novo – uma preocupação que freqüentemente o leva ao que os eruditos modernos chamariam de exegese tipológica.415 409

Esta tradução para o Latim é literal ao ponto de infringir a gramática latina, e por isso tem estado sujeita a tentativas de correção pelos copistas. Ver Sven Lundström, Studien zur lateinischen Irenäusübersetzung (Lund: C. W. K. Gleerup, 1943). 410 O uso desta tradução armênia é a característica mais valiosa da nova edição publicada por SC. 411 Ver o praefatio e os últimos dois parágrafos do Livro 1. 412 Adv. haer. 1.23-31. 413 Ibid., 2.19.8. 414 Sobre seus métodos polêmicos, ver Bruno Reynders, “La polémique de saint Irénée: Méthode et principes”, RThAM (1935), 5-27. 415 Ver, por exemplo, Adv. haer. 4.20.7-25.3; Epid. 43-51.


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A originalidade de Irineu na Adversus haereses tem sido contestada. Têm havido tentativas de fazer distinção entre as várias fontes que se supõe que Irineu tenha usado, e assim descobrir sua própria contribuição.416 Por causa da quase total falta de pontos de referência, exceto as próprias obras de Irineu, estas tentativas não são totalmente convincentes.417 De qualquer modo, Irineu não reivindica ser um teólogo original, mas antes vê a si mesmo como um expoente da doutrina da igreja e como um de seus defensores contra a heresia dos gnósticos. Em algumas ocasiões, fica claro que Irineu está usando argumentos que ele tirou de um contexto diferente.418 Mas apesar disto existe uma unidade em sua teologia, dada não por um princípio sistemático, mas por algumas preocupações e temas que aparecem repetidamente em suas obras. O livro Demonstração da Pregação Apostólica, comumente chamado de Epideixis, é uma obra catequética, embora com algumas notas apologéticas.419 Seu propósito não é o treinamento dos catecúmenos, mas o fortalecimento da fé daqueles que já são crentes. Como as polêmicas anti-gnósticas não estão em primeiro plano aqui, esta obra é mais sistemática do que a Adversus haereses, embora mesmo aqui se procuraria em vão uma teologia original e audaciosa. Irineu é um expoente da doutrina que ele recebeu da igreja, e não deseja ser considerado um teólogo original ou especulativo A Epideixis começa com uma confissão de fé que Irineu então expõe, primeiro sistematicamente (capítulos 3-7), e a seguir historicamente (capítulos 8 a 42a). O restante da obra (capítulos 42b-97) tenta provar, com base nas Escrituras, a fé que foi exposta anteriormente. Finalmente, a conclusão (capítulos 98-100) reitera o propósito da obra, o qual Irineu espera que seja o propósito de seus leitores: fugir dos incrédulos e defender a doutrina correta contra a heresia, a fim de alcançar a salvação. Ao tentar expor a teologia de Irineu, deveríamos ter em mente que não estamos lidando com um teólogo sistemático, que tira todas as suas conclusões de uns poucos princípios especulativos. Portanto, em vez de tentar descobrir o princípio governante desta teologia, é melhor seguir a ordem que Irineu sugere em sua Epideixis: começar com o Criador e então seguir a história da salvação até sua consumação final. O Deus de Irineu existia desde o começo, e criou todas as coisas do nada.420 Irineu está 416

A mais importante destas tentativas é a de Friedrich Loofs, Theophilus von Antiochien Adversus Marcionem und die anderen theologischen Quellen bei Irenaeus (Leipzig: J. C. Hinrichs, 1930). 417 F. R. M. Hitchcock, “Loofs’Theory of Theophilus of Antioch as a source of Irenaeus”, JTS, 38 (1937), 254266 mostra algumas das fraquezas do estudo de Loofs. 418 Uma ocasião clara é Adv. haer. 3.22.1, como é demonstrado por Houssiau, Christologie, p. 13. Aqui Irineu faz uso de um argumento anti-ebionita que prova que Cristo nasceu de uma virgem, a fim de argumentar contra os gnósticos que afirmavam Cristo tinha uma origem humana. 419 Somente uma versão armênia foi preservada. Existe um tradução para o inglês feita por Joseph P. Smith (ACW, 16). 420 Adv. haer. 2.10.


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interessado na criação porque ela tem grandes implicações para o mundo e para nós. O Gnosticismo Valentiniano, bem como muitas outras doutrinas então correntes, tentava, eximir Deus da responsabilidade de ter feito este mundo com sua matéria e suas imperfeições. A fim de fazer isto, o Gnosticismo desenvolveu uma longa série de eões que estão entre a suprema divindade e o erro do qual o mundo se originou. Esta também era a razão porque Marcião fazia distinção entre o Deus e Pai de Jesus Cristo e o Criador do mundo. Em oposição a isto, Irineu afirma e reitera categoricamente que o Deus de nossa salvação é o mesmo Deus de nossa criação.421 Todas as coisas foram criadas por Deus, e nada pode existir contra a vontade divina. Até mesmo o Diabo foi criado por Deus, e seu poder atual é apenas temporal e limitado. Mesmo aqui e agora, não é Satanás mas Deus que governa o mundo. O Diabo pode rebelar-se e perturbar a ordem da criação divina, mas Deus ainda governa sobre todas as coisas. 422 Deus criou e governa este mundo por meio de duas “mãos”: O Filho e o Espírito Santo. Muitos dos textos nos quais Irineu se refere à doutrina da Trindade são muito breves para permitir aos historiadores extrair conclusões concernentes a esta doutrina. Irineu se desvia dos aspectos mais sutis da doutrina trinitariana e simplesmente afirma, como deve ter ouvido de seus antepassados na fé, que Deus é Pai, Filho e Espírito, sem discutir os relacionamentos entre os três.423 Aqui ele faz uso da doutrina da Palavra bem como de sua própria metáfora das duas mãos de Deus. Contudo, quando ele fala do Filho como a “Palavra de Deus”, ele não usa este termo como referindo-se a um ser intermediário entre Deus e o mundo, como Justino o fez, mas antes enfatiza a unidade entre Deus e a Palavra. Este é o significado da imagem concernente as “mãos” de Deus. Os gnósticos e outros mantinham Deus distante da criação colocando seres intermediários – o logos entre eles. Irineu, pelo contrário, deseja enfatizar que as próprias mãos de Deus estão envolvidas na obra da criação e no governo da história.424 Este Deus triuno criou a humanidade conforme a imagem divina.425 Mas a criatura humana em si mesma não é a imagem de Deus; esta imagem é o Filho, em quem e por quem fomos criados. “Conforme a imagem de Deus Ele fez o homem; e a ‘imagem’ é o Filho de Deus, em cuja imagem o homem foi feito”.426 Portanto, a imagem de Deus não algo a ser encontrado em nós, mas é antes a direção em que devemos crescer. É como se ao criar a 421

Ibid., 4.6.2; 4.20.2. Ibid., 5.24 423 Antonio Orbe, Hacia la primera teologia de la procesión del Verbo (Roma: Gregorian University Press, 1958), pp. 114-143, está certo em reivindicar que Irineu nunca afirmou a geração eterna da Palavra. Sua doutrina trinitariana é “econômica” no sentido de que ela é desenvolvida em termos do tratamento de Deus com o mundo em vez de em termos imanentes. 424 Ver Jean Mambrino, “Les Deux Mains de Dieu dans l’oeuvre de saint Irénée”, NRT, 79 (1957), 355-370. 425 Erik Peterson, “L’homme, image de Dieu chez saint Irénée”, VieSpirit, 100 (1959), 584-594. 422


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humanidade Deus tivesse usado a encarnação futura da Palavra como modelo. É segundo esta imagem que devemos crescer em justiça, e é para este crescimento que Adão e Eva foram colocados no Éden. Este conceito de crescimento é importante para um entendimento de Irineu.427 Segundo ele, Adão e Eva não foram criados perfeitos no sentido de que eles já eram tudo o que Deus os chamaria a ser, mas antes foram criados de modo que poderiam se desenvolver e crescer naquela imagem de Deus, que é o Filho. Irineu não dá lugar a um estado original, no qual Adão e Eva, dotados com poderes muito acima dos nossos próprios, perderam no Paraíso. Para ele, Adão e Eva eram apenas o começo do propósito de Deus na criação. Adão e Eva eram “como crianças”, cujo propósito era crescer até um relacionamento mais íntimo com Deus. Além disso, este crescimento não era algo a ser alcançado por Adão e Eva por seu próprio poder, mas era antes parte da criação contínua de Deus.428 Como criaturas de Deus com o propósito de crescimento, Adão e Eva eram livres. Esta liberdade não deve ser entendida em termos idealísticos, mas é simplesmente a possibilidade de cumprir o propósito de Deus. Sua liberdade de modo algum era incompatível com a onipotência divina, mas pelo contrário era seu resultado e expressão.429 Contudo, a criação foi seguida pela queda de Satanás e da criatura humana.430 Como nós, os anjos foram criados por Deus, embora eles não tenham sido feitos com o propósito de crescimento, mas tenham sido criados em sua plena maturidade. Isto provocou a inveja de Satanás, e por isso ele tentou Adão e Eva, não a oporem-se ao propósito da criação, mas pelo contrário a acelerar o propósito que Deus tinha ordenado e assim romper a ordem estabelecida por Deus. Quando Satanás disse: “Vocês serão como Deus”, ele simplesmente estava afirmando o propósito de Deus na criação. Mas quando Adão e Eva sucumbem a tentação eles interrompem o plano divino e assim tornaram-se escravos do pecado e da morte. Embora o relacionamento entre o poder de Deus e o do Diabo tenha sido mencionado, é necessário insistir sobre este assunto, pois ele é fundamental para um entendimento da teologia de Irineu. A oposição entre Deus e o Diabo não é fictícia. O Diabo é realmente contrário aos planos de Deus, e até mesmo se sai bem em perturbá-los. Além disso, Satanás é capaz de alcançar vitórias inegáveis, embora parciais e temporárias. Mas não há dúvida de que Deus triunfará no final. E mesmo agora, é Deus quem governa o mundo, embora o Diabo 426

Epid. 22 (ACW, 16:61). Charlotte Hörgal, “Die göttliche Erziehung des Menschen nach Irenäus”, NDid, 13 (1963), 1-28; Adv. haer. 4.33; 5.16. Cp. A. Orbe, Antropología de San Ireneo (Madri: BAC, 1969), pp. 100-105. 428 Epid. 12. Cp. Gustaf Wingren, Man and the Incarnation (Filadélfia: Muhlenberg Press, 1959), pp. 26-38. 429 Epid., 11. 430 Ibib., 16. A noção de que os seres humanos foram originalmente criados como crianças apareceu anteriormente em Teófilo de Antioquia, de quem Irineu pode tê-la inferido (Ad Autol. 2.25). Ou ela pode ter sido uma noção completamente comum na teologia cristã primitiva, da qual poucas notas sobreviveram. De qualquer modo, Irineu não a trata como se estivesse sugerindo uma inovação do que ele aprendeu. Cp. J. I. González Faus, Creación y progreso em la teología de San Ireneo (Barcelona: San Cugat del Valle, 1968). 427


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faça todo esforço para deter os planos de Deus nele. Na luta contra o Diabo, Deus é Senhor até mesmo dos próprios instrumentos que o Diabo emprega. Finalmente, na consumação, todas as coisas estarão sujeitas a Deus e o Diabo será destruído. Enquanto isso, a luta continua, e a vitória prometida não torna a batalha atual menos real. Pela queda, a criatura humana se tornou serva do Diabo. A oposição entre Deus e Satanás é tal que a criatura humana deve estar sujeita a um dos dois, e no jardim Adão deu-se a si mesmo a Satanás. Por isso somos escravos do Diabo, o que significa, em primeiro lugar, que nosso crescimento foi interrompido e, em segundo lugar, que estamos agora presos pelos dois poderes de Satanás: o pecado e a morte. Deveria ser notado aqui que este entendimento sobre a Queda como uma interrupção no desenvolvimento humano, é muito diferente do que mais tarde tornou-se comum na teologia ocidental. Segundo Irineu, a Queda não é tanto a perda de algumas perfeições que Adão e Eva tinham quanto a interrupção do que deveria ter sido seu próprio crescimento.431 Embora o pecado e a morte sejam os instrumentos do Diabo aos quais a criatura humana tem sucumbido tornando-se uma serva de Satanás, o poder de Deus é tal que até mesmo estes instrumentos diabólicos podem ser usados para alcançar os fins divinos. Assim, a morte serve como um limite para nossas possibilidades pecaminosas, e nossa escravização ao pecado em ocasião de reconhecimento da bondade de Deus e de louvor a graça de Deus.432 Apesar da Queda, Deus não nos abandona, mas pelo contrário nos ama continuamente. Em assim fazendo, Deus simplesmente está levando adiante o plano divino, concebido deste o princípio.433 Este plano ou dispensação (οικονοµια) é único, mas se torna manifesto numa série de pactos particulares que culminam em Cristo.434 Estes pactos são quatro, e sucedem um ao outro em ordem cronológica. O primeiro é o de Adão, e durou até o dilúvio; o segundo é o de Noé, e estendeu-se até o Êxodo; o terceiro é o de Moisés, que terminou com o advento de Cristo. O quarto pacto é o de Cristo, que continuará até o fim dos tempos.435 Destes pactos, Irineu somente desenvolve seu pensamento com relação aos dois últimos: o da Lei e o de Cristo. A Lei foi dada por Deus como parte de um plano amoroso, a fim de restringir nossa pecaminosidade. A obediência à Lei não é nosso fim último. A Lei cria uma forma de servidão, diferente e oposta a servidão do pecado, ela é verdadeira, mas que ainda está muito 431

Ver Wingren, Man and the Incarnation, pp. 50-63. Adv. haer. 3.23.6. 433 A. Verrile, “Le plan du salut d’après saint Irénée”, RevScRel, 14 (1934), 493-524; K. Prümm, “Göttliche Plannung und menschliche Entwicklung nach Irenäus Adversus Haereses”, Sch, 13 (1938), 206-224. 434 Ver André Benoit, Saint Irénée: Introduction à l’étude de sa théologie (Paris: Presses Universitaires de France, 1960), pp. 219-227, especialmente sua ênfase na unidade da oikonomia divina em oposição ao Gnosticismo. 435 Adv. haer. 3.11.8. Compare a versão latina ( a qual seguimos aqui) com o fragmento grego existente. 432


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abaixo da liberdade que precisamos a fim de cumprir o propósito de nossa criação. Esta é a razão porque a própria Lei promete o estabelecimento de um novo pacto que a ultrapassará. A Lei não é apenas uma regra, mas também uma promessa; e por isso ela mesma sugere que seu período de sua validade terminará. Contudo, como a Lei foi dada por Deus como um meio de conduzir-nos ao cumprimento da vontade divina, e como esta vontade nunca muda, a lei não poder ser abolida completamente. Seu âmago – a lei moral, e especialmente o Decálogo – ainda exigem nossa obediência, embora esta obediência agora seja diferente do que foi quando a própria Lei estava em vigor. Por outro lado, os antigos ritos da Lei cerimonial foram abolidos pelo advento de Cristo, pois seu propósito era anunciar a vinda do Salvador. Assim Irineu enfatiza a unidade – de continuidade bem como de cumprimento – entre o Velho Testamento e o Novo, e com isso rejeita os ensinos daqueles que tentavam estabelecer uma oposição radical entre ambos os Testamentos.436 Cristo é o centro da teologia de Irineu. Ele é a base para a continuidade entre a criação e a redenção – uma continuidade que muitos hereges negavam. Fomos criados pelo mesmo Deus que agora, em Cristo, nos oferece a salvação. Em Cristo, esta imagem, segundo a qual e pela qual fomos criados, veio habitar entre nós. Esta é a obra de Cristo, a qual Irineu chama de “recapitulação”.437 A recapitulação é uma das doutrinas fundamentais de Irineu, e é necessário entendê-la a fim de entender sua teologia.438 O termo “recapitulação” tem vários significados nos escritores antigos,439 o próprio Irineu o usa em mais de um sentido.440 Mas em Irineu o significado principal e característico do termo “recapitulação”, é aquele que vê nele o melhor caminho para expressar a obra de Cristo como cabeça da nova humanidade. Literalmente, recapitulação significa colocar sob uma nova cabeça. É precisamente isto que Cristo fez. Ele se tornou o cabeça de uma nova humanidade, assim como o pecaminoso Adão é o cabeça da velha. Embora o plano de Deus para a redenção da humanidade estivesse operando desde o começo, este plano encontra sua expressão maior e final na recapitulação de todas as coisas por Cristo, a qual começa na encarnação. Antes deste tempo, embora seja necessário afirmar que o Filho estava presente nas ações de Deus, não se deve falar de uma recapitulação no 436

Ver Jean Daniélou, “Saint Irénée et les origines de la théologie de l’histoire”, RScRel, 34 (1947), 227-231. Recapitulatio, ανακεφαλαιωσις. 438 Emmeran Scharl, Recapitulatio mundi: Der Rekapitulatiosbegriff des heiligen Irenäeus und siene Anwendung auf die Körperwelt (Freiburg im Breisgau: Herder, 1941); R. Potter, “St. Irenaeus and Recapitulation”, DomSt, 3 (1951), 192-200. 439 O uso mais antigo do termo na literatura cristã está em Ef. 1:10. Irineu cita um texto de Justino, no qual o termo pode aparecer; mas é impossível determinar onde a citação termina e, por isso, se a frase onde o termo aparece é parte da citação de Justino, o Mártir, ou comentário de Irineu. Ver J. Armitage Robinson, “On a quotation from Justin Martyr in Irenaeus”, JTS, 31 (1930), 374-378. 440 Ver Houssiau, Christologie, pp. 216-224. 437


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sentido estrito. A recapitulação é um resumo e culminação do que aconteceu antes, e somente pode ser entendida dentro do contexto daqueles eventos anteriores. Até um certo ponto, a recapitulação de Cristo é um novo ponto de partida; mas também está intimamente relacionado com o que veio antes dele. Embora a encarnação seja um novo começo na história do mundo, ela não é oposta a criação, mas ao contrário é sua continuação e cumprimento. Cristo é o novo Adão, e nele a história do velho Adão é repetida, contudo em uma direção oposta. Em Adão, fomos criados para ser como o Filho, e em Cristo o Filho toma a humanidade para si mesmo. Como um homem, Cristo é tudo que Adão deveria ter sido se não tivesse sucumbido a tentação. Cristo é o novo ponto de partida, no qual a criatura humana, que em Adão deu-se a si mesmo ao Diabo, é uma vez mais liberta para crescer na imagem que é o Filho. É por esta razão que Irineu enfatiza o paralelismo entre Adão e Cristo. Adão foi formado do solo virgem, e Cristo veio ao mundo através de Maria, a virgem; a Queda ocorreu por meio da desobediência de uma mulher, e a obediência de uma outra mulher foi a ocasião para a restauração; Adão foi tentado no Paraíso, e Jesus no deserto; por meio de uma árvore a morte entrou no mundo, e por meio da árvore da cruz a vida nos foi dada.441 Um outro aspecto fundamental da recapitulação de Cristo é sua vitória sobre Satanás. Irineu vê toda a história da salvação como a luta entre Deus e o Diabo, a qual terminará na vitória final de Deus. Em Adão, nos tornamos sujeitos ao Diabo, e por isso a recapitulação de Cristo envolve uma vitória sobre Satanás, e nossa conseqüente libertação. Em Adão, Satanás saiu-se bem em alienar-nos desta imagem de Deus para a qual fomos criados. Em Cristo, esta própria imagem é unida a nós, e assim os propósitos do Diabo são destruídos. Portanto, a vitória inicial de Cristo não é sua ressurreição mas sua encarnação. Quando Deus une-se à humanidade Satanás sofre a primeira das grandes derrotas que conduzirão a sua destruição final. Irineu não discute a união da divindade com a humanidade em Cristo, como se existissem duas naturezas opostas.442 Pelo contrário, a humanidade foi criada para gozar união com Deus, e em Cristo esta união alcança seu mais alto objetivo. Além disso, em Cristo, o divino e o humano não devem ser entendidos como duas “substâncias” ou “naturezas”. É antes que em Cristo a divindade é unida à humanidade porque ele é a Palavra que Deus dirige a nós, e também é o homem que responde a esta Palavra. Deste modo fazendo uso de conceitos dinâmicos em vez de substancialistas, e ao não definir a natureza divina em 441

Uma lista de referências seria interminável. O melhor texto de Irineu é Epid. 31-34. Ver J. T. Nielsen, Adam and Christ in the Theology of Irenaeus of Lion (Assen: Van Gorcum, 1968); J. I. González Faus, Carne de Dios: Significado salvador de la encarnación en la teología de san Ireneo (Barcelona: Herder, 1969). 442 Ver Wingren, Man and the Incarnation, pp. 100-112.


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oposição à humana, Irineu evita as dificuldades que mais tarde dariam lugar as amargas controvérsias cristológicas. A encarnação de Deus em Cristo é apenas o começo da vitória sobre o mal. Toda a vida de Cristo é parte da obra de recapitulação, que continua a até a consumação final. Depois de unir-se a humanidade, o Filho de Deus deve viver uma vida humana e morrer uma morte humana. Sua tentação no deserto é uma outra vitória decisiva sobre Satanás, que é incapaz de conseguir a Queda deste novo Adão.443 Durante toda sua vida e ministério, vivendo a totalidade da vida humana,444 Cristo salva esta vida de sua antiga servidão ao poder de Satanás. Em sua morte e ressurreição. Ele faz uso da mais formidável arma do mal, a própria morte, a fim de vencer o império de Satanás. O cumprimento final que agora esperamos – quando todas as coisas estarão sujeitas a ele – será a última vitória de Cristo sobre o Diabo. Enquanto isso nós, que vivemos entre a ressurreição e a consumação, não vivemos em um período de trégua nesta luta de séculos, mas vivemos precisamente no período em que Cristo está concretizando sua vitória, a fim de levar-nos ao dia final. A igreja tem um papel importante nesta obra de recapitulação. Assim como em Adão todos pecaram porque Adão era o cabeça da humanidade, em Cristo toda a igreja vence satanás porque Cristo é o cabeça da igreja. Embora Cristo tenha vencido o Diabo, e assim nos tem devolvido a possibilidade de crescer até alcançarmos a plenitude da imagem de Deus, esta possibilidade é dada somente no corpo cujo cabeça é Cristo. A igreja é o corpo de Cristo, e ele desenvolve nela sua obra de recapitulação através do batismo e da eucaristia pelos quais somos unidos a Cristo.445 Embora Irineu não dedique ao batismo tanta atenção, como faz com a eucaristia, não há dúvida de que ele vê no batismo no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo o ponto de partida da vida cristã. O batismo é “o selo da vida eterna”, e é também “renascer para Deus, para não mais sermos filhos de homens mortais, mas do Deus imortal e eterno”.446 Através do batismo, nos tornamos parte desta nova humanidade que é o corpo de Cristo, e assim nos tornamos participantes na ressurreição do cabeça deste corpo, Cristo o Senhor. Como a Adversus haereses não reivindica ser uma exposição sistemática da doutrina cristã, Irineu discute a eucaristia somente para refutar heresias, e especialmente para contradizer seu desrespeito pela carne e pela matéria. Portanto, não temos uma exposição

443

Adv. haer. 5.21.2. Esta parece ser a razão porque Irineu prefere a tradição segundo a qual Jesus viveu cinqüenta anos sobre a terra. Adv. haer. 2.22. 445 Ver G. Jossa, Regno de Dio e Chiesa: Ricerche sulla concezione escatologica ed ecclesiologica dell’Adversus haereses di Ireneo di Lione (Nápoli: M. D’Auria, 1970). 446 Epid. 3 (ACW, 16:49). 444


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detalhada e ordenada de sua teologia eucarística. 447 Contudo, pode-se extrair algumas conclusões com relação a este assunto a partir de textos polêmicos da Adversus haereses. 448 De acordo com Irineu, na eucaristia os membros do corpo de Cristo são nutridos por ele, unindo-se a seu Senhor e participando em sua vida e seu sangue. Ao beber o cálice e comer o pão, os crentes são nutridos pelo corpo e pelo sangue de Cristo de um modo tão real que podemos crer em sua ressurreição final, porque o corpo e o sangue que tomamos são imortais.449 Na eucaristia, além disso, Cristo revela-nos que a criação não deve ser desprezada, pois ele mesmo usa o pão e o vinho, que são parte da criação, como alimento para aqueles que crêem nele. Por outro lado, a igreja somente pode cumprir esta obra de unir-nos a Cristo se ela realmente for seu corpo, e por esta razão ela deve guardar e ensinar a doutrina certa, e deve preservar a unidade do corpo. Daí o zelo de Irineu ao atacar aqueles que ele considerava hereges: eles eram uma ameaça, não simplesmente a esta instituição que é chamada de “igreja”, mas também à eficácia da obra de Cristo, pois eles ensinavam falsas doutrinas e dividiam o corpo dos crentes. Portanto, os cristãos devem ser firmes na doutrina que eles receberam. É neste ponto que Irineu introduz a doutrina da sucessão apostólica,450 a qual foi um instrumento muito útil nos primeiros séculos do Cristianismo e que mais tarde seria objeto de muitas controvérsias. A norma pela qual o erro deve ser distinguido da verdade é a doutrina que foi recebida dos apóstolos. Supondo que os apóstolos tinham algum conhecimento secreto, como os gnósticos reivindicavam, eles não teriam comunicado este conhecimento a outros senão aqueles em quem eles confiavam o suficiente para ordená-los líderes das igrejas que eles fundaram, isto é, os bispos. Estes, por sua vez, teriam feito o mesmo, confiando a verdadeira doutrina àqueles que os sucederiam. Portanto, os gnósticos mentiam quando reivindicavam ter uma doutrina secreta que seus mestres receberam de um ou de outro dos apóstolos.451 447

Por estranho que pareça, apesar da importância que a eucaristia parece ter tido para Irineu, ele não a discute na Epideixis. 448 Adv. haer. 4.18.4-5; 5.2.2-3. É no primeiro destes textos que a própria frase em debate aparece: “eucharistia ex duabus rebus constans, terrena et coeleste”. Ver: H. D. Simonin, “A propos d’um texte eucharistique de saint Irénée”, RScPhTh, 23 (1934), 281-292; Danien van den Eynde, “Eucharistia ex duabus rebus constans”, Ant, 15 (1940), 13-28. 449 Adv. haer. 5.2.3. 450 Henri Holstein, “La tradition des Apôtres chez saint Irénée”, JEH, 1 (1950), 12-28. 451 Adv. haer. 3.3. O segundo parágrafo deste capítulo, onde Roma é mencionada, foi e é debatido pelos eruditos. Parece seguro dizer que o texto é desesperadamente ambíguo, e que nenhuma conclusão definitiva pode ser dada com relação a sua importância para o tema da primazia romana. Entre os muitos estudos sobre o assunto, ver: H. Katsenmeyer, “Petrus, der Primat, die Kirche in den auf uns gekommenen Schriften des Bischofs Irenäus von Lion, der ‘Widerlegung und Abwehr der falschen Gnosis’ und der ‘Darlegung der apostolischen Verkündigung’,” IntkZtschr, 56 (1948), 12-28, 82-89; Jean Colson, “L’union des évêques et l’évêque de Rome aux deux premiers siècles de l’Église”, VieSpirit, supl. 4 (1950), pp. 181-205; Dominique J. Unger, “St Irenaeus and the Roman Primacy”, ThSt, 13 (1952), 359-418. D. Unger, “St. Irenaeus and the Roman Primacy”, Laurentianum, 16 (1975), 431-445, tem uma bibliografia adicional sobre o assunto.


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A importância de Irineu como um teólogo é muito maior do que pareceria resultar da brevidade do que antecede. Sua teologia, baseada na Bíblia e na doutrina da igreja em vez de em sua opinião pessoal, repetidamente tem sido uma fonte de renovação teológica.452 Por causa dos amplos conceitos cósmicos que resultam de sua doutrina sobre o plano divino e sobre a recapitulação de Cristo, pode ser dito que ele está entre os primeiros escritores cristãos a procurar o significado teológico da história.453 Sua posição cronológica entre os sucessores imediatos dos apóstolos e a igreja do terceiro e quarto séculos, o coloca num cruzamento importante na história do pensamento cristão. Mas é, sobretudo, sua insistência sobre a natureza única e cósmica do Cristianismo que o colocou entre os grandes teólogos de todos os tempos.

452

Ver L. S. Thornton, “St. Irenaeus and Contemporary Theology”, SP, 2 (1957), 317-327. Meu amigo e antigo estudante, Luis N. Rivera, numa dissertação doutoral apresentada em Yale (1970), mostrou como a tendência divisiva da teologia gnóstica com relação a Deus, a antropologia, a Jesus Cristo e a Igreja, levou Irineu a um profundo entendimento sobre esta unidade – de Deus, seres humanos, Jesus Cristo e a Igreja – que, em um relacionamento dialético com a verdade, está na base da teologia de Irineu, o entendimento de Irineu da história está intimamente relacionado com sua interpretação da Escritura, a qual faz uso abundante da tipologia. De fato, a própria tipologia está baseada em um entendimento da história. Sobre o uso de Irineu da Escritura, ver: A. Orbe, Parábolas evangélicas em San Ireneo, 2 Vols. (Madri: BAC, 1972). 453


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VII. TERTULIANO É interessante notar que as origens da literatura latina cristã não são encontradas em Roma mas no Norte da África. Embora a Primeira Epístola aos Coríntios de Clemente, a qual procede de Roma, seja um dos escritos cristãos mais antigos, este documento foi escrito em grego. Durante muitos séculos a África, e não Roma, foi o centro do pensamento cristão latino. Foi ali que o vocabulário teológico da igreja ocidental recebeu sua forma básica. E ali prosperaram os mais importantes escritores cristãos latinos dos primeiros séculos – tais como Tertuliano, Cipriano, Agostinho e outros.454 Alguns têm identificado Tertuliano com um advogado do mesmo nome que aparece no Corpus Iuris Civilis, contudo não é possível tomar uma decisão final com relação a esta identificação. De qualquer modo, Tertuliano viveu em Roma por vários anos, e depois de sua conversão, a qual ocorreu quando ele estava com cerca de quarenta anos, ele retornou a Cartago, onde tinha nascido por volta de 150 A.D. Ali ele empreendeu uma extensa produção literária em favor de sua nova fé, a qual ele defendeu contra aqueles que a perseguiam, bem como contra aqueles que pareciam pervertê-la. Contudo, no início do terceiro século – provavelmente em 207 A.D. – ele abandonou a comunhão com a igreja africana a fim de tornar-se um montanista. As razões pelas quais ele tomou esta decisão não são muito claras, mas parece que para ele o Montanismo personificava o espírito de protesto contra o crescente poder da hierarquia, e contra sua suposta frouxidão em lidar com os pecadores arrependidos. Era este aspecto do Montanismo que interessava a Tertuliano, que já tinha mostrado um excessivo rigor moral.455 Após sua conversão ao Cristianismo, Tertuliano escreveu diversas obras endereçadas aos pagãos, a fim de defender sua nova fé.456 A mais importante destas obras é sua Apologia – Apologeticus adversus gentes pro christianis – escrita em 197 A.D. Aqui Tertuliano tenta defender o Cristianismo de um modo que é muito similar ao de um advogado. Assim, por exemplo, referindo-se à famosa carta na qual Trajano ordenou a Plínio que condenasse 454

Embora creia-se que o Cristianismo do Norte da África tenha vindo de Roma, existem razões para crer diferente. É possível que, fundada originalmente por cristãos do Leste, a Igreja no Norte da África desenvolveu posteriormente laços mais íntimos com Roma. W. Telfer, “The Origins of Christianity in Africa”, SP, 4:512-517. Cp. E. Buoniauti, II cristianesimo nell’ Africa romana (Bari: Laterza, 1928). Ver também G. Quispel, “African Christianity before Tertullian, in W. den Boer et al., eds., Romanitas et Christianitas (Amsterdan: North Holland Publishing Company, 1973), pp. 275-279. 455 H. von Campenhausen, “Urchristentum und Tradition bei Tertullian”, ThBI, 8 (1929), 193-200; M. S. Enslin, “Puritan of Carthage”, JRel, 27 (1947), 197-212; Heinrich Karpp, Schrift und Geist bei Tertullian (Gütersloh: C. Bertelsmann, 1955); W. Bender, Die Lehre über den Heiligen Geist bei Tertullian (Munique: M. Hueber, 1961); cp. Jerônimo, De viris illus. 53. Sobre a vida e contexto de Tertuliano, ver T. D. Barnes, Tertullian: A Historical and Literary Study (Oxford: Clarendon, 1971). Sobre seus conceitos sobre o Espírito e sobre a igreja, que o levaram para o Montanismo, ver C. Moreschini, “Tradizione e innovazione nella pneumatologia di Tertulliano”, Augm, 20 (1980), 633-644; V. Grossi, “Istituzione e Spirito in Tertulliano: De praescriptione; De pudicitia”, Augm, (1980), 645-654; Sobre seu uso das Escrituras, J. E. L. van der Geest, Le Christ et l’Ancien Testament chez Tertullien: Recherche terminilogique (Nijmegen: Dekker and van de Veg, 1972). 456 J. Lortz, Tertullian als Apologet, 2 vols. (Münster: Aschendorff, 1927-1928).


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aqueles cristãos que fossem acusados diante dele, mas não procurasse aqueles que não eram acusados, Tertuliano escreve: Ó miserável pronunciamento, - de acordo com as necessidades do caso, uma incoerência! Ela proíbe de irem à procura deles quando inocentes, e ordena que sejam punidos quando culpados. É ao mesmo tempo misericordiosa e cruel; ela não leva em conta e ela pune. Por que fazes um jogo de palavras contigo mesmo, Ó Julgamento? Se condenas, por que também não inquires. Se não inquires, por que também não absolves?457 Além desta Apologia, Tertuliano escreveu outras obras que esclarecem sobre as perseguições e sobre as atitudes dos cristãos diante delas. Entre estas deveriam ser mencionadas Aos Gentios, O Testemunho da Alma e Aos Mártires, a qual é uma das expressões mais nobres sobre o espírito heróico dos cristãos primitivos. Todas estas obras foram escritas antes de Tertuliano tornar-se um montanista. Por outro lado, e mostrando deste modo sua inclinação à controvérsia, Tertuliano escreveu uma longa série de obras polêmicas contra todo tipo de hereges. Suas obras Prescrições Contra os Hereges – Liber de Parescriptionibus adversus haereticos – será examinada quando tentarmos expor a teologia de Tertuliano. O mesmo pode ser dito de sua obra Contra Praxeas – Adversus Praxeam. Seus cinco livros Contra Marcião são a principal fonte da qual os historiadores extraem seu conhecimento sobre as doutrinas deste herege. Além disso, Tertuliano também escreveu contra Hermógenes, contra os valentianos, contra os gnósticos e contra o Docetismo em geral. Todas estas obras são de importância fundamental para a história do pensamento cristão, não apenas como uma fonte para a teologia de Tertuliano, mas também como uma fonte para as controvérsias que ocorreram perto do fim do segundo século e no começo do terceiro. Finalmente, Tertuliano escreveu várias obras de natureza moral e prática. Algumas destas foram escritas antes dele tornar-se um montanista, tais como Sobre a penitência, Sobre a Paciência e Para sua Esposa. Outras foram escritas de um ponto de vista montanista, tais como Sobre a Monogamia, Sobre o Jejum, Sobre a Modéstia e a Exortação à Castidade. Todas estes escritos refletem o rigorismo de Tertuliano, embora, como era de se esperar, isto é mais claramente manifesto em suas obras montanistas. De qualquer modo, estes documentos são de grande importância pela informação que eles provêm com relação a vida moral e práticas de adoração dos cristãos no tempo de Tertuliano. Quando os historiadores tentam reconstruir o desenvolvimento da liturgia cristã ou da história dos costumes cristãos, Tertuliano prova ser uma fonte inestimável de informação. Contudo, aquilo que nos interessa 457

Apol. 2 (ANF, 3:19).


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aqui é sua teologia, especialmente porque ele herda alguns aspectos desta teologia de antigos pensadores, e ao mesmo tempo anuncia aquilo que estava para vir. As fontes para a teologia de Tertuliano são encontradas na tradição cristã, no treinamento legal que ele provavelmente teve, e em sua formação filosófica. Não há dúvida de que muito da teologia de Tertuliano foi extraída diretamente da tradição cristã tal como é encontrada nos apologistas gregos, em Irineu e em Hermas. No que diz respeito a sua formação legal, Tertuliano nunca a deixou para trás: seus argumentos não procuram convencer tanto quanto subjugar; quando parece que ele está encurralado por seus oponentes, ele tece se esquiva pela retórica; para ele, o evangelho é uma nova lei; seu argumento em defesa do Cristianismo é um argumento legal; o mesmo pode ser dito com relação a seu argumento básico contra os hereges; e alguns eruditos têm declarado que sua doutrina trinitariana é expressa em termos legais. Finalmente, embora Tertuliano explicita e repetidamente rejeite toda intromissão da filosofia em questões de fé,458 é um fato que – provavelmente sem mesmo saber disso – ele mesmo é freqüentemente influenciado pelo Estoicismo, 459 e ele até mesmo fala em termos tão elogiosos de Sêneca, que quase contradiz sua rejeição geral da filosofia pagã.460 Tertuliano é, sobretudo, um pensador prático e concreto. Nenhuma de suas obras foi escrita pelo mero prazer de escrever ou por especulação, mas com um propósito definido e prático. Entre estas obras, provavelmente a melhor introdução a seu pensamento é seu Liber de praescriptionibus adversus haereticos, a qual daqui por diante chamaremos de Praescriptio. Na prática legal romana, uma praescriptio era um argumento que uma parte em um processo apresentava, geralmente não se referindo a um aspecto particular do processo, mas ao próprio processo. Assim, a praescriptio é freqüentemente uma objeção que afirma que a parte oposta está fora de ordem, e que o processo não deveria continuar. 461 Portanto, quando Tertuliano escreveu a Prescrição Contra os Hereges ele não estava tentando discutir as doutrinas dos hereges em si mesmas, mas pelo contrário estava tentando negar-lhes o próprio direito de argumentar contra o ortodoxo. Os primeiros sete capítulos da Praescriptio tratam das heresias em geral, e declaram que ninguém deve maravilhar-se de sua existência, pois o Novo Testamento predisse sua 458

A. Labhart, “Tertullien et la philosophie ou la recherche d’une ‘position pure’,” MusHelv, 7 (1950), 159-180. C. de L. Shortt, The Influence of Philosophy on the Mind of Tertullian (Londres: Elliot Stock, 1933); F. Seyr, “Die Seelen-und Erkenntnislehre Tertullians und die Stoa”, Comm Vind, 3 (1937), 51-74. 460 De anima, 20. 461 Ver as várias interpretações de J. L. Allie, “Nature de la prescription ou des prescriptions dans le De praescriptione”. RUOtt, seção especial, 6 (1937), 211*-225*, 7 (1938), 16*-28*; L. De Witte, “L’argument de prescription et Tertullien”, Collect. mechlin., 25 (1936), 239-250; e J. K. Stirnimann, Die Praescriptio Tertullians im Lichte des römischen Rechts und der Theologie (Fribourg, Suíça: Paulus Verlag, 1949). 459


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vinda, e elas servem para fortalecer a fé dos crentes, que vêem as palavras da Escritura sendo cumpridas. De qualquer modo, as heresias não nascem da fé, mas antes da filosofia. Elas simplesmente são os antigos erros dos filósofos transportados para o plano da fé, pois os filósofos, bem como os hereges, fazem as mesmas perguntas com relação a origem do mal e da humanidade. A confusão da filosofia com a revelação resulta em uma infidelidade à última, pois “na verdade o que Atenas tem a ver com Jerusalém? Que concórdia há entre a Academia e a Igreja? Que acordo entre os hereges e os cristãos?462 Este texto, bem como o próximo de seu tratado Sobre a Carne de Cristo, tem sido uma das razões principais porque Tertuliano foi acusado de ser anti-intelectual: O Filho de Deus foi crucificado; não estou envergonhado ... disto. E o Filho de Deus morreu; sem dúvida deve ser crido, porque é absurdo. E Ele foi sepultado e ressuscitou; o fato é certo, porque é impossível. 463 Mas a verdade é que Tertuliano não é um irracionalista cego. Ele crê que existem coisas que simplesmente são muito maravilhosas para serem entendidas, tais como a crucificação ou o poder do batismo. Mas esta não é uma reivindicação geral de que a fé deve estar baseada sobre a impossibilidade racional.464 Pelo contrário ele crê que a especulação desenfreada pode levar muito longe, e que a presente revelação de Deus é o que é realmente importante para o cristão. Isto pode ser visto no próximo texto, no qual ele está refutando o argumento de Praxeas de que o Pai, sendo onipotente, poderia tornar-se o Filho: Não devemos, contudo, porque Ele é capaz de fazer todas as coisas supor que Ele têm realmente feito o que Ele não fez. Mas devemos inquirir se ele realmente o tem feito. Deus poderia, se Ele quisesse, ter equipado o homem com asas para voar, assim como Ele deu asas aos pássaros. Não devemos, contudo, correr para a conclusão de que Ele fez isto porque Ele era capaz de fazê-lo. Ele também poderia ter exterminado Praxeas e todos os outros hereges de uma vez; não segue, contudo, que Ele fez, simplesmente porque era capaz. Pois era necessário que existissem tanto pássaros quanto hereges; era necessário também que o Pai fosse crucificado.465 Os sete capítulos que a Praescriptio dedica ao erro são seguidos por sete outros que tratam da natureza da verdade. A verdade cristã é tal que, uma vez que foi encontrada, não há 462

De praes. haer., 7 (ANF, 3:246). De carne Christi, 5 (ANF, 3:525). Ver também De bapt. 2, e as observações de B. Leening, “Note on the Reading in Tertullian’s de Baptismo, Çredo quia non credunt’,” Greg, 14 (1933), 423-431. 464 Etienne Gilson, La philosophie au moyen âge (Paris: Payot, 1944), pp. 97-98; F. Refoulé “Tertullien et la philosophie”, RevScRel, 30 (1956), 42-45; Vianney Décarie, “Le paradoxe de Tertullien”, VigCh, 15 (1961), 2331; J. L. González, “Athens and Jerusalem Revisited: Reason and Authority in Tertullian”, CH, 43 (1974), 1725. Sobre sua atitude para com a cultura, ver R. D. Sider, Ancient Rhetoric and the Art of Tertullian (Oxford: University Press, 1971); D. E. Groh, “Tertullian’s Polemic against Social Co-optation”, CH, 40 (1971), 7-14; J. C. Fredouille, Tertullien et la conversion de la culture antique (Paris: Études augustiniennes, 1972). 465 Adv. haer. 10 (ANF, 3:605). 463


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razão para procurar mais. Esta verdade foi dada a igreja de uma vez por todas em Jesus Cristo, e a tarefa do crente é simplesmente aceitá-la, sem uma curiosidade vã que somente pode levar ao erro. A essência do argumento da Praescriptio aparece no capítulo 15, onde Tertuliano afirma que toda discussão com os hereges com base na Escritura está fora de ordem, pois os hereges não tem direito sobre o texto sagrado. A partir deste ponto, o verdadeiro argumento do livro desdobra-se, afirmando que as Escrituras pertencem a igreja e que somente ela pode usá-las. As Escrituras, bem como a verdadeira doutrina – resumida na regra de fé – foram dadas pelos apóstolos a seus sucessores, e por eles a seus próprios sucessores e assim até o presente. Os hereges são incapazes de provar que eles são os legítimos sucessores dos apóstolos, enquanto que a igreja pode provar seu direito a esta herança. Em Corinto, em Filipos, em Tessalônica, em Éfeso, em Esmirna e em Roma existem igrejas que foram fundadas pelos apóstolos, e que podem mostrar a sucessão que liga os apóstolos aos bispos atuais. Todas estas igrejas ensinam a mesma doutrina, e mesmo aquelas que não foram fundadas pelos apóstolos são apostólicas, pois sua doutrina é a mesma. 466 A igreja ortodoxa pode apresentar esta sucessão e esta unidade de doutrina, e com base nisto ela pode reivindicar as Escrituras como sua herança completa. Os hereges não podem fazer o mesmo, pois eles são arrogantes e ensinam novas doutrinas. Portanto, eles não têm o direito de apelar para a Escritura. Aqui Tertuliano faz uso da praescriptio longi temporis, segundo a qual o uso de uma propriedade por um período prolongado eventualmente dá ao usuário um direito legal. Assim, de acordo com este tipo de praescriptio, a igreja que sempre fez uso das Escrituras é a única que tem agora o direito de usá-las e interpretá-las. O argumento de Tertuliano é esmagadoramente final. Se os hereges não tem direito de usar as Escrituras, torna-se impossível para eles discutir com os ortodoxos a fim de desviá-los da verdadeira fé. A praescriptio é total: os hereges estão excluídos de toda discussão, e somente as igrejas ortodoxas e apostólicas tem o direito de determinar o que é doutrina cristã e o que não é.467 Contudo, pouco tempo depois de escrever esta defesa da autoridade das igrejas apostólicas e de seu direito exclusivo de interpretar as Escrituras, o próprio Tertuliano rompeu com estas igrejas e tornou-se um montanista. Embora de modo algum isto foi um rompimento com a ortodoxia, Tertuliano agora achava que precisava experimentar precisamente este tipo 466

De praes. haer. 32. O lugar exato de Roma dentro da estrutura da teologia de Tertuliano é objeto de várias interpretações. Cp. H. Koch, “Zu Tertullian De pudicitia 21, 9 e seguintes”, ZntW, 31 (1932), 68-72; W. Köhler, “Omnis ecclesia Petri propinqua”, ZntW, 31 (1932), 60-67. H. Stoeckius, “Ecclesia Petri propinqua: Eine kirchengeschitliche Untersuchung der Primatsfrage bei Tertullian”, AkathKrcht, 117 (1937), 24-126; Berthold Altaner, “Omnis ecclesia Petri propinqua”, ThR, 38 (1939), 129-138. O texto que está no âmago desta discussão é De pudicitia 21.9. 467


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de argumento contra os hereges, que a praescriptio parecia ter excluído. Uma vez que se negue a autoridade final das igrejas apostólicas, o argumento da praescriptio perde seu poder, e é necessário refutar os hereges de outro modo.468 Esta é uma das razões porque Tertuliano escreveu alguns de seus mais significantes trabalhos, entre eles Contra Praxeas. Nada sabemos sobre Praxeas. Parece que ele veio da Ásia Menor, onde ele conhecera o Monarquianismo bem como o Montanismo, e tinha aceito o primeiro e rejeitado o último. Vindo para Roma, ele foi bem recebido, e a seguir ele encarregou-se de combater o Montanismo e de expandir o Monarquianismo naquela cidade. Esta é a razão porque Tertuliano diz que Praxeas “fez um duplo serviço para o diabo em Roma: ele afugentou a profecia, e introduziu a heresia; ele afugentou o Espírito, e crucificou o Pai.”469 O tratado de Tertuliano Contra Praxeas é importante porque algumas de suas frases e terminologia parecem prenunciar que se tornariam fórmulas geralmente aceitas séculos mais tarde. Isto ocorre na doutrina trinitariana bem como na cristológica. A fim de responder às alegações de Praxeas, Tertuliano desenvolve sua doutrina trinitariana, fazendo uso da terminologia jurídica de seu tempo.470 De acordo com ele, Praxeas afirma que a distinção entre o Pai e o filho destroi a “monarquia” de Deus, mas não compreende que a unidade da monarquia não requer que ela seja sustentada por uma pessoa apenas.471 A “monarquia”, este termo que é tão acalentado por Praxeas e seus seguidores, significa simplesmente que um governo é único, e não impede o monarca de ter um filho ou de administrar sua monarquia como lhe agrada – o que Tertuliano chama de “economia” divina. Além disso, se o pai assim quiser, o filho pode participar na monarquia sem com isso destruí-la. Portanto, a monarquia divina não é razão para se negar a distinção entre o Pai e o Filho, como alegado pelo “simples, na verdade, eu não quero chamá-los de insensatos e ignorantes”, que negam esta distinção.472 Mas isto não é suficiente para refutar Praxeas, pois é necessário explicar como é possível que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sejam um Deus e que eles, contudo, são 468

Na De prae. haer 44. Tertuliano já tinha prometido uma refutação adicional de várias heresias. Mas se tomarse sua praescriptio seriamente, estas refutações não seriam tão extensivas e detalhadas quanto elas tornaram-se após ele ter unido-se aos montanistas. 469 Adv. Prax. 1 (ANF, 3:579). Há alguma dúvida quanto a se Praxeas existiu afinal. Este nome bem pode ser um modo velado de Tertuliano referir-se a Noeto de Esmirna ou a Calisto de Roma. 470 Nem todos os eruditos concordam sobre a importância da terminologia legal para uma correta interpretação de Tertuliano. Hans Rheinfelder, Das Wort “Persona”: Geschichte seiner Bedeutungen mit besonderer Berück sichtigung des französischen und italienischen Mittelalters (Halle: H. Niemeyer, 1928) segue esta interpretação, que é proveniente de Harnack. Contra este conceito, ver H. C. Dowdall, “The Word ‘Person’,” ChQR, 106 (1928) 229-264, e Ernest Evans, “Tertullian’s Theological Terminology”, ChQR, 139 (1944-45), 56-77. Ver também Th. L. Verhoeven, Studiën over Tertullianus’ Adversus Praxeam, voornamelijk betrekking hebbend op monarchia, oikonomia, probola in verband met de Triniteit. Proefschrift (Amsterdam: Noord-Hollandsche Uitgevers Maatschappij, 1948). 471 Ver Antonio Quacquarelli, “L’antimonarchianesimo di Tertulliano nell ‘Adversus Praxeam’,” RScF, 3 (1950), 31-63; Th. Verhoeven, “Monarchia dans Tertullien, Adversus Praxeam”, VigCh, 5 (1951), 43-48. 472 Adv. Prax. 3 (ANF, 3:598).


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diferentes. Aqui Tertuliano apela novamente para sua formação legal e introduz dois termos que a igreja continuaria usando por muitos séculos: “substância” e “pessoa”. “Substância” deve ser entendido aqui, não em seu sentido metafísico, mas antes em seu sentido legal. 473 Dentro deste contexto, a “substância” é a propriedade e o direito que uma pessoa tem de fazer uso dela. No caso da monarquia, a substância do Imperador é o Império, e é isto que torna possível para o Imperador partilhar sua substância com seu filho – como de fato era comum no Império Romano. A “pessoa”, por outro lado, deve ser entendida como “pessoa legal” em vez de em seu sentido comum. A “pessoa” é alguém que tem uma certa “substância”. É possível que várias pessoas participem de uma substância, ou que uma pessoa tenha mais de uma substância – e esta é a essência da doutrina de Tertuliano com relação não apenas a Trindade, mas também com relação a pessoa de Cristo. Com base neste conceito de substância e pessoa, Tertuliano afirma a unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo sem negar sua distinção: os três participam de uma única e indivisível substância, mas isto não os impede de serem três pessoas diferentes. três, no entanto, não em condição, mas em grau; não em substância, mas em forma; não em poder, mas em aspecto; todavia de uma substância, e de uma condição, e de um poder, porque ele é um Deus, de quem três graus e formas e aspectos são contados, sob o nome de Pai, e de Filho e de Espírito Santo.474 Contudo, quando procuramos descobrir o significado exato dos termos com que Tertuliano indica a unidade de Deus (status, substantia, potestas), bem como aqueles que indicam diversidade (gradus, forma, species), encontramos que a fórmula, que parece ser tão explícita, é antes ambígua. Substantia pode ter diferentes significados, numa escala que vai do próprio ser ou sua realidade até o alimento de alguém, incluindo o sentido legal que foi apontado acima. O significado de status também varia, e pode referir-se a uma mera posição, tal como a condição social de uma pessoa, a qual na prática legal pode ser o mesmo que ser ou substância. Finalmente, potestas refere-se geralmente à capacidade externa de fazer algo, mas também pode ser aplicado à natureza interior de uma coisa. Portanto, a unidade divina, a qual Tertuliano parece ter definido com tal precisão, ainda é ambígua. O mesmo pode ser dito sobre os termos que Tertuliano usa para fazer distinção entre as pessoas da Trindade. Esta é a razão porque é possível interpretar esta passagem de modo que a Trindade parece ser uma unidade essencial com distinções secundárias, ou interpretá-la de modo que existam três seres cuja unidade consiste em todos os três serem divinos. Quando lemos mais adiante em Tertuliano, torna-se mais claro que ele tende a 473 474

Contudo, como foi exposto na n. 17, os eruditos não concordam sobre este ponto. Adv. Prax. 2 (ANF, 3:598).


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enfatizar a distinção entre as pessoas da Trindade, mesmo às custas de sua unidade essencial. No Capítulo 9 deste mesmo tratado Contra Praxeas encontramos que “o Pai é a substância toda, mas o Filho é uma derivação e uma porção do todo”,475 e que a distinção entre o Pai e o Filho significa que um é invisível e o outro é visível. 476 Em Contra Hermógenes, nos é dito além disso que houve um tempo quando o Filho não existia.477 Estas afirmações estabelecem uma distinção entre o Pai e o Filho que mais tarde seria considerada heterodoxa. Com base nestes e em outros textos, Tertuliano foi acusado de subordinacionismo.478 E é verdade que havia uma tendência como esta em seu pensamento. Mas devemos lembrar que o próprio propósito de Contra Praxeas naturalmente levaria Tertuliano a enfatizar a distinção entre o Pai e o Filho em vez de sua unidade. Além disso, seria injusto esperar de Tertuliano uma precisão que não apareceria na história do pensamento cristão em breves e amargas controvérsias. Por estas razões, suas inegáveis tendências subordinacionistas não devem obscurecer o gênio de Tertuliano em prenunciar a fórmula básica que a igreja Ocidental adotaria por muitos séculos, a fim de expressar a natureza triuna de Deus. 479 Um outro aspecto importante da doutrina trinitariana de Tertuliano é sua insistência na “economia” divina – oeconomia, uma palavra que ele translitera para o Latim em vez de traduzi-la do Grego. Segundo ele, Deus é um, “mas sob esta dispensação, que nós chamamos de oeconomia:”480 este único Deus também tem um Filho. Esta economia divina é necessária para um entendimento adequado da monarquia, pois é sob ela que Deus é um. Por causa disso, a doutrina de Tertuliano tem sido caracterizada como “monoteísmo orgânico”,481 isto é, um monoteísmo que é entendido em termos de um relacionamento orgânico. Talvez, adequadamente investigado, este aspecto da doutrina trinitariana de Tertuliano, será considerado ser mais importante do que seu uso dos termos substância e pessoa.482 A cristologia de Tertuliano, cuja expressão mais feliz também é encontrada na Contra Praxeas, é sobretudo uma cristologia anti-docética. Em todas as suas obras há um interesse 475

Adv. Prax. 9 (PL, 2:164; ANF, 3:603-604): “Pater enim tota substantia est Filius vero derivatio totius et portio”. 476 Ibid., 14. 477 Adv. Herm. 3 (PL, 2:200): “Fuit auten tempus cum et delictum et filius non fuit”. Isto deve ser entendido à luz de Adv. Prax. 5, onde Tertuliano adota a antiga distinção ente a Palavra interior (a qual ele chama de ratio) e a Palavra falada (a qual ele chama de sermo). A primeira está eternamente presente em Deus; a última – que também é chamada de “Filho” e “Sabedoria” – foi falada antes da criação, de modo que todas as coisas pudessem ser criadas por ele (Adv. Prax. 6). 478 Ver B. Piault, “Tertullien a-t-il été subordinatien?” RScPhTh, 47 (1963), 181-204. 479 Embora a importância da fórmula de Tertuliano seja freqüentemente negada, parece que ela foi claramente demonstrada por J. Moingt, Théologie trinitaire de Tertullien, 3 vols. (Paris: Aubier, 1966). 480 Adv. Prax 2 (PL, 2:156). 481 George L. Prestige, God in Patristic Thought (Londres: W. Heinemann, 1936), pp. 97-106. Cp. A revista crítica de Charles E. Raven, JTS, 39 (1938), 89-92. 482 Prestige, God, p. 111: “Portanto deve ser concluído que Tertuliano e Hipólito apresentam uma declaração sobre os relacionamentos eternos da tríade divina que é, aparentemente, única na teologia patrística.” Cp. K. Wölfl, Das Heilswirken Gottes durch den Sohn nach Tertullian (Roma: Gregorian University Press. 1960).


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claro em afirmar a realidade do corpo de Cristo. Para ele, a realidade deste corpo não é uma mera doutrina, mas é o ponto básico do qual toda a soteriologia cristã depende. 483 Por outro lado, sua oposição ao Monarquianismo Modalista força Tertuliano a prestar atenção, não somente à necessidade de afirmar a realidade da humanidade de Cristo, mas também ao modo pelo qual esta humanidade está relacionada com a divindade do Salvador. Esta é a tarefa que ele começa no Capítulo 27 de Contra Praxeas. Para esta tarefa, ele emprega as mesmas ferramentas que já tinha considerado tão úteis ao discutir o relacionamento entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Estas ferramentas são os termos “substância” e “pessoa”. Parece que Praxeas e seus seguidores afirmavam que era possível estabelecer uma distinção entre o Pai e o Filho, mas que esta distinção poderia ser feita apenas com referência a Jesus Cristo: o Pai é o espírito, e é chamado Cristo; o Filho é a carne, e é chamado Jesus. Tertuliano responde a isto declarando a unidade de Jesus Cristo, e negando a possibilidade de fazer-se distinção entre Jesus e Cristo – um erro cuja origem ele atribui à escola de Valentim. 484 Mas não é suficiente negar a posição de Praxeas. Deve-se também tentar expressar a doutrina correta. “Este deve ser o ponto de nossa inquirição: Como a Palavra tornou-se carne, - se foi por ter sido transfigurada, por assim dizer, na carne, ou por ter realmente vestido a Si mesma de carne.”485 Em sua resposta, Tertuliano adota a segunda alternativa, pois ela preserva a imutabilidade divina. Se alguém dissesse que em Cristo a Palavra foi transformada a fim de unir-se com a carne, o resultado seria um ser intermediário entre o divino e o humano – um ser que não seria nem verdadeiramente divino nem verdadeiramente humano, mas seria, como Tertuliano diz, um tertium quid. Portanto, assim como há em Deus três pessoas e somente uma substância, em Jesus Cristo há duas substâncias486 - divindade e humanidade – ambas pertencendo a uma única pessoa.487 Esta união é tal que as propriedades de ambas as substâncias ou naturezas – Tertuliano usa ambos os termos – são completamente preservadas e apresentadas nas ações de Cristo. Assim, em tais ações podemos ver o poder da divindade – ou, como Tertuliano diria, do espírito488 - bem como as qualidades da humanidade – ou, como 483

De carne Chr. 1, reivindica que os hereges negam a realidade da carne de Cristo a fim de ser capaz de rejeitar a doutrina da ressurreição. 484 Adv. Prax. 27. 485 Ibid., (ANF, 3:623). 486 Uma doutrina que bem pode ser derivada de Melito, como é sugerido por Raniero Cantalamessa, “Tertullien et la formule christologique de Chalcédoine”, SP, 9 (1966), 141-142. 487 Cantalamessa, “Tertullien”, pp. 145-148, argumenta que Tertuliano não usa o termo “pessoa” em seu sentido cristológico, mas simplesmente estava refutando a doutrina de Praxeas de que uma pessoa divina era Cristo, unida à carne de Jesus. A conclusão desta interpretação é que Tertuliano não contribui para o uso eventual do termo “pessoa” na discussão cristológica. Bem pode ser assim, pois sua obra nesta direção não deixou traço em outros teólogos latinos, e Agostinho e o Ocidente podem ter chegado a este uso do termo de modo totalmente independente de Tertuliano. 488 Tertuliano às vezes usa o termo “espírito” para referir-se ao Espírito Santo, e em outras vezes o usa para referir-se à divindade de Cristo.


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ele diria, da carne. A propriedade de cada natureza é tão completamente preservada, que o Espírito por um lado fez todas as coisas em Jesus adequadas a Ele mesmo, tais como milagres, e atos poderosos, e maravilhas; e a Carne, por outro lado, exibiu as afeições que pertencem a ela.489 Este Jesus Cristo nasceu de Maria, que o concebeu quando virgem, mas cujo útero foi verdadeiramente aberto em seu nascimento.490 Um outro aspecto importante da teologia de Tertuliano é sua doutrina da transmissão da alma e do pecado original, nas quais podemos ver as conseqüências de sua perspectiva estóica e suas influências posteriores na formação da teologia ocidental. O Estoicismo de Tertuliano o levou a conceber tanto a alma como Deus como seres corpóreos,491 e isto por sua vez o levou a afirmar que a alma era derivada das almas de seus pais, assim como o corpo é derivado dos corpos de seus pais.492 Esta doutrina, conhecida como “traducionismo”, é a base sobre a qual Tertuliano declara que, assim como a alma é transmitida pelos pais às crianças, assim é o pecado.493 Deste modo, o pecado original torna-se uma herança que os filhos recebem de seus pais, do mesmo modo como recebem seus corpos. Este certamente não é o único modo pelo qual o pecado original pode ser entendido; mas, devido em grande parte a influência de Tertuliano através de Santo Agostinho, se tornou tão comum no Ocidente que isto é o que geralmente é entendido por “pecado original”. Durante a Idade Média, quando o traducionismo foi abandonado por muitos teólogos por causa de suas implicações materialistas, a doutrina do pecado original como uma herança foi preservada. O que Tertuliano tem a dizer sobre o batismo é importante para a história da adoração cristã, porque em seu tratado Sobre o Batismo ele oferece indicações de como este sacramento era administrado na África do Norte de seu tempo. Seu próprio conceito sobre a eficácia do batismo é um tanto realístico, e ele começa seu tratado sobre o assunto exclamando: “Feliz é nosso sacramento de água, visto que, lavando os pecados de nossa cegueira anterior, somos postos em liberdade e admitidos na vida eterna!”494 Sobre a eucaristia, ele não é nem claro nem detalhado, e há apenas algumas questões

489

Adv. Prax. 27 (ANF, 3:624). Cp. De carne Chr. 5. De carne Chr. 23. Cp. J. A. De Aldama, “La virginidad in partu en la exégesis patrística”, Salmanticensis 9 (1962), 113-153. Ele também afirma que Cristo tinha irmãos. De carne Chr. 7. 491 A principal fonte de Tertuliano para seu tratado Sobre a Alma é o médico Sorano de Éfeso. Heirinch Karpp “Sorans vier Bücher περι φυχης und Tertullians Schrift De anima”, ZntW, 33 (1934), 31-47; André Jean Festugière, “La composition et l’esprit du De anima de Tertullien”, RScPhTh, 33 (1949), 129-161. 492 De anima. 27. 493 De test. Animae 3; De anima 40. 494 De baptismo 1 (ANF, 3:669). Ver também Robert E. Roberts, The Theology of Tertullian (Londres: Epworth Press, 1924), pp. 191-198.

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quanto a se ele a interpretava em termos realísticos ou em termos simbólicos,495 embora provavelmente a própria proposição da questão seja um anacronismo. A obra de Tertuliano é de grande importância para a historia do pensamento cristão.496 Embora já existisse alguma literatura cristã latina quando Tertuliano começou a escrever,497 esta literatura ainda não tinha desenvolvido uma terminologia capaz de expressar os temas teológicos mais refinados. Foi Tertuliano, pelo menos até onde sabemos, que produziu esta terminologia.498 Ao fazer isso, ele simplesmente não traduziu termos tomados dos escritores gregos, nem fez uso da linguagem da Bíblia em latim499 ou da profissão legal, 500 mas ele também imprimiu sua própria personalidade sobre esta terminologia e, através dela, sobre toda a teologia latina.501 Seu legalismo, o qual já era um produto da atmosfera ao seu redor, tanto cristã como pagã, tornou-se um fator adicional fortalecendo as inclinações legalistas que eram característica do cristianismo latino.502 Algumas de suas declarações – “o sangue dos cristãos é semente”, “o que tem Atenas a ver com Jerusalém”? “a alma é naturalmente cristã”, etc. – se tornaram parte da herança comum da civilização ocidental. Suas doutrinas a respeito da sucessão apostólica, da origem da alma e do pecado original deixaram uma profunda

495 F. R. M. Hitchcock, “Tertullian’s Views on the Sacrament of the Lord’s Supper”, ChQR, 134 (1942), 21-36, expõe as várias interpretações possíveis, embora ele mesmo esteja inclinado a entender Tertuliano em termos simbólicos. 496 Existem três aspectos da teologia de Tertuliano que não foram discutidas neste capítulo, mas que deveriam ser ao menos mencionadas como pontos de importância para o entendimento total de seu pensamento: sua teoria da penitência, sua ética rigorosa e sua escatologia. Sobre a penitência, ver: J. Hoh, “Die Busse bei Tertullian”, ThGl, 23 (1931), 625-638; C. Chartier, “L’excommunication ecclésiastique d’apreès les écrits de Tertullian”, Ant, 10 (1935), 301-344, 499-536; C. B. Daly, “The Sacrament of Penance in Tertullian”, IER, série V, 69 (1947), 693-707, 815-821; 70 (1948), 731-746, 832-848; 73 (1950), 156-169; G. Hallonsten, Satisfactio bei Tertullian: Überprüfung einer Forschungstradition (Malmo: GWK Gleerup, 1984). Sobre a ética de Tertuliano, ver: Th. Brandt, Tertullians Ethik: Zur Erfassung der systematischen Grundanschauung (Gütersloh: Bertelsmann, 1928). Sobre sua escatologia, ver Roberts, The Theology, pp 203-218; H. Finé, Die Terminologie der Jenseitsvorstellungen bei Tertullian (Bonn: P. Hanstein, 1958). 497 Minúcio Félix, que não será estudado aqui, pode ter sido mais antigo que Tertuliano, como é sustentado por: H. J. Baylis, Minúcio Félix and His Place among the Early Fathers of the Church (Londres: S.P.C.K., 1928); F. Lavallée, “L’apologétique de L’Octavius”, Mélanges J. Saunier (Lyon: Facultés catholiques, 1944); E. Paratore, “La questione Tertulliano-Minucio”, RicRel, 18 (1947), 132-159; Gilles Quispel, ´Anima naturaliter christiana”, Latomus, 10 (1951), 163-169; S. Rossi, “L’Octavius fu scritto prima del 161”, GItFil, 12 (1959), 289-304; S. Rossi, “Feriae vindemiales e feriae judiciariae a Roma (a proposito dell’Octavius di Minucio Felice)”. GItFil, 15 (1962), 193-224. Por outro lado, ver J. J. De Jong, Apologetiek en Christendom in den Octavius van Minúcio Félix (Maastricht: Boosten en Stols, 1935); H. Diller, “In Sachen Tertullian-Minúcio Félix”, Philologus, 90 (1935), 98-114, 216-239; B. Axelson, Das Prioritätsproblem Tertullian-Minúcio Félix (Lund: C.W.K. Gleerup, 1914). 498 Sua obra nesta direção não consiste em criar novos termos – embora uma lista de tais criações possa ser vista em R. Braun, “Deus Christianorun”: Recherches sur le vocabulaire doctrinal de Tertullien (Paris: Presses Universitaires de France, 1962), pp. 547-548 – mas antes em fixar o uso teológico daqueles já existentes. Cp. Franz Joseph Dölger, “Der Heiland”, AntCh, 6 (1950), 241-272; J. Moingt, “Une étude du vocabulaire doctrinal de Tertullien”, RScRel, 52 (1964), 248-260. 499 Christine Mohrmann, “Observations sur la langue et le style de Tertullien”, NDid, 4 (1950-51), 41-54. 500 A. Beck, Römisches Recht bei Tertullian und Cyprian: Eine Studie zur frühen Kirchenrechtsgeschichte (Halle: H. Niemeyer, 1930). 501 Sobre o uso exato de suas obras pelos escritores cristãos posteriores, ver Gustave Bardy, “Tertullien”, DTC, 15:168-169.


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impressão sobre o desenvolvimento do pensamento cristão. Sua fórmula trinitariana antecipou grandemente o desenvolvimento posterior desta doutrina, e numa mesma extensão é verdade sobre sua cristologia. E tudo isto ele foi capaz de alcançar apesar do fato de que a maior parte de sua produção teológica carrega a marca de sua fé montanista.

502

Ver, contudo, as objeções de E. Langstadt, “Some Observations on Tertullian’s Legalism”, SP, 6:122-126, que enfatiza que a concepção de “Lei” de Tertuliano não é tão rígida quanto a nossa, e que por isso sua “religião legalista” não é como tem sido geralmente descrita.


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VIII. A ESCOLA DE ALEXANDRIA: CLEMENTE E ORÍGENES Nos últimos dois capítulos estudamos duas posições teológicas que diferem em alguns aspectos, mas que têm vários pontos de contato. Nos voltaremos agora para uma outra corrente teológica que ao mesmo tempo fluiu destas duas, mas que era muito diferente delas: a teologia de Alexandria. No final do segundo século e início do terceiro, Alexandria era uma das principais cidades do Império. Somente Roma e Antioquia podiam rivalizá-la em importância política e econômica. Porém sua atividade cultural era superior até mesmo a da capital. Somente vinte e cinco anos depois que a cidade foi fundada – por Alexandre, o Grande, em 332 ou 331 a.C. – Ptolomeu Soter a adornou com a Biblioteca e o Museu que a fizeram famosa. A Biblioteca, cujos diretores estavam entre os mais notáveis eruditos do mundo, cresceu ao ponto de ter 700.000 volumes, o que a tornou em um arsenal de conhecimento estarrecedor para seu tempo. O Museu, como seu nome declara, era dedicado às Musas, e era um tipo de universidade na qual os mais ilustres escritores, cientistas e filósofos se reuniam e trabalhavam. Basicamente por causa destas instituições, Alexandria logo tornou-se famosa como um rico centro de conhecimento.503 Por outro lado, a posição geográfica de Alexandria deu um gosto especial ao pensamento que foi desenvolvido nesta cidade. Tudo isto é muito importante, porque o trabalho intelectual produzido em Alexandria era precisamente daquele tipo pelo qual o mundo estava sedento. O Egito era admirado pelos antigos gregos, que viam nele uma terra misteriosa e abundante em sabedoria oculta. Além disso, os mais diferentes tipos de doutrinas procedentes do Leste convergiram para Alexandria e ali formaram uma massa eclética. Em um capítulo anterior já foi dito que logo no início da era cristã haviam muitos judeus nesta cidade, e que eles traduziram suas Escrituras e interpretaram sua religião de um modo que claramente mostrava a influência da atmosfera local. Os judeus com suas Escrituras não foram os únicos que vieram para Alexandria, mas também os babilônicos com sua astrologia, os persas com seu dualismo, e muitos outros com suas religiões de mistério diferentes e freqüentemente confusas. Todas estas correntes, encontrando-se e prosperando em uma cidade que, em si mesma, era nova o suficiente para não ter uma tradição rigorosa, contribuiu para tornar Alexandria o centro de um tipo de pensamento que parecia ajustar-se as necessidades daquele tempo. Já foi salientado que o período helenísta foi caracterizado por seu individualismo e por seu cosmopolitanismo – em contraste com o pensamento e religião da Grécia antiga, que se 503

CAH, 7:142-154; 12:619-628. Ver também P. J. G. Gussen, Het leven in Alexandrië volgens de cultuurhistorische gegevens in de Paedagogus (boek II en III) van Clemens van Alexandrië (Assen: Van Gorkum & Co., 1956).


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concentrava na cidade. O individualismo deste período fez o povo escutar mais atenciosamente àquelas doutrinas que lhe prometiam um meio de dirigir suas vidas e alcançar a salvação – não importa o que isto pudesse significar. O cosmopolitanismo, por outro lado, deu força às tendências sincretistas da época, e preparou alguns círculos para a recepção de doutrinas ecléticas. Precisamente por causa das muitas influências que convergiam sobre ela, Alexandria estava especialmente bem preparada para produzir este tipo de doutrina. Esta é a razão porque a cidade, perto do fim do segundo século, era como uma panela fervente com diversos ensinos, todos eles de natureza eclética: o Gnosticismo sustentado por Basílides, o Neoplatonismo de Amônio Sacas e Plotino, o Judaísmo helenísta que resultou na tradição de Filo, e – o que é mais interessante para nós – o Cristianismo esotérico e platonista de Clemente e de Orígenes. Visto que já estudamos o Judaísmo helenísta, bem como o Gnosticismo de Basílides e outros, devemos oferecer agora uma breve descrição do Neoplatonismo plotiniano, a fim de termos um quadro geral da formação intelectual da escola cristã de Alexandria. 504 Como todos os filósofos de seu tempo, Plotino era um eclético que aproximou-se de Platão, Aristóteles bem como do Estoicismo. Seu sistema começa com o Único indescritível, o qual está acima de toda essência e de todo nome que possa ser dado a ele. A partir deste Único absolutamente transcendente surge todas as coisas que existem, contudo não por um ato de criação, mas antes pelo que pode ser entendido melhor por meio da metáfora da emanação. Muito claramente, uma vez que a divindade é concebida desta maneira, a criação não pode ser concebida como um ato da vontade, o que implicaria numa mudança na essência divina. A criação ocorre de tal modo que Deus continua imóvel no meio dela, sem desejá-la nem consentir com ela. Ela é um processo de emanação, semelhante ao modo pelo qual a luz se propaga ao redor de um corpo luminoso ou o calor ao redor de um corpo quente; ou, até mesmo melhor, como o perfume que se propaga de um corpo.505 Esta emanação sai do Único perfeito para a imperfeição e multiplicidade. Em primeiro lugar, existe o Intelecto (νους), que combina traços do Demiurgo de Platão com o Logos de Filo. A seguir, existe a Alma do Mundo, da qual toda a alma humana é uma parte. Assim desenrola-se toda uma hierarquia de seres, e seu último nível é a matéria no sentido do extremo da multiplicidade. Destro desta estrutura, cada um de nós é uma alma aprisionada dentro de um corpo.

504

Claramente, este livro somente pode incluir um sumário muito breve do Neoplatonismo de Plotino. Para leitura adicional, a melhor introdução ainda é a de Émile Bréhier, The Philosophy of Plotinus (Chicago: University of Chicago Press, 1958). 505 Nicolás Abbagnano, Historia de la filosofía (Barcelona: Montaner y Simón, 1955), 1:178.


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Assim, nossa tarefa é superar os limites de nossos corpos e subir para esta união mística com o Único, o que é chamado de êxtase. Clemente e Orígenes, a cujos pensamentos este capítulo é dedicado, e que estavam muito endividados ao Neoplatonismo, servem para ilustrar um meio de opor-se as heresias que é muito diferente da de Irineu ou de Tertuliano.506 Esta é a razão porque sua teologia também é muito mais ampla em extensão do que uma apologia ou uma refutação de heresias. Portanto, este capítulo – que poderia parecer excessivamente longo à primeira vista – é o ponto decisivo entre dois períodos fundamentais em nossa história. Por um lado, Clemente e Orígenes ainda estavam vivendo no período das perseguições e do Gnosticísmo – o que dá a sua obra um ponto de contato com os pensadores que foram examinados até agora. Por outro lado, sua teologia não está limitada a uma apologia ou a uma refutação de heresias, pelo contrário, é livre para subir em altos vôos especulativos – e isto é o que faz de seu trabalho o começo de um novo tipo de atividade teológica, com seus valores e seus perigos. É difícil reconstruir o desenvolvimento histórico da Escola de Alexandria. A interpretação tradicional tem sido que existia ali uma instituição formal que os eruditos chamam de “Escola Catequética de Alexandria”, e que oferecia não apenas o ensino básico, que servia como uma preparação para o batismo, mas também um nível mais alto de treinamento filosófico e teológico. Parece mais preciso dizer que Panteno – de quem se sabe muito pouco – fundou uma escola particular em Alexandria semelhante a que os filósofos comumente tinham, ou a que Justino tinha dirigido em Roma. Depois da morte de Panteno, ele foi sucedido como líder desta escola por Clemente. Quando Clemente teve de abandonar Alexandria por causa da perseguição de Sétimo Sevéro, provavelmente sua escola foi fechada. Quando Orígenes tinha dezoito anos de idade, ele recebeu a responsabilidade de preparar candidatos para o batismo. Provavelmente foi num período posterior, quando sua fama cresceu e muitos mostravam um interesse no nível mais alto de conhecimento que ele poderia oferecer-lhes, que Orígenes fundou uma nova escola de estudos superiores, semelhante aquela que tinha sido dirigida por Panteno e por Clemente.507 Então ele deixou a tarefa catequética nas mãos de Heraclas. Deste modo, o termo “Escola de Alexandria” como é usado aqui, não se refere a uma instituição em particular, tal como a escola catequética ou a um centro de estudos superiores. Antes ele é usado no sentido de uma escola ou tendência teológica, contudo não devemos esquecer que esta escola teológica fez muito de seu trabalho através das instituições de catequese e de estudo superior, que foram dirigidas por Panteno, Clemente e Orígenes. 506

Harold Arthur Blair, “Two Reactions to Gnosticism”, ChQR, 152 (1951), 141-158. Jean Daniélou, Origen (Nova Iorque: Sheed & Ward, 1955), pp. 9-20; Manfred Hornschuh, “Das Leben des Origenes und die Entstehung der alexandrinischen Schule”, ZschrKgescch, 71 (1960), 1-25, 193-214. 507


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Clemente de Alexandria Como todo o trabalho literário de Panteno – se de fato ele escreveu alguma coisa – se perdeu, Clemente é o primeiro teólogo que devemos estudar neste capítulo. Sabemos muito pouco sobre a vida de Clemente. Podemos supor que seus pais eram pagãos, pois esta foi a religião de sua mocidade. Parece que ele nasceu em Atenas, onde foi educado e onde viveu até sua conversão. Então ele partiu numa procura por sabedoria que o levou para a Itália, Síria e Palestina, até que encontrou Panteno em Alexandria e viu nele a luz orientadora que seu espírito necessitava. Ele estudou e em seguida trabalhou com Panteno, a quem ele sucedeu, provavelmente no ano 200. Mas logo a perseguição de Sétimo Severo (202 A.D.) o forçou a deixar Alexandria, e depois disto é ainda mais difícil de acompanhar sua vida. Apenas podemos dizer que ele visitou a Capadócia e Antioquia, e que morreu em alguma data entre 211 e 216 A.D. À parte de alguns fragmentos citados por escritores posteriores, as obras de Clemente que foram salvas para a posteridade são cinco: Exortação aos Gentios, O Instrutor, As Miscelâneas, Quem é o Homem Rico que Será Salvo? e Extratos de Teódoto. Esta última obra é, de fato, uma série de notas que Clemente parece ter reunido para algum projeto futuro, e não é muito útil para o estudo de sua teologia, entre outras razões porque é difícil, e às vezes impossível, distinguir entre aquilo que Clemente tirou de Teódoto e seus próprios comentários. Quem é o Homem Rico que Será Salvo? tem chamado pouca atenção dos historiadores do pensamento, principalmente porque estes historiadores geralmente não estão interessados nos ensinos cristãos sobre questões econômicas. O tratado, contudo, é importante como testemunha dos ajustes que a igreja teve de fazer quando um crescente número de entre os ricos uniram-se a ela. Nesta obra, juntamente com algumas palavras severas acerca do acúmulo desordenado de riquezas por alguns, Clemente argumenta que é possível ser rico e ainda ser salvo, se a pessoa lembrar-se que os bens foram criados por Deus, não para serem acumulados, mas para serem repartidos.508 A Exortação aos Gentios – normalmente chamada de Protreptikos – é a primeira de uma série de três obras que Clemente planejava escrever, relacionando cada uma delas com uma das três funções do Verbo, que exorta, guia e ensina. Esta é a razão porque a primeira obra devia ser chamada de Protreptikos, isto é, o exortador; a segunda obra deveria ser Paidagogos, o instrutor; e a terceira seria a Didaskalos, o professor.509 Como um exortador, o 508

Ver o tratamento simpático de W. Wagner, “Lubricating the Camel: Clement of Alexandria on Wealth and the Wealthy”, em W. Freitag, ed., Festschrift: A Tribute to Dr. William Holdern (Saskatoon: University of Saskatchewan, 1985), pp. 64-77. Embora eu tenha dado ao tratado de Clemente seu título tradicional em inglês, uma tradução mais literal seria: “Quem é o Rico que Será Salvo?” 509 Paid. 1.1.


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Verbo nos convida a abandonar o paganismo e seguir o caminho da salvação. É precisamente este o tema da Exortação aos Gentios, cujos doze capítulos são dedicados a atacar os erros dos pagãos e convidar o leitor a aceitar a fé cristã. Todavia, mesmo nesta obra de caráter apologético, Clemente demonstra apreço pelos valores da cultura helenista, e afirma que a verdade também é encontrada nos antigos filósofos e poetas. A segunda obra na trilogia de Clemente, Paidagogos ou Instrutor, é uma tentativa de levar os crentes, como os antigos escravos levavam as crianças, a padrões mais altos de comportamento, e particularmente a liberdade da escravidão das paixões. Finalmente, a Miscelâneas não cumpre a promessa que seu autor tinha feito de completar sua trilogia com uma obra sobre a função do Verbo como professor. É impossível saber a razão para isto. As duas explicações mais comuns são que Clemente decidiu que era incapaz de escrever a obra sistemática que ele tinha prometido, e que a Miscelâneas é apenas uma série de notas que Clemente estava preparando, a fim de escrever seu terceiro trabalho, o que ele foi incapaz de fazer antes de morrer.510 De qualquer modo, está muito claro que esta obra não é um estudo sistemático, mas antes é uma série de notas variadas, ou talvez algo como um tapete, onde os fios de pensamento vêm a superfície somente para ser perdido mais tarde sem dar ao leitor qualquer indício quanto ao que aconteceu com eles. É desta forma, e com uma quase total falta de ordem e esquema, que Clemente expõe os mais altos aspectos de sua doutrina. O melhor ponto de partida para um resumo da teologia de Clemente é o meio pelo qual ele concebe o relacionamento entre a verdade cristã e a verdade encontrada na filosofia grega. Sobre este ponto Clemente coloca a si mesmo honestamente dentro da tradição de Justino e de Atenágoras, e contra a atitude de Taciano e de Tertuliano. Clemente não tem dúvidas de que a verdade pode ser encontrada na filosofia dos gregos, e oferece duas explicações diferentes e parcialmente contraditórias, ambas foram dadas pelos escritores cristãos primitivos. Às vezes ele afirma que os filósofos tiraram suas melhores idéias dos hebreus.511 Mas ele também declara que eles conheciam a verdade por uma ação direta de Deus, de um modo semelhante aquele pelo qual os judeus receberam a Lei. Quando muito homens lançam um navio, não podem ser considerados muitas causas, mas uma causa consistindo de muitos; - pois cada indivíduo por si mesmo não é a causa do navio ser lançado, mas junto com o restante; - assim também a filosofia, 510

Sobre as várias soluções para este problema, ver J. Munck, Untersuchungen über Klemens von Alexandrien (Stuttgart: W. Kohlhammer, 1933), pp. 1-126. 511 Strom. 1.25; 5.14. Ver Thomas Finan, “Hellenism and Judeo-Christian History in Clement of Alexandria”, IrThQ, 28 (1961), 83-114.


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sendo a busca pela verdade, contribui para a compreensão da verdade; não como sendo a causa da compreensão, mas a causa junto com outras coisas, e colaborador; talvez também uma causa junta. E como as diversas virtudes são as causas da felicidade de um indivíduo; e como tanto o sol como o fogo, o banho e a roupa são o aquecimento de alguém: assim embora a verdade seja uma, muitas coisas contribuem para sua investigação. Mas sua descoberta é pelo Sol.512 Portanto “o mesmo Deus que forneceu ambos os Pactos [o da Lei e o da Filosofia] foi o doador da filosofia grega para os gregos, pela qual o Todo-poderoso é glorificado entre os gregos”.513 É a segunda destas explicações que parece ser a verdadeira posição de Clemente, quando ele trata do relacionamento entre a verdade encontrada na filosofia e a encontrada na Escritura. A outra explicação, ele provavelmente via como um argumento tradicional, útil nas polêmicas e talvez parcialmente verdadeiro, mas que falha em fazer justiça à grandeza da filosofia grega. Como a verdade é uma só, ela deve ser reconhecida como tal onde quer que seja encontrada, e sua origem também deve ser confessado ser uma só: Deus. Neste ponto Clemente vai um passo além de Justino. O último admitia um certo grau de verdade à filosofia pagã; ele tentava mostrar que as mais altas doutrinas dos filósofos concordavam com as Escrituras; e até mesmo declarava a origem divina desta verdade que os filósofos tinham. Mas Clemente assevera que a filosofia foi dada aos gregos com o mesmo propósito com que a Lei foi dada aos judeus: para servir como uma criada para levá-los a Cristo.514 Além disso, a filosofia é o pacto que Deus estabeleceu com os gregos,515 e – assim como os judeus têm seus profetas – sob seu pacto pessoas como Homero, Pitágoras e Platão foram inspirados.516 A verdade é única e vem de Deus, de modo que os cristãos podem e devem ver na filosofia o reflexo da mesma verdade que lhes foi revelada. Se alguns temem que isto possa levá-los ao erro, eles perderam a fé no poder da verdade, a qual pode vencer seus inimigos.517 Isto não significa, contudo, que a fé não é necessária para se conhecer a verdade. É verdade que a filosofia trabalha principalmente com base em demonstrações racionais. Mas mesmo os filósofos concordam que é impossível provar o primeiro princípio sobre o qual 512

Strom. 1.20 (ANF, 2:323). Ibid., 6.5. (ANF, 2:489). 514 IIbid., 1.20. 515 Ibid., 6.8. 516 Ibid., 5.5, 14. 517 Realmente, a diferença entre Justino e Clemente com relação ao relacionamento entre a filosofia e as Escrituras é o resultado de suas circunstâncias e propósitos diferentes. Justino escreve para incrédulos, e seu propósito é mostrar-lhes que o Cristianismo é racional. Clemente escreve para crentes, e seu propósito é mostrarlhes o valor da filosofia para a vida cristã. 513


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todas as outras demonstrações estão fundadas. Este primeiro princípio somente pode ser aceito por um ato da vontade, isto é, pela fé. Por outro lado, não é suficiente dizer que a fé é o ponto de partida do conhecimento; devemos adicionar que o conhecimento também é necessário para a fé. A fé não é uma mera adivinhação, ou uma decisão arbitrária quanto a quais princípios são verdadeiros. Esta decisão é tomada com base no conhecimento. “Consequentemente o conhecimento é caracterizado pela fé; e a fé, por um tipo de correspondência mútua e recíproca, torna-se caracterizada pelo conhecimento.”518 O fato de que o “conhecimento deve ser crido” é a essencia da resposta de Clemente àqueles que tentam desenvolver uma filosofia autônoma. O fato paralelo de que “a fé deve ser conhecida” é essência de sua oposição aos hereges. Estes últimos são como pessoas que não podem fazer distinção entre uma moeda verdadeira e uma falsa, pois eles não têm o conhecimento necessário para fazer um julgamento.519 Se a fé não é uma decisão arbitrária, mas faz uso da ajuda que o conhecimento lhe dá, os hereges não têm verdadeira fé, pois sua “fé” está baseada em suas próprias afeições e não no conhecimento da Escritura. Clemente nunca duvida que as Escrituras são inspiradas por Deus. Sua segurança quando a este ponto é tal que ele nunca desenvolve uma teoria sobre a inspiração.520 Deus fala nas Escrituras, e a maneira pela qual este fato está relacionado com aqueles que realmente escreveram o texto sagrado não é um problema de importância primária. O que, de fato, é importante é determinar o modo pelo qual Deus fala na Escritura, pois se esperamos encontrar ali a expressão literal da Palavra de Deus, a interpretação resultante será muito diferente do que seria, se pensássemos que no texto sagrado Deus fala através de alegorias ou símbolos. Como um membro fiel da tradição exegética, a qual já encontramos no Judaísmo alexandrino de Filo e na Epístola de Barnabé, Clemente crê que a interpretação alegórica da Escritura é um dos principais instrumentos da hermenêutica. Por muitas razões, então, as Escrituras escondem o sentido. Primeiro, para que possamos nos tornar curiosos, e estar sempre vigilantes para a descoberta das palavras de salvação. Então não era adequada para todos entender, de modo que eles não poderiam receber dano como conseqüência de tomarem um outro sentido as coisas declaradas para a salvação pelo Espírito Santo. Razão porque os santos mistérios da profecia estão escondidos nas parábolas – preservadas para homens escolhidos,

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Strom. 2.4. (ANF, 2:350). E. F. Osborn, The Philosophy of Clement of Alexandria (Cambridge: Cambridge University Press, 1957), pp. 113-174. 519 Strom. 2.4. Cp. Strom. 7.17, onde é dito que os hereges têm uma chave forjada que não lhes permite entar na verdade. 520 Claude Mondésert, Clément d’Alexandrie: Introduction à l’étude de sa pensée religieuse à partir de l’Ecriture (Paris: Aubier, 1944), p, 83.


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selecionados para conhecimento como conseqüência de sua fé; pois o estilo das Escrituras é parabólico (alegórico).521 Contudo, devemos ser cuidadosos para não exagerar a inclinação de Clemente para o alegorismo, pois ele não tenta abandonar o sentido histórico da Escritura, como freqüentemente tem sido feito por muitos um intérprete alegórico. Por exemplo, enquanto que o autor da assim chamada Epístola de Barnabé pensava que um anjo mal tinha levado os judeus a interpretar a Lei literalmente, Clemente diz mais de uma vez que as Escrituras tem um sentido histórico literal.522 Esta é a razão porque, referindo-se a Clemente, Claude Mondésert pode dizer que “a Bíblia é para ele ... a narração de uma revelação que foi experimentada na história; é a história, em fatos concretos e em ações pessoais, dos atos de Deus para com os homens, e repetidas intervenções divinas na história do mundo.”523 A fim de manter ao mesmo tempo este sentido histórico da Escritura e a liberdade e profundidade que nascem da interpretação alegórica, Clemente propõe a doutrina dos vários sentidos das Escrituras. Esta doutrina é baseada em uma concepção cosmológica total que é tipicamente platônica, e segundo a qual as realidades deste mundo são símbolos das verdades eternas.524 Assim como as coisas neste mundo são verdadeiras, mas têm seu maior valor como sinais que apontam para o mundo da realidade última, o significado histórico e literal do texto sagrado é verdadeiro, mas este texto tem seu maior valor quando é interpretado como sinal ou alegoria que mostra a verdade mais profunda do universo. Todo texto tem pelo menos dois sentidos: um literal e um espiritual. Esta é a regra básica da exegese de Clemente, embora, às vezes, ele encontre vários níveis dentro do sentido espiritual.525 O sentido literal é aquele que é encontrado no texto em si, sem qualquer tentativa de se descobrir o sentido oculto. Isto não significa que o sentido literal é sempre aquele que resulta de uma interpretação literalista ou simples do texto, e por esta razão pode ser mais preciso chamar este sentido de o “primeiro sentido”, em contraste com os “sentidos adicionais”, que podem ser descobertos através da interpretação alegórica. Existem casos em que este primeiro sentido coincide com o sentido literal das palavras encontradas no texto. Este é o caso com os textos históricos do Velho Testamento. Mas também existem ocasiões em que o primeiro sentido não é estritamente o literal ou o simples, pois uma interpretação como esta seria completamente falsa. Este é o caso com muitas das parábolas, metáforas e alegorias que podem ser encontradas na Escritura, e cujo primeiro sentido não é sua interpretação literalista,

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Strom. 6.15 (ANF, 2:509). Ibid., 1.21; 2.19; 3.6; 6.3, 8; 7.3. 523 Mondésert, Clément, p. 87. 524 Ibid., pp. 131-135. 525 Cp. Strom. 1.26; 6.15, 7.16. 522


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mas seu sentido figurado. Este sentido primário de um texto bíblico certamente não é o mais alto, e o cristão que espera alcançar um entendimento profundo não deve contentar-se com ele; mas isto não sugere que o “primeiro sentido” não é importante, ou que ele pode ser deixado de lado sem abandonar a verdade bíblica. Pelo contrário, o “primeiro sentido” é o ponto de partida de cada outro sentido do texto. Especialmente no caso de textos históricos e proféticos, negar este sentido primeiro e literal da Escritura implicaria em negar a ação e as promessas de Deus. Existe apenas uma razão que pode ser citada a fim de negar-se o sentido literal de um texto em particular: que ele diz algo que é indigno de Deus. Assim, por exemplo, os textos que se referem a Deus em termos antropomórficos devem ser interpretados de modo que seja visto que seu antropomorfísmo é uma alegoria que aponta para verdades mais profundas. 526 Em cada texto existe sempre um ou mais “sentidos adicionais”, além e acima de seu sentido primário e imediato. Existem para serem descobertos através da interpretação alegórica. A generosidade de Deus é tal, que seria insensatez crer que pode haver apenas um ensino em um texto em particular. Deus é tão amoroso e misericordioso, que o mesmo texto dirige-se ao mais ignorante bem como ao mais sábio, falando-lhes nos diferentes níveis que são apropriados ao nível de percepção de cada grupo de crentes. Portanto, um cristão que deseja alcançar uma posição mais alta nesta filosofia que é o Cristianismo, deve procurar constantemente, por trás do sentido primeiro ou literal de um texto bíblico, um sentido adicional de natureza alegórica ou espiritual, o qual pode até mesmo desdobrar-se em várias interpretações diferentes e valiosas. Esta doutrina dos vários sentidos de um texto bíblico é o ponto de partida da interpretação alegórica de Clemente, a qual, por sua vez, é uma das principais características de seu trabalho teológico. Devemos ter em mente, contudo, que não é um alegorismo ilimitado, nem um alegorismo que deixa a verdade histórica de lado. A interpretação alegórica de Clemente é geralmente mantida dentro de certos limites ou princípios exegéticos, embora seja possível apontar algumas infelizes exceções a esta regra. O primeiro destes princípios exegéticos já foi discutido acima: a interpretação alegórica não deve descartar o sentido primário do texto, exceto quando este sentido é tal que contradiz o que já é conhecido sobre o caráter e a dignidade de Deus. Deste modo, a verdade histórica à qual os textos bíblicos se referem não desaparece. Embora Clemente freqüentemente dê muito mais atenção ao sentido mais alto de modo que o sentido histórico é forçado para o fundo, existem muitos outros exemplos nos quais os dois níveis de interpretação estão tão misturados que a exegese resultante é tipológica em vez de

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Strom. 2.16.


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alegórica. 527 Assim, por exemplo, o sacrifício de Isaque, embora sendo um evento histórico, também é um sinal ou tipo que aponta para o sacrifício de Jesus Cristo; e o relacionamento entre estes dois não é encontrado em alguma alusão alegórica dentro do texto de Gênesis, mas antes na estrutura e até mesmo nos detalhes dos eventos históricos em si mesmos. Pois ele [Isaque] era o filho de Abraão, como Cristo o Filho de Deus, e um sacrifício assim como o Senhor, mas ele não foi imolado como o Senhor. Isaque somente carregou a madeira do sacrifício, como o Senhor a madeira da cruz. E ele riu misticamente, profetizando que o Senhor nos encheria com alegria, nós que fomos redimidos da corrupção pelo sangue do Senhor. Isaque fez tudo exceto sofrer, como era direito, dando a precedência no sofrimento ao Verbo. Além disso, há uma sugestão sobre a divindade do Senhor em ele não ser assassinado. Pois Jesus ressuscitou após Seu sepultamento, não tendo sofrido dano, como Isaque foi libertado do sacrifício. 528 O segundo princípio exegético de Clemente é que cada texto deve ser interpretado à luz do restante da Escritura. Isto significa, primeiramente, que cada texto deve ser entendido dentro de seu contexto próprio e imediato.529 Mas Clemente entende este princípio exegético em um sentido muito mais amplo, de modo que isto o conduz a complicadas interpretações alegóricas. O modo pelo qual ele aplica este princípio é geralmente procurar outros textos nos quais os mesmos conceitos, as mesmas coisas, os mesmos nomes, ou até mesmo o mesmo número aparece, ver como eles devem ser entendidos alegoricamente neste segundo texto, e então transportar este sentido ao texto que ele está presentemente estudando.530 Ao apelar para vários textos em outras partes da Escritura, podemos descobrir coisas inesperadas dentro de uma passagem em particular. Naturalmente, como as ferramentas críticas e históricas de Clemente estavam limitadas a seu tempo, este método resultou nas mais extravagantes interpretações. Contudo, não deveríamos esquecer que neste princípio existe uma tentativa de manter a interpretação alegórica dentro da estrutura do pensamento bíblico. Como um exemplo do modo pelo qual Clemente aplica este princípio, podemos citar o texto no qual, a fim de esclarecer o significado do sexto capítulo do Evangelho de João, onde Jesus fala a seus discípulos que eles devem comer seu corpo e beber seu sangue, Clemente apela para Gênesis 4:10, onde Deus diz a Caim: “A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim.” Sobre a autoridade deste último texto, Clemente alega que na linguagem bíblica o “sangue” é um símbolo do Verbo, e que por isso o sangue ao qual o Senhor se refere nada mais é do que ao

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Daniélou, Origen, pp. 139-173, dá ênfase ao caráter tipológico da exegese de Clemente. Ver também seu artigo “Typologie et allégorie chez Clément d’Alexandrie”, SP, 4 (1959), 50-57. 528 Paid. 1.5 (ANF, 2:215). 529 Strom. 3.11. 530 Mondésert, Clément, p. 139.


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Verbo.531 Uma das principais características da teologia de Clemente nasce da distinção entre os vários níveis de sentido nas Escrituras, e de sua inclinação para a pesquisa filosófica. Esta característica é evidente em sua distinção entre os cristãos simples e o os “verdadeiros gnósticos”. Clemente crê que, acima e além da fé simples que todos os cristãos possuem, também podemos alcançar um entendimento mais profundo da verdade eterna, uma “gnosis” superior que é reservada para aqueles poucos e privilegiados espíritos que exercitam-se a si mesmos constantemente em uma procura intensa pela verdade. Esta “verdadeira gnosis”, a qual Clemente opõe à “falsa gnosis” dos hereges, é ética bem como intelectual. “Em contraste com o simplesmente crer, o novato inculto, inclinado às aparências, está o cristão que vê os mistérios de Deus, e que, com o coração e o entendimento, recebe Deus em comunhão duradoura.”532 Não é simplesmente uma questão de descobrir a verdade intelectual superior, mas também viver uma vida de uma ordem superior.533 Alcançamos esta “gnosis” através dos vários meios dos quais Clemente freqüentemente fala, mas cujo relacionamento interior ele não esclarece: inspiração pessoal; exegese alegórica; dialéticas platônicas; e uma tradição secreta à qual ele repetidamente apela, mas cujo caráter, conteúdo e meios de transmissão é impossível de determinar.534 De qualquer modo, o ponto importante é que o pensamento de Clemente tem uma natureza notadamente aristocrática e esotérica, de modo que ao ler suas obras devemos entender que elas não refletem a teologia da igreja de Alexandria, mas antes a de um grupo de cristãos dotados daquela cidade. Tendo discutido os princípios e características básicas da teologia de Clemente, voltemos agora para seu conteúdo. Quando fala sobre Deus, Clemente concorda com a doutrina neoplatônica ao asseverar que deve principalmente ser feito em termos negativos. Deus não tem atributos, e está além da categoria de substância. Nada pode ser dito diretamente sobre Deus, pois o divino não pode ser definido.535 Mas a estas declarações de natureza notadamente platônica uma outra deve ser adicionada, a qual é o resultado da fé cristã de Clemente: Deus é triuno. Ao lado do Pai, e por toda a eternidade, está o Verbo.536 Como já foi dito, o Verbo é a fonte de todo conhecimento, e mais especialmente do

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532

Paid. 1.6.

Reinhold Seeberg, Textbook of the History of Doctrines (Grand Rapids: Baker Book House, 1956), 1:142. Strom. 4.21, 23; 6.9, 10; 7.3, 7-15. 534 Ibid., 6.7. 535 Osborn, Clement, pp. 25-32. 536 Strom. 5.1. Clemente nunca diz que o Verbo é homoousios com o Pai. Mas Harnack pensava que provavelmente ele conhecia este termo como um modo de referir-se comunidade de natureza que o Logos possui, tanto com o Deus como com os seres humanos (HD, 2:352, n.2). Por outro lado, Fotius afirma que Clemente incluía o Filho entre as criaturas (Bibliotheca, 109; PG, 103:384). 533


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conhecimento de Deus.537 O Verbo também é o princípio de toda a criação, pois “sem ele nada foi feito”. Embora Clemente coloque-se dentro da tradição do Quarto Evangelho ao afirmar a co-eternidade do Verbo e do Pai, seu ensino sobre este ponto tem um certo sabor platônico, especialmente quando ele fala do Verbo como simultâneo e múltiplo, isto é, como um ser intermediário entre a inefável unidade de Deus e a multiplicidade do universo.538 Este Verbo de Deus, fonte de todo conhecimento e de cada criatura, encarnou-se em Jesus Cristo.539 A encarnação é o ápice ao qual o Verbo dirigiu todo seu trabalho anterior, tanto entre os judeus como entre os gentios. Deste modo, o Verbo inspirou a filosofia aos gregos e a Lei aos judeus, de modo que tanto uma como a outra pudessem servir como criados para conduzir o povo a Cristo, o Verbo encarnado. Isto conduz a toda uma doutrina da história, uma história que, como Mondésert diz, desdobra-se, move-se até alcançar um evento supremo; mas ele somente alcança este ponto a fim de começar sua marcha novamente, embora sem livrar-se da influência deste ponto central e alto que ele alcançou; depois deste ponto a história não é mais um movimento linear e horizontal, mas antes uma ampla espiral que sobe sem jamais abandonar o eixo que ele encontrou.540 Contudo, apesar da importância que Clemente dá a encarnação, devemos salientar que o modo pelo qual ele entende este evento, deixaria muito a desejar do ponto de vista de Tertuliano ou de Irineu. Segundo ele, o Verbo assumiu a humanidade, e não há dúvida de que Cristo era humano em seu corpo bem como em sua alma.541 Mas esta união do divino e o humano é tal que algumas das características fundamentais da humanidade são perdidas. De fato, no texto seguinte, no qual Clemente ataca o ensino docético, ele entretanto é levado a uma posição muito próxima do Docetismo, e que nasce das mesmas considerações que levaram alguns a abraçar esta doutrina. No caso do Salvador, era ridículo [supor] que o corpo, como um corpo, exigia a necessária ajuda para sua continuação. Pois Ele comia, não por causa do corpo, o qual era sustentado por uma santa energia, mas para que não pudesse entrar nas mentes daqueles que estavam com Ele para acolher uma opinião diferente Dele; da mesma maneira como certamente alguns mais tarde imaginaram que Ele apareceu numa forma fantasmal. Mas ele era inteiramente impassível, inacessível a qualquer mecanismo de sentimento – quer de prazer ou de dor.542 537

Ver Erich Fascher, “Der Logos-Christus als göttlicher Lehrer bei Clemens von Alexandrien”, em Studien zun Neuen Testament und zur Patristik (Berlim: Akademie-Verlag, 1961), pp. 193-207. 538 Cp. Osborn, Clement, pp. 34-44. 539 Exhort. 11; Paid. 1:74; Strom. 5.16. 540 Mondésert, Clément, p. 188. 541 Paid. 1.2. 542 Strom. 6.9 (ANF, 2:496). Cp. Strom. 3.7.


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Clemente não desenvolve uma doutrina clara sobre o Espírito Santo. Talvez o modo pelo qual ele faça do Verbo o iluminador e inspirador dos crentes, torne difícil para ele atribuir uma função paralela ao Espírito. Isto não significa, contudo, que Clemente não distinga a pessoa do Espírito das outras duas pessoas da Trindade – embora sem fazer uso do termo “pessoa”, desconhecido para Clemente dentro deste contexto. Para ele, o Espírito é, sobretudo, o princípio de coesão que nos atrai para Deus. De qualquer modo, não há dúvida de que Clemente claramente afirme a natureza triúna de Deus, pois freqüentemente podemos encontrar fórmulas trinitarianas em suas obras. 543 Este Deus triuno é o Criador. O mundo é o resultado de uma ação de Deus. Ele não apenas emanou da divindade; nem é uma mera ordenação de um material preexistente.544 A criação ocorreu fora do tempo – uma doutrina para a qual Clemente crê que pode encontrar apoio nos filósofos bem como na Escritura.545 Além disso, a criação não deve ser confundida com a mera preservação do universo, pois Clemente crê que Deus, que fez todas as coisas no princípio, não cria mais, mas antes deixou a preservação e a multiplicação das coisas à ordem natural estabelecida no princípio.546 A criação inclui não apenas os seres humanos e este mundo no qual vivemos, mas também os anjos e outros seres celestiais. Refletindo os sete dias que Deus empregou para fazer o universo, toda a criação têm o número sete como sua estrutura fundamental: Existem sete membros na primeira ordem angélica; os planetas são sete; as estrelas na Plêiades são sete, etc.547 Deste modo, Clemente já exemplifica um dos grandes interesses que caracterizarão muito da teologia cristã que tem sofrido a influência platônica: a investigação da estrutura hierárquica e numérica do universo e, acima de tudo, das hostes celestiais. Em alguns aspectos, a antropologia de Clemente aproxima-se da de Irineu de um modo que é surpreendente em dois teólogos de tendências tão diferentes. Para Clemente, como para Irineu, a humanidade foi criada com inocência infantil, e devia alcançar o propósito da criação através de um crescimento adicional até a perfeição.548 Com a queda, a qual ocorreu porque os seres humanos fizeram uso de suas capacidades sexuais antes que Deus o pretendesse,549 nos tornamos sujeitos ao pecado e a morte. Contudo, Clemente difere grandemente de Irineu em que, para ele, Adão não é o cabeça da humanidade, mas antes um símbolo daquilo que acontece com cada um de nós individualmente.550 Quando uma criança 543

Exhort. 12; Paid. 1.42; 3.12; Strom. 5.14. Strom. 5.14. 545 Ibid., 6.16. 546 Em um fragmento preservado por Atanásio Sinaíta (q. 96). Tradução para o inglês: ANF, 2:584. 547 Strom. 6.17. 548 Ibid., 2.22. 549 Ibid., 3.17. 550 Ver John Norman Davidson Kelly, Early Christian Doctrines (Londres: A. & C. Black, 1960), p. 179. 544


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nasce, ela não está sob “a maldição de Adão”. Mas, no final das contas, todos nós pecamos, e todos nos tornamos como Adão. Então, todos estamos sujeitos ao Diabo, e assim nos tornamos escravos do pecado e da morte. Isto não significa que a liberdade humana está completamente destruída. Pelo contrário, Deus, por meio do Verbo, oferece a fé. Devemos decidir se a aceitamos ou não, exercendo assim nossa liberdade.551 Esta fé é apenas o começo da nova vida, a qual Clemente às vezes descreve como o recomeço daquele crescimento que foi interrompido pelo pecado, e às vezes como um processo de divinização. Seguindo seu próprio interesse esotérico, Clemente assevera que esta fé deve ser seguida pelo temor e pela esperança, os quais levam ao amor e finalmente a uma “verdadeira gnosis”. Se a totalidade deste desenvolvimento deve ocorrer nesta vida, ou se podemos continuar o processo de divinização mesmo além da morte, é uma questão que não é claramente respondida nas obras de Clemente. Contudo, devemos tomar cuidado para não interpretar a doutrina da salvação de Clemente em termos excessivamente individualistas, pois a igreja tem um papel importante no processo de salvação. A igreja é a Mãe dos Crentes,552 e é dentro dela que o processo de iluminação e divinização ocorre, o que leva o cristão à vida do “verdadeiro gnóstico’. Entra-se nesta igreja através do batismo, e se é alimentado dentro dela por meio da eucaristia. O batismo é a purificação do pecado, e é neste ato que a iluminação ocorre, a qual é a raiz da vida cristã.553 Clemente não crê que um cristão receba a plenitude desta vida no batismo, mas somente o ponto de partida para um crescimento adicional que deveria levar a perfeição. Por outro lado, a eucaristia é realmente eficaz como um meio de nutrir a fé e fazer seu participante compartilhar da imortalidade, mas isto não significa que o pão é literalmente o corpo de Cristo, ou que o vinho é seu sangue.554 A importância da teologia de Clemente é encontrada principalmente no modo pelo qual ela é guiada por sua doutrina do Verbo. Esta doutrina é a ponte pela qual ele relaciona a filosofia pagã com a Escritura. Ela também é o princípio de unidade dentro da totalidade da história, e especialmente, o princípio de unidade entre ambos os Testamentos. A iluminação e a participação do Verbo é a base da vida superior do “verdadeiro gnóstico”. Por outro lado, é na doutrina do Verbo que podemos ver mais claramente o conflito não resolvido entre as tradições helenista e cristã: nesta doutrina encontramos elementos platônicos e outros tirados da Escritura existindo lado a lado em uma tensão que não é resolvida. É precisamente esta tensão que torna Clemente tão importante para a história do pensamento cristão. 551

Ver Osborn, Clement, p. 51. Paid. 1.5. 553 Ibid., 1.6. 554 Ibid. Apesar dos argumentos em contrário de Quasten, Clemente não parece tratar a eucaristia como um sacrifício. Cp. Johannes Quasten, Patrology (Paramus, N. J.: Paulist/Newman Press, 1953), 2:28-30). 552


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“Platônico e bíblico, ele é uma testemunha original deste extraordinário encontro entre o gênio grego e o do Oriente, e entre a especulação humana e a revelação divina.”555 Não deveríamos ficar surpresos de que sua tentativa de conciliação dentro deste encontro nem sempre fosse bem sucedido. Não poderia ser de outro modo, dado ao fato de que ele foi um pioneiro abrindo novos e inexplorados caminhos. Além disso, devemos nos lembrar que o propósito particular da Exortação, bem como o do Instrutor, foi realizado com um tal grau que e duplamente doloroso que, em vez do prometido Professor, apenas possuímos a estranha coleção de material variado chamado Stromata. Finalmente, Clemente também é importante para a história do pensamento cristão, porque ele foi capaz de transmitir alguns de seus conceitos fundamentais, e especialmente o espírito básico desta teologia, a Orígenes, que mais tarde os sistematizou e os transformou em um edifício teológico imponente. Orígenes Diferentemente de Clemente, Orígenes nasceu de pais cristãos.556 Seu pai, Leonidas, perdeu sua vida como mártir no ano de 202, durante a perseguição de Sétimo Severo. Nesta época Orígenes exortou seu pai a ser fiel até a morte, e seu zelo era tal que sua mãe escondeu sua roupa para que ele não pudesse sair e conseguisse ele mesmo ser preso. Pouco depois da morte de seu pai, Orígenes, que ainda estava no princípio de sua juventude, começou a ensinar literatura e filosofia como um meio de ganhar sua subsistência. Logo a comunidade cristã de Alexandria teve de enfrentar o problema que, devido a ausência de muitos de seus líderes, por causa da perseguição, não havia ninguém para ensinar os fundamentos do Cristianismo àqueles que estavam solicitando treinamento para o batismo. Àquela altura alguns pagãos convertidos – um certo Plutarco e seu irmão Heráclas, que mais tarde tornou-se bispo de Alexandria – se aproximaram de Orígenes e pediram-lhe que os instruísse na fé cristã. Deste modo, defrontado pela necessidade de continuar o ministério do ensino da igreja, o Bispo Demétrius deu esta responsabilidade a Orígenes, que tinha então dezoito anos de idade, e que tinha estudado com Clemente. Seu próprio temperamento levou Orígenes a tomar esta responsabilidade com grande zelo, e ele dedicou-se não apenas a estudos intensivos, mas também à prática de uma vida austera, a qual ele sempre considerou ser um aspecto importante na vida do filósofo. Então, com a consideração apropriada, para que não precisasse da ajuda dos outros, ele se desfez dos livros de literatura antiga que ele possuía, por mais valiosos que fossem, 555

Mondésert, Clément, p. 267. As principais fontes sobre a vida de Orígenes são: Eusébio (HE 6) Panfilo de Cesaréia (o que permanece de sua Apologia), Gregório, o Fazedor de Milagres (Oratio) e Jerônimo (De viris illus. 54. 62).

556


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ficando satisfeito em receber do comprador quatro óbolos por dia. Por muitos anos ele levou uma vida de filósofo desta maneira, pondo de lado todos os incentivos dos desejos juvenis. Durante todo o dia ele suportava não pouca disciplina; e na maior parte da noite ele dedicava-se ao estudo das Escrituras Divinas. Ele restringiu-se tanto quanto possível a uma vida mais filosófica; às vezes pela disciplina do jejum, ou pelo tempo limitado de sono. E em seu zelo, ele não se deitava sobre a cama, mas ao chão.557 Esta tendência ascética do temperamento de Orígenes foi brutamente mostrada quando ele tomou literalmente a referência do Evangelho a “aqueles que tornam-se eunucos por causa do reino dos céus”. Sua ação resultante, pela qual ele despojou-se de seus próprios órgãos sexuais, mais tarde foi para ele uma fonte de dificuldades com as autoridades eclesiásticas, especialmente com o Bispo Demétrio, que pensava que pelo fato de ele ter se castrado, excluía Orígenes da possibilidade de receber ordenação sacerdotal.558 Enquanto isso, a fama de Orígenes estava se espalhando, e logo seus discípulos eram tantos que ele foi incapaz de ensinar a todos eles. Foi então que ele confiou o ensino dos candidatos ao batismo a seu discípulo Heraclas, e concentrou-se na instrução daqueles que vinham atrás de um conhecimento mais profundo. Assim, Orígenes fundou uma nova escola de estudos superiores semelhante àquela dos antigos filósofos, e à de Justino e Panteno. Foi através do seu ensino nesta escola que ele tornou-se tão conhecido que até mesmo os pagãos se interessavam em ouvir o grande filósofo – entre eles o governador da Arábia e a mãe do imperador. Como ele não tinha sido ordenado para ensinar, Orígenes permaneceu um leigo por vários anos. Quando finalmente ele foi ordenado, isto foi feito em tais circunstâncias que lhe criaram novas dificuldades. Enquanto ele visitava a Palestina, por volta do ano 216, um grupo de bispos desta região pediu-lhe para expor as Escrituras em suas igrejas. Orígenes concordou, pensando ser sua obrigação aceitar esta ocasião para explicar a mensagem das Escrituras. Quando o Bispo Demétrio de Alexandria foi informado disto, ordenou que Orígenes retornasse imediatamente para Alexandria, pois não era permitido para um leigo pregar perante bispos. Orígenes concordou com isso, e a questão foi esquecida até alguns anos mais tarde, quando ele retornou à Palestina em seu caminho para Antioquia. Novamente os bispos locais pediram-lhe para pregar, e desta vez eles ordenaram Orígenes. Embora pareça que o propósito sincero desta ação não era antagonizar Demétrio, foi de fato uma medida imprudente. Assim que Demétrio soube que Orígenes tinha sido ordenado pelos bispos da

557 558

Eusébio, HE 6.3 (NPNF, 2a série, 1: 252). Cp. Richard Patrick Crosland Hanson, “Note on Origen’s self-mutilation”, VigCh, 20 (1966), 81-82.


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Palestina, ele interpretou isso como uma tentativa de fugir de sua autoridade. Além disso, Demétrio cria que o ato de Orígenes de castrar-se deveria mantê-lo fora das fileiras do clero, e também é possível que possa ter havido uma medida de inveja em sua atitude. Daí seguiu-se uma longa controvérsia em que dois sínodos convocados em Alexandria por Demétrio excomungaram Orígenes e o despojaram de sua ordenação. Enquanto isso, Orígenes fixou residência na cidade de Cesaréia, na Palestina. Após a morte de Demétrio, Heraclas, que fora um discípulo de Orígenes, tornou-se bispo de Alexandria. Mas ele manteve as ações de seu predecessor, e Orígenes perdeu toda a esperança de retornar à sua cidade natal, e passou o resto de sua vida em Cesaréia. Ali, ele fundou uma escola teológica similar àquela que ele organizara em Alexandria, e passou quase vinte anos dedicado a escrever e ensinar teologia, embora sua fama freqüentemente o fez interromper sua pesquisa e ensino, a fim de visitar alguma parte do Império, onde sua presença era requerida. Sabia-se muito pouco sobre as atividades de Orígenes nestas viagens até a recente (1941) descoberta no Egito de diversos papiros que contém, entre outras coisas, notas tomadas durante uma disputa pública que Orígenes manteve na Arábia com o bispo Heracledes,559 que era suspeito de ser um modalista. Neste documento, escrito com tal frescor que não há dúvida que ele é baseado em notas estenográficas, os historiadores modernos têm um notável testemunho da grande habilidade com que Orígenes podia não apenas refutar oponentes, mas até mesmo convencê-los. Finalmente, após muitos anos de ensino e escrita fértil, Orígenes teve a oportunidade de mostrar em sua própria vida o que ele esperou e admirou em seu pai, e o que ele tinha ensinado em sua Exortação ao Martírio. Durante o governo do Imperador Decius, irrompeuse uma grande perseguição contra os cristãos. Não foi mais uma das perseguições locais e esporádicas que seguiam as instruções de Trajano a Plínio – isto é, punir os cristãos se eles fossem acusados, mas não procurá-los se ninguém os denunciasse. Desta vez era uma perseguição organizada e sistemática. Todos os súditos do Império eram obrigados a oferecer sacrifício aos deuses e receberiam um documento certificando que eles o tinham feito. A falta em se ter um documento como este era punida com a morte. Parece, contudo, que o propósito dos éditos de perseguição não era tanto destruir os cristãos quanto pressiona-los a abandonar sua fé. Portanto, a sorte dos mártires desta época, em vez de morte, passava a ser períodos prolongados de encarceramento e tortura. Orígenes esteve sujeito a tais torturas por vários dias e, segundo o testemunho de Eusébio, seu comportamento foi admirável.560 A história não relata como Orígenes conseguiu ser liberto da prisão; mas ela registra

559

Jean Schérer, Entretien d’Origène avec Heraclide et les évêques ses collegues sur le Père, le Fils, et l’âme (Le Caire: Societè Fouad I de Papyrologie, 1949).


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que ele morreu na cidade de Tiro, possivelmente como resultado de suas torturas, quando ele estava com quase setenta anos de idade. Seu trabalho literário foi incrivelmente extenso – tanto que seria impossível dentro do espaço disponível aqui dar até mesmo uma lista dos títulos de suas obras. Com o passar dos séculos, muitas de suas obras foram perdidas, mas esta fração de sua produção que sobreviveu é por si mesma impressionante. Embora Epifânio afirme que as obras de Orígenes eram seis mil, cerca de oitocentos de seus títulos sobreviveram.561 Todavia, até mesmo muitas destas oitocentas se perderam. Um número muito pequeno delas foi preservado em seu texto grego original, enquanto que a maioria daquelas que sobreviveram existem apenas em traduções que provavelmente não são muito fiéis ao original.562 Por estas razões é muito difícil reconstruir o pensamento de Orígenes, e seria completamente impossível se não fosse porque – embora elas sejam uma fração de sua produção total – daquelas obras que sobreviveram são suficientemente numerosas para permitir ao historiador comparar seu conteúdo, e assim tentar por de lado o que parece vir de uma tradução inexata em vez da própria mente de Orígenes. A fim de se dar uma idéia da produção literária de Orígenes, devemos começar com sua obra como um estudante da Bíblia. Orígenes sempre considerou-se como um intérprete do texto sagrado, e foi a esta tarefa que ele dedicou seus maiores esforços. Entre as obras que mostram este aspecto da produção literária de Orígenes, devemos mencionar a Hexapla, a Scholia, as Homilias e os Comentários. A Hexapla é a primeira tentativa na história do Cristianismo de prover o estudante com os instrumentos necessários para estabelecer o texto original da Escritura. Esta obra, muito da qual foi perdida, era uma apresentação paralela, em seis colunas, do texto hebraico do Velho Testamento, uma transliteração deste texto em letras gregas, e as quatro versões gregas que circulavam naquela época: a versão de Áquila, a de Simaco, a Septuaginta e a tradução de Teódoto. Se ele fosse capaz de colocar sua própria mão em qualquer outra versão, Orígenes a incluía em uma coluna extra, e o resultado foi que em algumas seções – aquelas correspondentes aos Salmos – a Hexapla foi expandida em nove colunas. Todavia, Orígenes não estava satisfeito com esta simples compilação, pelo contrário dedicou-se a uma cuidadosa comparação do texto hebraico com o da Septuaginta, e usou um sistema de sinais a fim de indicar alterações, omissões e adições. A Scholia são curtas explanações de textos individuais cuja interpretação parecia

560

HE 6.39. Pan. 64.63. Citado por Adolph von Harnack, Geschichte der altchristlichen Literatur, I/1 (reimpressão, Leipzig: J. C. Hinrichs Verlag, 1958), 333. 562 Cp. Vinzenz Buchheit, “Rufinus von Aquileja als Fälscher des Adamantiosdialogs”, ByzZschr, 51 (1958), 314-328. 561


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particularmente difícil ou interessante. Exceto por uns poucos fragmentos, elas se perderam. Naturalmente, Orígenes escreveu suas Homilias ou sermões depois de ter rompido com Demétrio. Embora muitas delas pereceram, aquelas que sobreviveram mostram a natureza da pregação de Orígenes. Ela é principalmente uma exortação moral, e as especulações que são tão comuns nos comentários bíblicos não constituem seu tema principal. Finalmente, Orígenes teve ampla oportunidade de fazer uso de seu método e capacidades exegéticas nos comentários. Embora nenhum deles tenha sobrevivido em sua totalidade, existem porções muito extensas do Comentário sobre o Evangelho de São Mateus, do Comentário sobre o Evangelho de São João, do Comentário sobre a Epístola aos Romanos, e do Comentário sobre o Cântico dos Cânticos. Estas obras são as principais fontes pelas quais é possível conhecer o método exegético de Orígenes, o que por sua vez é uma importante chave para o restante de sua teologia. Além destes escritos exegéticos, os séculos pouparam uma apologia, um tratado sistemático e algumas obras menores cuja natureza prática as tornam menos interessante para uma história do pensamento cristão. O título da apologia de Orígenes é Contra Celso. Celso era um filósofo pagão, que muitos anos antes tinha escrito uma obra contra o Cristianismo, cujo título era O Verdadeiro Verbo.563 Era um ataque mordaz e bem documentado, não apenas sobre a prática cristã, mas também e acima de tudo sobre as doutrinas e as Escrituras da nova fé. Este ataque não parece ter tido grandes conseqüências, pois o próprio Orígenes não conheceu a obra de Celso antes de se de seu amigo e protetor Ambrósio pedir-lhe para refutá-la. Embora a princípio Orígenes pensasse que era melhor ignorar o ataque de Celso, ele finalmente decidiu aceitar o apelo de Ambrósio e escreveu a Contra Celsum. Como Orígenes refutou os argumentos de Ceslo um por um, esta obra não tem um princípio de unidade interna. Apesar disto, ela é de grande importância para a história do conflito do Cristianismo com o paganismo nos primeiros séculos de nossa era.564 Finalmente, a grande obra sistemática de Orígenes é conhecida como Sobre os Primeiros Princípios – De principiis. Como esta obra servirá como um esboço para nossa exposição da teologia de Orígenes, é suficiente dizer agora que ela é uma obra antiga (cerca de 220) de Orígenes, escrita em quatro livros. A maior parte dela sobreviveu somente em uma tradução para o Latim feita por Rufino, que tomou sobre si a tarefa de corrigir aquelas

563

Henry Chadwick, trad., Origen: Contra Celsum (Cambridge: Cambridge University Press, 1965); W. den Boer, Celsum, de eerste bestrijder van het Christendom (Groningen: P. Noordhoff, 1950); Carl Andersen, Logos und Nomos: Die Polemik des Kelsos wider das Christentum (Berlim: W. de Gruyter, 1955). Este último autor crê que Celso escreveu em resposta a Justino. Mas cp. Quintino Cataudella, “Celso e gli apologeti cristiani”, NDid, 1 (1947), 28-34. 564 Ver Pierre de Labriolle, La réaction païenne (Paris: L’Artisan du Livre, 1950), pp. 111-169.


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opiniões de Orígenes que ele considerava ser muito audaciosas565 - e com isso complicou a tarefa do historiador. Portanto, quando lemos esta obra devemos sempre suspeitar da mão de Rufino nela, e procurar no restante das obras de Orígenes as chaves que ajudarão a descobrir o significado do texto original. O melhor ponto de partida para uma exposição da teologia de Orígenes é o modo pelo qual ele interpreta a Escritura,566 pois a exegese sempre foi seu principal interesse teológico. Muitos de seus escritos são exegéticos, e a interpretação dos textos bíblicos é uma preocupação central até mesmo na obra sistemática De principiis. Além disso, um homem que gasta praticamente toda sua vida em um trabalho de tal ambição como a Hexapla deve ter sentido grande interesse e respeito pelo texto bíblico. Embora Orígenes esteja muito longe de ser literalista em sua interpretação do texto sagrado, ele crê firmemente na inspiração literal de cada palavra na Escritura.567 Não há nelas uma única palavra, ou mesmo uma letra, que não contenha um mistério.568 Esta é a razão porque Orígenes considera que a tarefa de restaurar o texto bíblico original é tão importante. Contudo, o verdadeiro sentido da Bíblia nem sempre é aquele que resulta de uma interpretação literal. Pelo contrário, o fato de que Deus inspirou até mesmo os textos que parecem mais absurdos é uma prova da necessidade de se interpretar a Bíblia “espiritualmente”. Disto se conclui a doutrina de que um texto bíblico tem – ou pode ter – três sentidos diferentes mas complementares: um sentido literal ou físico, um sentido moral ou psíquico, e um sentido intelectual ou espiritual. 569 Esta é a bem conhecida doutrina dos vários sentidos bíblicos, a qual Orígenes obviamente recebeu de Clemente e até mesmo de exegetas não cristãos mais antigos, tais como Filo.570 Contudo, não devemos tomar esta doutrina tão literalmente, pois este não é um princípio exegético que Orígenes segue toda vez que defronta-se com um texto. Pelo contrário, muito raramente encontramos uma clara distinção entre os três diferentes sentidos de um texto particular. Orígenes agarra-se firmemente à doutrina dos vários sentidos de um texto, e especialmente à necessidade de procurar, por trás 565

Rufino alega que ao fazer isso ele não está corrigindo o texto de Orígenes, mas antes eliminando corrupções que foram introduzidas no texto por “pessoas hereges e malévolas”. Prol. ad De princ. (ANF, 3:237-238). 566 Jean Daniélou, “Origène comme exégète de la Bible”, SP, 1 (1955), 280-290: José Maria Caballero Cuesta, Orígenes intéprete de la Sagrada Escritura (Burgos: Seminário Metropolitano, 1956); Rolf Goegler, Zur Theologie des biblischen Wortes bei Origenes (Düsseldorf: Patmos Verlag, 1963). 567 Richard Patrick Crosland Hanson, Allegory and Event A Study of the Sources and Significance of Origen’s Interpretation of Scripture (Londres: SCM Press, 1959), p. 187. 568 Hom. in Ex. 1.4. 569 De princ. 4.11-13. 570 Ao classificar deste modo os vários sentidos da Escritura, Orígenes segue o exemplo de Filo e traça um paralelismo entre os vários elementos de um ser humano e os sentidos da Escritura. Mas Filo sustenta apenas dois sentidos: o físico correspondendo ao corpo, e o espiritual correspondendo a alma. Orígenes introduz uma tricotomia antropológica dentro deste contexto, e assim possibilita a Hanson dizer que ele “out-Philos Philo (ejeta Filo de Filo)”, Allegory, p. 237. Cp. H. de Lubac, Histoire et Espirit: L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène (Paris: Aubier, 1950), pp. 150-166.


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do sentido literal, aquilo que é oculto e espiritual. Mas muito raramente ele desenvolve sua exegese de um modo sistemático com base na tricotomia entre o sentido literal, moral e espiritual do texto. Além disso, existes casos em que ele encontra em um único texto diversos sentidos espirituais, criando com isso toda uma seqüência de interpretações alegóricas. O precedente não significa que Orígenes normalmente negligencia ou não dá importância ao sentido literal da Escritura.571 Pelo contrário, foi precisamente uma interpretação literal e legalista de um texto do Evangelho que o levou a despojar-se a si mesmo de seus órgãos varonis. Freqüentemente, quando lida com os milagres do Novo Testamento ou com algum material histórico do Velho, ele faz uma pausa para realçar a realidade histórica do evento descrito antes de seguir para uma interpretação alegórica de seu significado. Por outro lado, ele afirma que em certos casos devemos descartar o sentido literal de um texto. Todo texto bíblico tem um sentido espiritual, mas nem todos podem ser interpretados literalmente. Assim, por exemplo, enquanto comentava algumas leis levíticas, Orígenes diz que se envergonharia se tivesse de interpreta-los como os judeus faziam, e reivindicar que foram dadas por Deus. De acordo com a interpretação literal, não poderíamos negar que as leis humanas, tais como as dos romanos, atenieses e lacedonianos, são superiores a estas leis. Mas se as interpretarmos espiritualmente, “como a igreja ensina”, estaria claro que as leis levíticas são verdadeiramente de origem divina. Interpretar todas as coisas literalmente é o erro dos judeus bem como dos marcionitas. 572 Orígenes parece ter tomado de Filo a idéia de uma exegese “moral”. Este tipo de interpretação é, sobretudo, encontrado em suas homílias, embora nem sempre é possível distingui-la da exegese espiritual.573 Geralmente ela é uma interpretação alegórica do texto, embora não com o propósito de alcançar grandes alturas especulativas, mas antes conduzir o crente na vida moral e devocional. Orígenes alega que um exemplo de exegese moral pode ser encontrado na maneira pela qual o apóstolo Paulo interpreta o antigo mandamento: “Não amordaces o boi, quando pisa o trigo”. Aplicando este mandamento à vida prática das igrejas, e reivindicando que este texto prova que o apóstolo tem direito de ser sustentado pela igreja, Paulo está mostrando o sentido moral do texto.574 Mas é no sentido espiritual das Escrituras que Orígenes pode erguer-se naqueles vôos 571

Cp. Ibid., p. 238. In Lev. hom. 7.5. 573 Hanson, Allegory, p. 243: “No todo o sentido ‘moral’ não representa uma parte importante na exegese de Orígenes, não porque ele não teve oportunidade de extrair lições edificantes ou devocionais do textos da Bíblia, mas porque em seu trabalho prático de expor as Escrituras ele julgou ser impossível manter a distinção entre o sentido ‘moral’ e o ‘espiritual’, e o primeiro foi absorvido no último.” Bardy, “Origène”, DTC, 11:1008, também diz que o sentido psíquico ou moral “é mais difícil de definir”. 574 De princ. 4.12. 572


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especulativos dos quais ele é tão apaixonado, e que são tão característicos da teologia alexandrina – cristã bem como judaica e até mesmo pagã. Também, esta exegese espiritual lhe permite descobrir supostos pontos de contato entre a filosofia platônica e a mensagem bíblica, sem sentir a necessidade de abandonar qualquer um destes dois pólos de seu pensamento – embora ele conscientemente nunca defendesse a tradição clássica em oposição ao que ele considerava ser doutrina bíblica. Contudo, devemos salientar que esta exegese espiritual nem sempre é alegórica no sentido estrito. Pelo contrário, Orígenes está tão submerso na vida e fé da igreja que ele está inclinado a seguir a longa tradição de interpretação tipológica que foi estabelecida por autores tais como Paulo e Justino. Deste modo a tipologia é fundamental na exegese espiritual de Orígenes, e encontramos em suas obras temas tradicionais tais como o do sacrifício de Isaque como um “tipo” ou “figura” da paixão de Cristo,575 ou o da circuncisão como um tipo do batismo.576 Além disso, como Daniélou salienta, a tipologia de Orígenes vai além daquilo que a igreja tinha desenvolvido até este ponto, pois ele inclui o Novo Testamento e até mesmo a igreja atual dentro da esfera das figuras tipológicas. Assim, Orígenes propõe uma interpretação “do Velho Testamento como uma figura do Novo, o Novo como ums figura da igreja, e a igreja como figura da escatologia, isto é, a analogia dos mesmos propósitos nos vários estágios da história da salvação”.577 Por outro lado, esta tipologia tradicional não impede Orígenes de freqüentemente abandonar o sentido histórico de um texto e fazer uso de interpretações alegóricas, a fim de encontrar apoio bíblico para doutrinas que são estranhas a Escritura. Ele faz isto a tal ponto, que alguns historiadores consideram possível interpretar seu pensamento como um sistema filosófico que está relacionado apenas perifericamente com o Cristianismo. 578 Embora tal interpretação obviamente seja exagerada, ela pode servir como um lembrete dos perigos da alegorização injustificada do texto bíblico, como encontrada em Orígenes. É difícil, e talvez até mesmo impossível, listar os princípios exegéticos que Orígenes segue em sua interpretação alegórica. O máximo que pode ser dito é, primeiro, que todo texto é rico em profundos mistérios que devem ser descobertos através da alegoria; segundo, que nada deve ser dito sobre Deus que seja indigno do divino; terceiro, que cada texto deve ser interpretado à luz do restante da Escritura; finalmente, que nada contrário à regra de fé deve ser afirmado. Orígenes exagera o princípio de que cada texto deve ser interpretado à luz do restante 575

In Gen. hom. 8.8-9. Comm. in Rom. 2.13. 577 Jean Daniélou, Message évangélique et culture hellénistique (Paris: Desclée & Co., 1961), p. 254. 578 Deste modo, Eugéne de Faye, Origène: sa vie, son oeuvre, sa pensée, 3 vols. (Paris: E. Loroux, 1923-1928).

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da Escritura. Clemente já tinha procurado descobrir o sentido oculto de uma palavra ou número em um texto investigando seu uso em uma outra passagem. Mas Orígenes faz deste tipo de pesquisa uma prática habitual, descobrindo sentidos ocultos até mesmo nas palavras mais claras e simples. Hanson compilou uma lista de alguns destes sentidos místicos que Orígenes alega que encontrar na linguagem bíblica: “Cavalo” na Bíblia geralmente significa “voz”; “hoje” significa “o tempo presente”; “fermento” significa “ensino”; “prata” e “trombeta” significa “palavra”; “nuvens”... significa “santos”; “pé” significa “o conselho pelo qual seguimos a jornada da vida”; “fonte” significa “o ensino da Bíblia”; “linho” significa “castidade”; “coxas” significa “começo”; “vinho não misturado” significa “infortúnio”; “frasco” significa “corpo”; “segredo” e “tesouro” significa “a razão”.579 Embora em alguns casos o uso bíblico normal de um termo em particular sirva como uma chave para a razão que levou Orígenes a dar-lhe um significado particular, a verdade é que em muitos casos o leitor tem a impressão de que o modo pelo qual uma palavra particular deve ser entendida depende de uma decisão arbitrária do intérprete. É com base nisto que Hanson apresenta seu julgamento sobre Orígenes, um pouco exagerado mas, todavia, justificável, que ele “transforma a Bíblia em uma palavras cruzadas divina cujas chaves para solução estão trancadas no seio de Orígenes”.580 Por outro lado, esta frase é exagerada porque há um outro elemento na teologia de Orígenes que o restringe e dirige na interpretação da Escritura: a regra de fé da igreja. Como foi dito em um capítulo anterior,581 a “regra de fé” não era uma fórmula fixa ou escrita, mas antes era a pregação e o ensino tradicional da igreja, e seu conteúdo mostrava assim algumas pequenas variações de lugar para lugar. Deste modo, por exemplo, Orígenes parece ter entendido que a regra de fé incluía a doutrina dos vários sentidos da Escritura,582 ao passo que uma coisa como esta não é encontrada na regra de fé de Irineu ou Tertuliano. Mas de qualquer modo existiam algumas doutrinas fundamentais que a regra de fé afirmava e que Orígenes não sentia liberdade para negar.583 Portanto, a regra de fé serviu para manter sua teologia – ao menos em parte – dentro da esfera da doutrina tradicional da igreja. O primeiro artigo desta regra de fé refere-se a Deus. De acordo com Orígenes, Deus não pode ser compreendido por qualquer inteligência humana. Deus é invisível, não apenas no sentido físico, mas também no sentido intelectual, pois não existe mente que seja capaz de 579

Hanson, Allegory, pp. 247-248. Ibid., p. 248. 581 Capítulo 5. 582 De princ., praef., 8. Cp. C. Bigg, The Christian Platonists of Alexandria (Oxford: The Clarendon Press, 1886), pp. 85-87. 583 Embora em Comm. in Job, 13.16 parece que ele segue um curso diferente, ele geralmente se refere à regra de fé como a interpretação autoritativa da Escritura pela igreja. 580


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contemplar a essência divina. Não importa quão perfeito nosso conhecimento sobre Deus possa ser, devemos constantemente ser lembrados que Deus é muito mais alto do que qualquer coisa que nossa inteligência possa conceber.584 Deus é a natureza única e intelectual, além de toda definição de essência.585 A linguagem antropomórfica que a Escritura aplica a Deus deve ser entendida alegoricamente, como tentando mostrar-nos alguma faceta da maneira pela qual Deus se relaciona com a criação e com a humanidade. Por outro lado, se há qualquer coisa que podemos dizer sobre Deus em um sentido quase literal, é que Deus é Único.586 Unidade absoluta, aquela unidade que é diametralmente oposta à multiplicidade do mundo transitório – e que era um dos temas característicos do Platonismo contemporâneo – é o principal atributo do ser de Deus. Contudo, este Deus Inefável também é o Deus triuno da regra de fé da igreja. Orígenes não apenas conhecia e freqüentemente usava o termo “trindade”, mas ele também contribuiu para o desenvolvimento da doutrina trinitariana, pois sua teologia é uma das principais fontes dos debates trinitarianos que sacudiriam a igreja quase um século mais tarde.587 Seguindo a regra de fé como ela estava estabelecida naquela época, Orígenes declara que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Mas a regra de fé permitia uma certa liberdade de movimento sobre o exato relacionamento entre estes três. É aqui que Orígenes faz uso de sua originalidade e habilidade especulativa. No que se refere ao relacionamento entre o Pai e o Filho, podemos encontrar em Orígenes duas correntes ou tendências que ele foi capaz de manter em equilíbrio, mas que mais tarde dividiriam seus seguidores em dois grupos violentamente opostos. A primeira destas tendências é a de salientar a divindade e a eternidade do Filho, e de torna-lo igual ao Pai. Pois “quem ... pode supor ou crer que Deus o Pai sempre existiu, mesmo por um instante, sem ter gerado esta Sabedoria?”588 Supor que existiu um tempo em que o Filho não existia nos levaria a supor também que existiu um tempo em que o Pai não existia como Pai, o que seria um grade erro. Pelo contrário, o Filho Realmente nasceu Dele, e deriva Dele o que Ele é, mas sem qualquer começo, não somente tal como pode ser medido por qualquer divisão de tempo, mas até mesmo aquilo que a só a mente pode contemplar dentro de si mesma, ou ver, por isto falar,

584

De princ. 1.1.5. Contra Cels. 7.38. 586 De princ. 1.1.6. 587 Cp. Georg Kretschmar, Stidien zur frühchristlichen Trinitätstheologie (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1956), que provavelmente exagera a importância de Orígenes para o desenvolvimento da doutrina trinitariana. 588 De princ. 1.2.2. (ANF, 4:246). 585


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com os poderes nus do entendimento.589 Além disso, este Filho de Deus não é apenas co-eterno com o Pai, mas até mesmo pode ser dito que ele é divino “conforme a essência”, e não “através de participação”.590 Esta tendência de sublinhar a unidade entre o Pai e o Filho pode ser vista no modo pelo qual Orígenes, ao discutir a geração do Filho, rejeita o conceito de que isto pode ser entendido como uma mera emanação. Uma doutrina como esta – para a qual Orígenes poderia ter encontrado algum apoio em Clemente – tenderia a transformar a individualidade do Filho em uma limitação da substância divina. 591 Orígenes rejeita esta teoria porque ela implica em que a divindade é corpórea na natureza. Pelo contrário, Devemos ser cuidadosos em não cair nas absurdidades daqueles que pintam para si mesmos certas emanações, tanto quanto dividem a natureza divina em partes, e que dividem Deus o Pai tão longe quanto eles podem, visto que mesmo para entreter a mais remota suspeita de uma coisa como esta com relação a um ser incorpóreo não é apenas o auge da impiedade, mas uma marca da maior insensatez, estando mais remoto de qualquer concepção inteligente de que deveria existir alguma divisão física de alguma natureza incorpórea. Antes, portanto, como um ato da vontade procede do entendimento, e tampouco é cortado de qualquer parte nem é separado ou dividido dela, assim segundo um modelo como este deve ser suposto que o Pai gerou o Filho. 592 Há, contudo, uma outra corrente dentro da teologia de Orígenes que tende a sublinhar a distinção entre o Pai e o Filho. Enquanto que é verdade que Orígenes se recusa a definir a diferença entre o Pai e o Filho como uma limitação do último, como se sua substância fosse uma parte da substância do Pai, ele está pronto a falar em termos de uma limitação que distingue o Filho do Pai. É a limitação que é requerida para que Deus que está além de toda essência e definição possa ser conhecido, e colocado dentro do âmbito da essência.593 O Filho

589

Ibid. Embora este texto possa ser visto como uma tentativa de Rufino para ajustar Orígenes a ortodoxia pósNicena, inegavelmente existem diversos textos genuínos que apoiam isto. Estes são, por exemplo, Comm. in Job 1.32 e Comm. in Rom. 1.4 – “non erat quando no erat”. 590 In Psal. 135.2 (PG, 12:1656): “ο δε Σωτηρ ου κατα µετουσιαν αλλα κατ ουσιαν εστι θεος”. É possível que Orígenes conhecia e usava o termo οµοουσιος a fim de referir-se ao relacionamento entre o Pai e o Filho. Ele aparece quatro vezes em fragmentos de seu Comm. in Mat., e uma vez na Apologia de Panfílo de Cesaréia. Mas os fragmentos podem ser devidos a uma tentativa posterior de fortalecer o prestígio de Orígenes fazendo-o concordar com Nicéia. Por outro lado, Panfílo, que morreu em 310 A.D. e que por isso não poderia ter conhecido a controvérsia ariana, diz que de acordo com Orígenes “o Filho de Deus nasceu da mesma substância de Deus, isto é οµοσοουσιος, o que quer dizer da mesma substância do Pai; e não é uma criatura, nem é um Filho verdadeiro por adoção, mas por natureza, gerado do próprio Pai.” (Apol. pro Origine 5; PG, 17:581). 591 Cp. Maurice F. Wiles, “Eternal Generation”, JBL, 79 (1960), 111-118; R. Arnou, “Le thème neoplatonicien de la contemplation créatrice chez Origène et chez S. Augustin”,Greg, 13 (1932), 124-136. 592 De princ. 1.2.6 (ANF, 4:248). 593 Orígenes usa a ilustração de uma estátua de proporções tão imensas que é impossível compreendê-la, e uma outra estátua, exatamente como a primeira, mas muito menor, de modo que é compreensível ao observador. De princ. 1.3.7.


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é a imagem de Deus: o nome de Deus; a face de Deus.594 O Pai é Unidade absoluta; no Filho existe multiplicidade, e por isso ele pode relacionar-se com o mundo e com os seres humanos.595 Aqui devemos subscrever o julgamento de Daniélou quando ele afirma que a principal dificuldade que Orígenes enfrenta dentro deste contexto – bem como a grande dificuldade de toda teologia ante-nicena – é encontrada neste princípio de basear a distinção entre o Pai e o Filho no contraste entre um Deus absolutamente transcendente e um Deus pessoal de uma transcendência limitada que pode, por isso, relacionar-se com as criaturas e estabelecer diálogo com os seres humanos. Como resultado disto, a divindade do Filho é posta em perigo.596 Dentro desta estrutura de pensamento, que é típica dos sistemas teológicos que foram influenciados pelo Médio ou Neoplatonismo, o Verbo torna-se um ser intermediário entre o Inexprimível e a multiplicidade do mundo. Através da teologia trinitariana de Orígenes, podemos detectar esta tendência de fazer o Filho um pouco inferior ou menos divino que o Pai. Isto é facilmente entendido se nos lembramos que uma das grandes heresias da época era o Monarquianismo Modalista, que em seu desenvolvimento final transformou o Pai, o Filho e o Espírito Santo em três manifestações temporárias do mesmo Deus. É precisamente esta a doutrina que parece ter sido sustentada pelo Bispo Heraclides, com quem Orígenes teve um debate cujos registros foram recentemente descobertos, como foi dito acima. Neste diálogo, a fim de esclarecer a distinção entre o Pai e o Filho, Orígenes chega ao extremo de afirmar que eles são “dois Deuses”, embora sejam um em “poder”.597 Esta tensão não resolvida na teologia de Orígenes não foi mantida por muitos de seus discípulos, que logo foram divididos em dois grupos dos quais um enfatizaria a verdadeira divindade do Filho e sua igualdade com o Pai enquanto que o outro tentaria fazer distinção entre o Filho e o Pai transformando o Filho em um ser subordinado. Orígenes afirma que o Espírito Santo procede do Pai,598 e não é uma criatura com um começo temporal, mas antes é co-eterno com o Pai e com o Filho.599 Com relação à terceira pessoa da Trindade, há em Orígenes a mesma tensão que já foi apontada com referência ao Filho, embora aqui novamente não há dúvida de que Orígenes crê que o Espírito Santo é divino.600 594

Henri Crouzel, Théologie de l’Image de Dieu chez Origène (Paris: Aubier, 1956), pp. 75-83. Comm. in Job 1.20. 596 Message, pp. 348-349. 597 Dial. 124. 598 De princ. 3.5.8. 599 Ibid., 1.3.4. 600 Este pode ser o melhor lugar para observar que uma das principais dificuldades em interpretar a doutrina da Trindade de Orígenes encontra-se – como é de ser esperar em um pioneiro – na imprecisão de sua terminologia. Termos que mais tarde receberam um significado mais preciso são usados por Orígenes em vários sentidos, e nem sempre é possível determinar seu significado em um contexto particular e crucial. Isto acontece, entre 595


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Finalmente, Orígenes crê que as três pessoas da Trindade têm diferentes funções e esferas de ação em seu relacionamento com as criaturas. Assim, todas as criaturas derivam seu ser do Pai; naquelas que são racionais o Filho esta operando; e naquelas criaturas racionais que são santificadas devemos ver a intervenção do Espírito Santo.601 A doutrina de Orígenes sobre a criação mostra a extensão da influência do idealismo platônico sobre sua teologia. O mesmo argumento que serviu para provar a geração eterna do Filho, e que estava baseado em uma concepção estática da Divindade segundo a qual o Pai sempre deve ser Pai, força Orígenes a afirmar que a criação é eterna, pois o Criador onipotente sempre deve ser Criador.602 Por outro lado, o caráter de sua criação eterna também é determinado pelo idealismo de Orígenes, e portanto ele postula uma criação eterna, mas não uma criação corporal eterna. O mundo que Deus primeiramente criou não é este mundo visível, mas um composto de intelectos puros.603 Os intelectos são os recipientes primários da ação criadora de Deus, como também eles serão os beneficiários finais da ação salvadora de Deus. Eles foram criados de tal modo que seu propósito era a constante contemplação da Imagem de Deus, que é o Verbo. Mas eles também eram livres, o que tornou possível para eles abandonar a contemplação desta Imagem e voltar seus olhares para a multiplicidade.604 Nenhum ser criado é bom ou mal por causa de sua essência, mas sim por causa do uso que faz ou fez de sua própria liberdade.605 Fazendo uso desta liberdade, um certo número dos intelectos que Deus tinha criado voltou seus olhares para longe da Imagem e por isso tornaram-se “almas”.606 Porém eles não se perderam na mesma medida, e esta é a razão porque os seres racionais são diferentes e estão dispostos segundo uma hierarquia. Esta hierarquia é múltipla, pois ela inclui todos os seres celestiais dos quais as Escrituras falam. Mas é basicamente composta de três níveis: seres celestiais, cujos corpos são etéreos; nós que caímos neste mundo, com nossos corpos carnais; e os demônios, cujos corpos são até mesmo mais rudes do que os nossos.607 Esta especulação com relação a origem dos seres racionais leva Orígenes à doutrina de uma dupla criação, a qual ele deriva de Filo.608 De acordo com esta doutrina, as duas

outros, com os termos ousía e hypóstasis. Ver, para mais informações sobre este assunto, Antonio Orbe, Hacia la primera teología de law procesíon del Verbo (Roma: Gregorian University Press, 1958), pp. 431-452, e Crouzel, Théologie, pp. 75-128. Sobre o tema específico do Espírito Santo, ver, M. Garijo, “Vocabulario origeniano sobre el Espíritu Divino”, ScrVict, 10 (1964), 320-358. 601 De princ. 1.3.7. 602

Ibid., 1.3.10. Ibid., 1.3.1. 604 Ibid., 1.8.3. 605 Ibid., 1.5.3-5. 606 Ibid., 2.8.3. Orígenes declara isto na suposição que ψυχη está etmologicamente relacionada com ψυχεσθαι. 607 Ibid., 1.6.2-3. 608 Crouzel, Théologie, pp. 54-55. 603


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narrativas paralelas da criação encontradas em Gênesis correspondem a duas ações divinas diferentes. A primeira é a criação dos intelectos puros, e é sobre estes intelectos que a Bíblia afirma que Deus os fez “macho e fêmea” – isto é, não de sexos diferentes, mas cada um com distinções não sexuais. A outra narrativa se refere à criação deste mundo visível, o qual foi feito a fim de servir como um campo para a prova dos espíritos caídos, e no qual Deus primeiro fez o corpo do homem e então o da mulher, estabelecendo com isso as distinções sexuais.609 Neste mundo, estamos passando por um período de prova de modo que, fazendo uso de nossa liberdade, podemos retornar à unidade e harmonia de todos os seres intelectuais, o que é o propósito de Deus. Enquanto isso, e no processo de alcançar este fim, é provável – pois Orígenes apenas se atreve a sugerir a possibilidade – que possamos ter de passar por uma série de encarnações que nos levariam de um nível da hierarquia de ser para o próximo. 610 O propósito divino de restaurar a unidade original inclui todos os seres racionais. Os demônios – e até mesmo o Diabo, que é o princípio do mal e cuja queda foi a causa da queda do restante dos intelectos – são também uma parte deste propósito, e eventualmente retornarão a seu estado original como intelectos plenamente dedicados à contemplação do Verbo.611 Naturalmente isto implica em que o inferno e a condenação não são eternas. Orígenes os interpreta como uma purificação que alguns seres devem sofrer – um tipo de febre cujo propósito é destruir a doença.612 Todavia, ainda devemos continuar nossa luta contra o Diabo e seus demônios. Embora ele será salvo no final, agora ele é o Adversário, e tem decidido arrastar para si mesmo tantos seres racionais – e especialmente as almas humanas – quanto ele puder. Além disso, como todos nós temos pecado – se não tivéssemos não estaríamos neste mundo – todos nós temos estado sujeitos a ele, e ele nos governa com um poder prejudicial. 613 Além disso, estamos em desvantagem porque nossa queda foi tal que somos incapazes de fazer uso de nossa liberdade a fim de libertar-nos a nós mesmos de nossa presente condição e retornar a nosso estado puramente intelectual anterior. A fim de vencer estas dificuldades, o Verbo se fez carne. O propósito da encarnação é, por um lado, destruir o poder do Diabo; e, por outro, conceder-nos a iluminação que precisamos a fim de sermos salvos. Cristo é o vencedor do Diabo e o iluminador dos crentes.614 Em sua encarnação, o Verbo de Deus uniu-se a um intelecto não caído, e através dele a 609

Ibid., pp. 148-153. Cp. Comm. in Rom. 2.13; Comm. in Cant., prol. De princ. 1.6.3; 2.11.6. 611 Ibid., 1.6.1. 612 Ibid., 2.10.6. 613 Ibid., 1.6.3. 614 Daniélou, Origen, p. 269; Marguerite Harl, Origène et la fonction révelatrice du Verbe incarné (Paris: Le Seuil, 1958). 610


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um corpo que em nada era diferente do restante dos corpos humanos, embora fosse de origem diferente.615 Ao afirmar que o Verbo uniu-se não apenas a um corpo humano, mas também a um intelecto criado – que, embora não caído, é em sua essência semelhante às almas humanas – Orígenes mostrou um discernimento da necessidade de pressupor em Cristo, não apenas um corpo humano, mas também um intelecto humano. Como será visto mais adiante, este discernimento foi posteriormente colocado de lado por alguns teólogos alexandrinos. A divindade e a humanidade estão unidas de tal modo em Cristo que podemos atribuir à primeira, ações e condições que correspondem propriamente a última, e vice-versa. Esta é a doutrina da communicatio idiomatum, ou “comunicação de propriedades”, que mais tarde se tornaria um dos principais dogmas da cristologia alexandrina. Orígenes insiste que não podemos entender Cristo simplesmente em termos de sua humanidade ou de sua divindade. “Se ele [o intelecto humano] considera-se um Deus, ele vê um mortal; se ele considera-se um homem, ele O vê retornando da sepultura, depois de derrotar o império da morte.”616 A natureza divina e humana existem em um único ser, embora como isto pode acontecer, é o maior mistério da fé. Mas de todos os atos maravilhosos e poderosos relatados sobre Ele, este embora sobrepuja a admiração humana, e está além do poder da fragilidade mortal de entender ou sentir, como este poderoso poder da majestade divina, que o próprio Verbo do Pai, e a própria Sabedoria de Deus, na qual foram criadas todas as coisas, visíveis e invisíveis, pode ser crido ter existido dentro dos limites deste homem que apareceu na Judeia; mais ainda, que a sabedoria de Deus pode ter entrado no ventre de uma mulher, e ter nascido um infante, e ter proferido choros como o choro das crianças pequenas.617 Como já foi dito, o propósito desta encarnação do Filho de Deus é livrar-nos do poder do Diabo e mostrar-nos o caminho da salvação. Cristo conseguiu sua vitória sobre o Diabo durante toda a sua vida, mas mais especialmente em sua encarnação e em sua morte. Em sua encarnação, Cristo invadiu os domínios do Diabo, e com isso começou sua obra vitoriosa. Mas foi em sua morte que o próprio Satanás, sendo enganado pela aparente fraqueza do Salvador, o introduziu nas mais profundas sombras de seu império, onde Cristo o derrotou retornando vitorioso de entre os mortos. Desde então, todos os mortos que desejam fazer o mesmo podem seguí-lo, escapando assim das garras da morte e de Satanás seu mestre.618 O outro aspecto básico da obra de Cristo é mostrar-nos o caminho da salvação. O Verbo encarnou-se porque éramos incapazes, por nosso próprio esforço, de conseguir esta contemplação das realidades divinas que eram necessárias para que pudéssemos retornar a 615

De princ., 2.6.3-4. Ibid., 2.6.3. (ANF, 4:281-282). 617 Ibid., 2.6.2.

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nosso estado original como intelectos em comunhão com Deus. Por isso Cristo é, além de um vitorioso Salvador, um exemplo e um iluminador. Nele vemos a Deus, e também vemos como dirigir nossas vidas a fim de sermos salvos.619 A escatologia de Orígenes, sendo a contraparte de sua doutrina da criação,620 mostra as mesmas influências platônicas que já foram apontadas com referência a criação. É uma escatologia puramente espiritualista, na qual todos os intelectos retornarão a seu estado original de harmonia e comunhão com Deus. Mas mesmo esta restauração universal ou apokatastasis – αποκαταστασις -621 não é estritamente final, pois depois deste mundo pode haver muitos outros que seguirão em uma seqüência interminável. Como todos os intelectos são livres, e eles continuarão a ser assim mesmo após a consumação deste mundo, deve ser esperado que o que aconteceu nesta era ou eon ocorrerá novamente, e novamente haverá um mundo material e um processo de restauração.622 Aqui Orígenes deixa-se ser levado sem controle por sua curiosidade especulativa e discute a natureza desses mundos vindouros – embora ele claramente declare que necessariamente não deve ser seguido nisto, como se aqui ele expusesse uma regra de fé.623 Esses mundos não serão meras repetições deste que conhecemos agora, como os estóicos afirmavam. 624 Pelo contrário, eles serão diferentes, e é impossível saber se eles serão melhores ou piores.625 De qualquer modo, existe pelo menos uma coisa que Orígenes pode dizer categoricamente, e esta é que Cristo sofreu de uma vez por todas neste mundo, e que ele não sofre novamente nos mundos futuros.626 Apesar da impressão que a exposição anterior de sua teologia pode ter dado. Orígenes não era um individualista que colocava-se em oposição a vida e a fé da igreja a fim de ficar livre para suas próprias especulações. Pelo Contrário, quando ele está perto de partir em um de seus mais pessoais e característico vôos especulativos, ele deixa claro que esta é uma questão de opinião pessoal, e que a regra de fé nada diz com relação ao ponto em questão. Além disso, Orígenes reconhece o papel da igreja e dos sacramentos no plano da salvação. À parte da igreja, ninguém pode ser salvo627 - embora Orígenes interprete esta igreja não tanto em termos de uma unidade hierárquica quanto em termos de uma comunidade de fé. Os sacramentos trabalham para a santificação daqueles que os recebem, e na eucaristia Cristo 618

Comm. in. Mat. 16.8. Comm. in. Rom. 4. 620 H. Cornélis, “Les fondements cosmologiques de l’eschatologie d’Origène”, RScPhTh, 43 (1959), 32-80, 201247. 621 A. Méhat, “Apocatastase”, VigCI, 10 (1956), 196-214; G. Müller, “Origenes und die Apokatastasis”, ThZschr, 14 (1958), 174-190. 622 De princ. 2.3.1. 623 Ibid., 2.3.7. 624 Ibid., 2.3.4. 625 Ibid. 626 Ibid., 2.3.5. (com base na autoridade de Hebreus 9:26). 627 In Lib. Jesu Hom. 3.5.

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está real e fisicamente presente,628 embora, por outro lado, o crente que possui alguns dons intelectuais deva ir além desta interpretação comum e ver o significado simbólico do sacramento.629 Não há dúvida de que Orígenes foi o maior teólogo da Escola de Alexandria primitiva. Seu pensamento extremamente audacioso obteve para ele um grande número de gratos discípulos, mas também um número até mesmo maior de inimigos. Como conseqüência, vários sínodos, em diferentes épocas, condenaram proposições sustentadas ou supostamente mantidas por ele. Entre seus admiradores estavam Gregório, o Fazedor de Milagres, o evangelista do Ponto; Eusébio de Cesaréia, o primeiro historiador da igreja; e Dionísio, o Grande, que sucedeu Heraclas como Bispo de Alexandria. Mas sua influência também alcançou alguns dos maiores teólogos da Igreja Oriental – Atanásio, Basílio, o Grande, Gregório de Nazianzo, e Gregório de Nissa, entre outros – bem como alguns teólogos do Ocidente – Hilário de Poitiers e Ambrósio de Milão. Contudo, nenhum destes aceitou a teologia de Orígenes em sua totalidade, e nenhum deles sentiu-se inclinado a defender suas mais audaciosas especulações quando elas foram condenadas, primeiramente por teólogos individuais como Metódio de Olimpo, e depois pelos concílios tais como o convocado por Justiniano em Constantinopla em 553 A.D. Talvez a diferença mais fundamental entre a teologia de Orígenes e a de Clemente é que, enquanto que Orígenes é teocêntrico, Clemente coloca a doutrina do Verbo no centro de sua teologia. Para Clemente, o Verbo era o ponto de contato entre a filosofia pagã e a revelação cristã, e este foi o fator determinante em sua teologia. No caso de Orígenes, por outro lado, tudo parece girar em torno do Deus Triuno, e especialmente o Pai. A conseqüência disto é que Clemente coloca ênfase especial na doutrina do Verbo como iluminador e assim chega a sua doutrina mais perigosa, de um Cristianismo “gnóstico” ou aristocrático que somente é alcançado por aqueles que recebem uma iluminação especial do Verbo. Esta é uma conseqüência imediata do ponto de partida de Clemente, que tende a reduzir o Cristianismo a uma verdade superior que deve ser recebida através da iluminação do Verbo. Orígenes parte, não da doutrina do Verbo, mas de um Deus cujas principais características são determinadas mais pelo Platonismo do que pela Escritura. O resultado deste ponto de partida é uma série de doutrinas que muitos cristãos acharam inaceitáveis, tais como a eternidade do mundo, a preexistência e a reencarnação das almas, a existência de mundos futuros, e a salvação final do Diabo. Orígenes vai além de Clemente pelo menos em dois pontos: no amplo escopo e na total coerência de seu sistema teológico, e na audácia de sua doutrina. O primeiro o fez uma 628

In Ex. Hom. 13.3.


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das principais fontes da teologia oriental. O segundo foi a razão porque esta mesma teologia considerou necessário condená-lo repetidamente. Quando recordamos disto e dos dois capítulos anteriores, compreendemos que testemunhamos o desenvolvimento adicional de três tipos de teologia cujos estágios primitivos fomos capazes de discernir na época dos Pais Apostólicos. O primeiro tipo, representado por Irineu é, em meu julgamento, o mais antigo, e por isso muito dele pode ser encontrado também em Tertuliano e Clemente. É uma teologia centralizada no tema da história como o processo por meio do qual Deus leva a criação a seu objetivo planejado. Na obra de Tertuliano, por contraste, a ênfase cai sobre a lei divina, e sobre o que devemos fazer para obedecê-la. Finalmente, em Alexandria, e particularmente na obra de Orígenes, a ênfase está na verdade – concebida conforme a tradição platonista. Consequentemente, o tipo de teologia de Tertuliano se tornaria normativa no Ocidente, enquanto que a teologia oriental tomaria alguns elementos do tipo de teologia de Irineu e os outros da alexandrina. No Ocidente, em vários pontos no curso da história cristã, têm existido aqueles que consideram o tipo de teologia de Tertuliano muito restritiva, e então têm recorrido a alguma variação da do tipo alexandrino. Em geral, o tipo de teologia de Irineu tem sobrevivido quase exclusivamente em alguns elementos da liturgia. Em anos recentes, diversas circunstâncias têm levado a sua redescoberta – ou pelo menos a uma redescoberta de algumas de suas características e discernimentos. Contudo, a tarefa de comparar estes três tipos mais plenamente, bem como de demonstrar sua relevância para a teologia contemporânea, deve ser deixada para um ensaio futuro.

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Comm. in Mat. 11.14.


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IX. A TEOLOGIA OCIDENTAL NO TERCEIRO SÉCULO Durante o terceiro século houve uma diferença marcante entre a teologia Alexandrina e a do Ocidente. Em geral, essa diferença é a mesma que já vimos, tão antiga quanto os Pais Apostólicos: o caráter prático do Cristianismo Ocidental em contraste com o interesse especulativo dos alexandrinos; a influência estóica no Latim ocidental em contraste com a influência platônica no mundo grego; o interesse na alegoria em Alexandria em contraste com a tendência legalista em Roma. Estes contrastes – os quais aparecem claramente quando comparamos a Epístola de Barnabé com a Epístola de Clemente ou Clemente de Alexandria com Tertuliano – ainda são marcantes no terceiro século, e esta é uma das razões porque procuraríamos em vão por uma teologia especulativa no Ocidente que possa ser comparada com a de Orígenes. Isto não significa que a teologia Ocidental careça de interesse ou importância. Pelo contrário, durante o terceiro século vários assuntos foram discutidos e medidas foram tomadas que seriam de grande importância para o futuro desenvolvimento da teologia Ocidental. Muito disso tinha a ver mais com questões práticas do que com questões especulativas, mas mesmo estas questões práticas eram tratadas de uma perspectiva teológica. Assim, por exemplo, durante este período a Igreja Ocidental dedicou muita atenção ao perdão de pecados e a natureza da Igreja, e ambos os assuntos são importantes pratica, bem como teologicamente. Durante este período, os centros de atividade teológica e literária eram Roma e o Norte da África. Foi nestas circunstâncias que a Igreja Romana apresentou seus dois primeiros grandes teólogos: Hipólito e Novaciano – ambos cismáticos e considerados pela Igreja Romana como antipapas. No Norte da África, por outro lado, a tradição começada com Tertuliano prosseguia, e esta região produziu escritores como: Minúcio Félix, Arnobio, Cipriano, e – embora já no quarto século, mas por causa de sua situação básica, pertencente ao terceiro – Lactâncio, talvez o melhor estilista latino da igreja antiga. Dentre estes muitos escritores, estudaremos aqui apenas aqueles cuja obra é mais importante para a história do pensamento cristão: Hipólito, Novaciano e Cipriano. Hipólito de Roma Sabemos muito pouco sobre a vida de Hipólito,630 e isto é muito desastroso, visto que um entendimento sobre o curso de sua vida esclareceria grandemente a natureza exata das controvérsias nas quais ele esteve envolvido, e, portanto, de sua própria teologia. De qualquer modo, Hipólito foi grandemente respeitado entre os antigos cristãos romanos do terceiro século. Até mesmo Orígenes foi ouví-lo quando ele visitou a capital imperial em 212 A.D. 630

O melhor estudo biográfico provavelmente é o de R. Reutterer, Der heilige Hippolytus (Klagenfurt: S. Jörgal, 1947).


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Logo desenvolveu-se um atrito entre Hipólito, por um lado, e os bispos Zeferino e Calisto, por outro. Parece que este atrito tinha a ver com questões pessoais, bem como com divergências com respeito a doutrina da Trindade e do perdão de pecados. De qualquer modo, quando Calisto sucedeu Zeferino, em 217 A.D., Hipólito recusou-se a reconhecê-lo como bispo e desta forma provocou um cisma na Igreja Romana, que agora tinha dois bispo rivais: Calisto e Hipólito. O último continuou opondo-se a Calisto e seus sucessores até a perseguição de Maximino em 235 A.D., quando ele e seu rival, Pontiano, foram deportados para a Sardenha. Ambos morreram lá, e a tradição afirma que eles se reconciliaram antes de morrerem. Algum tempo depois, seus restos foram trazidos de volta para Roma, onde a própria comunidade cristã já tinha se reconciliado, e desde então, ambos têm sido honrados como santos e mártires. Muitas das obras de Hipólito se perderam. Entretanto, sobreviveu um material suficiente para descrever pormenorizadamente sua teologia. 631 A teologia de Hipólito foi grandemente influenciada pela de Irineu. Hipólito extraiu do bispo de Lion, não apenas a maior e melhor parte de seu conhecimento com relação às doutrinas dos hereges, mas também o conceito de que estas heresias provinham da filosofia. Como Irineu, Hipólito geralmente interpreta o Velho Testamento tipologicamente. A doutrina da recapitulação exerce uma função no pensamento de Hipólito, que é pelo menos tão importante quanto o que ela exerce em Irineu. Finalmente, a escatologia de Hipólito tem as mesmas características quialistas que já notamos no bispo de Lion. Portanto, podemos muito bem colocar Hipólito dentro da tradição que originou-se dos Pais Apostólicos da Ásia Menor e de Irineu. Existem dois aspectos da teologia de Hipólito que são de interesse especial para nós aqui: seu rigorismo moral, e sua doutrina da Trindade. O rigorismo moral de Hipólito é importante visto que o levou a uma polêmica com Calisto que é um dos pontos focais em toda tentativa de se reconstruir o desenvolvimento do sistema penitencial da Igreja. Durante os primeiros anos da fundação da Igreja, como já pode ser visto no Pastor de Hermas, parece ter havido um consenso geral que, depois daquele arrependimento que ocorria no batismo, de algum modo era possível arrepender-se de novo e 631

Entre estas obras, as mais importantes para nosso propósito são: Philosophumena, Contra todas as Heresias, Sobre o Anticristo, Contra Noeto, e, para o estudo sobre a ordem da igreja, a Tradição Apostólica. Alguns eruditos reivindicam que as diferenças entre a Philosophumena e a Contra Noeto são tais que não podem ter sido escritas pelo mesmo autor. Marcel Richard sustentou a autenticidade da Philosophumena mas não da Contra Noeto, “Comput et chronographie chez saint Hippolyte”, MScRel, 7 (1950), 237-268; 8 (1951), 19-50. Cp. Pierre Nautin, “La controverse sur l’auteur de l’Elenchos”, RHE, 47 (1952), 5-43. A posição oposta, isto é, que Contra Noeto é genuína e a Philosophumena não é, é sustentada por Pierre Nautin, Hippolyte: Contre les héresies, Fragment. Étude et édition critique (Paris: Éditions du Cerf, 1949). Finalmente, a autenticidade de ambas é sustentada por um grande número de eruditos, entre eles Gustave Bardy, “L’énigme d’Hippolyte”, MScRel, 5 (1948), 63-68. Não discutiremos aqui o conteúdo da Tradição Apostólica. Existe um bom resumo em J. Quasten, Patrology, 2:180-194. Uma excelente biografia é encontrada ali, devemos adicionar Bernard Botte, La Tradition apostolique de saint Hippolyte: Essai de reconstitution (Münster: Aschendorf, 1963).


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assim ser perdoado pelo pecado pós-batismal. Isto ocorria através de confissão pública do pecado cometido, seguido de um período de penitência e excomunhão, a fim de ser admitido novamente dentro da comunidade cristã através de um ato formal de restauração. Isto não era aplicado, entretanto, no caso de pecados menores, que os cristãos cometiam diariamente, e para sua remissão parece não ter havido um sistema penitencial, exceto por oração pessoal e arrependimento. Por outro lado, perto do fim do segundo século e no começo do terceiro, existia uma opinião geral de que a igreja não poderia ou não deveria perdoar aqueles que eram culpados de homicídio, fornicação ou apostasia. Esta era a opinião, não apenas de Hipólito, mas também de Tertuliano e Orígenes. Naturalmente, esta negação do perdão de certos pecados, embora tendesse a manter a força moral da Igreja, era também uma negação do espírito de amor e perdão que eram características do evangelho. Portanto, era necessário que, mais cedo ou mais tarde, se desenvolvesse um conflito entre aqueles que desejavam preservar o pureza moral da Igreja a qualquer preço e aqueles que acreditavam que o amor evangélico deveria ser seguido mesmo as custas do rigor moral. Esta foi uma das bases do conflito entre Calisto e Hipólito. Parece que Calisto atrevia-se a oferecer a graça do arrependimento e da restauração àqueles que eram culpados de fornicação. Não é possível saber os motivos pessoais do próprio Calisto, pois é muito difícil de acreditar no que Hipólito diz acerca de sua personalidade. 632 De qualquer modo, Calisto apelava para a parábola do joio e do trigo e ao exemplo da arca de Noé, onde existiam animais limpos assim como imundos.633 Hipólito, que tinha outras razões teológicas e até mesmo pessoais para desconfiar de Calisto, via isto como uma tentativa de introduzir uma frouxidão inaceitável na vida da igreja. O rigorismo de Hipólito não o levou a opor-se ao sistema penitencial que lentamente se desenvolvera na Igreja Cristã. Pelo contrário, ele reivindica que não está se rebelando contra o sistema tradicional, mas contra as inovações de Calisto. O sistema penitencial em si é uma parte fundamental do Cristianismo de Hipólito – incluindo nesse sistema o poder dos bispos para perdoar pecados.634 Portanto, a controvérsia não tinha nada a ver se a Igreja tinha ou não autoridade para perdoar pecados, mas antes com a extensão e aplicação deste poder. A doutrina da Trindade foi um outro foco da controvérsia entre Calisto e Hipólito. Já vimos que Tertuliano desenvolveu sua doutrina sobre a Trindade em oposição a um certo Praxeas, que estabelecera residência em Roma, e cuja doutrina consistia em um Monarquianismo Modalista. O próprio Hipólito desenvolveu sua doutrina trinitariana em oposição ao Modalismo, representado em seu caso por Noeto de Esmirna, que, conforme 632

Philos. 9.7. Ibid. 634 E. Amann, “Penitence”, DTG, 12:766. 633


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Hipólito, “afirmava que Cristo era o próprio Pai, e que o próprio Pai nasceu, sofreu e morreu,”635 e por Sabélio, cuja defesa do Modalismo foi tal que esta doutrina mais tarde ficou conhecida como “Sabelianismo”.636 A posição de Calisto ante esta doutrina não era completamente clara. Se o que Hipólito diz com respeito à doutrina do bispo romano não é mera ficção, Calisto não parece ter estado muito distante do Monarquianismo. De acordo com Hipólito, Calisto: alega que o próprio Logos é Filho, e que Ele mesmo é Pai; e que embora denominado por um título diferente, porém na realidade Ele é um espírito indivisível. E ele sustenta que o Pai não é uma pessoa e o Filho outra, mas que eles são uma e a mesma; e que todas as coisas estão cheias do Espírito Divino, tanto as de cima como as de baixo. E ele afirma que o Espírito, o qual encarnou-se na virgem, não é diferente do Pai, mas um e o mesmo. E ele acrescenta que isto é o que foi declarado pelo Salvador: Não crês que estou no Pai, e o Pai em mim? Por aquilo que é visto, que é homem, ele considera ser o Filho; enquanto que o Espírito, que estava contido no Filho, ser o Pai.637 Se esta era a doutrina de Calisto, Hipólito não estava completamente errado em compara-la com a de Noeto e Sabélio, embora Calisto seja cuidadoso ao falar, não do Pai sofrendo no Filho, mas do Pai sofrendo juntamente com o Filho. Assim ele tenta evitar cair no Patripassianismo. Mas ele ainda enfatiza a unidade divina a tal ponto que não há distinção com a Divindade, e que o termo “Filho” é usado apenas para se referir à humanidade de Cristo. É em oposição ao claro Modalismo de Noeto e Sabélio, e à doutrina menos clara de Calisto, que Hipólito desenvolve sua própria teologia trinitariana. Ao fazê-lo, ele faz uso do precedente que encontra na Contra Praxeas de Tertuliano. Como seu predecessor, opondo-se ao Modalismo, Hipólito enfatiza a distinção entre as pessoas divinas a tal ponto que é difícil para ele expressar a unidade divina. Desta maneira, ele, como Tertuliano antes dele, parece transformar o Verbo em um Deus secundário, e assim dá a Calisto a oportunidade de acusá-lo de “dualismo”. O subordinacionismo de Hipólito é visto mais claramente no modo pelo qual a geração do Verbo depende da vontade do Pai, e até mesmo no propósito divino na criação do 635

Ag. Noetus 1 (ANF, 5:223). Não se conhece exatamente a doutrina de Sabélio. É completamente possível que sua única contribuição importante ao Modalismo foi incluir o Espírito Santo em um sistema que anteriormente lidava apenas com o Pai e com o Filho. Outros textos parecem indicar que ele também adicionou um entendimento mais sofisticado da Divindade; mas todos estes textos são muito posteriores e é impossível saber quanta crença eles merecem. 637 Philos. 9.7 (ANF, 5:130). Na citação de Calisto que segue, o termo προσωπον (face, mascara, pessoa) aparece pela primeira vez na discussão trinitariana, embora ainda não tenha o sentido técnico que desenvolverá mais tarde. 636


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mundo.638 Hipólito aceita o entendimento sobre o Verbo que os apologistas tinham, com suas tendências subordinacionistas, e ele repete a distinção entre o Verbo interior e o Verbo expresso.639 Contudo, este subordinacionismo é limitado, pois próprio Hipólito nega categoricamente que existam “dois Deuses”, como Justino ou mesmo Orígenes teriam dito.640 Sua doutrina de maneira alguma nega a divindade do Verbo, mas antes a afirma explicitamente, embora negue a existência eterna do Verbo como distinto do Pai. Tudo isto deve ser entendido, como no caso de Tertuliano, nos termos da “economia” divina especial, de acordo com a qual “não podemos pensar de outra maneira sobre Deus, exceto por crermos de verdade no Pai, no Filho e no Espírito Santo”.641 Isto novamente mostra claramente a influência de Tertuliano, que também entendia os relacionamentos dentro da divindade em termos de unidade orgânica que por sua própria “economia” é tripla. Também em sua Cristologia, Hipólito segue o caminho que foi aberto por Tertuliano. Para ele, bem como para o teólogo africano, a união da divindade e da humanidade em Jesus Cristo é a união de “duas naturezas”, e nela cada uma delas mantém suas propriedades. E através da carne Ele [Jesus Cristo] agiu divinamente naquelas coisas que eram próprias à divindade, mostrando Ele mesmo ter ambas essas naturezas em ambas das quais ele agia, eu quero dizer que a divina e a humana, de acordo com a existência verdadeira, real e natural (mostrando deste modo a Si mesmo), tanto existindo de verdade como sendo entendido ser um e ao mesmo tempo Deus infinito e homem finito, tendo a natureza de cada um em perfeição, com a mesma atividade, isto é, as mesmas propriedades naturais; por isso sabemos que sua distinção subsiste sempre de acordo com a natureza de cada uma. 642 Em Roma, geograficamente, Hipólito fica entre Irineu de Lion e Tertuliano de Cartago. Ele ainda escreve em grego, e a estrutura básica de sua teologia é a mesma da de Irineu. Mas ele freqüentemente lê Irineu através de Tertuliano, e quando chega a problemas especificamente importantes, tais como a restauração de pecadores, a doutrina da Divindade e a Cristologia, ele está mais próximo do doutor africano do que do bispo de Lion. Ele é, portanto, um elo em uma longa cadeia, que servirá para preservar a influência de Tertuliano ao mesmo tempo que seu nome tornar-se cada vez menos comum. Novaciano O muito pouco que é conhecido sobre a vida de Novaciano, serve como lembrança da 638

639

Ag. Noetus 10.

Philos. 10.29. Cp. Bernard Capelle. “Le Logos, Fils de Dieu, dans la theologie d’Hippolite”, RThAM, 9 (1937), 109-124. 640 Ag. Noetus 8, 14. 641 Ibid., 14 (ANF, 5:228). 642 Ag. Ber e Hel. 1 (ANF, 5:231).


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importância que o problema da restauração dos caídos teve na Igreja Ocidental do terceiro século. Já mostramos que esta questão foi um dos fatores envolvidos na disputa entre Calisto e Hipólito. Agora, no caso de Novaciano, será o mesmo problema que o levará a uma ruptura com o episcopado estabelecido e, assim, provocar um novo cisma na Igreja de Roma. Neste caso, bem como no de Hipólito, é impossível determinar a importância referente aos fatores pessoal e teológico. De qualquer modo, o fato é que – embora seja possível que a atitude de Novaciano ante o cisma fosse diferente643 - uma vez que a separação ocorreu, a discussão teve a ver com o problema da restauração dos caídos. Nesta época, o problema não tinha a ver com aqueles que caíram em fornicação – uma batalha que Calisto e seus seguidores já ganhara – mas com aqueles que cometeram apostasia durante a perseguição. Mais uma vez, agora na pessoa do Bispo Cornélio, as autoridades da Igreja Romana estavam inclinadas a perdoar os pecadores. Novaciano se opunha a isto, e sua atitude foi paralela a de Hipólito três décadas antes.644 Como no caso anterior, não foi tanto um debate doutrinário com relação ao arrependimento, à penitência e a absolvição quanto uma discussão referente a seu alcance. De fato, a influência do próprio cisma na teologia de Novaciano é escassa, e pode ser vista principalmente em sua ênfase na santidade da igreja.645 Do ponto de vista doutrinário, Novaciano é importante por causa da sua obra Sobre a Trindade.646 Aqui ele tente provar a divindade do Filho de Deus, bem como sua distinção do Pai. Jesus Cristo é tanto humano como divino. Como ser humano, ele é chamado de Filho do Homem, e como Deus ele é chamado de Filho de Deus.647 A divindade de Cristo é necessária por razões soteriológicas: como a imortalidade é “o fruto da divindade”, e como o propósito de Cristo é dar imortalidade, é necessário que Cristo seja divino. “Portanto, Ele é o Deus que oferece a salvação eterna, a qual um homem, sendo incapaz de guardar-se para sempre, não pode ser capaz de dar a outro”.648 Este Deus Salvador é o Filho, que existia desde o princípio em Deus, e que o Pai gerou de acordo com sua vontade antes do início do tempo, de tal forma que entre o Pai e o Filho existe uma “comunhão de substância”.649 Em Cristo, o Filho de Deus uniu-se ao Filho do Homem, e esta união de duas “naturezas” é tal que o Filho de Deus se torna Filho do Homem ao assumir a carne, e o Filho do Homem se torna Filho de Deus ao

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Com base em Cipriano, Ep. 30 e 5.4. Bem como a de Tertuliano. Cp. C. B. Daly, “Novatian and Tertulian. A Chapter in the History of Puritanism”, IrThQ, 19 (1952), 33-43. 645 Cp. De trin. 29. 646 V. Loi, Novaziano: La Trinità: Introduzione, testo critico, traduzione, commento, glossario e indici (Turin: Società Editrice Internazionale, 1975), Cp. R. J. De Simone, The Treatise of Cyprian the Roman Presbyter on the Trinity: A Study of the Text and the Doctrine (Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 1970). 647 De trin. 11. 648 Ibid., 15 (ANF, 5:625). 649 Ibid., 31. 644


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receber o Verbo.650 Contudo, o principal interesse do tratado de Novaciano não é provar que o Filho é Deus e que esta divindade está em Cristo, mas provar, contra o Sabelianismo, que o Filho é distinto do Pai. Este propósito o leva a enfatizar a subordinação do Filho a tal ponto que alguns vêem nele um precursor do Arianismo. Esta tendência subordinacionista de Novaciano toma como seu ponto de partida a distinção entre o Pai como o Deus imutável e impassivo, e o Filho como capaz de estabelecer contato e relacionamento com os seres humanos, com o mundo e seus eventos.651 Assim, quando Gênesis afirma que Deus desceu para olhar a torre de Babel e confundir as línguas, não se refere ao Pai, que não está em lugar algum, mas ao Filho.652 Quando Abraão viu a Deus, ele não viu o Pai, que é invisível, mas o Filho.653 Quando Deus apareceu a Jacó na forma de um anjo, não foi o Pai mas o Filho que falou através dele.654 Este Filho procede do Pai por geração. Embora esta geração seja qualitativamente diferente do modo pelo qual as criaturas vêm de Deus, existe um “certo sentido” – é um sentido puramente lógico? – no qual o Pai é anterior ao Filho.655 O começo do Filho está no Pai – e assim Novaciano tenta evitar o dualismo dentro no qual ele cairia se tivesse de afirmar que o Filho tem seu próprio começo, independentemente do Pai. Se existissem dois seres “primogênitos” existiram dois Deuses.656 Mas Novaciano não parece afirmar a geração eterna do Filho, nem sua existência eterna como uma segunda pessoa em Deus. Pelo contrário, o Filho ou Verbo estava eternamente no Pai até que um ato da vontade do último fez o Filho estar com o Pai. Parece que mais uma vez temos aqui a distinção entre o Verbo interior e o Verbo expresso.657 Em sua tentativa de refutar o Sabelianismo,658 como Tertuliano na tentativa anterior de refutar Praxeas, Novaciano enfatiza tanto a distinção entre o Pai e o Filho, que o último tornase “inferior ao Pai”, ou “menor do que o Pai”.659 Isto, contudo, não significa que ele duvide da 650

651

Ibid., 23.

Ibid., 17. Ibid., 17 653 Ibid., 18. 654 Ibid., 19. São estas passagens – e o Cap. 20 – que têm levado a uma interpretação de Novaciano segundo a qual Novaciano crê que o Filho é um ser angelico, mas não divino. Felix Scheidweiler, “Novatian und die Engelchristologie”, ZschrKgesch, 66 (1954-55), 126-139. Mas veja J. Barbel, “Zur ‘Engelchritologie’ bei Novatian”, TrthZcschr, 67 (1958), 96-105. 655 De trin. 31. 656 Ibid. 657 Ibid. 658 Ver G. Keilbach, “Divinitas filii ejusque patri subordinatio in Novatian libro de Trinitate”, Bogoslovska Smotra, 21 (1933), 193-224. Uma outra interpretação, que alega que Novaciano ocilava entre duas posições: M. Simonetti, “Alcune osservazione sul ‘De Trinitate’ di Novaziano”, Studi in onore di Angelo Monteverdi (Modena: Societá Tipografica Editrice, 1959), 2:771-783. 659 De trin. 27. 652


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divindade do Filho. No que diz respeito ao Espírito Santo, a posição de Novaciano é a mesma: o Espírito Santo é Deus, mas a única maneira pela qual Novaciano pode expressar esta existência como uma pessoa distinta é fazendo o Espírito inferior, não apenas ao Pai, mas também ao Filho. Se o Espírito Santo recebe de Cristo coisas para declarar aos seres humanos, segue-se que “Cristo é maior que o Parácleto, porque o Parácleto nada receberia de Cristo exceto se fosse menor que Cristo”.660 Em resumo, Novaciano é importante para a história do pensamento cristão como um representante de dois aspectos da doutrina Ocidental e do desenvolvimento eclesiástico durante o terceiro século. Por um lado, ele esteve envolvido em controvérsias que necessariamente se desenvolveram com o crescimento do sistema penitencial, e que absorveram a atenção da Igreja Ocidental durante a maior parte deste século. Por outro lado, ele mostra como a influência de Tertuliano foi sentida na teologia trinitariana Ocidental. O cisma que se originou de Novaciano continuou mesmo depois de sua morte, e sua igreja se expandiu para o Leste, onde mais tarde uniu-se a alguns grupos de inclinações Montanistas. Cipriano de Cartago A personalidade mais notável da Igreja Africana entre Tertuliano e Agostinho é Cipriano de Cartago.661 Ele nasceu no começo do terceiro século em uma rica família pagã, e não converteu-se até aproximadamente seus quarenta anos. Após seu batismo, ele seguiu uma vida austera, abandonando aquela retórica na qual tinha feito grande progresso, vendendo suas propriedades a fim de distribuir suas riquezas entre os pobres, e seguindo o caminho da castidade. Em 248 A.D. – ou talvez 249 – foi eleito bispo de Cartago por aclamação popular. Embora a princípio estivesse inclinado a fugir a fim de não aceitar tais responsabilidades, ele finalmente aceitou a eleição como a vontade de Deus, e assim começou um novo estágio em sua vida. Seu episcopado durou apenas nove anos, mas durante este curto período, ele realizou uma grande tarefa pastoral. Seus escritos são principalmente práticos, pois são motivados por problemas concretos que requeriam sua ação como bispo. Sua teologia é claramente influenciada por Tertuliano, a quem ele chamava de “o mestre”. Como Tertuliano, mas até mesmo mais por causa de suas responsabilidades pastorais, Cipriano dedica muita atenção aos assuntos morais, práticos e disciplinares. Além disso, algumas de suas obras são meras revisões e anotações das de Tertuliano – Sobre o Vestuário das Virgens, Sobre a Oração do

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Ibid., 16 (ANF, 5:625). O melhor estudo geral é o de J. Ludwig, Der heilige Märtyrerbischof Cyprian von Kartago: Ein kulturgeschichtliches und theologisches Zeitbild aus der afrikanischen Kirche des 3, Jahrhunderts (Munique: K. Zink, 1951). 661


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Senhor, Sobre a Vaidade dos Ídolos e Sobre as Vantagens da Paciência. No início do ano 250, quando a perseguição de Décio encerrou um período de relativa paz para as igrejas, o qual tinha durado quase meio século,662 Ciprinao partiu de Cartago e se escondeu. Como a política da perseguição consistia não apenas em forçar todos a obterem um certificado declarando que tinham oferecido sacrifícios aos deuses, mas também principalmente em atacar os líderes da igreja, Cipriano pensou que era seu dever esconder-se, a fim de evitar criar maiores dificuldades para a igreja. De seu exílio, ele continuou dirigindo a vida da igreja, principalmente através de uma abundante correspondência. Ele foi grandemente criticado por esta decisão, entre outros pelo clero romano, que perdera seu próprio bispo na perseguição e que escreveu a Cipriano pedindo uma explicação desta atitude. Ele respondeu que sua presença em Cartago apenas traria mais sofrimento para a igreja e que, de qualquer modo, ele não abandonara suas funções pastorais.663 Finalmente, a tempestade passou, e no início do ano 251, Cipriano estava de volta entre seu rebanho. Então, ele teve que enfrentar o problema da restauração dos caídos, o qual tinha surgido antes mesmo da perseguição. A recente perseguição, além de ser a mais sistemática e severa que a igreja já conhecera até aquele tempo, tinha surgido inesperadamente após um período de relativa paz. Quando surgiu o édito que exigia que todos os habitantes do Império oferecessem sacrifício aos deuses, e obtivessem um certificado declarando que eles o fizeram, muitos foram levados pelo pânico a afluírem aos templos pagãos. Outros, mais tarde, sucumbiram à pressão de amigos e parentes, e ainda outros evitaram o martírio obtendo certificados falsos. Muito cedo, e mesmo antes da perseguição passar, muitas dessas pessoas expressaram seu desejo de retornar à comunhão da Igreja. Cipriano cria que esta oportunidade deveria ser dada, mas que isto deveria ser feito com a devida disciplina e ordem, e que a decisão deveria ser deixada para os bispos.664 Um grupo de confessores, cuja coragem durante a perseguição deu-lhes grande influência moral, eram opostos a esta política, e exigia que aqueles que caíram e que agora alegavam arrependimento, deveriam ser restaurados imediatamente à comunhão da igreja. Um grupo de anciãos que já tinham se oposto a eleição de Cipriano, uniu-se aos confessores. Assim, o problema da restauração dos caídos levou ao cisma – como também ocorreu em Roma, sob a liderança de Novaciano. Defrontado por estas circunstâncias, Cipriano convocou um sínodo, o que foi atendido

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Charles Saumage, a persécution de Dèce em Afrique d’après la correspondance de S. Cyprien”, Byz, 32 (1962), 1-29; C. Saumage, Saint Cyprien, évêque de Carthage, “pape” d’Afrique (248-258): Contribution à l’étude des ‘persécutions’ de Déce et de Valérien (Paris: Centre National de Recherche Scientifique, 1975). 663 Ep. 14. 664 J. J. Thierry, “Het conflict tussen martelaar en priester in de jonge kerk van Afrika”, NAKgesch, n.s. 42 (1957), 63-77.


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por uns sessenta bispos. A fim de tornar sua posição conhecida ao sínodo, bem como ao restante da Igreja, ele escreveu dois tratados: Sobre a Unidade da Igreja e Sobre os Caídos. Estes dois tratados são fundamentais para um entendimento da eclesiologia de Cipriano, e nos referiremos a eles repetidamente mais adiante. É suficiente dizer aqui que a posição de Cipriano com relação aos caídos era a seguinte: aqueles que se recusavam a cumprir a penitência, não deveriam ser perdoados, mesmo em seus leitos de morte; aqueles que compraram certificados, deveriam ser admitidos imediatamente; os caídos deveriam cumprir a penitência pelo resto de suas vidas, e seriam restaurados à comunhão da igreja em seus leitos de morte ou quando provassem a verdadeira natureza do arrependimento em outra perseguição; finalmente, o clero caído deveria ser deposto. Por outro lado, com respeito ao cisma, Cipriano recomendou que seus seguidores fossem excomungados. Em ambas as questões, o Concílio seguiu as sugestões do bispo de Cartago e – embora o cisma continuasse por algum tempo, e mais tarde foi fortalecido por uma aliança com os novacianos de Roma – este foi o fim da controvérsia. Dois outros problemas deram ocasião para a melhor produção teológica de Cipriano: a praga que desenvolveu-se em 250 A.D., e a controvérsia com relação ao batismo. Quando a praga irrompeu no Norte da África, um pagão chamado Demetrianus culpou os cristãos pela epidemia, a qual ele alegava ser uma punição mandada pelos deuses. Cipriano respondeu em um breve mas penetrante tratado A Demetrianus. Mas ele também escreveu aos fiéis tentando ajudá-los a enfrentar apropriadamente a morte – Sobre a Mortalidade – e a praticar as obras de caridade que a situação requeria – Sobre Obras e Esmolas. A controvérsia com relação ao batismo tinha a ver com questão se o batismo administrado pelos hereges era válido ou não, e portanto se deveriam rebatizar os hereges convertidos. O costume com relação a este assunto diferia de acordo com as várias regiões do Império: no Norte da África e na Ásia Menor o costume era rebatizar aqueles que receberam o rito das mãos hereges, enquanto que em Roma este batismo anterior era considerado válido, e os hereges convertidos não eram rebatizados. Esta diversidade era um motivo de preocupação para algumas pessoas que consultaram Cipriano. O bispo de Cartago declarou-se então em favor do costume africano de rebatizar os hereges convertidos, e mais tarde ele ganhou o apoio de dois sínodos de bispos africanos sucessivos.665 Estevão, o bispo de Roma, que já tinha entrado em conflito com Cipriano em outros assuntos,666 ao saber da decisão dos bispos africanos decidiu intervir e escreveu uma epístola, agora perdida, na qual ele solicitava que os bispos africanos a seguissem o costume romano e aceitassem a validade do batismo de 665

O curso da controvérsia pode ser seguido através das Epístolas de Cipriano, especialmente a Ep. 72, na qual o Papa Estevão é comunicado da decisão do sínodo africano; Ep. 74, que mostra a reação de Cipriano a atitude de Estevão; e Ep. 75, na qual o Bispo Firmiliano de Cesaréia apoia a posição de Cipriano.


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hereges. A controvérsia que resultou foi prolongada, e Estevão até mesmo ameaçou Cipriano com a quebra dos elos de comunhão com a Igreja Africana. Mas o bispo de Roma morreu antes de poder cumprir sua ameaça, e um anos mais tarde sua contraparte cartagiana ofereceu sua vida como mártir. Este foi o fim da controvérsia, mas de certo modo a Igreja Romana continuou exercendo sua influência, e no início do quarto século era costume na África aceitar o batismo de hereges, embora seja impossível saber quando a mudança ocorreu. Se dediquei um tempo maior para resumir as controvérsias de Cipriano com os cismáticos e com Roma, é porque estas controvérsias são o contexto dentro do qual ele desenvolveu sua doutrina da Igreja, e esta doutrina é sua principal contribuição para a história do pensamento cristão.667 Embora Irineu e Tertuliano se opusessem aos hereges enfatizando a importância da Igreja e da sucessão apostólica, e mesmo Clemente e Orígenes pensassem que a Igreja era de grande importância no plano da salvação, nenhum deles usou o tempo para desenvolver uma doutrina sobre a Igreja. O próprio Cipriano não tentou fazê-lo de modo sistemático, mas através de suas controvérsias e dos tratados resultantes, ele deu forma a uma doutrina da Igreja que seria muito importante para desenvolvimentos posteriores. Cipriano vê a Igreja como uma arca de salvação indispensável. 668 Assim como no tempo de Noé, ninguém que não estivesse dentro da arca poderia ser salvo, agora também, somente aqueles que estavam dentro da Igreja podem ser salvos. “Não há salvação fora da Igreja,”669 e “não pode mais ter Deus como seu Pai, quem não tem a Igreja por sua mãe”. 670 Esta é a razão pela qual Cipriano adota uma atitude inflexível contra o batismo que é recebido de mãos hereges e cismáticas. Se estes não são a Igreja, e de modo algum participam nela, não há salvação dentro de sua comunidade, ou perdão de pecados, ou direção do Espírito Santo, ou verdadeira eucaristia, ou verdadeiro batismo. Reivindicar que seu batismo é válido seria reconhecer que seu grupo é eclesiasticamente válido. Portanto, é preciso afirmar que todas as ações dos hereges e cismáticos, incluindo seu batismo, não são obra de Cristo, mas do Anticristo.671 Mas, o que podemos dizer, então, sobre as pessoas boas encontradas entre os cismáticos? Tais pessoas não existem, pois ninguém pense que o bem pode afastar-se da Igreja. O vento não carrega o trigo, nem o furacão desarraiga a árvore que está fundada em uma raiz sólida. As luzes de palha são agitadas pela tempestade, as árvores fracas são derrubadas pelo ataque do 666

Cp. Ep. 67, 68. Günter Klein, “Die hermeneutische Struktur des Kirchengedankens bei Cyprian”, ZschrKgesch, 68 (1957), 48-68. 668 De unit. eccl. 6. 669 Ep. 73.21 (ANF, 5:384). Cp. G. Nicotra, “Interpretazione di Cipriano al cap. IV, vers. 12, della Cantica”, Scatt, 18 (1940), 380-387. 670 De unit. eccl. 6 (ANF, 5:423). Cp. J. C. Plumpe, “Ecclesia Mater”, Transactions and Proceedings of the Amer, Philo. Assoc., 70 (1939), 535-555. 667


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vendaval.672 Como pode esta Igreja, fora da qual não há salvação, ser definida e reconhecida? De acordo com Cipriano, esta é a Igreja da verdade e da unidade. Embora Cipriano afirme que a verdade é uma das características essenciais da Igreja, sua oposição aos cismáticos o leva a enfatizar a unidade. Além disso, ele não vê a verdade sem a unidade, pois o fundamento de toda verdade é o amor, e onde não há unidade não há amor. A unidade da Igreja está no episcopado. Os bispos são os sucessores dos apóstolos, e sua autoridade, a qual se origina desta sucessão, é a mesma que Cristo concedeu aos apóstolos.673 O bispo está na Igreja e a Igreja no bispo, e onde o bispo não está, não existe Igreja. O episcopado é único, mas isto não é devido a uma hierarquia de uma natureza tal que todos os bispos estão sujeitos a um único “bispo dos bispos”, mas antes ao fato de que em cada bispo a totalidade do episcopado está representada. “O episcopado é único, cada parte do qual é mantido por cada um para o todo”.674 Por isso, cada bispo deve governar sua diocese independentemente de uma monarquia monolítica – e Cipriano mostra um alto grau de tolerância e flexibilidade com relação as várias práticas e costumes. Nenhum bispo tem o direito de dar ordens a outros bispos, embora a unidade do episcopado seja tal que os bispos deveriam consultar uns aos outros em assuntos de importância. Este conceito de bispos reunidos em federação é importante para uma compreensão da posição de Cipriano com relação diocese romana. Por um lado, Cipriano exalta a primazia de Pedro dentre os apóstolos, e também a importância da Igreja Romana para a Igreja universal. A confissão de Pedro no caminho para Cesaréia, e as repetidas ordens do Senhor a Pedro – “apascenta minhas ovelhas” – mostra que Pedro é a fonte da unidade apostólica. Os outros apóstolos tinham a mesma honra e autoridade que Pedro, mas ele foi o primeiro a receber esta autoridade, e isto foi feito precisamente a fim de torná-lo o princípio da unidade.675 Por esta razão, bem como por sua presente importância, a Igreja de Roma e seu bispo têm uma certa prioridade entre as igrejas 671

Ep. 70. De unit. eccl. 9 (ANF, 5:424). 673 Ep. 33. 674 De unit. eccl. 5 (ANF, 5:423). Em Latim temos: “Episcopatus unus est, cujus a singulis in solidum pars tenetur” (PL, 4:516). Isto pode ser entendido no sentido de que cada bispo sustenta uma parte do episcopado. De acordo com P. Schepens, “Saint Cyprien, Episcopatus unus est cuius a singulis pars in solidum tenetur (De unitate Ecclesiae, V)” RScRel, 35 (1948), 288-289. Mas também pode ser entendido como dizendo que a autoridade episcopal é indivisível, e porém cada bispo participa nela. De acordo com Maurice Bévenot, “In solidum and St. Cyprian: a correction”, JTS, nova série, 6 (1955), 244-248. 675 De unit. eccl. 4. Existe um problema textual concernente a este capítulo, do qual existem dois textos. O texto mais curto afirma a primazia de Roma, enquanto que o texto mais longo não. Os eruditos ainda debatem se ambos os textos são de Cipriano e, se forem, qual é o mais antigo. Cp. M. Bévenot, De Lapsis and De Ecclesia Catholicae Unitate: Text and Tanslation (Oxford: Clarendon, 1971). Existe uma conjectura comovente contra o texto mais curto em J. Le Moyne, “Saint Cyprien est-il bien l’auteur de la rédaction brève di ‘De unitate’ chapitre 4?”, RevBénéd, 63 (1953), 70-105. Mas G. S. M. Walker, The Churchmanship of St. Cyprian (Londres: Lutterworth Press, 1958) crê que ambos os textos são de Cipriano, e que o texto mais curto é o original. 672


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cristãs. A Igreja Romana é a “igreja líder de onde a unidade sacerdotal toma sua fonte”.676 Por outro lado, Cipriano se recusa a conceder ao bispo de Roma qualquer jurisdição em assuntos internos de sua diocese.677 Exatamente como a autoridade de Pedro, embora antes da dos outros apóstolos, não era superior, assim a prioridade de Roma não lhe concede qualquer autoridade sobre as outras igrejas. Quando o Papa Estevão tentou intervir na decisão da Igreja Africana, a resposta de Cipriano foi clara: Pois nem Pedro, a quem o Senhor escolheu primeiro, e sobre quem Ele edificou Sua Igreja, quando Paulo, mais tarde, disputou com ele sobre a circuncisão, reivindica insolenemente algo para si, nem arrogantemente assume algo; então, como dizer que ele defendeu a primazia e que ele devia ser obedecido pelos novatos e por aqueles que vieram mais tarde.678 Portanto, Cipriano pensa em termos de um episcopado federado, no qual cada bispo tem uma certa autonomia, embora ele também deva escutar as recomendações fraternais de outros bispos, e deva obedecer as decisões de um concílio. Seu próprio método de governo entre as Igrejas Africanas mostra seu entendimento sobre a autonomia episcopal, pois sempre que era necessário tomar uma decisão que poderia afetar seus colegas, Cipriano os chamava para um concílio.679 É nas decisões de um desses concílios que as seguintes palavras podem ser encontradas, claramente dirigidas contra o bispo de Roma, que tentava impor costumes romanos na África: Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém força seu colega à necessidade de obediência; visto que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um outro. Mas vamos todos esperar o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de designar-nos no governo de Sua Igreja, e de julgar-nos em nossa conduta nela.680 Em resumo, a unidade da Igreja está em seu episcopado, do qual todos os bispos participam como se fosse uma propriedade comum. Esta unidade não é algo que deve ser adicionado à verdade, mas é antes uma parte essencial da verdade cristã, de modo que onde não existe unidade também não existe verdade. À parte desta unidade não há salvação. À parte dela não há batismo, ou eucaristia, ou martírio verdadeiros. Contudo, esta unidade não 676

Ep. 54.14 (ANF, 5:344). O melhor estudo sobre este assunto está em Bernhard Poschmann, Ecclesia principalis: Ein kritischer Beitrag zur Frage des Primats bei Cyprian (Breslau: O. Borgmeyer, 1933). Ver também: A. Menoustier, “Episcopat et union à Rome selon saint Cyprien”, RScRel, 52 (1964), 337-369. 678 Ep. 71.3 (ANF, 5:377). 679 Ver P. R. Amidon, “The Procedure of St Cyprian’s Synods”, VigCh, 4 (1983), 328-339. 680 Conc. Carth. sub Cypriano VII, proemiun (ANF, 5:565). 677


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consiste em estar submisso a um “bispo dos bispos”, mas na fé, amor e comunhão comum de todos os bispos entre si. Assim encerramos nossa rápida olhadela na teologia ocidental no terceiro século. Não estudamos todos os teólogos do período, nem discutimos o pensamento total daqueles que estudamos. Mas o que foi dito deverá ser suficiente para mostrar que a teologia do Ocidente está inclinada a interesses práticos. O tema mais abstrato que é discutido no Ocidente é a doutrina da Trindade – e aqui muito pouco é dito que não seja uma repetição do que já encontramos em Tertuliano. Junto a estes assuntos estão outros, tais como a restauração dos caídos e a validade do batismo de hereges. Estas preocupações práticas são principalmente a ocasião para o surgimento de uma doutrina sobre a Igreja, a qual se tornará comum no Ocidente até a época de Santo Agostinho.


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X. A TEOLOGIA ORIENTAL APÓS ORÍGENES A marca de Orígenes nunca foi apagada da teologia Oriental. Em graus bastante variados, o maior dos teólogos gregos continuou mostrando sua influência por séculos, e as repetidas condenações a que sua teologia esteve sujeita, foram incapazes de impedir suas obras de serem lidas, e alguns aspectos de sua teologia de tornarem-se amplamente difundidos. Uma das características da teologia Oriental durante o terceiro século era precisamente esta predominância de Orígenes no cenário teológico. Os mais distintos teólogos eram seus seguidores. Aqueles que não o eram, e todavia eram importantes, estavam em completa oposição a ele. As principais escolas teológicas eram, na verdade, várias facções dentro do Origenismo. E quando surgia uma teologia totalmente independente, como foi o caso de Paulo de Samosata, eram os origenistas que se opunham a ela, e finalmente obtinham sucesso em condená-la. Após a morte de Orígenes, a tradição teológica à qual ele pertencia, e que ele passou adiante continuou não apenas em Alexandria, mas também em Cesareia e em outras regiões do Oriente, onde seus discípulos se estabeleceram. Em Alexandria, a tradição de Panteno, Clemente e Orígenes continuou em teólogos como Heraclas e Dionísio, o Grande, Teognosto e Pierio. Embora restem apensas fragmentos das obras desses teólogos alexandrinos, eles serviram para continuar uma tradição que aparecerá novamente no primeiro plano no início do quarto século. Em Cesareia, Panfílo, que havia estudado sob Pierio em Alexandria, e mais tarde se tornou bispo de Cesareia, conservou e ampliou a Biblioteca de Orígenes, e esta foi uma das principais razões porque Eusébio de Cesareia – um outro origenista que por sua vez foi discípulo de Panfílo – foi capaz de escrever sua famosa e muito valiosa História Eclesiástica. Em outras regiões do Império, existiam origenistas famosos como Gregório de Neocesareia – o Fazedor de milagres – e Luciano de Antioquia. Suas obras teriam conseqüências enormes, e, antes do final deste capítulo, teremos oportunidade de nos referirmos a elas. Contudo, antes de expor as várias tendências que apareceram dentro do Origenismo durante o terceiro século, devemos fazer uma pausa a fim de discutir primeiro o único teólogo importante deste período, que parece ser totalmente independente do Origenismo – Paulo de Samosata – e então, a oposição ao Origenismo – representada em Metodio de Olimpo. Paulo de Samosata Paulo de Samosata foi eleito bispo de Antioquia em aproximadamente 260 A.D. Ele também tinha o título de ducenarius (capitão de 200 soldados), que o fez o mais alto


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funcionário público naquela região da Síria.681 Logo surgiram protestos entre os cristãos em Antioquia a respeito da conduta de seu bispo. Ele foi acusado de abusar de seu poder e de ser ostentoso. Foi também dito que ele tinha um grupo de mulheres ao seu redor onde quer que ele fosse. Parece que alguns reclamaram que ele permitia a estas mulheres cantarem na igreja. De qualquer modo, a acusação mais impressionante, se verdadeira, é que ele não permitia que fossem cantadas canções a Cristo.682 Estas acusações eram acompanhadas da acusação de ser um herege. Parece que Paulo combinava algumas tendências monarquianistas com outras adopcionistas, propondo assim a teoria que tem sido chamada – muito incorretamente – Monarquianismo Dinâmico. O principal interesse da teologia de Paulo era o afirmar o monoteísmo cristão. Os judeus eram uma forte minoria em Antioquia, e até mesmo a tendência religiosa geral de Palmira mostrava uma marcante evolução para o monoteísmo. O próprio Cristianismo, em sua polêmica contra os pagãos, insistira na existência de apenas um Deus. Tudo isso levou Paulo a enfatizar a unidade de Deus, mesmo às custas da distinção entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Contudo, Paulo não segue o caminho do Modalismo, que afirmava que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram três modos nos quais Deus aparecia. Pelo contrário, ele tentava preservar o monoteísmo estabelecendo uma diferença marcante entre o Pai e o Filho, de tal modo que apenas o Pai é Deus. Quanto ao Espírito Santo, é impossível reconstruir o pensamento de Paulo com base nos fragmentos que permaneceram. 683 O Filho não é Deus, nem é o Verbo ou a Sabedoria de Deus. Além disso, o Filho existe somente depois da encarnação, após o momento em que Cristo foi gerado no ventre de Maria pelo Espírito Santo.684 Esta distinção entre o Verbo e o Filho, contudo, não teria sido suficiente para condenar Paulo como um herege. Isto era freqüentemente usado por outros teólogos a fim de distinguir entre o Verbo antes da encarnação e o Filho, que era o Verbo encarnado. Onde Paulo abriu-se ao ataque foi em negar que o Verbo era nada mais do que a razão não falada e imanente de Deus. A Cristologia de Paulo não pode ser chamada de “adopcionista” no sentido estrito, pois a concepção pelo Espírito Santo e o nascimento virginal – que ele afirma685 - implica que 681

Este não é o entendimento tradicional de sua vida. Geralmente é dito que ele era um funcionário público sob a Rainha Zenobia de Palmira, e que ele usava sua influência sobre ela para oprimir aqueles elementos na igreja que estava em desacordo com suas políticas e doutrinas. Ver, contudo, F. W. Norris, “Paul of Samosata: procurator ducenarius”, JTS, nova série, 35 (1984), 50-70. 682 Ver Gustave Bardy, Paul de Samosate: Etude historique (Louvain: Spicilegium Sacrum Lovaniense, 1929), pp. 264-273. 683 Cp. Bardy, Paul, pp. 443-448. 684 Assim, Maria não deu à luz ao Verbo, mas ao Filho, fragm. 26 (Brady, Paul, p. 56). 685 Fragm. 37 (Brady, Paul, p. 63).


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Jesus, desde o momento de seu nascimento, era o Filho de Deus. Mas existe uma tendência adopcionista nesta doutrina, visto que a filiação de Jesus Cristo não é essencial – não é uma questão do Filho ou Verbo eterno tornando-se carne – mas consiste antes em um “propósito” ou “predestinação” de Deus A Sabedoria ou Verbo de Deus habitou em Jesus. Mas, como este Verbo não é mais do que a razão ou propósito de Deus, e como também ele habitou em Moisés e nos profetas, a presença de Deus em Jesus é apenas quantitativamente diferente do que foi ou pode ser em outros. Jesus não é de modo algum divino, mas antes é “de baixo”.686 A união entre Jesus e o Verbo é simplesmente uma união moral,687 é deste modo que o Verbo habitou em Jesus, “como em um templo”.688 Como este Verbo ou Sabedoria de modo algum subsiste próximo ao Pai, mas antes é seu poder ou δυναµις, esta doutrina é normalmente chamada de Monarquianismo Dinâmico, para distinguí-la do Monarquianismo Modalista. No último, o Verbo é identificado com o Pai, de modo que a divindade que existia em Jesus Cristo é o próprio Pai, e por esta razão esta doutrina também é chamada de “Patripassianismo”. Paulo de Samosata, ao contrário, afirma que Deus estava em Cristo apenas no sentido de que nele habitava o poder ou a Sabedoria de Deus. Para os modalistas, Jesus Cristo é Deus; para Paulo, ele é um “simples homem”.689 Por outro lado, a doutrina de Paulo de Samosata deveria ser diferenciada da tendência subordinacionista que já encontramos em Tertuliano, Hipólito e até mesmo em Orígenes. Em suas expressões extremas, o subordinacionismo salvaguarda a unidade de Deus transformando o Filho – e o Espírito Santo, quando explicitamente discutido – em um ser que é menor do que o Pai, mas que é distinto dele e com uma subsistência relativamente independente. Paulo salvaguarda essa unidade rejeitando a idéia de que qualquer tipo de ser superior, não importa quão diferente do Pai, encarnou-se em Jesus. Provavelmente este é o contexto no qual ele usava o termo οµοουσιος – consubstancial – que seus oponentes houveram por bem condenar. Assim, a teologia de Paulo tinha que colidir com a dos origenistas, e até mesmo com a de outros teólogos orientais, pelo menos em dois pontos: em sua doutrina sobre a Divindade, e em sua Cristologia. Sua negação da existência do Verbo como uma hypostasis ou pessoa junto com o Pai, e especialmente sua negação da união real deste Verbo com a humanidade em Jesus Cristo, somente poderiam escandalizar a maioria dos líderes da Igreja e até mesmo 686

Eusébio, HE 7.30.11. Esta é a conclusão de Bardy (Paul, p. 466): “Em resumo, Paulo concebe somente uma união moral entre a Sabedoria e Jesus.” 688 Fragm. 25 e 27 (Brady, Paul, pp. 54, 57) Este modo de falar da humanidade de Cristo como um “templo” seria característico da Cristologia antioquiense por algum anos. 689 Panfilo, Apol. 5; Eusébio, HE 5.28.1-2

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muitos dos leigos em Antioquia. Logo os bispos vizinhos começaram a receber reclamações, não apenas com relação à conduta, mas também a ortodoxia do bispo de Antioquia. Os cristãos desta cidade estavam preocupados com a atitude e dos ensinos de seu bispo, e o resultado foi um cisma. Confrontado pelas circunstâncias, o Bispo Heleno de Tarso convocou um concílio que reuniuse em Antioquia em 264 A.D. e que foi atendido por um grupo de famosos origenistas. Como era de se esperar, eles discordaram de Paulo de Samosata. A defesa do último foi tal que o concilio não pode determinar claramente a natureza de seu erro; mas ele ainda prometeu modificar sua posição e ensinar o que naquela altura se tornara a doutrina tradicional da Igreja. Com esta promessa, e após discutir outros assuntos, os bispos foram para casa. Isto, contudo, não resolveu o problema, pois tornou-se necessário convocar um outro concílio quando foi recebida a palavra de que Paulo ainda estava ensinando as doutrinas que ele prometera abandonar. Este concílio o depôs após longo debate, no qual o origenista Malquion mostrou os pontos fracos na teologia do bispo antioquiano. Mas mesmo então, com o apoio de Zenobia, Paulo se recusou aceitar a deposição, e manteve suas funções episcopais e civis até o ano de 272, quando o Imperador Aureliano, depois de derrotar Zenobia e consultar os bispos da Itália, aplicou a decisão do concílio. Este segundo concílio de Antioquia tem uma certa importância para a história do pensamento cristão, pois foi aqui que a doutrina de que o Verbo é “consubstancial” (οµοουσιος) com o Pai foi condenada. Parece que Paulo de Samosata usava este termo de forma para negar que o Verbo tinha uma subsistência de si próprio. Quando em 325 A.D., o Concílio de Nicéia usou o mesmo termo – embora em um sentido diferente – muitos suspeitaram que o grande concílio estava retornando à antiga doutrina de Paulo de Samosata.690 Metodio de Olimpo Embora a condenação e deposição de Paulo de Samosata inegavelmente tivessem implicações políticas, isto marcou, na teologia Oriental, o fim do último sistema teológico de importância que era independente da influência origenista – A partir deste ponto – e durante o terceiro e quarto séculos – embora existissem repetidas vozes de protesto contra Orígenes e seus seguidores, estas mesmas vozes ainda denunciavam a influência do grande mestre alexandrino. Em Metodio de Olimpo temos um excelente exemplo desta afirmação. Muito pouco é conhecido sobre a vida de Metodio, e a única razão para chamá-lo “de Olimpo” é que uma tradição, que é menos duvidosa do que outras, afirma que ele foi bispo 690

Ver R. L. Sample, “The Christology of the Coucil of Antioch (268 CE) Reconsidered”, CH, 48 (1979), 18-26; H. C. Brennecke, “Zum Prozess gegen Paul von Samosata: Die Frage nach der Verurteilung des Homousios”, ZntW, 75 (1984), 270-290.


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desta cidade. É dito que ele morreu como um mártir em 311 A.D., embora esta afirmação possa também ser questionada. O que é inquestionável é que ele era grandemente inclinado ao ascetismo, e que ele mantinha o celibato em alta estima, como pode ser visto em seu diálogo Simpósio, a única de suas obras cujo texto grego foi totalmente preservado. Embora Metodio admirasse e seguisse Orígenes por algum tempo, muitos de seus escritos o apresentam como um oponente do grande alexandrino. Provavelmente esta oposição em si é uma das razões porque tão pouco é conhecido de sua vida, pois o historiador Eusébio, sendo um fervoroso admirador de Orígenes, achou conveniente não incluir Metodio em sua História Eclesiástica. De qualquer modo, mesmo opondo-se a Orígenes, Metodio mostra que ele não está totalmente livre de sua influência. Assim, ele concorda com Orígenes ao fazer uso da filosofia de Platão – cujos diálogos ele tenta imitar – assim como falando de Deus como um platonista, e da Trindade em termos de subordinacionismo, embora sem negar a eternidade do Filho. Metodio se opõe a Orígenes em quatro considerações: a eternidade do mundo, a preexistência das almas, escatologia espiritualista e exegese alegórica. Ele ataca todas estas doutrinas do ponto de vista que é característico daquela tradição teológica que já encontramos em Melito, Papias e Irineu. Como eles fizeram antes dele, Metodio favorece uma interpretação tipológica do Velho Testamento, uma escatologia quiliasta, e uma interpretação da história da salvação em termos de “recapitulação”, ou do paralelismo entre a obra de Adão e a de Cristo. Mas a influência de Orígenes ainda pode ser claramente vista na forma pela qual, enquanto atacava a exegese alegórica do grande alexandrino, o próprio Metodio é arrebatado por outras interpretações que não são menos alegórica; e isto também pode ser visto no modo pelo qual ele faz uso da razão ao refutar o racionalismo de Orígenes. A fim de mostrar o modo pelo qual Metodio refuta a doutrina de Orígenes, será suficiente resumir seu argumento contra a doutrina da eternidade do mundo, como este pode ser encontrado em um fragmento que foi preservado por Fócio. Como foi dito acima, Orígenes afirma que, Deus sendo eternamente Criador, a própria criação deve ser eterna. Metodio aponta que a dependência constitui uma imperfeição, de modo que o ser perfeito deve ser totalmente independente. Portanto, a natureza de Deus como Criador não pode depender da criação, pois isto negaria a independência divina e, por conseqüência, a perfeição divina. Concluindo, “não podemos aceitar o pecado mortífero daqueles que afirmam que Deus é Onipotente e Criador por causa das coisas que ele governa e cria,”691 e como este é o fundamento da doutrina de Orígenes, nem ele pode aceitar suas opiniões com relação à 691

Fragm. de Fócio, Bib. con. 235 (PG, 103: 1144), Ver L. G. Patterson, “The Creation of the World in Methodius’ Symposium”, SP, 9 (1966), 240-250.


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eternidade do mundo. Contudo, naquilo que se refere ao problema que ocupará o centro do palco durante o quarto século, isto é, a doutrina trinitariana, o ensino de Metodio é semelhante ao de Orígenes, embora menos preciso. Para ele, como para Orígenes, existe uma distinção real entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e esta distinção é expressa em termos subordinacionistas, embora sem negar a eternidade das três pessoas. “E assim, após este Começo sem começo que é o Pai, ele [o Verbo] é o Começo das outras coisas, pelo qual todas as coisas foram feitas.”692 Teologia Origenista Muito pouco é conhecido sobre o desenvolvimento do Origenismo imediatamente após a morte de seu fundador. Embora Eusébio de Cesareia, que pertencia a esta escola, recorde abundantes dados com relação a alguns dos principais origenistas do terceiro século e do começo do quarto, estes dados são mais biográficos, e adicionam muito pouco ao nosso conhecimento sobre a principal corrente teológica da época. Por outro lado, existem referências e até mesmo citações de origenistas do terceiro século em escritos posteriores. Estas referências são muito valiosas para a história do pensamento cristão, pois através delas podemos tentar reconstruir o desenvolvimento teológico que leva de Orígenes à crise ariana. Mas não podemos esquecer que, precisamente porque estas referências são feitas depois que foi proposto o problema ariano – quer dizer, quando a doutrina da Trintade ocupou o centro da discussão teológica – o testemunho destes escritores do quarto século não deve ser tomado como uma expressão equilibrada da posição de seus predecessores – não apenas no sentido que os fragmentos e outros dados que foram preservados podem ter sido distorcidos, mas também no sentido de que as controvérsias do quarto século serviram para selecionar aqueles materiais do terceiro século que foram citados, dando assim aos historiadores posteriores uma visão parcial das preocupações teológicas durante o período que vai de Orígenes à primeira década do quarto século. Portanto, ao estudarmos a teologia origenista durante o terceiro século, somos forçados a focar nossa atenção nas questões trinitarianas, e especialmente sobre aquelas que se referem ao relacionamento entre o Pai e o Filho. Mas não devemos esquecer que, por trás dos escassos vestígios que possuímos, deve ter existido uma grande quantidade de atividade teológica, não apenas no que se refere à Trindade, mas também em exegese bíblica, antropologia, a teoria dos sacramentos, e assim por diante. A fim de ilustrar o curso da teologia após a morte de Orígenes, discutiremos brevemente o pensamento de três dos mais importantes origenistas da época: Gregório de Neocesareia, Dionísio de Alexandria e Luciano de Antioquia. Gregório nasceu em uma ilustre família pagã da Neocesareia, no Ponto. Seu 692

Ibid., (PG, 103: 1148).


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verdadeiro nome era Teodoro, mas após sua conversão e batismo foi chamado de Gregório. Esta conversão ocorreu em Cesareia na Palestina, através dos ensinamentos de Orígenes. Depois de passar algum tempo nesta cidade aprendendo do grande teólogo os mistérios da fé, ele retornou à sua cidade natal, da qual ele finalmente tornou-se bispo. Muitos milagres foram atribuídos a ele, a tal ponto que ele é conhecido como Gregório, o Fazedor de milagres. Sabemos também que, quando ele se tornou bispo de Neocesareia, haviam naquela cidade dezessete cristãos, e que seus labores evangelísticos foram tais que quando ele morreu haviam apenas dezessete pagãos. Como bispo de Neocesareia, ele compareceu ao primeiro concílio convocado contra Paulo de Samosata em Antioquia. A obra mais extensa de Gregório que sobreviveu é sua Panegírico a Orígenes, que é muito valioso para o estudo dos métodos de ensino de Orígenes. Mas muito mais interessante para nós é um credo que foi preservado na biografia de Gregório, que foi escrita por Gregório de Nissa. Existe um Deus, o Pai do Verbo vivo, que é Sua Sabedoria, Poder e Imagem Eterna subsistente: perfeito Progenitor do perfeito Gerado, Pai do Filho unigênito. Existe um Senhor, Único do Único, Deus de Deus, Imagem e Semelhança da Divindade, Verbo Eficiente, Sabedoria compreensiva da constituição de todas as coisas, e Poder formador de toda a criação, verdadeiro Filho do verdadeiro Pai, Invisível do Invisível, e Incorruptível do Incorruptível, e Imortal do Imortal, e Eterno do Eterno. Existe um Espírito Santo, tendo Sua subsistência de Deus, e sendo feito manifesto pelo Filho, a saber a homens: Imagem do Filho, Imagem perfeita do Perfeito; Vida, a Causa da vida; Fonte Santa; Santidade, o Provedor, ou Líder, da Santificação; em quem é manifesto Deus o Pai, que está acima de tudo e em tudo, e Deus o Filho, que está através de tudo. Existe uma Trindade perfeita, em glória, eternidade e soberania, não dividida nem afastada. Por isso não há nada criado ou em servidão na Trindade; nem nada introduzido, como se em algum período anterior fosse inexistente, e em algum período posterior fosse introduzido. E assim nem o Filho esteve sempre ausente ao Pai nem o Espírito ao Filho; mas sem variação e sem mudança, a mesma Trindade continua sempre.693 Este credo enfatiza a divindade eterna do Filho, e diz muito pouco sobre aquilo que o distingue do Pai, exceto que certamente não é que um é invisível e o outro visível, ou que um é incorruptível e o outro corruptível, ou qualquer outra explicação que faria um menos divino que o outro. É impossível saber os motivos que levaram à formulação deste credo, mas não existe dúvida de que ele reflete uma continuação de um dos dois aspectos da doutrina de 693

ANF, 6:7. As palavras “a saber a homens” provavelmente são uma adição.


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Orígenes. Enquanto que o professor alexandrino afirmava a eternidade do Filho e ao mesmo tempo sua subordinação ao Pai, Gregório resgata o primeiro aspecto desta doutrina, e deixa o segundo de lado. Esta tendência de alguns seguidores de Orígenes tem sido chamada, muito incorretamente, mas ainda plenamente utilizada, “Origenismo de direita”. No outro pólo, alguns origenistas enfatizavam os aspectos subordinacionistas da doutrina do mestre. Estes são chamados, tão incorretamente como os outros, de “origenistas de esquerda”. Eles eram principalmente pessoas que temiam a ameaça do Sabelianismo, o qual suprimia a distinção entre as três pessoas divinas. Estes teólogos viam o subordinacionismo como um meio fácil de distinguir-se claramente entre o Pai e o Filho, e de assim destruir todo tipo de Modalismo. Como exemplos destas preocupações, devemos discutir Dionísio de Alexandria e Luciano de Antioquia. Dionísio de Alexandria – conhecido como “o Grande” – foi um dos mais importantes seguidores de Orígenes. Ele sucedeu Heraclas como bispo de Alexandria e diretor da Escola Catequética desta cidade. Durante as perseguições de Décio e Valeriano ele foi forçado a exilar-se. Mas em ambos os casos foi restaurado ao seu cargo episcopal, o qual ele ocupou até sua morte em 264 A.D. Suas obras, que devem ter sido muitas, foram perdidas, e apenas uns poucos fragmentos foram preservados, os quais escritores posteriores felizmente se sentiram inclinados a citar. Destes fragmentos, os mais importantes são aqueles que se referem à sua correspondência com Dionísio de Roma, pois eles mostram o quanto um origenista, defrontado pela ameaça do Sabelianismo, inclinava-se para o “origenismo de esquerda”, e assim enfatizava a distinção entre o Pai e o Filho de tal modo que escandalizava alguns de seu rebanho. De acordo com o registro de alguns escritores posteriores,694 Dionísio de Alexandria, temendo os extremos do Sabelianismo, usava em sua pregação algumas frases e ilustrações com as quais ele procurava enfatizar a distinção entre o Pai e o Filho. Algumas destas frases e ilustrações pareciam implicar que o Filho era uma criatura. Assim, Dionísio afirmava que houve um tempo em que o Filho não existia, e que ele era de uma substância diferente da do Pai. Ele também citava as palavras do Senhor – “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor” – a fim de estabelecer a diferença entre o Pai e o Filho, dizendo que seu relacionamento é similar ao que existe entre o agricultor e a videira, ou entre um barco e a pessoa que o fez. Alguns cristãos de Alexandria, preocupados com estas doutrinas de seu bispo, 694

Os mais importantes são Eusébio, HE, 7; Praep. evang. 7.9; 14,23-27; Atanásio, De setentia Dionysii. Ver E. Boularand, “Denys d’Alexandrie et Arius”, BLE, 67 (1966), 162-169; L. Abramowsky, “Dionys von Rom und Dionys von Alexandrie in den arianischen Streitigkeiten des 4ten Jahrhunderts”, ZschrKgesch, 93 (1982), 240272; M. van Esbroeck, “Nouveaux fragments armeniens de Denys d’Alexandrie”, OrCh, 50 (1984), 18-42.


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decidiram escrever ao bispo de Roma, cujo nome também era Dionísio, e lhe pediram sua opinião. Dionísio de Roma convocou um sínodo que condenou as opiniões que pareciam ser sustentadas por Dionísio de Alexandria, e ele também escreveu uma carta ao último pedindolhe para esclarecer sua posição. O bispo de Alexandria respondeu com uma Refutação e Apologia, em quatro livros. Esta obra foi perdida; mas alguns fragmentos foram preservados, e através deles é possível esboçar sua resposta. Ele começa por protestar que seus acusadores tomavam suas palavras fora de contexto, pois ele também usava outras frases e ilustrações que teriam servido para mostrar que ele não pretendia tornar o Filho em uma mera criatura. Assim por exemplo, uma dessas ilustrações era que de uma luz que é iluminada por outra, de modo que as luzes resultantes são distintas, mas ainda partilham de uma natureza comum. Quanto ao termo “consubstancial” – homoousios – ele estava disposto a aceitá-lo como seu colega romano explicara seu sentido, mas ele ainda apontava que esta não era uma palavra encontrada nas Escrituras. De qualquer modo, este termo não deve ser entendido de tal modo que negue a existência de três que são distintos, pois é sempre necessário afirmar a tripla natureza de Deus. Em resumo, Dionísio concluiu que “nós expandimos a Mônade indivisível em Triade, e inversamente concentramos a Tríade sem diminuição na Mônade.”695 Esta correspondência entre os dois bispos mostra não apenas o “origenismo de esquerda” que a ameaça do Sabelianismo podia produzir em um líder da Igreja, mas também as dificuldades propostas pelo fato de que o Leste e o Oeste usavam linguagens diferentes. No Oeste, desde o tempo de Tertuliano, era comum usar o termo “substância” a fim de se referir à divindade comum do Pai, Filho e Espírito Santo, e “pessoa” para se referir a cada um destes três. Na tentativa de cruzar o obstáculo da linguagem, era natural traduzir “persona” por “prósopon”, que significa não apenas “pessoa”, mas também “face” ou “máscara”. Portanto, os cristãos orientais tendiam a ver na teologia Ocidental uma inclinação Modalista inaceitável. Por outro lado, a terminologia no Leste era ainda muito mais oscilante do que no Oeste, e os termos “ousia” e “hypostasis” ainda eram ambíguos. O primeiro podia significar a subsistência de uma coisa particular, bem como a substância comum da qual vários seres individuais participavam. A mesma ambigüidade existia no termo “hypostasis”. Por isso, quando um teólogo oriental, tal como Dionísio de Alexandria, falava de três “hypostases”, ele não estava necessariamente estabelecendo uma distinção marcante entre as três pessoas da Trindade, como sua terminologia poderia sugerir a um cristão latino. Esta confusão tornou-se séria porque tanto ousia quanto hypostasis poderiam ser traduzidas para o Latim como 695

Citado por James Franklin Bethune-Baker, An Introduction to the Early History of Christian Thought (reimpressão, Londres: Methuen & Co., 1958), p. 115. Esta obra contém um bom resumo da correspondência entre os dois Dionísios: pp. 113-118.


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substantia. Portanto, quando um teólogo ocidental, como Dionísio de Roma, era informado que um colega oriental estava falando de três “hypostases”, ele estava pronto a interpretar tal afirmação em termos triteístas, ou pelo menos em termos de um subordinacionismo intolerável. Estas dificuldades, que já podiam ser vistas nas correspondências entre os bispos de Alexandria e Roma, seriam um obstáculo na comunicação entre o Leste e o Oeste até perto do fim do quarto século, quando após longas e amargas controvérsias, as ambigüidades dos termos básicos foram esclarecidas. Finalmente, é necessário dizer uma palavra sobre um origenista cuja obra teve enormes conseqüências: Luciano de Antioquia. É impossível reconstruir o curso de sua vida, pois os dados que parecem serem aplicados a ele são contraditórios. Existiu um certo Luciano em Atioquia que foi um seguidor de Paulo de Samosata, e que, por esta razão, foi mantido fora da comunhão da Igreja durante o governo de três bispos sucessivos. 696 Existiu também um certo Luciano que dirigiu uma escola em Antioquia, na qual ele tinha como discípulos aqueles que mais tarde foram os principais líderes do arianismo – que chamavam-se “Colucianistas”.697 Há algum debate entre os eruditos quanto a se estes dois são o mesmo.698 Está em jogo a maneira pela qual o Arianismo – o qual discutiremos no próximo capítulo – deve ser interpretado. A interpretação tradicional de Ario e suas doutrinas como sendo provenientes de Paulo de Samosata, e transmitidas a ele por meio de Luciano, foi desafiada por aqueles que sustentam que o Arianismo derivou-se, não de Paulo, mas de Orígenes, e que foi de fato uma forma extremada do “Origenismo de esquerda”. Contudo, os mais recentes estudos sobre Ario e seus ensinos argumentam convincentemente por uma interpretação diferente, e portanto, o argumento para a existência de dois Lucianos perde muito de sua força. Luciano de Antioquia, o mestre dos arianos, fundou uma escola nesta cidade que logo se tornaria rival da de Alexandria. Embora pareça que ele foi um origenista em todos os outros sentidos, Luciano se opunha à interpretação alegórica dos alexandrinos, e ele implantou em Antioquia um estudo das Escrituras de acordo com os métodos históricos e gramaticais. Este método tornava o texto sagrado muito mais difícil de se manipular para vantagem de alguém. Mas, embora isto tenha tornado a tarefa teológica mais difícil, foi também uma grande vantagem, e até mesmo os grandes mestres alexandrinos do quarto século, defrontados pelas heresias de sua época, foram forçados a abandonar a exegese 696

Alexander de Alexandria, citado por Teodoreto, HE, 1.4.36. Epifânio, Pan. 69.6. 698 O argumento para dois Lucianos é sucintamente expresso por F. Loots, Paulus von Samosata: Eine Untersuchung zur altkirchlichen Literatur- und Dogmengeschichte (Leipzig: J. C. Hinrichs, 1924). Por outro lado, ver Bardy, Paul, pp. 375-385. A reinterpretação de Ario a qual me referi é a de R. G. Gregg e D. E. Groh, Early Arianism: A View of Salvation (Filadélfia: Fortress, 1981), que me induziu a fazer revisões completamente radicais nos capítulos que seguem. 697


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alegórica em favor de outro método de interpretação que era mais de caráter mais estrito e científico. Este método exegético histórico e gramátical, que mais tarde tornou-se característico da Escola de Antioquia, parece já ter estado na raiz do texto grego da Bíblia que Luciano editou, e na qual a principal preocupação parece ser pela clareza de expressão.699 Contudo, a importância de Luciano para a história do pensamento cristão não está tanto em sua contribuição para o método exegético quanto em um aspecto de sua teologia, da qual não temos registros dignos de confiança: sua doutrina da Trindade.700 Quando, alguns anos depois de sua morte, a controvérsia ariana irrompeu, todos os líderes do Arianismo eram antigos discípulos de Luciano, e eles chamavam-se a si mesmos de “Colucianistas”. Ario, Eusébio de Nicomédia, Theognosis de Niceia, Maris da Calcedônia, Leôncio de Antioquia e Astério, o Sofista, foram seus discípulos.

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Brady, Paul, pp. 381-382. O credo atribuído a ele, que aparece em Sócrates, HE 2.10, e Atanásio, Ep, de synodis 23, não é seguramente seu, e de qualquer modo provavelmente foi interpolado (Philostorgius, HE 2.14). Mas mesmo se é um testemunho autêntico da teologia de Luciano, não muda nosso entendimento geral desta teologia. Cp. Gustave Bardy, Recherches sur saint Lucien d’Antioche et son école (Paris: G. Beauchesne et ses fils, 1936), pp. 119 e seguintes. 700


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XI. A CONTROVÉRSIA ARIANA E O CONCÍLIO DE NICEIA O quarto século viu o começo de uma nova época na história da igreja, e, portanto, na história do pensamento cristão. Constantino transformou a Igreja perseguida na Igreja tolerada, e mais tarde – especialmente depois da fundação de Constantinopla – em uma Igreja protegida. Um dos resultados imediatos destas novas circunstâncias foi que o quarto século foi a época dos grandes “Pais” da igreja, pois a energia que anteriormente foi dedicada ao treinamento para o martírio e à refutação de acusações pagãs, poderia ser agora canalizada para outras atividades. Esta é uma das razões porque o quarto século é rico em figuras muito grandes: Atanásio, os Capadocianos, Jerônimo, Ambrósio, e Agostinho, e o primeiro historiador do Cristianismo, Eusébio de Cesaréia. Outros cristãos, agora que o martírio pelas mãos do Estado não era mais possível, entregaram-se ao martírio substituto do monasticismo, e assim o quarto século viu milhares de bandos eremitas indo para o deserto egípcio. 701 A arte cristã, até aquele tempo limitada a funerais e outras expressões menores, agora tornara-se uma arte triunfal, progressivamente centralizada em Cristo como Senhor do céu e da terra.702 A liturgia, que permanecera relativamente simples, começava agora a adotar os usos da corte imperial, pois foi estabelecido um paralelismo entre Cristo e o Imperador.703 E a arquitetura agora encarregava-se da construção de igrejas capazes e dignas dos novos desenvolvimentos litúrgicos.704 Estas novas condições tiveram suas conseqüências negativas também. Em primeiro lugar, logo começou uma conversão em massa que inevitavelmente depreciou a profunda convicção e a vida moral da igreja. Em segundo lugar, a proteção imperial tornou mais fácil aos poderosos unirem-se a igreja e procurarem manter e exercer seu poder dentro da comunidade da fé. Finalmente, a mesma proteção, que deu aos cristãos a possibilidade de desenvolverem sua teologia a um ponto que anteriormente era impossível, também implicou na possibilidade de condenação ou privilégio imperial a uma ou a outra posição teológica, e isto por sua vez deu às controvérsias teológicas uma dimensão política que elas não tinham anteriormente. É isto que aconteceu com a controvérsia ariana. Ario era um presbítero popular na Igreja de Alexandria que entrou em conflito com seu bispo, Alexandre, sobre a maneira pela qual a divindade de Jesus deveria ser interpretada. 701

J. M. Besse, Les moines d’orient antérieurs au concile de Chaldédoine (Paris: Oudin, 1900); Ph. Gobillot, “Les origines du monachisme chrétien et l’ancienne religion de l’Egypte,” RScRel, 10 (1920), 303-354; 11 (1921), 29-86, 168-213, 328-361; 12 (1922), 41-68; Karl Heussi, Ursprung des Mönchtums (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1936). 702 Cp. Louis Bréhier, L’art chrétien (Paris: H. Laurens, 1928), pp. 53-59. 703 Cp. Gregory Dix, The Shape of the Liturgy (Glasgow: Dacre Press, 1945), pp. 303-396. 704 Isto não significa, contudo, que os antigos cristãos não tinham igrejas, ou que a basílica foi uma criação da era de Constantino. Cp. J. G. Davies, The Origin and Development of Early Christian Church Architecture (Londres: SCM Press, 1952), pp. 12-50.


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Alexandre era um “origenista de direita” que sentia que a divindade do Verbo encarnado em Jesus deveria ser preservado a todo custo. Ario, por sua vez, interpretava de modo completamente divergente. Por um lado, é dito que Ario pertencia à linha de sucessão daqueles origenistas que colaboraram na obtenção da condenação de Paulo de Samosata. De acordo com esta interpretação, o ponto de partida do Arianismo é um monoteísmo absoluto, de modo que o Filho não pode ser uma emanação do Pai, ou uma parte de sua substância, ou um outro ser semelhante ao Pai, pois qualquer dessas possibilidades ou negaria a unidade ou a natureza imaterial de Deus. O Filho não pode existir sem um começo, pois então Ele seria um “irmão” do Pai, e não um Filho.705 Por isso, o Filho tem um começo, e foi criado ou feito pelo Pai do nada.706 Antes desta criação, o Filho não existia, e é portanto incorreto afirmar que Deus é eternamente Pai.707 Isto não significa, contudo, que não existiu sempre um Verbo em Deus, uma razão imanente; mas este Verbo ou razão de Deus, é diferente do Filho, que foi criado mais tarde.708 Portanto, quando alguém diz que o Filho é a Sabedoria ou o Verbo de Deus, isto está correto apenas com base na distinção entre o Verbo que sempre existiu, como a razão de Deus, e aquele outro Verbo que é “o primogênito de toda a criatura”. Embora todas as coisas foram criadas por ele, ele próprio foi feito pelo Pai, e é, portanto, uma criatura, e não Deus no sentido estrito da palavra.709 Uma outra interpretação vê Ario e seus seguidores como defendendo um conceito de salvação que eles viram ameaçado por Alexandre e seus auxiliadores. De acordo com esta interpretação, Ario e seus “companheiros lucianistas” estavam preocupados que Jesus fosse verdadeiramente humano, e de sua divindade fosse expressa, não em termos de substância, mas antes em termos de vontade – isto é, em termos suscetíveis de imitação e repetição pelos crentes.710 Desta perspectiva, a principal preocupação de Ario era que o Salvador fosse tal que pudesse ser imitado. Para Ario, era importante que o Filho o fosse por adoção, de modo que pudéssemos segui-lo e sermos igualmente adotados. Assim, “o modelo central Ariano foi o de uma criatura perfeita, cuja natureza permanecesse sempre humana e cuja posição estivesse sempre subordinada e dependente da vontade do Pai”. 711 Embora seja muito difícil aplicar esta interpretação ao Arianismo posterior, parece que na essência do Arianismo primitivo está a mesma preocupação de salvaguardar a humanidade do Salvador que foi anteriormente 705

Reinhold Seeberg, Text-Book of the History of Doctrines (Grand Rapids: Baker Books House, 1952), 1: 202203. 706 Epifânio, Pan, 69. 6. 707 Atanásio, Contra Arr. orat. 1. 2. 5. 708 Ibid. 709 Ibid. 710 O estudo de Gregg e Groh, Early Arianism, torna este ponto mais convincente. 711 Ibid., p. 24.


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manifestada por Paulo de Samosata. Isto também explicaria porque desde os tempos mais antigos períodos o Arianismo foi interpretado como a continuação dos ensinos e preocupações de Paulo de Samosata.712 Além disso, se interpretarmos o Arianismo primitivo como uma especulação sobre a Divindade, mas antes como sendo proveniente de um entendimento particular da obra de Cristo, podemos começar a entender o encanto que o Arianismo tinha sobre as massas em Alexandria – um encanto que é normalmente explicado meramente com base na popularidade pessoal de Ario. De qualquer forma,713 quando foi proposta a questão quanto a se o encarnado em Jesus é divino por natureza, ou se é uma criatura que foi adotada na divindade, Ario e seus seguidores escolheram a última opção. Foi neste ponto que Alexandre e seus auxiliadores acharam o Arianismo inaceitável, e, portanto, tenderam a enfatizar, não o que Ario tinha a dizer sobre a Salvação e a obra do Salvador do Filho, mas o que ele tinha a dizer sobre seu ser completa e eternamente divino. Assim, a citação a seguir, preservada nos escritos de um dos mais fortes oponentes do Arianismo, resume aqueles elementos nos ensinos de Ario que se tornaram o centro da controvérsia: O próprio Deus, então, em Sua própria natureza, é indescritível por todos os homens. Igual ou parecido a Ele mesmo não há ninguém, ou alguém em glória. E o chamamos de Gerado, por causa Daquele que é gerado por natureza. Nós O louvamos como sem começo por causa Daquele que tem um começo. E O adoramos como eterno, por causa Daquele que veio a ser no tempo. O Sem Começo fez do Filho um começo das coisas originadas; e O promoveu como um Filho para Si mesmo por meio da adoção. Ele não tem nada peculiar a Deus em substância própria. Pois Ele não é igual, não, nem um em essência com Ele. Deus é Sábio, pois Ele é o mestre da Sabedoria. Existem muitas provas de que Deus é invisível a todos os seres; Ele é invisível tanto às coisas que existem através do Filho, e quanto ao Filho. Direi isto claramente, como pelo Filho é visto o Invisível; por este poder pelo qual Deus vê, e em Sua própria medida, o Filho

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Parece que o primeiro a afirmar que existiu um relacionamento entre Ario e Paulo de Samosata foi Alexandre da Alexandria, em uma carta a Alexandre da Constantinopla preservada por Teodoreto, HE 1. 3. A principal dificuldade com esta interpretação é que Paulo não parece ter falado de um Logos ou Verbo de Deus, criado antes de todas as criaturas, e agora encarnado em Jesus. Por isso, eruditos têm freqüentemente rejeitado a interpretação de Alexandre como um mero exemplo da situação comum na qual doutrinas de um oponente são conectadas com aquelas de um antigo herege, de forma a desacreditá-los. Pode ser, contudo, que Alexandre estivesse certo, não no sentido em que o entendimento de Ario sobre a Divindade fosse o mesmo de Paulo, mas antes no sentido de que suas preocupações soteriológicas eram basicamente as mesmas, e ele procurava salvaguardá-las com um entendimento diferente sobre o Filho. 713 Uma terceira sugestão quanto a origem do Arianismo é feita por A. Grillmeier, Christ in Christian Tradition (Nova Iorque: Sheed and Ward, 1965), pp. 189-192. De acordo com Grillmeier, a doutrina da encarnação, entendida dentro da estrutura de Logos-sarx (ver abaixo, capítulo XVI), é o ponto de partida do Arianismo. Eu acho seu argumento não convincente. Sobre interpretações mais recentes do Arianismo, veja J. T. Leinhard, “Recents Studies in Arianism”, RelStRev, 8 (1982), 330-337; C. Kannengiesser, “Arius and Arians”, ThSt, 44 (1983), 456-475.


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suporta ver o Pai, como é lícito. Assim, existe uma Tríade, não igual em glórias. Não entremisturadas umas com as outras em suas substâncias. Um é mais glorioso do que o outro em suas glórias até a imensidade. Estranho ao Filho em essência é o Pai, pois Ele é sem começo. Entendo que a Mônade era, mas a Díade não era, antes era existente... Para falar em resumo, Deus é indescritível a Seu Filho. Pois Ele é para Si mesmo o que Ele é, isto é, inexprimível. De modo que nada que é chamado compreensível o Filho conhece para falar a respeito; pois é impossível para Ele investigar o Pai, que é por Si mesmo. Pois o Filho não conhece Sua própria essência. Pois, sendo Filho, Ele realmente existe, na vontade do Pai. Que argumento então permite, que Aquele que é do Pai deveria conhecer Seu próprio pai por compreensão? Pois é evidente que para aquilo que tem um começo para conceber como o Sem Começo é, ou para entender a idéia, não é possível.714 Embora esta citação faça isto soar especulação abstrata, o Arianismo manejava para ganhar grande apoio entre o povo da Alexandria, que andavam pelas ruas cantando, “Existia quando ele não era”. Alexandre, por outro lado, atacava a doutrina de Ario com todos os meios disponíveis e, após uma série de eventos que não é preciso se relatar aqui, convocou um sínodo no qual quase uma centena de bispos egípcios estiveram presentes, e que condenou e depôs Ario. O último, contudo, não se considerou derrotado, mas escreveu a seus “companheiros lucianistas” e obteve seu apoio, especialmente o de Eusébio da Nicomédia, que era o mais influente entre eles. Eusébio recebeu Ario em sua diocese e lhe garantiu sua proteção apesar dos protestos do bispo da Alexandria. Assim, a disputa tornou-se um cisma que poderia afetar toda a igreja. As notícias a respeito destes eventos alcançaram Constantino, que esperava que o Cristianismo fosse “o cimento do Império”, e que já se encontrava na necessidade de intervir no cisma donatista no norte da África. Esta nova ameaça de cisma, no qual estavam envolvidos problemas teológicos, os quais ele não entendia, foi muito desanimadora. Por isso ele decidiu mandar para o Oriente seu conselheiro em questões religiosas, o bispo Ósio de Córdoba, que foi armado com uma carta na qual o imperador pedia aos partidos hostis para resolverem sua disputa pacificamente. Quando Ósio lhe informou que as razões para a dissensão eram profundas, e que não era possível resolvê-las por meros esforços de reconciliação, Constantino decidiu convocar um concílio de bispos que lidaria não apenas na questão ariana, mas com muitos problemas que precisavam de uma solução comum. 715 714

Atanásio, De syn, 15 (NPNF, 2a série, 4: 457-458). Este pequeno esboço dos eventos tem a finalidade de ser apenas uma introdução ao Concílio de Nicéia. Mais detalhes narrativos podem ser encontrados em várias histórias da Igreja. Um ponto de alguma importância que, contudo, não aparece em muitas histórias da Igreja, pode ser visto em Henry Chadwick, “Ossius of Cordova and the Presidency of the Concil os Antioch, 325”, JTS, n.s. 9 (1958), 292-304. 715


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O Concílio reuniu-se na cidade de Nicéia, na Bitínia, em 325 A.D., e estiveram presentes mais de trezentos bispos. Para eles, a perseguição era ainda uma lembrança viva, e por isso muitos sentiam que esta assembléia, reunida sob o manto imperial, era um verdadeiro milagre.716 Somente uns poucos bispos que compareceram ao Concílio tinham opiniões firmes acerca do principal problema a ser discutido. Por um lado, o pequeno grupo dos “companheiros lucianistas”, encabeçado por Eusébio da Nicomédia – como Ario não era um bispo, ele não era um membro do Concílio – parece ter pensado, a princípio, que seriam capazes de facilmente ganhar o apoio da maioria. Por outro lado, uma outra minoria, encabeçada por Alexandre de Alexandria, e na qual certamente haviam alguns bispos de tendências Monarquianistas, estava empenhada em conseguir a condenação do Arianismo. Mas a ampla maioria parece não ter entendido a importância do assunto em mãos, e seu medo do Sabelianismo os fez relutantes em condenar o subordinacionismo em termos muito fortes. Além disso, o imperador, cujo interesse estava mais na unidade do império do que na unidade de Deus, estava inclinado a encontrar uma fórmula que fosse aceitável ao maior número de bispos possível. O curso exato das deliberações não é claro. Aparentemente, Eusébio da Nicomédia fez uma declaração esclarecendo seus ensinos e os de seus “companheiros lucianistas” – incluindo Ario. Parecia que ele argumentava pela subordinação do Filho. O que está claro é que muitos dos presentes ficaram escandalizados, e a partir deste momento a causa ariana estava perdida.717 Durante algum tempo foi feita uma tentativa de elaborar um documento que, fazendo uso de termos bíblicos, claramente declararia que o Filho não é uma criatura. Mas o partido ariano tinha sua própria interpretação sobre todos os textos que poderiam ser opostos a eles.718 Foi então que o imperador interveio e sugeriu que a palavra “consubstancial” (homoousios) fosse incluída em um credo, a fim de tornar clara a divindade do Filho.719 Com esta indicação, que possivelmente foi sugerida ao imperador por Ósio de Córdoba,720 um partido que era oponente convicto do Arianismo foi comissionado a escrever uma declaração de fé. O resultado foi o seguinte credo, que o Concílio adotou: Cremos em um Deus, o Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado como o Unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus 716

Eusébio, Vita Const. 3. 7. Teodoreto, HE 1. 8. 1, 5. 718 Atanásio, De decret. 5. 19-20. 719 Eusébio, Ep. ad Caesar. 4. 720 Mas veja Heinz Kraft, “οµοουσιοζ”, ZschrKgesch, 66 (1954-1955), 1-24. 717


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verdadeiro, gerado, não-feito, de uma substancia com o Pai, mediante o qual todas as coisas vieram a existir, tanto as que estão no céu como as que estão na terra, Que por nossa causa, humanos, e por causa da nossa salvação, desceu e encarnou-se, tornandose humano, sofreu e ressuscitou no terceiro dia, ascendeu aos céus, e virá julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo. Mas quanto àqueles que dizem, que Existia quando Ele não era, e que antes de ser nascido Ele não era, e que Ele veio a existir do nada, ou quem declara que o Filho de Deus é de uma hypostasis ou substância diferente, ou é criado, ou está sujeito a alteração ou mudança – estes a Igreja Católica excomunga. 721 A interpretação tradicional sobre a origem deste credo é que ele era uma revisão de uma outra fórmula que Eusébio da Cesaréia lera muito antes da assembléia. Existem, contudo, muitas objeções sérias a este entendimento de eventos, e parece mais provável que o que realmente aconteceu foi que um credo previamente existente da região da Síria e Palestina foi alterado a fim de incluir frases tipicamente anti-Arianas.722 De qualquer forma, o significado deste credo adotado por Nicéia é encontrado nas cláusulas “ isto é, da substância do Pai,” e “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, nãofeito, de uma substância com o Pai (homoousios)”. Deveria ser notado também que a frase “para nossa salvação” exerce um papel fundamental no próprio credo. A seção anterior à frase enfatizava a divindade eterna do Filho. A seção que se segue fala de Sua encarnação, sofrimento e exaltação. Assim, a fórmula de Nicéia tenta tornar claro, que para o Filho ser verdadeiramente nosso Salvador, não é necessário fazê-Lo uma criatura subordinada. Finalmente, os anátemas adicionados no fim não deixam espaço para uma interpretação ariana. A partir destes textos, está claro que a intenção do credo era não deixar espaço para o Arianismo, que daqui por diante deveria ser considerado herege. Como os bispos reunidos em Nicéia interpretaram este credo que eles adotaram, e que finalmente se tornou o credo da igreja universal? É difícil saber, e podemos imaginar que aqueles que concordaram com esta fórmula a interpretaram de modos diferentes, de acordo com suas próprias tradições teológicas. Em primeiro lugar, para os poucos teólogos que representavam o Ocidente no Concílio, mas cuja influência foi grande através da presença de Ósio de Córdoba, o termo “homoousios” deve ter dado a impressão de uma tradução aproximada da unidade de 721

John Norman Davidson Kelly, Early Christian Creeds (Londres: Longmans, Green & Co., 1950), pp. 215216. (Eu mudei sua tradução de “anthropos” de “homem” para “humano”.) Sobre as fontes e textos variantes do credo de Nicéia, ver: Ignacio Ortiz de Urbina, El símbolo niceno (Madrid: Consejo superior de investigaciones científicas, 1947), pp. 8-22. 722 Kelly, Creeds, pp. 211-230.


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substância que tornara-se uma doutrina tradicional no Ocidente, desde o período de Tertuliano. É precisamente este o modo tradicional pelo qual o Ocidente interpretou a fórmula nicena. Mas esta interpretação – não importa quão ortodoxa – não corresponde à realidade histórica do problema que foi discutido, o qual não era tanto a unidade entre o pai e o Filho, quanto a divindade do último. Então, existiram também alguns bispos orientais que interpretaram o termo “homoousios” de um modo similar, e que viram nele uma afirmação, não apenas da divindade do Filho, mas também da absoluta unidade entre o Pai e o Filho – uma unidade sem distinções fundamentais. Dentre estes podemos mencionar Eustátio da Antioquia e Marcelo de Ancira, ambos tiveram um importante papel na condenação do Arianismo em Nicéia. Eustátio, bem como Marcelo, estavam entre os oponentes da especulação origenista. Eustátio estava mais na tradição de Paulo de Samosata, embora ele fosse cuidadoso em não simplificar demais sua Cristologia ao ponto em que ele poderia ser acusado da antiga heresia de Paulo, ou de negar a divindade essencial do Salvador. Mas ele seguia Paulo de Samosata ao aproximar-se de um tipo de Monarquianismo, não como aquele de Sabélio e seus seguidores, mas antes de um que era arcaico em natureza, e talvez influenciado pela critica judaica da doutrina cristã. Embora muito pouco seja conhecido a respeito da doutrina trinitariana de Eustátio, parece claro que, para ele, o termo “homoousios” implicava uma tal unidade que as três pessoas da Trindade não podiam subsistir como tais.723 A doutrina de Marcelo é melhor conhecida. De acordo com o bispo de Ancira, Deus é um, e é revelado como Pai, Filho e Espírito Santo, não em três estágios sucessivos de revelação, mas como três modos de sua ação. Mas Marcelo não vai além da Trindade para o propósito da revelação, e não falaria da subsistência pessoal ou individual de cada uma das três pessoas.724 Como devia ser esperado, esta insistência na unidade de Deus, faltando uma ênfase correspondente sobre a Trindade Divina, fez Eustátio, bem como Marcelo, suspeitos de Sabelianismo.725 Em terceiro lugar, a pequena minoria dos seguidores de Alexandre, que viera ao Concílio com o firme propósito de alcançar a condenação de Ario, tendia a interpretar a fórmula “homoousios” como uma afirmação da eternidade e da divindade do Filho, que era precisamente o ponto de conflito entre Ario e o “origenismo de direita.” Para eles esta fórmula não estava tão explícita quanto eles desejavam, mas de qualquer forma era uma clara rejeição de qualquer tentativa de reivindicar que o Filho era uma criatura. 723

Robert V. Sallers, Eustathius of Antioch and His Place in the Early History of Christian Doctrine (Cambridge: Cambridge Press, 1928), pp. 88-93. 724 Marie-Dominique Chenu, “Marcel d’Ancyre”, DTC, 9: 1993-1998, discute a maneira pela qual Marcelo entendeu o “homoousios”. 725 Cf. Sellers, Eustathius, p. 98.


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Em quarto lugar, a grande maioria de bispos temiam mais o Sabelianismo do que o Arianismo. Se este grupo, que era o principal corpo do concílio, aceitou o credo de Nicéia e o assinou, isto foi devido, primeiro, ao impacto que a exposição de Eusébio da Nicomédia produzira; segundo, à arrogante presença imperial; terceiro, à possibilidade de interpretar a frase “homoousios”, não como uma afirmação da unidade absoluta e substancial de Deus, mas antes apenas como uma afirmação da divindade do Filho. Finalmente, o partido ariano interpretou o credo de várias maneiras, e adotou diferentes atitudes ante ele. Muitos deles, ameaçados com banimento, assinaram o credo bem como os anátemas, tentando ao mesmo tempo encontrar uma interpretação deste documento que permitiria submeterem-se à vontade imperial sem violarem suas consciências. Outros aceitaram o credo, mas se recusaram assinar os anátemas, enquanto que dois se recusaram absolutamente a assinar. Pelo decreto imperial, aqueles que não assinaram o documento todo foram banidos, e os livros de Ario foram queimados. Quanto ao próprio imperador, é impossível adivinhar seu propósito ao sugerir que o termo “homoousios” fosse incluído. Parece que ele pensou que colocaria um fim em especulações posteriores a respeito da substância do Pai e do Filho, e que assim estas discussões amargas que ele não entendia, mas que ameaçavam dividir seu império, seriam terminadas. Em resumo, podemos afirmar que houve uma grande ambigüidade na fórmula nicena. O credo, cujo principal propósito era afirmar a divindade do Filho, poderia também ser interpretado como uma afirmação da unidade divina. Isto, unido ao fato de que a fórmula de Nicéia permaneceu silenciosa a respeito da distinção entre o Pai, o Filho, e o Espírito Santo, logo a fez suspeita de ser uma concessão ao Sabelianismo. Esta é razão porque, apesar da condenação do Arianismo em Nicéia, esta condenação não provou ser suficiente para expulsálo da Igreja, e por mais de cinqüenta anos a controvérsia devastou a Igreja, antes de final e definitivamente condenar o Arianismo.


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XII. A CONTROVÉRSIA ARIANA APÓS NICÉIA Embora o Concílio de Nicéia tenha condenado o Arianismo, esta condenação não encerrou a controvérsia, que continuou por mais de cinqüenta anos além deste. Isto foi devido, por um lado, às dúvidas sinceras que alguns bispos tinham com relação a fórmula nicena e, por outro lado, devido às variações da política imperial que, desde a conversão de Constantino, tornou-se um fator importante em toda controvérsia teológica. Era de se esperar a insatisfação dos bispos com a decisão nicena. Enquanto o Concílio esteve em sessão, e o problema principal era o Arianismo como ele era exposto por Eusébio da Nicomédia, os bispos ali reunidos sentiram-se inclinados a aceitar uma fórmula que condenava o Arianismo sem dizer uma só palavra a respeito do Sabelianismo. Mas ao retornarem para suas Igrejas, onde o Arianismo ainda não era uma ameaça real, e onde eles enfrentavam constantemente a doutrina sabeliana, os bispos começaram a duvidar da sabedoria de sua decisão no Concílio. Além disso, a oposição ao Arianismo em Nicéia trouxe também consigo interesses muito diferentes: o origenismo de direita de Alexandrria, o anti-origenismo de alguns círculos de Antioquia e da Ásia Menor, e os interesses práticos e anti-especulativos do Ocidente. Esta aliança, que é compreensível diante da especulação ariana, não podia apresentar uma frente unida, quando os líderes arianos começaram a atacar seus componentes separadamente. A ordem de banimento contra Ario e seus seguidores, com a qual Constantino tentou mostrar seu apoio às decisões do Concílio, estabeleceu um mau precedente: daí em diante, quando o argumento teológico falhava, e mesmo antes de fazer uso dele, alguém sempre poderia fazer uso dos recursos da política e ter um de seus inimigos banido. Por causa das políticas hesitantes de Constantino, às vezes apoiando o grupo niceno e em outras vezes agindo contra ele, e especialmente por causa da incerteza das políticas após a morte de Constantino, o quarto século – especialmente no Oriente – produziu posições e alianças extremamente complexas e fluídas. Embora os defensores de Nicéia, bem como seus oponentes, de vez em quando fizessem uso de políticas e bajulações, foram os arianos – e especialmente Eusébio da Nicomédia – que foram mais ilustres em tais estratagemas. A política eclesiástica de Constantino consistia em tornar a Igreja no “cimento do Império”. Por isso, e também porque ele não podia ver a importância das sutilezas que os teólogos debatiam, ele facilmente perdia sua paciência e reagia contra aqueles que mostravam uma atitude firme com relação as suas próprias posições teológicas. Esta foi a razão porque, após o Concílio de Nicéia, ele exilou Ario e todos aqueles que se recusaram a assinar o Credo Niceno. Pela mesma razão, Eusébio da Nicomédia foi mandado para o exílio alguns meses depois. Ao desembaraçar-se destes elementos extremos, Constantino esperava solidificar a paz que ele cria ter sido estabelecida no Concílio de Nicéia.


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Durante algum tempo – aproximadamente cinco anos – os defensores de Nicéia predominaram. As três principais dioceses – Roma, Alexandria e Antioquia – foram ocupadas por bispos que apoiavam fortemente a fórmula e as decisões de Nicéia, e ao mesmo tempo Ósio de Córdoba era um dos principais conselheiros do Imperador. Mas esta situação não poderia continuar, pois o partido ariano logo adotou uma posição que parecia conciliatória e persuadiu o Imperador que eram os anti-arianos que eram obstinados e rebeldes. Igualmente, eles foram bem sucedidos em convencer alguns dos bispos mais conservadores de que a fórmula nicena era uma concessão injustificada ao Sabelianismo. O exílio de Eusébio da Nicomédia não durou muito, pois ele logo compreendeu que sua estratégia de proclamar as conclusões mais extremas do Arianismo estava errada. Depois de se reconciliar com Constantino, ele retornou a sua diocese na Nicomédia., onde o Imperador tinha sua residência de verão, e lá começou a ganhar o favor da corte e até mesmo do próprio Constantino. Ario também escreveu ao imperador, alegando que estava pronto para aceitar um compromisso com o restante da Igreja, e nestas bases Cosntantino permitiu que ele retornasse do exílio. Algum tempo depois, o imperador ordenou a Alexandre de Constantinopla que admitisse Ario a comunhão. Alexandre cria que isto seria um sacrilégio, e ainda estava perplexo quanto a qual deveria ser sua ação, quando a morte de Ario veio a resolver seu problema. Durante os primeiros anos após o Concílio de Nicéia, os próprios arianos não atacaram as decisões do grande Concílio, o qual ainda era o orgulho de Constantino, mas antes organizaram ataques àqueles indivíduos que eram os principais defensores da fórmula nicena. Alexandre de Alexandria morreu em 328 A.D., e foi sucedido por Atanásio, que fora seu companheiro mais íntimo, e que esteve presente em Nicéia. Atanásio seguia a linha teológica de Alexandre, e logo tornou-se conhecido como o maior defensor da fé nicena. Portanto, os primeiros oponentes que os arianos tinham no Oriente eram Eustátio de Antioquia, Marcelo de Ancira, e Atanásio de Alexandria. Foi contra eles que Eusébio da Nicomédia dirigiu uma longa série de ataques pessoais, cujo alvo real parece ter sido a decisão de Nicéia, embora eles fossem cobertos freqüentemente de acusações morais e disciplinares. O primeiro a cair foi Eustátio de Antioquia. Em 330 A.D. – isto é, cinco anos depois do Concílio de Nicéia – Eusébio da Nicomédia saiu-se bem em condená-lo como um adultero, tirano e herege. Em um sínodo que se reuniu em Antioquia para julgar Eustátio, uma mulher, com uma criança em seus braços, alegou que Eustátio era o pai. Embora não existissem testemunhas para confirmar o testemunho da mulher, o sínodo – que de qualquer modo já tinha decidido condenar o bispo – aceitou suas declarações sem qualquer outro


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questionamento. Não foi difícil provar a acusação de tirano contra um bispo de uma diocese importante como a de Antioquia, onde freqüentemente existiam dissensões que deviam ser reprimidas. Finalmente, a acusação principal – a de herege – era baseada na ênfase dada por Eustátio na unidade essencial de Deus, o que fazia dele um suspeito de Sabelianismo. Como ele afirmava que o Pai e o Filho eram da mesma substância, mas não tinha meios claros para expressar a distinção entre eles, o sínodo decidiu que ele era um representante do Sabelianismo. Esta acusação foi provada muito mais facilmente, visto que Eustátio tinha entrado em controvérsias teológicas não apenas com os arianos, mas até mesmo com origenistas moderados de esquerda, como Eusébio de Cesaréia. Nestas controvérsias, Eustátio atacara o subordinacionismo de seus oponentes. Como conseqüência, ele foi facilmente condenado e deposto. De nada lhe serviria apelar para o imperador, pois Eusébio da Nicomédia e seus seguidores também o acusaram de ter falado desrespeitosamente da mãe de Constantino. Como resuldado, Eustátio foi banido para Trace, onde morreu algum tempo depois de ter composto algumas obras contra os arianos. Mas sua história não acaba aqui, pois seus seguidores antioquianos não aceitaram sua condenação, muito menos a nomeação de seu sucessor. Assim, foi criado um cisma que durou por muitos anos, e que mais tarde contribuiu para a inquietação da Igreja Oriental. Quanto a suposta mãe do filho de Eustátio, é dito que em seu leito de morte ela confessou que seu testemunho fora comprado pelos inimigos do bispo.726 Muito mais a ser temido do que Eustátio era Atanásio, agora bispo de Alexandria. A importância desta diocese, seu prestígio tradicional como um centro de atividade teológica, e suas estritas conexões com o Ocidente, seriam suficientes para fazer de seu bispo um inimigo formidável. Mas agora um fator pessoal foi adicionado, visto que a pessoa que ocupava esta diocese era um dos maiores líderes da Igreja de todos os tempos. Como um oponente do Arianismo, Atanásio era incansável e sabia como tomar a ofensiva. Além disso, como será visto no capítulo seguinte, ele tinha um claro domínio das verdades cristãs centrais, e uma habilidade extraordinária para distinguir entre o central e o periférico. Por estas razões, por muitos anos ele foi o grande defensor da fé nicena, bem como o principal alvo de Eusébio da Nicomédia e do partido ariano.727 726

A história da queda de Eustátio, com amplas referências a fontes, pode ser encontrada em Sellers, Eustathius, pp, 39-59. Sobre a data destes eventos, ver R. P. C. Hanson, “The Fate of Eustathius of Antioch”, ZschrKgesch, 95 (1984), 171-179. Sobre sua teologia, além de Sellers, M. Spanneut, “Eustathe d’Antioch exégète”, SP, 7 (1966), 549-559. 727 Sobre a vida de Atanásio, e os eventos de seu tempo, ver Hans Lietzmann, A History of the Early Church, Vols. III-IV (Londres: Lutterworth Press, 1950-1951). Ver também F. L. Cross, The Study of St. Athanasius (Oxford: Clarendon, 1945); J. Pelikan, The Light of the World: A Basic Image in Early Christian Thought (Nova Iorque: Harper, 1962). Cp. M. Tetz, “Zur Biographie des Athanasius von Alexandrien”, ZschrKgesch, 90 (1979), 304-334. Um estudo penetrante é o de E. P. Meijering, Ordodoxy and Platonism in Athanasius: Syntesis or Antithesis? (Leiden: E. J. Brill, 1968).


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Já em 331 A.D., Atanásio teve que defender-se ante o imperador em acusações trazidas contra ele por seus inimigos. Naquela época, ele foi capaz de convencer Constantino de que as acusações eram falsas. Mas o imperador, sempre seguindo sua política de manter a paz na Igreja, não estava inclinado a sentir-se benevolente para com alguém tão firme quanto Atanásio. Por isso, quando, alguns anos depois, um sínodo se reuniu em Tiro, sob a direção de Eusébio da Nicomédia, condenou e depôs Atanásio pelas mesmas acusações, o imperador não sentiu-se inclinado a contradizer o sínodo, mas antes procurou um pretexto para banir Atanásio, sem com isso parecer afirmar que o que ele tinha anteriormente declarado serem acusações falsas agora revelavam-se ser verdadeiras. Este pretexto foi provido por uma nova acusação de que Atanásio planejava interromper o embarque de cereais de Alexandria para Roma. Como resultado, Atanásio deixou sua diocese, no que tornou-se o primeiro de uma longa série de exílios. Mas, firme em sua convicção de que ele devia defender a fé nicena, ele fez uso de seu exílio a fim de visitar o Ocidente e ali estabelecer laços que mais tarde se revelariam muito úteis. Quanto a Marcelo de Ancira – o outro bispo oriental que tinha tomado uma posição firme e agressiva contra o Arianismo – sua condenação não foi difícil, pois ele estava claramente inclinado ao Monarquianismo. Em 336 A.D. – o ano da morte de Ario – um sínodo em Constantinopla condenou Marcelo e o depôs “por ensinar a doutrina de Paulo de Samosata”, e o Imperador o baniu. Marcelo também foi para o Ocidente, onde mais tarde entraria em contato com Julio de Roma e com Atanásio – durante o segundo exílio do bispo de Alexandria. Contudo, o próprio Atanásio não sentiu-se confortável com o apoio de alguém que estava tão próximo do Monarquianismo, e em uma de suas obras atacava as doutrinas do antigo bispo de Ancira, embora sem mencionar seu nome.728 Em resumo, podemos dizer que durante o período que vai de 330 A.D. até a morte de Constantino, sete anos depois que os defensores do “Grande Concílio” foram reiteradamente derrotados. O interesse principal do imperador era mais político que teológico, e isto combinava muito bem com as habilidades políticas de Eusébio da Nicomédia, de forma a dar o domínio ao Arianismo. Esta situação tornou-se muito mais difícil por conta da inabilidade de alguns dos principais defensores de Nicéia de mostrar como sua doutrina diferia do Sabelianismo. Ao mesmo tempo, os Arianos absteram-se de atacar abertamente o Concílio que Constantino convocara. Para o grupo Niceno a derrota final durante este período, embora mais simbólico que real, foi o fato de que o próprio Constantino foi batizado em seu leito de morte por Eusébio de Nicomédia. Constantino foi substituído por seus três filhos, Constantino II, Constante, e 728

Or. contra Arianos 4.


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Constâncio. O Oriente ficou sob o governo de Constâncio, enquanto que seus dois irmãos dividiram o Ocidente, tanto que Constante teve a região da Itália a Ilíria, e Constantino II teve a Gália e o Norte da África. A princípio, a nova situação política parecia favorecer o grupo niceno, pois um dos primeiros atos de Constantino II, após receber a notícia da morte de seu pai, foi ordenar que Atanásio fosse restaurado a sua diocese em Alexandria. Também foi permitido a outros exilados voltarem, entre eles, Marcelo de Ancira. Mas logo tornou-se claro que Constâncio, cuja herança foi o governo do Oriente, era um decidido defensor do Arianismo e de seu líder, Eusébio de Nicomédia, que agora era bispo de Constantinopla. Os motivos que Constâncio tinha para esta política não são claros, mas parece que, à parte de qualquer convicção teológica que possa ter exercido um papel em sua decisão, ele estava interessado em por em evidência a importância do bispo de sua capital sobre os bispos das outras dioceses, especialmente Antioquia e Alexandria. Como, desde o tempo em que Eustátio fora deposto, Antioquia fora governada pelo grupo de Eusébio, ela apenas continuou a sujeitar à diocese de Alexandria ao mesmo controle. Além disso, Constâncio não poderia contar com boas relações permanentes com seus dois irmãos que governavam no Ocidente, e em tais circunstâncias ele precisava de uma Igreja Oriental unida sob uma doutrina, e de alguma forma em dívida com ele. Assim, um tipo de aliança desenvolveu-se entre Eusébio e Constâncio, e os Arianos mais uma vez ganharam o controle no Oriente. No Ocidente, o Arianismo nunca fora capaz de criar raiz, pois não havia tanto medo do Sabelianismo, e a fórmula “uma substância e três pessoas” tornara-se comum – uma fórmula que, ao menos em sua primeira parte, estava de acordo com a de Nicéia. Mas o relacionamento entre os dois imperadores do Ocidente não era totalmente amigável, e resultou em uma guerra que se prolongou até a morte de Constantino II em 340 A.D. Estas rivalidades do Ocidente diminuíram sua influência sobre o Oriente, de modo que Constâncio sentiu-se livre para seguir uma política de apoio aos Arianos e de restrição ao grupo Niceno. Em 339 A.D., Atanásio deixou a Alexandria em um segundo exílio, e desta vez ele foi para Roma. Após a morte de Constantino II, o Ocidente estando agora unido sob Constante, Constâncio sentiu-se forçado a moderar sua política de acordo com os desejos de seu irmão, e os defensores de Nicéia tiveram um breve descanso, que permitiu a Atanásio retornar para Alexandria em 346 A.D. Constâncio, contudo, não abandonou sua política de apoio aos Arianos, mas apenas a fez mais moderada por causa da influência de Constante e do Ocidente. Durante este período de incerteza política, o grupo Ariano tentou enfraquecer a posição Nicena, não apenas atacando seus defensores, mas também produzindo uma série de


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outros credos que esperançosamente seriam usados como alternativos ao de Nicéia. Assim, um único sínodo, em Antioquia, em 345 A.D. – chamado de “Concílio da Dedicação” – produziu quatro credos diferentes. A força do grupo Ariano parecia crescer a cada dia. Os três bispos Ursacio, Valens, e Germinio, que se opunham ao Concílio de Nicéia, não simplesmente como anti-Sabelianos conservadores, mas antes como Arianos convictos, tornaram-se conselheiros pessoais e íntimos de Constâncio, que em 350 A.D., após a morte de seu irmão Constante, tornou-se senhor absoluto do Império. Cinco anos mais tarde, os conselheiros Arianos do imperador sugeriram-lhe uma fórmula segundo a qual o Filho era claramente inferior ao Pai, e que mais tarde se tornou conhecida como “a blasfêmia de Sirmium”. Parte desta fórmula se lê como se segue: Mas visto que algumas ou muitas pessoas foram perturbadas por questões acerca da substância, chamada em grego de ουσια, isto é, para torná-la mais claramente entendida, quanto a οµοουσιαν [da mesma substância], ou o que é chamado ___ [de substância igual], não deve existir menção feita disso tudo. Nem deve ser feita nenhuma exposição delas pela razão e consideração de que elas não estão contidas nas Escrituras divinas, e que elas estão acima do entendimento humano, nem pode qualquer homem declarar o nascimento do Filho, do qual é escrito, Quem declarará Sua geração? Pois é evidente que somente o Pai sabe como Ele criou o Filho, e o Filho como Ele foi criado do Pai. Não há questionamento de que o Pai é maior. Ninguém pode duvidar que o Pai é maior que o Filho em honra, dignidade, esplendor, majestade, e no próprio nome de Pai, o próprio Filho testifica, Aquele que me enviou é maior que Eu. E ninguém é ignorante de que é doutrina Católica de que existem duas pessoas do Pai e do Filho; e que o Pai é maior, e que o Filho está subordinado ao Pai, junto com todas as coisas que o Pai subordinou-lhe, e que o Pai não tem começo e é invisível, imortal e impassível, mas o Filho foi criado do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, e que a geração deste Filho, como é dito acima, ninguém sabe a não ser Seu Pai.729 Naturalmente, a proibição de toda a discussão acerca da “ousia” ou “substantia” era equivalente a uma condenação do Concílio de Nicéia, que mostra que os Arianos agora se consideravam-se suficientemente fortes para executarem um ataque frontal. O imperador apoiava esta fórmula, e até tentou impô-la, não apenas no Oriente, onde a fórmula “homoousios” nunca fora popular, mas até mesmo no Ocidente, onde a unidade de substância era uma doutrina tradicional da Igreja. Na tentativa de impor este decreto seus métodos foram 729

Hilary, De syn, 11 (NPNF, 2a serie, 9: 6-7). Cp. Atanásio, De syn, 28 (NPNF, 2a serie, 4: 446).


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violentos, e até o idoso Ósio de Córdoba730 e o Papa Libério731 submeteram-se às exigências do imperador e assinaram a “blasfêmia”. Naquele momento, os Arianos pensaram que tinham ganho a batalha, e isto foi seu erro fatal. Embora o credo niceno nunca fora muito popular, o mesmo era verdade sobre o Arianismo, e a facilidade com que Eusébio da Nicomédia primeiramente, e Ursacio e Valens mais tarde, foram capazes de produzir uma reação contra Nicéia foi devido ao medo do Sabelianismo que era partilhado por muitos bispos orientais, e não um sentimento ariano verdadeiro. Entre aqueles que Atanásio chamava de “arianos”, muitos realmente não o eram, e reagiram contra o Arianismo tão logo ele provou ser uma ameaça real à doutrina tradicional da Igreja, ao afirmar que Cristo era uma criatura. Portanto, com o avanço político do Arianismo após a morte de Constante, ali desenvolveu-se mais claramente também nas várias posições entre os oponentes de Nicéia. Concernente a esta metade do quarto século, podemos distinguir entre os oponentes da fórmula “homoousios” pelo menos três tendências, que podem ser chamadas anomoeana, homoeana, e homoiousiana (note a diferença entre homoousian e homoiousian). Os Anomoeanos – do grego ανοµοιος, diferente – eram os Arianos extremos, que afirmavam que o Filho era “diferente do Pai em todos os aspectos”. O Filho não é da mesma substância – homoousios – do Pai, nem é de uma substância similar – homoiousios – mas é antes de uma substância diferente. O Filho pode ser chamado de Deus, não por causa de sua substância, mas porque ele compartilha do mesmo poder ou atividade do Pai.732 No sentido estrito, somente o Pai é Deus, pois Deus não é nascido por natureza (agennetos) e sem origem (agenetos), e o Filho tem sua origem Pai. O Filho é uma “geração do não gerado”, uma “criatura do não criado”, e uma “obra do não feito”.733 Os principais representantes desta

730

Existiram várias tentativas de livrar Ósio desta acusação: H. Yaven, Osio, obispo de Córdoba (Barcelona: Editorial Labor, 1945); Ramón Serratosa, “Algo más sobre Osio de Córdoba”, Est, 13 (1957), 65-84; Ursicino Domínguez Del Val, “Osio de Córdoba”, RET, 18 (1958) 141-165, 261-281; Bernadino Llorca, “El problema de la caída de Osio de Córdoba”, EstEcl, 33 (1959), 39-56. Mas parece claro que ele aceitou a fórmula de Sirmium, embora provavelmente sob extrema coerção. O melhor trabalho inglês sobre o assunto é V. C. De Clerq, Ossius of Cordova: A Contribution to the History of the Constantinian Period (Washington: Catholic University of America Press, 1954). Para mais referências, ver Ursicino Domínguez Del Val, “La bibliografia de los últimos tiempos sobre Osio de Córdoba”, CD, 171 (1958), 485-489; G. S. M. Walker, “Ossius of Cordova and the Nicene Faith”, SP, 9 (1966), 316-320. 731 Também no caso de Libério, tem havido tentativas de negar que ele assinou a fórmula de Sirmium. Este é o entendimento de F. S. Blanes, La cuestión do Osio, obispo de Córdoba, e de Liberio, obispo de Roma (Madri: Espasa Calpe, 1928). Mas veja Monald Goemans, “L’exil du pape Libère”, Mélanges offerts à Mademoiselle Christine Mohrmann (Utrecht: Spectrum, 1963), pp. 184-189. Ver também J. Herrmann, “Ein Streitgespräch mit verfahrenschlechtichen Argumenten zwischen Kaiser Konstantius und Bischof Liberius”, em Festschrift für Hans Liermann (Erlangen: Universitätsbund, 1964), pp. 77-86. 732 Um ponto no qual os amoneanos tinham desenvolvido a doutrina ariana original. Cp. X. Le Bachelet, ´Anoméens”, DTC, 1:1324-1325; John Norman Davidson Kelly, Early Christian Doctrine (Londres: A. & C. Black, 1960), p. 249. 733 Eunomio, Apol. 28 (PG, 30:868).


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posição, que era extremamente racionalista,734 foram Aeto735 e Eunomio 736 Os Homoeanos – do grego οµοιος, semelhante – também são conhecidos como “arianos políticos”. Para eles, o relacionamento entre o Pai e o Filho é de similaridade, mas eles nunca definiram o que isto significava. Como duas coisas que são semelhantes são também diferentes, esta posição é suscetível de várias interpretações, de acordo com situações diferentes. Contudo, os líderes deste grupo – tais como Ursacio e Valens – eram arianos convictos, e não hesitavam em apoiar os amoneanos quando as circunstâncias permitiam. 737 Quanto a questão do homoousios, os Homoeanos tentaram evitá-la, pois isto os forçaria a definir o caráter de similaridade entre o Pai e o Filho. Provavelmente esta é a razão porque, como foi dito acima, Ursacio e Valens aconselharam Constâncio a proibir toda discussão quanto a consubstancialidade ou similaridade de substância entre o Pai e o Filho, e porque este grupo cuidadosamente invalidou tal discussão.738 Os Homoiousianos – do grego οµοιουσιος, de substância semelhante – que às vezes são chamados equivocadamente de semi-arianos,739 são os herdeiros dos antigos receios a respeito da fórmula de Nicéia, que tinha a ver, não com o fato de que ela condenava o Arianismo, mas com sua aparente abertura ao Sabelianismo. Este grupo apareceu como tal quando, após a “blasfêmia de Sirmium”, os teólogos mais moderados sentiram a necessidade de se oporem não apenas ao Sabelianismo, mas também ao Arianismo. A “blasfêmia de Sirmium” afirmava que o Filho era substancialmente diferente do Pai, e que seu relacionamento não poderia ser expresso pelo termo “homoousios”, ou mesmo “homoiousios”. Esta é a primeira vez que o termo homoiousisos aparece nos textos que foram preservados, mas o fato de que ele é atacado, parece implicar que alguns teólogos já estavam começando a usá-lo como um meio de evitar tanto o Sabelianismo quanto o Arianismo. De qualquer modo, após a “blasfêmia de Sirmium” aparece ali um grupo que é normalmente chamado de Homoiousianos, sob a liderança de Basílio de Ancira. A princípio, os Homoiousianos – além de Basílio, devemos mencionar Cirilo de Jerusalém e Meletio de Antioquia – eram opostos ao Arianismo, bem como ao grupo niceno, mas aos poucos eles tornaram-se cientes de que, pelo menos em sua intenção, sua posição coincidia com a dos defensores do homoousios. 734

Gregório de Nissa os acusava de conceberem Deus segundo as categorias de Aristóteles. Contra Eunom. 1.12. Ver os quarenta e sete argumentos de Aeto, citados por Epifânio, Pan. 76. 736 Sua Apologia pode ser encontrada em PG, 30:835-868. Por causa de sua influência, os amoneanos são às vezes chamados de “eumoneanos”. 737 Embora, de vez em quando, eles desejassem condenar a forma mais extrema do Arianismo. Cp. Atanásio, Apol. contra Arian. 58. 738 Como pode ser visto na “Confissão Macrostich” – ou “confissão de longo traçado” – citado por Atanásio, De syn. 26, e os credos de 359 e 360. Ver Teodoreto, HE 2.21, e Atanásio, De syn. 30. 739 Epifânio, Pan. 73. 735


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O nascimento do grupo homoiousiano, como um partido claramente definido, ocorreu em 358 A.D., quando um sínodo reunido em Ancira sob a liderança de Basílio, produziu a primeira fórmula homoiousiana.740 Nesta fórmula podemos ver a reação da maioria conservadora à “blasfêmia de Sirmium”. Aqui, a similaridade substancial entre o Pai e o Filho é categoricamente afirmada. Esta similaridade é tal que, no que se refere à distinção entre o Criador e as criaturas, o Filho está muito claramente próximo ao Pai e não entre as criaturas. Isto não significa, contudo, que exista uma identidade total entre o Pai e o Filho, pois suas substâncias – ousiai – não são uma, mas duas. Este grupo conquistou uma grande vitória quando Constâncio, provavelmente procurando um modo intermediário que restaurasse em alguma medida a unidade de seu império dividido, a apoiou.741 A falta de precisão nos termos empregados nesta discussão foi uma das dificuldades que a Igreja do quarto século encontrou na tentativa de esclarecer o relacionamento entre o Pai e o Filho. No Ocidente, uma terminologia mais fixa já tinha sido alcançada, e o termo “substância” era usado para se referir à divindade única e comum, enquanto que a individualidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo era expressa por meio do termo “pessoas”. No Oriente, por outro lado, não havia a mesma precisão e fixidade na terminologia. Para os teólogos orientais, ousia e hypostais eram sinônimos – e como tais eram usadas nos anátemas acrescentados ao credo niceno – e não existia um termo que pudesse traduzir adequadamente “persona” do latim, pois o grego “prosopon” era suscetível de uma interpretação sabeliana. Portanto, quando os defensores nicenos falavam de uma única ousia, muitos bispos orientais viam isto como uma tentativa de reintroduzir o Sabelianismo. E quando os bispos mais conservadores – neste caso os Homoiousianos – falavam de uma dualidade de ousiai, os nicenos pensavam que isto era meramente uma nova forma de Arianismo. Este era o estado das coisas quando a morte de Constâncio e sua sucessão por Juliano, o Apóstata – que, sendo um pagão, não estava muito interessado em debates teológicos – removeu a influência dos políticos de sobre o debate teológico e tornou necessário que cada grupo procurasse a vitória, primeiramente através de meios teológicos. Foi nesta conjectura que Atanásio deu um passo decisivo742 que levaria finalmente à vitória da fé nicena: em um sínodo reunido em 362 A.D., foi declarado que as diferenças verbais não eram importantes, contanto que o significado fosse o mesmo. Assim, ambas as frases “três hypostases” e sua contraparte “uma hypostasis” são aceitáveis contanto que a 740

Citada por Epifânio, Pan. 73.3.11. Ver J. Gummerus, Die homöusianische Partei bis zum Tode des Konstantinus (Leipzig: A. Deichert, 1900). 741 Sozomen, HE. 4.13. 742 Um passo, contudo, para o qual ele vinha pavimentando o caminho desde 359. Cp. De syn. 41. 67. 76.


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primeira não seja interpretada de tal modo que apoie o triteísmo ou o último em um modo sabeliano.743 Com esta decisão, o grupo niceno abriu caminho para uma aliança com a maioria conservadora. Começava agora um longo processo de esclarecimento do significado dos vários termos a fim de alcançar uma fórmula geralmente aceita, e a conseqüente condenação definitiva do Arianismo. A importância do sínodo de Alexandria de 362 A.D. não está limitada a seu espírito conciliador, mas é devida também a sua posição quanto ao Espírito Santo. O Arianismo, ao negar a divindade absoluta do Verbo, era levado à mesma conclusão com relação ao Espírito Santo. E os bispos reunidos em Nicéia, ao concentrarem sua atenção na divindade do Verbo, que era o ponto crucial da controvérsia, não deram muita importância à questão do Espírito, mas simplesmente mantiveram a frase: e no Espírito Santo”. Portanto, o Concílio de Nicéia não discutiu a questão trinitariana como um todo. Porém durante os anos entre este Concílio e o sínodo alexandrino de 362 A.D., na tentativa de esclarecer e definir os assuntos em debate, muitos teólogos deram mais atenção à questão da divindade do Espírito Santo. Além disso, a longa controvérsia a respeito da divindade do Filho, levava a maioria dos teólogos a concluir que era necessário afirmar esta divindade de um modo ou de outro; mas o caso era diferente quando o debate chegou ao Espírito Santo, pois sobre este ponto ainda não havia tido discussão suficiente. Assim alguns teólogos – tais como Eustátio de Sebaste e Maraton da Nicomédia744 - mostraram-se inclinados a afirmar a consubstancialidade do Filho e do Pai, mas não a do Espírito Santo.745 Em oposição a esta posição, o sínodo de 362 A.D., que era mais flexível nos assuntos que eram principalmente verbais, viu um erro inaceitável na posição destes teólogos, que foram chamados Macedonianos e Pneumatomacianos – isto é, inimigos do Espírito. Como conseqüência, o sínodo condenou o Arianismo, bem como a opinião paralela de que o Espírito Santo é uma criatura.746 Ao fazê-lo, abriu caminho para a afirmação final da doutrina trinitariana, pois ambos prepararam uma aliança entre o estrito grupo niceno e os Homoiousianos conservadores e ampliaram a discussão a fim de incluir o Espírito Santo. A partir daquele momento a causa ariana estava perdida. Embora pouco tempo depois Juliano mandou Atanásio para um novo exílio, e o mesmo novamente foi feito por Valens, 743

Tom. ad Ant. 5.6. Embora este grupo mais tarde fosse chamado de “Macedônios”, conforme Macedônio de Constantinopla, não há evidência de que realmente ele sustentou esta doutrina. 745 No Egito, o grupo que Atanásio chamava de Tropicista, sustentava explicitamente que o Espírito era “de uma substância diferente” do Pai. Atanásio, Ep. ad Serap. 1.2. 746 Tom. ad Ant. 3 (NPNF, 2a serie, 4: 484): “Para anatematizar a heresia ariana e confessar a fé confessada pelos santos pais em Nicéia, e também para anatematizar aqueles que diziam que o Espírito Santo é uma Criatura e separado da essência de Cristo. Pois isto é na verdade uma completa renuncia da abominável heresia dos arianos, recusar dividir a Trindade Santa, ou dizer que qualquer parte dela é uma criatura.” 744


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estes dois breves períodos de banimento não poderiam interromper o progresso da causa nicena. Um sínodo reunido em Antioquia, em 363 A.D., declarou-se a favor do credo niceno, explicando que o termo homoousios significa simplesmente que o Filho é como o Pai segundo sua essência, e que seu único propósito é condenar a heresia ariana, que transforma o Filho em uma criatura. Em uma carta enviada ao Imperador Joviano, os bispos reunidos no sínodo dizem: Portanto, a fim de que não nos incluíssemos no número daqueles que adulteram a doutrina da verdade, por meio desta declaramos para sua piedade abraçamos e firmemente sustentamos a fé do santo sínodo outrora convocado em Nicéia. Especialmente visto que o termo homoousios, que para alguns parece novo e inadequando, tem sido sabiamente explicado pelos pais para indicar que o Filho foi gerado da substância do Pai, e que ele é igual ao Pai quanto à substância. Não, certamente, que qualquer paixão deva ser entendida em relação à geração inexprimível. Nem é o termo ousia, “substância”, tomado pelos pais em qualquer significado comum deste entre os gregos; mas ele tem sido empregado para a subversão do que Ario impiamente ousou declarar com respeito a Cristo, viz – que ele foi feito de algo “não existente”.747 Portanto, também em Antioquia encontramos agora o espírito de conciliação entre os Homoousianos e os Homoiousianos, o qual um ano antes já fora manifestado em Alexandria. O mesmo pode ser dito de uma série de sínodos e decisões episcopais que ocorreram entre 362 e 382 A.D. Além disso, o breve reinado de Juliano (361-363), foi o ponto decisivo na política imperial com relação a este assunto. Antes de Juliano, os imperadores que apoiavam o Arianismo – em um sentido, Constantino, o Grande, e mais certamente seu filho Constâncio – tornaram-se mais poderosos, enquanto que os que apoiavam a causa nicena governavam somente no Ocidente, longe do centro da controvérsia, e certamente eram menos poderosos do que suas contrapartes. Após a breve reação pagã de Juliano, existe uma longa sucessão de imperadores que eram ou pró-nicenos ou pelo menos não apoiavam o Arianismo. A principal exceção a esta regra é Valentino II, que – com sua mãe Justina – aderiu ao Arianismo mesmo depois de este ser uma causa perdida. Mas no outro extremo existe Teodósio, sem dúvida alguma o mais poderoso imperador da segunda metade do quarto século, que apoiou a causa nicena e realizou o Concílio de Constantinopla (381 A.D.), o qual marca a condenação final do Arianismo. No campo da teologia, a aliança entre os Homoousianos e os Homoiousianos – isto é, 747

Socrates, HE 3. 25 (NPNF, 2a série, 2:95). Cp. Sozomen, HE 6.4.


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entre o grupo estritamente niceno e a maioria conservadora – tornou-se mais firme e forte. A decisão do sínodo de 362 A.D. foi apenas o ponto de partida de uma série de passos para a formação e fortalecimento desta aliança. O mais importante destes passos foi a correspondência entre Atanásio e Basílio de Ancira, o líder dos Homoiousianos. Assim, os últimos anos da vida de Atanásio viram o começo da solução final da controvérsia. Seria, contudo, uma outra geração que desenvolveria as fórmulas que tornariam possível alcançar um entendimento entre a maioria dos bispos e teólogos. As principais personalidades desta nova geração nicena são os “Três Capadocianos” – Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. A importância destes três teólogos nos compelem a dedicar um capítulo separado – o Capítulo XIV – mas é necessário resumir neste ponto sua contribuição para a vitória final da causa nicena. O sínodo alexandrino de 362 A.D. indicou a confusão que existia na terminologia empregada para se referir aos relacionamentos entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo; mas não ofereceu uma solução positiva a esta questão de terminologia. Este sínodo viu claramente que a palavra “hypostasis” era ambígua, e que por isso era correto dizer tanto “uma hypostasis” ou “três hypostases”, pois o mesmo termo era usado em um sentido diferente em cada uma das duas frases. Mas este sínodo não viu outra solução senão afirmar que em um sentido há somente uma hypostasis em Deus, e em outro sentido existem três. Os Capadocianos tomara para si a tarefa de definir mais claramente a unidade e a diversidade dentro da Divindade, e de procurar uma terminologia capaz de expressar ambos os pólos desta questão. Sua solução foi baseada na distinção entre o termo ousia e hypostasis.. Na literatura filosófica, e mesmo nas decisões do Concílio de Nicéia, estes termos foram usados como sinônimos, e normalmente ambos eram traduzidos para o Latim como substantia. Mas ambos eram ambíguos, pois eles se referiam à subsistência individual de uma coisa, bem como a essência comum de que todos os membros da mesma espécie participam. Os Capadocianos fizeram distinção entre estes dois termos, reservando o uso de hypostasis para se referir à substância individual de uma coisa, e do termo ousia para se referir à essência que é comum aos vários membros de uma espécie. 748 Então, eles afirmaram que em Deus existem três hypostases e apenas uma ousia, ou, em outras palavras, três subsistências individuais que participam em uma essência divina.749 Esta fórmula foi mais confusa para o Ocidente, que estava inclinado a interpretá-la nos termos da fórmula de Tertuliano: uma substância e três pessoas. Para os teólogos ocidentais, a afirmação de três divinas hypostases parecia significar que existiam três substâncias divinas e, 748

Ver, por exemplo, Basílio, Ep.236.6. Alguns exemplos concretos de sua explicação desta fórmula serão encontrados no Capítulo XIV, que ocupase especialmente com os Capadocianos. 749


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portanto, três Deuses. Mas o trabalho dos Capadocianos, incluindo em sua fórmula a unidade de ousia, finalmente satisfez o Ocidente. Harnack e outros historiadores da doutrina cristã têm acusado os Capadocianos de terem torcido a doutrina de Nicéia.750 De acordo com eles, os Capadocianos não afirmaram a doutrina de Nicéia, que consistia na unidade de Deus, mas antes afirmaram a existência de três substâncias divinas com uma natureza comum. Esta crítica deve ser corrigida em ao menos dois pontos. Em primeiro lugar, ela pressupõe que os bispos reunidos em Nicéia estavam preocupados, acima de tudo, em afirmar a unidade de Deus. Mas esta interpretação do Grande Concílio é incorreta. Embora seja verdade que alguns dos bispos reunidos em Nicéia viram na homoousios uma afirmação da unidade divina, muitos dos presentes a viram como uma afirmação da natureza divina do Filho com força suficiente para rejeitar as doutrinas de Ario e seus “companheiros lucianistas”. Em segundo lugar, aqueles que criticam a doutrina trinitariana dos Capadocianos erram, visto que esquecem que, dado a suas pressuposições platônicas, os Capadocianos declarariam que a essência comum da qual muitos indivíduos participam é mais real do que a subsistência particular de cada um. Assim, não é correto interpretar a fórmula “três hypostases e uma ousia” como um triteísmo velado, e por isso, como uma traição da fé nicena. Quando o Imperador Teodósio convocou um concílio que reuniu-se em Constantinopla em 381 – e que foi mais tarde chamado de o segundo Concílio Ecumênico751 foi a fórmula Capadociana que ganhou a discussão. Embora não existissem bispos ocidentais presentes neste Concílio, houve uma ampla representação de todo o Oriente, e logo depois disso a Igreja Ocidental aceitou suas decisões doutrinárias. Os bispos reunidos em Constantinopla não fizeram um novo credo, mas antes reafirmaram o de Nicéia, 752 e condenaram o Arianismo, não apenas em sua forma primitiva, mas também em suas novas modalidades – anomoeana, homoeana e pneumatomaciana – e o Apolinarianismo. 753 Com as ações do Concílio de Constantinopla, o Arianismo deixou de ser um fator importante na discussão teológica. Contudo, este não foi o fim desta doutrina, pois ela já tinha se espalhado extensivamente entre os bárbaros,754 e em séculos posteriores, quando estes povos bárbaros invadiram o Ocidente, trouxeram com eles sua fé ariana. Assim, os Vândalos 750

Harnack, HD, 4: 84-88. Ver P. K. Chrestou, “The Ecumenical Character of the First Synod of Constantinople, 381”, GrOrthThR, 27 (1982), 359-374. 752 Tem existido muitíssima discussão acerca do então chamado credo de Constantinopla e sua relação com o credo Niceno e com o Concílio de 381 A.D.. Se o Concílio realmente promulgou o credo de Constantinopla, ele provavelmente não o criou, nem o ofereceu como um substituto da fórmula nicena. Cp. Kelly, Early Christian Creeds, pp. 296-331. 753 Uma doutrina cristológica a ser discutida no Cap. XVI. 754 Ver H. E. Griesecke, Die Ostgermanen und der Arianismus (Leipzig: B. G. Teubner, 1939). 751


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no Norte da África, os Visigodos na Espanha, e os Lombardos na Itália, estabeleceram reinos arianos. Os Francos foram os únicos entre os principais povos invadidos que foram convertidos ao Cristianismo ortodoxo em vez de ao Arianismo. O resultado foi que o Ocidente, que não tinha sido realmente desafiado por esta doutrina até então,755 agora tinham que enfrentar uma luta amarga. Mas neste confronto a teologia não exerceu o papel principal. Era principalmente uma questão do mais forte implantando sua fé entre o mais fraco, e de uma civilização superior conquistando seus conquistadores. A primeiro, os bárbaros arianos perseguiram os ortodoxos nas terras que eles invadiram. Mas logo começaram a tentar assimilar a cultura dos conquistados, e com ela, eles também assimilaram a fé nicena, De modo que um após o outro, os grandes reinos arianos tornaram-se ortodoxos. Um outro fator contribuinte neste desenvolvimento foi o crescimento do poder franco, pois seus vizinhos arianos foram assim compelidos a seguir as crenças daquele império crescente. A derrota do Arianismo foi devida em parte à superioridade intelectual de seus adversários; e em parte ao fato que, durante a prolongada controvérsia, o Ocidente sempre esteve a favor do grupo niceno, e em parte às divisões entre os arianos têm a ver com distinções sutis, enquanto que seus oponentes tendiam a unir e formar alianças sempre mais amplas. Mas podemos ver também na natureza interior do Arianismo uma das principais causas de sua derrota. O Arianismo pode ser interpretado como introduzindo dentro do Cristianismo o costume de adoração de seres que, embora não sendo o Deus absoluto, eram divinos em um sentido relativo. A consciência cristã geral reagiu fortemente contra este entendimento limitado da divindade do Salvador, como era claramente visto a cada momento que os arianos expressavam sua doutrina de modo mais extremo. A fé nicena, embora menos estritamente racional que o Arianismo, e embora requeresse mais da metade de um século para esclarecer seu sentido atual, foi capaz de afirmar de um modo mais claro e radical a doutrina cristã fundamental de que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo”.

755

Gustave Bardy, “L’Ocident et les documents de la controverse arienne”, RevScRel, 20 (1940), 28-63, traça uma introdução no Ocidente de documentos pertencentes à controvérsia ariana.


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XIII. A TEOLOGIA DE ATANÁSIO Um dos principais eruditos patrísticos de nosso tempo tem dito sobre Atanásio que “a história do dogma no quarto século é idêntica a história de sua vida”. 756 De fato, a vida e a obra de Atanásio estão tão entrelaçadas ao desenvolvimento da discussão teológica no quarto século que é impossível narrar a história deste desenvolvimento à parte da biografia de Atanásio. Ele tornou-se o símbolo da fé nicena, e seus repetidos exílios e retornos servem como um catavento a mostrar em que direção os ventos doutrinário e político estavam soprando. Esta é a razão porque o capítulo anterior, embora registrando o curso da controvérsia ariana depois do Concílio de Nicéia, também esboçou a biografia de Atanásio. Não é necessário repetir esta história. É suficiente dizer que Atanásio foi, sem dúvida alguma, o mais notável bispo a ocupar a antiga diocese de Alexandria, e que ele também foi o maior teólogo de seu tempo. O propósito aqui, portanto, não é repetir o que já foi dito sobre a vida deste grande líder da igreja, mas antes tentar mostrar quais eram as principais preocupações teológicas que o conduziu em sua amarga luta contra o Arianismo, bem como esboçar alguns dos principais aspectos de sua teologia. Atanásio era mais um pastor do que um pensador sistemático ou especulativo. Isto não significa que seu pensamento não é metódico, ou que falta organização, mas que sua obra e sua teologia desenvolveu-se mais em resposta às necessidades de cada momento do que com base nos requerimentos de um sistema. Portanto, procuraríamos em vão entre suas obras por um sistema que tenta apresentar a totalidade de sua teologia. Suas obras são pastorais, polêmicas, exegéticas, e até mesmo existe uma biografia entre elas; mas em nenhuma delas ele tenta teologizar por mero prazer ou curiosidade. O mais antigo de seus escritos é uma obra única, geralmente publicada como dois tratados: Contra os Pagãos e Sobre a Encarnação. Provavelmente eles foram escritos antes do começo da controvérsia ariana;757 mas neles – especialmente no segundo tratado - já podemos encontrar os princípios teológicos que mais tarde serviriam como pontos de partida para Atanásio em sua controvérsia com os arianos. Entre suas outras obras de interesse teológico, devemos mencionar: Discursos contra os Arianos, Sobre a Encarnação contra os Arianos, Apologia contra os Arianos, História dos Arianos, e Quatro Epístolas a Serapião. Por outro lado, o livro Vida de Santo Antônio que ele escreveu, embora não se preocupe primariamente com temas doutrinários, 758 influenciou 756

Johannes Quasten, Patrology (Utrecht: Spectrum Publishers, 1960), 3:66. E. Schwartz, “Der sogenannte Sermo maior de fide des Athanasius”, SBAW, 41 (1925), 44-46, coloca esta obra em uma data posterior (335-337 A.D.), mas seus argumentos geralmente não têm sido aceitos. Das duas edições existentes, a mais longa parece ser a original. A edição mais curta bem pode ser de Atanásio também, mas provavelmente é uma revisão de uma outra pessoa. Cp. C. Kannengiesser, “Les différentes recensions du traité ‘De incarnatione Verbi’ de S. Athanase”, SP, 7 (1966), 221-229. 758 Gregg e Groh, Early Arianism, pp. 131-159, argumentam que o livro Vida de Santo Antônio de Atanásio foi escrito a fim de reivindicar o apoio desta altaneira figura para a causa nicena. Embora eu considere seu caso 757


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grandemente o desenvolvimento posterior e a popularidade do movimento monástico, pois foi através desta obra que os grandes atos ascéticos de Antônio tornaram-se amplamente conhecidos. A teologia de Atanásio está mais preocupada com questões religiosas do que com aquelas que, por natureza, são puramente especulativas. Foi precisamente esta diferença de interesse que o levou para fora da escola origenística, à qual muitos de seus predecessores na diocese de Alexandria pertenceram. Porém, em sua doutrina trinitariana, e talvez até mesmo sem estar consciente disso, Atanásio foi influenciado por esta forma de Origenismo de direita que prevalecia nos círculos alexandrinos. O conteúdo de sua teologia freqüentemente está muito próximo da de Orígenes, mas seu método é radicalmente diferente daquele que o antigo teólogo alexandrino seguia, pois seu interesse é mais prático e religioso do que especulativo e acadêmico. Isto não significa que ele discuta apenas temas práticos e deixe as questões doutrinárias de lado, pelo contrário, ele constantemente procura a importância religiosa de cada tema doutrinário. Esta importância religiosa é encontrada nas implicações que cada doutrina tem para alguns princípios básicos que estão no âmago do Cristianismo. A verdade ou a falsidade de uma doutrina deve ser julgada com base no grau e modo pelo qual ela expressa os princípios da religião cristã. Para Atanásio, estes princípios básicos são basicamente dois: o monoteísmo e a doutrina cristã da salvação. Mesmo antes da controvérsia ariana desenvolver-se, Atanásio já tinha dado algumas opiniões quanto a natureza de Deus e os meios pelos quais podemos conhecer o divino. Isto pode ser visto em seus antigos tratados, Contra os Pagãos e Sobre a Encarnação.. Em Contra os Pagãos, após atacar o politeísmo pagão de um modo semelhante ao dos antigos apologistas, Atanásio discute os meios pelos quais Deus pode ser conhecido. Estes são principalmente dois: a alma e a natureza. Deus pode ser conhecido através da alma humana, pois “embora o próprio Deus esteja acima de tudo, o caminho que leva a Ele não está longe, nem mesmo fora de nós mesmos, mas está dentro de nós, e é possível encontrá-lo por nós mesmos.”759 Cada um tem estado neste caminho que é a alma, embora alguns se recusem a segui-lo. Estudando a alma podemos inferir algo sobre a natureza de Deus. A alma é invisível e imortal, o que a faz superior a todas as coisas visíveis e perecíveis.760 Portanto, os ídolos que os pagãos adoram, sendo visíveis e destrutíveis, não são deuses, e até mesmo são inferiores àqueles que os fazem. 761 O Deus comum para uma reinterpretação do arianismo primitivo mais esclarecedor, eu não considero seus argumentos na questão particular da Vida de Santo Antônio serem igualmente atrativos. 759 Contra gentes 30.1. 760 Ibid. 33.4. 761 Ibid., 34.2.


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verdadeiro, como a alma, deve ser invisível e imortal. Por sua própria natureza, a alma é capaz de ver a Deus, embora o pecado a impeça de alcançar esta visão. A alma foi feita segundo a imagem e semelhança de Deus, e foi planejada para ser como um espelho no qual esta imagem, que é o Verbo de Deus, resplandeceria. O pecado, contudo, embaçou este espelho, de modo que sem uma purificação prévia é impossível ver o Verbo nela. 762 Este é um tema platônico que tornou-se parte da tradição teológica alexandrina desde os tempos de Orígenes. Por outro lado, é possível conhecer a Deus através da criação, a qual “como se em caracteres escritos, declara em alta voz, por sua ordem e harmonia, seu próprio Senhor e Criador.”763 Sendo por natureza invisível e incompreensível, Deus colocou ao nosso redor este universo de modo que podemos conhecer o divino através das obras de Deus.764 A partir da observação deste universo podemos inferir a existência de Deus.765 A ordem do universo mostra, não somente que existe um Deus, mas também que Deus é único. Se existisse mais de um Deus, seria impossível a unidade de propósito que pode ser vista por todo o universo. “O governo de mais de um é o governo de nenhum.”766 A ordem do universo, na qual os opostos estão equilibrados e distribuídos de uma forma admirável, deve ter somente uma fonte.767 Esta fonte é o Deus cristão. Em oposição a ele, os deuses pagãos parecem fracos, pois são necessários vários deles a fim de se criar e governar um único mundo.768 Finalmente, a ordem e a razão dentro na natureza mostram que Deus a criou e a governa através da Razão, Sabedoria ou Verbo divina. 769 Este Verbo não deve ser entendido como o Logos estóico, isto é, como um princípio impessoal que é a própria ordem da natureza. O Verbo de Deus que governa o mundo é o Logos vivo de Deus. Isto é, o Verbo que é o próprio Deus. Este Logos ou Verbo não é um mero som, como as palavras humanas são, mas é antes a imagem imutável do Pai. Ele é o Deus único e unigênito. Este Verbo assumiu todas as coisas criadas porque elas foram feitas do nada e, portanto, elas pereceriam se o Verbo constantemente não as guardasse vivas. Portanto, o Verbo é o grande sustentador e a fonte da ordem no universo. Ele administra e governa os princípios opostos dos quais o mundo é feito – frio e calor, ar e água, e assim por diante – de modo que eles coexistem em harmonia, e não destroem um ao outro. 762

Ibid., 34.3. Ibid., 34.4. (NPNF, 2a série, 4:22). 764 Ibid., 35.1. 765 Ibid., 35.4-36.1. 766 Ibid., 38.3 )NPNF, 2a série, 4:24). 767 Ibid., 38.4. 768 Ibid., 39.2. 769 Ibid., 40.2-3. 763


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Porém por Verbo eu quero dizer, não aquilo que está envolvido e é inerente em todas as coisas criadas, o que alguns estão acostumados a chamar de princípio seminal, que é sem alma e não tem poder de razão ou pensamento, mas somente opera por habilidade externa, segundo sua habilidade que aplica, - não como uma palavra que pertence a seres racionais e que consiste de sílabas, e tem o ar como seu veículo de expressão, mas eu quero dizer o Verbo vivo e poderoso do bom Deus, o Deus do Universo, o próprio Verbo que é Deus, que embora diferente das coisas que são feitas, e de toda Criação, é o próprio Verbo do bom Pai, que por Sua própria providência ordenou e ilumina este Universo. Pois sendo o bom Verbo do Bom Pai, Ele deu origem a ordem de todas as coisas, combinando coisas contrárias umas com as outras, e submetendo-as a uma ordem harmoniosa. Sendo Ele o poder de Deus e a sabedoria de Deus, faz o céu girar, e suspendeu a terra, e a fez firme, embora repousando sobre o nada, por Sua própria ordem. Iluminado por Ele, o sol dá luz ao mundo, e a lua tem seu período de brilho medido. Por causa Dele a água é suspensa nas nuvens, as chuvas caem sobre a terra, e o mar é mantido dentro de limites, enquanto a terra produz capim e é provida com todo tipo de plantas.770 Isto mostra que, provavelmente mesmo antes de estar envolvido na controvérsia ariana, Atanásio tinha desenvolvido uma doutrina do Verbo que era diferente, não apenas da dos arianos, mas também daquela que foi sustentada por muitos dos mais antigos teólogos. Antes de Atanásio, havia uma tendência entre muitos teólogos de estabelecer a distinção entre o Pai e o Verbo com base no contraste entre o Deus absoluto e uma deidade subordinada. Deste modo, Clemente de Alexandria, por exemplo, afirmava que o Pai era imutável e inacessível, e a luz refletida do Filho era adequada aos olhos humanos. Como Atanásio mostraria durante o curso da controvérsia ariana, este conceito transformava o Verbo em uma deidade subordinada, o que era incompatível com o monoteísmo cristão. Por outro lado, como será mostrado mais tarde, Atanásio estava convencido de que o Salvador deve ser Deus. Não havia, portanto, alternativa senão afirmar que o Verbo era Deus no sentido mais estrito. Este conceito, que se tornaria explícito durante a controvérsia ariana, já é encontrado na obra mais antiga de Atanásio que foi preservada. Enquanto que Contra os Pagãos mostra como o monoteísmo cristão é um dos pilares sobre os quais Atanásio constrói sua teologia, a segunda parte desta obra, geralmente chamada Sobre a Encarnação, mostra o outro pilar sobre o qual esta teologia está fundamentada: a doutrina da salvação. De acordo com Atanásio, a salvação da qual temos necessidade é contínua a criação, 770

Ibid., 40.4-5 (NPNF, 2a série, 4:25-26).


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pois de fato ela é uma re-criação de nossa natureza caída.771 O Deus muito misericordioso, ao criar a humanidade, não desejava que esta criatura, feita do nada, retornasse para o nada. A fim de evitar esta necessidade, Deus criou a humanidade segundo a imagem divina, de modo que nós, pela comunicação com o Verbo, também poderiamos participar em ser e razão. Portanto, embora a criatura humana fosse mortal por natureza, no próprio ato da criação recebeu o dom da imortalidade, o qual manteríamos contanto que refletíssemos devidamente a Imagem segundo a qual fomos criados.772 Mas os seres humanos pecaram e abandonaram esta Imagem, e desde então somos prisioneiros nas garras da morte.773 O pecado não é, portanto, um mero engano que deve ser corrigido; nem é uma dívida que agora é preciso pagar; nem mesmo é que esquecemos o caminho que leva a Deus e devemos nos lembrar dele. O pecado é antes a introdução dentro da criação de um elemento de desintegração que conduz à destruição, e que somente pode ser expelido através de uma nova criação. Disto resulta a essência da doutrina da salvação de Atanásio: somente Deus pode salvar a humanidade.774 Se a salvação de que necessitamos é na verdade uma nova criação, somente o Criador pode trazê-la a nós. Além disso, como a imortalidade que perdemos consistia na existência segundo a Imagem de Deus, e por isso era uma existência semelhante a de Deus, a salvação que agora necessitamos é um tipo de divinização (θεοποιησις).775 Isto também requer que o Salvador seja Deus, pois somente Deus pode conceder uma existência semelhante à divina. Embora o precedente tenha sido tirado de uma obra de Atanásio, a qual provavelmente foi escrita antes da controvérsia ariana irromper, suas obras posteriores mostram claramente que os princípios que são expostos acima o guiaram na formulação de seus argumentos contra os arianos. Vamos agora ver alguns desses argumentos que Atanásio desenvolve. A doutrina ariana, segundo a qual o Verbo é de uma substância diferente da do Pai, e não é Deus no sentido absoluto, destroi o monoteísmo cristão e nos leva de volta ao politeísmo pagão.776 Se o Filho não participa da natureza do Pai de tal modo que é possível falar de ambos como um único Deus, e se ao mesmo tempo adoramos o Filho, como a Igreja sempre tem feito, não há razão porque os cristãos deveriam condenar o politeísmo, pois eles 771

De incar. 7.5. Ibid., 3.3-4. Cp. Régis Bernard, L’image de Dieu d’après St. Athanase (Paris: Aubier, 1952), pp. 21-56. 773 De incar. 6.1-2. 774 Ibid., 7. 775 Ibid., 54.3 (NPNF, 2a série, 4:65): “Pois Ele foi feito homem para que nós pudéssemos ser feitos Deus”. Cp. D. Ritschl, Athanasius: Versuch einer Interpretation (Zurique: EVZ, 1964), pp. 36-59. 776 Ad. episc. Aegypti 14; Or. contra Ar. 1.8; 2.23; 3.8; 3.15-16; De syn. 50; Ep. lx ad. Adel. 3. 772


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de fato o estão praticando. Além disso, a doutrina que vê o Verbo como um ser intermediário entre o mundo e o Deus completamente transcendente não resolve o problema apresentado, pois então seria necessário colocar outros seres intermediários entre Deus e o Verbo e entre o Verbo e a criação, de modo que as dificuldades apenas seriam multiplicadas ao infinito.777 De fato, a doutrina que toma como seu ponto de partida a transcendência absoluta de Deus e deixa a imanência divina de lado, transforma a questão do relacionamento entre Deus e o mundo em um problema insolúvel. A introdução do Verbo dentro desta estrutura não soluciona a dificuldade, mas simplesmente a adia. Igualmente, se o Filho é mutável, e é o resultado de um ato da vontade do Pai e não da própria natureza divina, é impossível ver o Pai imutável através dele. Se o Filho nos revela o Pai, isto não pode ser porque ele é menor do que o Pai, mas porque é igual a ele. 778 Além disso, a doutrina ariana relativa o Verbo destroi a possibilidade de salvação, pois um ser que não é Deus não pode tentar restaurar a criação.779 Se Deus é o Criador, Deus também deve ser o Salvador. Finalmente, como a divinização é parte da obra do Salvador, e somente Deus pode realizar isto, o Salvador deve ser Deus.780 Em resumo, existem duas razões fundamentais pelas quais Atanásio abomina a doutrina ariana: primeira, que o Arianismo aproxima-se do politeísmo e, segunda, que ela implica que a salvação vem de uma criatura. Como conseqüência, está claro que Atanásio é oposto ao Arianismo, não porque ele ataca ou nega algum ponto de sua teologia, mas porque ele é incompatível com os dois pilares sobre os quais sua fé se sustentava, mesmo antes da controvérsia.781 Deixando de lado a controvérsia ariana, devemos agora retornar a outros aspectos importantes da teologia de Atanásio. Em sua doutrina da Divindade, Atanásio mostra novamente este equilíbrio e grande percepção que o faz um dos maiores teólogos de todos os tempos. Ele vê Deus como um ser transcendente, mas isto não deve ser interpretado de tal modo que Deus não possa entrar em

777

Or. contra. Ar. 2.26. Ibid., 1.35. 779 Ibid., 2.14. 780 Ibid., 2.70. 781 Certamente existem alguns argumentos adicionados por Atanásio, nos quais ele simplesmente faz uso do mesmo tipo de lógica que os arianos posteriores empregavam. Este é seu uso (Or. contra Ar. 1.28,29) do argumento de Orígenes de que, se o Filho não é eterno, o Pai não eternamente Pai. Mas este argumento, que basicamente levaria à eternidade da criação, não é central em Atanásio, que o usa e a outros semelhantes a este como apoio adicional para uma doutrina que de qualquer modo está estabelecida em bases firmes. Sobre os argumentos de Atanásio em geral, ver: Samuel Laeuchli, “The Case of Athanasius against Arius”, CTM, 30 (1959), 403-420). 778


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contato direto com as criaturas.782 Embora existindo separado e acima do mundo, Deus estabeleceu um relacionamento direto com ele na própria obra da criação, e mesmo agora está em constante contato com ele a fim de conservá-lo vivo. Este entendimento sobre o relacionamento de Deus com o mundo é importante, pois agora não é mais necessário colocar o Verbo como um ser intermediário entre Deus e o mundo. Aqueles que declaram a transcendência absoluta de Deus transformam o Verbo em uma deidade subordinada que serve como um intermediário entre o Deus absoluto e este mundo temporário. Atanásio, por causa do modo pelo qual ele entende o relacionamento entre Deus e o mundo, pode afirmar que o Verbo ou o Filho é verdadeira e eternamente Deus, e todavia pode declarar que isto não impede seu relacionamento com as criaturas. Este Deus é triuno, existindo como Pai, Filho e Espírito Santo. Atanásio contribuiu de um modo positivo para o desenvolvimento da doutrina trinitariana, pois sua insistência na divindade do Filho foi um dos principais fatores que levaram a derrota de um dos maiores inimigos desta doutrina como ela finalmente evoluiu, o Arianismo. Mas a própria luta contra o Arianismo levou Atanásio a dedicar sua atenção ao relacionamento entre o Pai e o Filho a um tal ponto, que a discussão com relação ao Espírito Santo foi empurrada para o segundo plano. Mais tarde, com o surgimento dos pneumatomacianos, que aceitavam a divindade do Filho mas negavam a do Espírito Santo, Atanásio desenvolveu sua doutrina sobre este ponto, e afirmou que o Espírito também é da mesma substância que o Pai. 783 O principal ponto fraco da teologia trinitariana de Atanásio é sua falta de uma terminologia fixa que poderia servir para expressar a multiplicidade bem como a unidade dentro da Trindade. Atanásio estava consciente da necessidade de uma terminologia como esta, como pode ser visto pela decisão tomada pelo sínodo que reuniu-se em Alexandria em 362. Porém, ele mesmo nunca desenvolveu esta terminologia, que foi uma tarefa deixada para os Capadocianos. Aqui, bem como no restante de sua obra teológica, Atanásio mostrou que era uma pessoa de aguçada percepção religiosa, mas sem grande interesse ou dom para uma sistematização formal do pensamento. Sem ele, o trabalho dos Capadocianos teria sido impossível. Sem os Capadocianos sua obra não teria chegado a sua consecução final. No que diz respeito ao relacionamento entre o Verbo e a natureza humana de Jesus, a Critologia de Atanásio é semelhante a de Arios – verdadeiramente, ambos os teólogos podem servir como exemplos do tipo de Cristologia que era comum entre os teólogos alexandrinos do quarto século.784 Atanásio e Ario eram oponentes na questão da divindade do Verbo, mas ambos interpretam a união deste Verbo com a humanidade de um modo similar. Segundo

782 783

Or. contra Ar. 2.25; De decretis 7. Isto pode ser visto em suas Quatro Epístolas a Serapião, às quais me referi anteriormente.


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Atanásio, o Verbo uniu-se a carne, mas nunca encontramos uma afirmação clara em suas obras de que o termo “carne”, dentro deste contexto, tem a ver com o corpo e a alma. Parece que Atanásio tinha por certo que não havia em Jesus uma alma racional humana, e o Verbo tomou o lugar desta alma.785 Esta doutrina, a qual mais tarde foi chamada de “Apolinarianismo”, e que será discutida em um outro capítulo, foi condenada pelo Concílio de Constantinopla em 381. Embora Atanásio pareça não ter se conscientizado disto,786 esta interpretação da pessoa de Jesus Cristo não concorda com seus próprios princípios soteriológicos, pois – como os Capadocianos mais tarde salientariam – o Verbo tomou a natureza humana a fim de livrá-la do pecado, e como a alma também está envolvida em pecado, o Verbo deve também tê-la tomado a fim de salvá-la Atanásio igualmente enfatiza a unidade entre o divino e o humano em Cristo de um modo que é característico da Cristologia alexandrina. Nesta união, a divindade torna-se o sujeito de todas as ações de Jesus Cristo. É uma unidade inquebrável, que é diferente de todos os casos que encontramos no Velho Testamento de pessoas em quem o Verbo de Deus habitou.787 Em Cristo, a carne torna-se um instrumento do Verbo, e a união entre estes dois é tal que aquilo que é corretamente dito de um dos termos desta união, pode também ser transferido para o outro termo.788 Esta é a típica doutrina alexandrina que geralmente é chamada de “comunicação de propriedades” – communicatio idiomatum. Assim, por exemplo, Atanásio afirma que é correto adorar o homem Jesus, embora a adoração pertença somente a Deus. Nós não adoramos uma criatura. Longe de ser o pensamento. Pois tal erro pertence aos pagãos e arianos. Mas adoramos o Senhor da Criação, Encarnado, o Verbo de Deus. Pois se a carne também é em si mesma uma parte do mundo criado, porém ela tornouse corpo de Deus. E tampouco dividimos o corpo, sendo tal, do Verbo, e o adoramos por si mesmo, nem quando desejamos adorar o Verbo fazemos separado da Carne, 784

Existe alguma dúvida quanto a se Ario conscientemente sustentava que não havia alma humana em Jesus ou não. Isto será discutido em um outro capítulo (ver o Capítulo XVI, n. 1). 785 Marcel Richard, “Saint Athanase et la psychologie du Christ selon les Ariens”, MScRel, (1947), 5-54. Contra este conceito, Aloys Grillmeier, Christ in Christian Tradition: From the Apostolic Age to Chacedon (Nova Iorque: Sheed & Ward, 1965), pp. 193-219, tenta provar que, embora a alma de Cristo não seja um “fator teológico” para Atanásio, é de fato um “fator físico”, no sentido de que ela existe. Este argumento, contudo, não parece convincente. Cp. G. C. Stead, “The Scriptures and the Soul of Christ in Athanasius”, VigCh, 36 (1982), 233-250; R. Lorenz, “Die Christusseele im Arianischen Streit: Nebst einigen Bemerkungen zur Quellenkritik des Arius und zur Glaubwürdigkeit des Athanasius”, ZschrKgesch, 94 (1983), 1-51. 786 Existe uma possível indicação que em uma data posterior ele se conscientizou disto nas palavras seguintes muito ambíguas, nas quais ainda não está claro se Jesus tinha uma alma humana ou se era o Verbo que realizava nele as funções da alma: “que o Salvador não tinha um corpo sem uma alma, nem sem senso ou inteligência; pois não era possível, quando o Senhor se tornou homem por nós, que Seu corpo deveria ser sem inteligência: nem foi a salvação efetuada no próprio Verbo uma salvação do corpo somente, mas da alma também.” (Tom. ad Ant. 7; NPNF, 2a série, 4:485). Cp. Ep. ad. Epic. 7. 787 Or. contra Ar. 3.31. 788 Ibid., 31-32.


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mas sabemos, como foi dito acima, que “o Verbo se fez carne”, O reconhecemos como Deus também, depois de ter viindo na carne. 789 Como conseqüência, Atanásio afirma que Maria é Mãe ou Portadora de Deus (θεοτοκος).790 Esta doutrina também é tipicamente alexandrina, e no quinto século seria o lema de amargas controvérsias. Atanásios crê que este título deve ser dado a Maria como uma conseqüência clara da união indivisível entre a divindade e a humanidade em Jesus Cristo, e da communicatio idiomatum resultante. Negar que Maria é a Mãe de Deus seria equivalente a negar que Deus nasceu de Maria, e isto por sua vez seria uma negação da encarnação do Verbo. Concluindo, Atanásio é um teólogo tipicamente alexandrino, embora esteja livre da excessiva especulação que talvez seja a maior fraqueza desta tradição teológica. Em vez de um método especulativo alexandrino, Atanásio toma alguns princípios básicos da fé cristã, e a partir de seu ponto de vista julga todas as outras doutrinas. Estes princípios são o monoteísmo e a doutrina da salvação, e eles são a base sobre a qual Atanásio se opõe ao Arianismo. Contudo, a natureza particular do interesse de Atanásio e de seus dons intelectuais, embora permitindo-lhe mostrar com maior clareza do que os outros porque o Arianismo era inaceitável, o impediu de desenvolver uma fórmula que serviria como um lugar de reunião para aqueles que consideravam o Arianismo desagradável. Esta seria a tarefa dos Três Grandes Capadocianos, cuja obra devemos retomar agora.

789 790

Ep. lx. Ad Adelph. 3 (NPNF, 2a série, 4:575). Or. contra Ar. 3.14.


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XIV. OS GRANDES CAPADOCIANOS Este é o nome comumente dado a três bispos e teólogos que estiveram à frente no cenário teológico da segunda metade do quarto século. São eles: Basílio, bispo de Cesaréia na Capadócia, também conhecido como “o Grande”; seu irmão mais moço, Gregório, que finalmente tornou-se bispo da pequena cidade de Nissa; e seu amigo comum, Gregório de Nazianzo, que por um breve período ocupou a diocese patriarcal de Constantinopla. Estes três amigos trabalharam em estrita colaboração a fim de obter a vitória da fé nicena, e por isso sua doutrina trinitariana é praticamente comum aos três. Isto não significa, contudo, que eles estavam em total acordo sobre todas as outras questões, e por isso é necessário estudá-los separadamente, embora demonstrando sua unidade ao inclui-los em um único capítulo. Embora seja costume falar dos “três grandes Capadocianos”, existe um quarto, sobre quem pouco tem sido escrito,791 mas cuja influência sobre pelo menos dois dentre os três mais famosos merece nota. É Macrina, a irmã de Basílio e de Gregório de Nissa. Foi ela quem chamou Basílio para fora de sua preocupação com sua própria sabedoria e prestígio, e para a vida que ele seguiu mais tarde. Além disso, Gregório de Nissa fala dela como “a Mestra”, e parece ter por certo que seus leitores saberiam quem era ela. Infelizmente, pouco foi deixado para nos permitir reconstruir seus ensinos.792 Mas ela deve ser mencionada aqui como uma lembrança de que haviam mães entre os “pais” da Igreja. Basílio (300?-379) era o mais velho e o mais famoso dos três. Nasceu em uma família relativamente rica, desde muito cedo ele experimentou a vida religiosa intensa de um lar cujo centro era a fé cristã. Sua irmã mais velha, Macrina, levava uma vida ascética que deixou sua impressão no espírito do jovem Basílio. Dois de seus irmãos, Gregório e Pedro, no devido tempo, tornaram-se bispos, o primeiro de Nissa e o último de Sebaste. O próprio Basílio recebeu uma cuidadosa educação, primeiramente na vizinha Cesaréia, e mais tarde em Constantinopla e em Atenas. Foi em Cesaréia que Basílio encontrou o jovem Gregório, que mais tarde torna-se bispo de Nazianzo, que veio a ser seu amigo e colaborador durante toda sua vida. Mais tarde, em Atenas, eles se encontraram novamente, e foi ali que sua ardente amizade se desenvolveu. 791

Sei de um único estudo breve sobre Macrina: P. Wilson-Kastner, “Macrina: Virgin and Teacher”, Andrews University Seminary Studies, 17 (1979), 110-117. 792 Além de A Vida de Macrina escrito por Gregório de Nissa, existe o diálogo Sobre a Alma e a Ressurreição, também escrito por Gregório (Tradução para o inglês: NPNF, 2a Série, 5:430-468). Neste diálogo, Gregório exerce o papel de interlocutor, e Macrina é a professora. Naturalmente, é muito difícil determinar quanto disto é ensino de Macrina, e quanto é de Gregório. Existe pelo menos uma ocasião, contudo, em que Gregório empreendeu escrever em nome de um outro (seu irmão morto, Basílio) e fez referência aos conceitos do outro onde eles diferiam dos seus (ver abaixo, n. 36). Assim, a tarefa de comparar Sobre a Alma e a Ressurreição com o restante da produção de Gregório, para ver que se algo pode ser separado do restante como ensino de Macrina, pareceria ser um esforço promissor. Quasten, Patrology, 3:261, afirma sem prova posterior que “Os conceitos ... que Gregório coloca dentro da boca dela são de fato dele mesmo.”


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Gregório de Nazianzo (329?-389?) tinha uma personalidade muito diferente da de seu amigo Basílio. O último era um homem de grande coragem e estabilidade, às vezes ao ponto de ser inflexível. Gregório, ao contrário, era extremamente sensível, às vezes ao ponto da fraqueza, Por estas razões, a vida de Gregório é uma sucessão de retiros monásticos separados por breves incursões na ativa vida eclesiástica. Basílio amava a vida calma tanto quanto seu amigo Gregório – e talvez até mesmo mais – porém uma vez que ele tomou sobre si as tarefas de bispo ele nunca as abandonou, como seu amigo estava propenso a fazer. Os talentos de Gregório também eram diferentes dos de Basílio: enquanto que o último era o administrador e estadista, Gregório era o orador eloquente. O terceiro dos grandes Capadocianos, Gregório de Nissa (335?-394?), era o irmão mais moço de Basílio. Embora tenha estudado retórica e também tenha sido bispo, seus principais talentos não eram o de pregador ou administrador, mas antes ele era o mais notável expoente do misticismo dentre os três grandes Capadocianos. Como será visto mais tarde, seus dons como um teólogo, e especialmente seu trabalho sistemático, vai além do de seus dois colegas e amigos. Basílio de Cesaréia Basílio não dedicou tempo algum à pesquisa teológica pelo mero prazer deste trabalho. Ele não escreveu nenhuma obra na qual tentasse expor a totalidade da doutrina cristã de uma maneira sistemática. Pelo contrário, todas as suas obras dogmáticas tem o claro propósito de refutar os erros de sua época, especialmente os dos arianos e dos pneumatomacianos. Foi com este propósito em mente que ele escreveu suas duas mais importantes obras: Contra Eunomio e Sobre o Espírito Santo. A primeira é uma refutação dos argumentos empregados pelo ariano anomeano Eunomio, enquanto que a última é uma defesa da doxologia, “Glória seja ao Pai, com o Filho, juntamente com o Espírito Santo.” O argumento de Eunomio 793 era baseado no contraste entre o Deus absoluto e a relatividade do Filho. Ele baseia seu argumento sobre a natureza divina como sendo não gerada (αγεννετος),794 e incapaz de gerar alguém que participa nesta inegerabilidade. 795 Portanto, o Filho é gerado (ele é um γεννηµα),796 e não é Deus no sentido estrito da palavra, pois Deus não comunicou a essência divina a ele.797 Basílio responde que a essência de Deus não pode ser definida simplesmente como não sendo gerada. Inegerabilidade (αγεννησια) é uma mera negação semelhante a 793

Seu tratado pode ser visto em PG, 30:837-868. Apol. 7-8. 795 Ibid., 9. 796 Ibid., 12. 797 Ibid., 28. 794


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invisibilidade ou imortalidade. Por outro lado, a essência (ουσια) não é uma negação, mas é antes o próprio ser de Deus, e uma pessoa deveria estar completamente louca para contá-la entre os atributos negativos.798 Isto, contudo, é precisamente o que Eunomio faz ao afirmar que a essência de Deus consiste em ser não gerado.799 Por outro lado, de acordo com Basílio, Eunomio baseia seu argumento em uma passagem errônea do corporal para o divino, afirmando assim que, como a geração é uma propriedade que se aplica somente a seres materiais e não tem relação com o divino, o Filho, sendo gerado, não é Deus. Basílio responde que a geração de seres vivos e mortais ocorre através da ação dos sentidos, mas que no caso de Deus isto não é assim. Quando lidamos com a natureza divina, devemos pensar em termos de uma geração digna de Deus e por isso “impassível, sem partes, nem divisão, nem tempo”.800 Desta distinção entre o Pai não gerado e o Filho gerado, Eunomio extrai um outro argumento cujo propósito é provar o ponto ariano de que houve um tempo em que o Filho não existia. O argumento em si mesmo é muito simples: o Filho não pode ter existido quando o Pai o gerou, pois aquilo que já existe não necessita ser gerado.801 Contra este argumento, Basílio salienta que Eunomio confunde eternidade com ser não gerado. O último é dito daquilo que é sua própria causa, enquanto que eternidade corresponde àquilo que existe além dos limites do tempo. Portanto, não há contradição em afirmar-se que o Filho é gerado e é eterno, ou que ele é eternamente gerado.802 E se alguém requer mais precisão e clareza lógica, Basílio responde que a doutrina da geração eterna não pode ser entendida pela razão humana. Mas isto não deveria nos surpreender. Não me pergunte: O que é esta geração, e de que tipo, e como ela pode ocorrer? O modo desta geração é indescritível e incompreensível, mas ainda devemos construir nossa fé sobre o fundamento do Pai e do Filho. Pois, se fossemos julgar todas as coisas segundo nosso intelecto, e decidir que aquilo que nossa mente não pode compreender é impossível, perdida é a fé, perdida é a recompensa da esperança. 803 Em tudo isto, Basílio não vai além da posição de Atanásio e dos antigos defensores de Nicéia. Talvez haja algum prejuízo, pois o interesse soteriológico que estava na base da teologia de Atanásio foi abandonado, e a fé de Nicéia é defendida com base em argumentos puramente lógicos e com uma certa tendência fideísta. Mas, por outro lado, o interesse lógico de Basílio, o qual não é, contudo, tão intenso 798

Adv. Eun. 1.10. Ibid., 11. 800 Ibid., 2.16 (PG, 29:604). 801 Ibid., 2.14. 802 Cp. NPNF, 2a série, 8: xxxvi-xxxvii. 803 Adv. Eun. 2.24 (PG, 29:625-628). 799


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quanto o de seu irmão, Gregório de Nissa, o levou a afirmar e defender pela primeira vez a fórmula que finalmente guiaria à solução definitiva da controvérsia trinitariana: uma ousia e três hypostases (µια ουσια, τρεις υποστασεις). Basílio reivindica que estes dois termos não são sinônimos, e que por isso eles não devem ser usados indistintamente em referência à Divindade.804 O que ele quer dizer com esta distinção pode ser visto no parágrafo seguinte: A distinção entre ουσια e υποστασις é a mesma que entre o geral e o particular; como, por exemplo, entre o animal e o homem particular. Porque, no caso da Divindade, confessamos uma essência ou substância não para dar uma definição diferente da existência, mas confessamos uma hypostasis particular, a fim de que nossa concepção do Pai, do Filho e do Espírito Santo possa ser sem confusão e clara. Se não temos uma percepção distinta das características separadas, a saber, paternidade, filiação e santificação, mas formamos nossa concepção sobre Deus do conceito geral de existência, possivelmente não possamos dar uma razão sadia de nossa fé. Devemos, portanto, confessar a fé adicionando o particular ao comum. A Divindade é comum; a paternidade particular. Devemos, portanto, combinar os dois e dizer, “Eu creio em Deus o Pai”. Caminho igual deve ser seguido na confissão do Filho; devemos combinar o particular com o comum e dizer “Eu creio em Deus o Filho”, da mesma maneira no caso do Espírito Santo devemos fazer nossa expressão conforme a denominação e dizer “em Deus o Espírito Santo”. Disto resulta que há uma preservação satisfatória da unidade pela confissão de uma Divindade, enquanto que na distinção das propriedades individuais que dizem respeito a cada um, há a confissão das propriedades peculiares das Pessoas. Por outro lado aqueles que identificam essência ou substância e hypostasis são forçados a confessar somente três Pessoas, e, em sua hesitação de falar de três hypostases, são condenados por falhar em evitar o erro de Sabélio.805 Esta contribuição de Basílio de Cesaréia ao desenvolvimento da doutrina trinitariana foi, mais tarde, adotada por Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, cuja obra levou a sua vitória final. Basílio também contribuiu para o desenvolvimento da doutrina trinitariana dedicando mais atenção ao Espírito Santo do que tinha sido feito pelos teólogos anteriores. Já temos apontado que o Concílio de Nicéia se satisfez com uma breve frase referente ao Espírito 804

A exposição mais detalhada da distinção entre ousia e hypostasis é encontrada em Ep. 38. Contudo, como existe alguma dúvida quanto a autenticidade desta epístola, usaremos aqui outros textos. Sobre esta terminologia, e sua relação com a terminologia latina, ver A. de Halleux, “ ‘Hypostase’ et ‘persone’ dans la formation du dogme trinitaire (ca. 375-381)”, RHE, 79 (1984), 213-269, 625-670. 805 EP. 236.6 (NPNF, 2a série, 8:278). Cp. Ep. 214.4. Também, sobre as objeções de Basílio ao Sabelianismo, Ep. 210.5.


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Santo. O próprio Atanásio não deu tanta atenção a este problema até que os pneumatomacianos o trouxeram ao primeiro plano. Na época de Basílio, quando os pneumatomacianos eram uma agremiação forte, e quando alguns pareciam estar prontos a abandonar o arianismo naquilo que se referia ao Filho, mas não no que tinha a ver com o Espírito Santo, era impossível atacar o Arianismo sem, de algum modo, tentar elucidar a natureza do Espírito Santo. Esta é a razão porque, no último de seus três livros Contra Eunomio 806 e em seu tratado Sobre o Espírito Santo, Basílio tenta mostrar a consubstancialidade do Espírito Santo com o Pai e com o Filho.807 Que este problema estava no ar é claramente provado pelo fato de que, além dos três Capadocianos, outros famosos líderes eclesiásticos desta época sentiram-se compelidos a escrever tratados sobre o Espírito Santo. Entre eles, devemos mencionar Anfilóquio de Icônio – a quem o tratado de Basílio é endereçado – Dídimo, o Cego, e Ambrósio de Milão. Dada a estas circunstâncias, somos surpreendidos ao descobrir que em seus tratados compostos para publicação, Basílio se abstenha de enfatizar a divindade do Espírito Santo, e sua afirmações mais claras sobre esta divindade foram feitas em suas epístolas.808 Provavelmente a razão para isto é que, estando mais interessado em convencer do que em esmagar seus inimigos, Basílio tentava levá-los ao reconhecimento da divindade do Espírito Santo, em vez de antagonizá-los.809 Isto não significa, contudo, que ele mesmo hesitava com relação a divindade do Espírito Santo, nem que ele abstinha-se de afirmar esta divindade perante aqueles que a negavam. Pelo contrário, em seu terceiro livro Contra Eunomio, bem como no tratado Sobre o Espírito Santo, Basílio afirma e tenta provar a divindade do Espírito Santo. Mas suas afirmações e argumentos são sempre controlados, como se ele tivesse medo de escandalizar aqueles que, apesar de sua boa vontade, ainda não tinham sido convencidos sobre a divindade do Espírito Santo. Este interesse pastoral também pode ser visto no modo pelo qual Basílio alterou a doxologia que era usada na liturgia em Cesaréia, tentando assim levar sua congregação à convicção sobre a divindade do Espírito por meio da adoração. A doxologia mais antiga dizia: “Glória seja ao Pai, através do Filho, no Espírito Santo”; a doxologia de Basílio dizia: “Glória seja ao Pai, com o Filho, juntamente com o Espírito Santo”. Quando ele foi criticado por esta mudança, Basílio escreveu seu tratado Sobre o Espírito Santo, no qual, demonstrando que sua versão da doxologia é aceitável, ele também prova a divindade do Espírito Santo, embora sem chamá-lo de “Deus”. Esta discrição talvez 806

Os Livros 4 e 5 não são dele. Hermann Dörries, Der Beitrag des Basilius zum Abschluss des trinitarischen Dogmas (Göttingen: Abhandlungen der Akad. d. Wiss., 1956); S. de Boer, “Basilius de Grote en de ‘homoousie’ vom Hl. Geest”, NedTheolTschr, 18 (1964), 372-380. 808 Quasten, Patrology (Utrecht: Spectrum Publisher, 1960), 13:231-233. 809 Pelo menos este era o entendimento de Atanásio (Ep. 62-63), e de Gregório de Nazianzo (Pan. Basil. 68-69), citado em Quasten, Patrology, 3:231-232. 807


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possa ser entendida seu levarmos em conta a presença de um partido ariano, esperando pela ocasião em que o bispo de Cesaréia fizesse uma afirmação vulnerável, a fim de então acusá-lo de heresia e tentar reivindicar a posse de sua importante diocese. É por esta razão que Basílio, em vez de afirmar categoricamente a divindade do Espírito Santo em seu tratado sobre este assunto, prefere refutar a doutrina que alega que o Espírito é uma criatura. Apesar disto, um leitor cuidadoso de seu tratado deve concluir que Basílio cria na divindade do Espírito Santo. Esta conclusão é amplamente apoiada por suas epístolas, nas quais ele categoricamente afirma a divindade do Espírito Santo. De qualquer modo, a posição pneumatomaciana é rejeitada quando Basílio afirma que o Espírito de modo algum é uma criatura, e é digno de ser adorado. Um, além disso, é o Espírito Santo, e falamos Dele individualmente, unido como Ele está ao único Pai através do único Filho, e através Dele mesmo completando a adorável e abençoada Trindade. Dele o relacionamento íntimo com o Pai e com o Filho é suficientemente declarado pelo fato de Ele não ser classificado na pluralidade da criação, mas ser falado da individualidade; pois ele não é um de muitos, mas Um. Pois como há um Pai e um Filho, assim há um Espírito Santo. Conseqüentemente ele está tão afastado da Natureza criada quanto a razão requer que o singular esteja afastado dos corpos compostos e plurais; e Ele está tão unido ao Pai e ao Filho quanto a afinidade tem relação com a unidade.810 Assim, com sua insistência na pessoa do Espírito Santo – que é de fato uma reação de todos os principais teólogos de seu tempo contra os pneumatomacianos – Basílio contribuiu para transformar a questão ariana em uma questão plenamente trinitariana. Até esta época, o que estava em jogo era principalmente o relacionamento entre o Pai e o Filho. Agora o lugar do Espírito Santo na Trindade divina começava a receber a devida atenção. De modo algum isto era uma inovação. O próprio Concílio de Nicéia tinha declarado sua fé no Espírito Santo, e Atanásio ao descobrir a doutrina pneumatomaciana não hesitou em condená-la. Mas o tratado de Basílio foi um marco para a introdução definitiva do Espírito Santo na controvérsia ariana. Finalmente, uma palavra deve ser dita sobre a importância de Basílio como um liturgista e como um organizador do monasticismo. Como um testemunho a suas atividades litúrgicas, existe uma “Liturgia de São Basílio”, a qual a Igreja Ortodoxa Grega ainda usa durante a Quaresma, e cujas características básicas parecem ser o resultado da obra do próprio Basílio. Por outro lado, existem várias obras que tem sido atribuídas a Basílio, e que lidam com a ordenação da vida monástica. Algumas destas obras são genuínas, outras são 810

De Sp. Sancto 45 (NPNF 2a série, 8:28).


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amplamente interpoladas e talvez alteradas, e outras de modo algum deveriam estar relacionadas com seu nome. Gregório de Nazianzo Enquanto que Basílio era o organizador e o diplomata entre os três Capadocianos, Gregório de Nazianzo era o orador e o poeta. Ele tinha uma natureza calma e pacífica, com uma grande sensibilidade estética, sempre inclinado a seguir a vida de retiro monástico e de fato tentando-a mais de uma vez. Mas seu senso de responsabilidade, numa época em que a Igreja estava envolvida em grandes lutas, o levaram a sacrificar sua própria tranqüilidade e a tomar sobre si a responsabilidade de um bispo.811 Como tal, ele nunca deu sinais do vigor de seu amigo Basílio, mas ele soube como colocar seus grandes talentos literários a serviço da causa ortodoxa. Esta é a razão porque o melhor de sua produção teológica é encontrado não em tratados sistemáticos, mas em seus sermões, poemas e epístolas. Os sermões de Gregório mostram sua habilidade retórica, contudo eles vão muito além da beleza do som, e lidam com a maioria das dificuldades teológicas e problemas morais. Seus poemas, embora não sejam jóias excepcionais da literatura grega, demonstram um refinado gosto artístico, e um bom número deles sejam de caráter teológico. Finalmente, suas epístolas são a tal ponto exemplares, que o próprio Gregório decidiu publicá-las sob o insistente conselho de um parente que admirava seu estilo e conteúdo. Em algumas delas ele discute problemas teológicos, especialmente aqueles que tinham a ver com Cristologia, com tal clareza e previsão que sua exposição deste assunto foi mais tarde adotada pelos Concílios de Éfeso e de Calcedônia.812 Como aquilo que é mais interessante para nós aqui é a contribuição de Gregório para a vitória final da fé nicena, começaremos expondo sua doutrina trinitariana. Como no caso de Basílio, os grandes oponentes teológicos de Gregório são os arianos – especialmente Eunomio e seu partido anomoeano – e os pneumatomacianos. Eles são o alvo para o qual ele aponta muitos de seus sermões, epístolas e poemas, e especialmente seus cinco sermões geralmente chamados de “Orações Teológicas”.813 A primeira das Orações Teológicas lida com os princípios da pesquisa e discussão teológica. Aqui Gregório ataca o costume dos arianos, que mantinham discussões teológicas o

811

O primeiro destes episódios nos quais Gregório abandonou sua paz pessoal a fim de servir a Igreja, foi quando seu próprio pai pediu-lhe para colaborar na liderança da Igreja em Nazianzo. Gregório esquivou-se, e mais tarde compôs sua “Defesa de Sua Fuga”, na qual ele confessou: “Eu fui derrotado, e minha própria derrota” (NPNF, 2a série, 7:204). Poucos documentos na literatura patríscica dão um discernimento tão claro sobre a personalidade de seus autores. Sobre o próprio Gregório, ver R. R. Reuther, Gregory of Nazianzus: Rhetor and Philosopher (Oxford: Clarendon, 1969); D. F. Windom, The Dynamic of Salvation: A Study in Gregory of Nazianzus (Filadélfia: Filadélfia Patristic Foundation, 1979). 812 Para a Cristologia de Gregório, ver o Capítulo XVI. 813 NPNF, 2a série, 7:284-328.


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tempo todo e perante todos os tipos de audiências.814 A discussão teológica deve lidar apenas com assuntos que estão dentro do alcance de nossa mente, e deve ser seguida somente até o ponto em que a mente mostra-se capaz de ir.815 Além disso, estes assuntos não podem ser discutidos por todas as pessoas, não apenas porque alguns carecem da inteligência necessária para entender o que é discutido, mas também, e acima de tudo, porque poucas pessoas tem a virtude necessária para receber adequadamente o que é dito. Simples inteligência não é o bastante para tornar-se um verdadeiro teólogo. É também necessário “polir nosso eu teológico para beleza como uma estátua”.816 Aqueles que são incapazes de desenvolver a virtude necessária, não deveriam tentar discutir a natureza de Deus, mas antes deveriam limitar seu interesse a assuntos inferiores, tais como o mundo, a matéria e a alma. 817 A terceira818 e a quarta Orações Teológicas lidam com o Filho, e aqui Gregório refuta diretamente os argumentos de Eunomio, ao quais já expusemos ao apresentar Basílio de Cesaréia. Muitos dos argumentos de Eunomio consistem em dilemas cujo propósito é mostrar a impossibilidade lógica da doutrina nicena. Gregório toma estes dilemas em ordem, e mostra as falácias envolvidas em cada um deles. Assim, por exemplo, os anomoeanos propõem o seguinte dilema: se o Pai gerou o Filho, ele o fez ou voluntariamente ou involuntariamente. Se ele o gerou involuntariamente, alguma outra força o compeliu a fazê-lo, e então seria necessário afirmar que existe um poder mais alto do que o de Deus. Se, pelo contrário, ele gerou o Filho voluntariamente, o Filho é o Filho da Vontade, e não do Pai.819 Gregório responde que seus inimigos tentam amarrá-lo, mas que as cordas que eles usam são muito fracas. Os próprios anomoeanos, que ousam falar com tal coragem com relação a geração divina, deveriam fazer a mesma pergunta com relação a sua própria geração. Foi voluntária ou involuntariamente que seus pais os geraram? Claramente não foi involuntariamente, pois eles não foram forçados a gerá-los. Mas se foi voluntariamente que seus pais os geraram, os anomoeanos são filhos da Vontade, e não de seus próprios pais! Assim, Gregório demonstra que o suposto dilema que Eunomio propõe não é mais do que “umas poucas sílabas”, isto é,

814

Or. 27.3 (NPNF, 2a série, 7:285): “Não para cada um isoladamente, meus amigos, compete filosofar sobre Deus; não para cada um; o Assunto não é tão baixo e vulgar; e adicionarei, nem perante toda audiência, nem o tempo todo, nem sobre todos os pontos; mas em algumas ocasiões, e perante algumas pessoas, e dentro de certos limites.” Ver S. P. Tsichlis, “The Nature of Theology in the ‘Theological Orations’ of St. Gregory de Nazianzus”, Diakonia, 16 (1981), 238-246. 815 Ibid., 4. 816 Ibid., 7 (NPNF, 2a série, 7:287). 817 Ibid., 9. 818 A segunda Oração Teológica é uma tentativa suplementar de impingir humildade sobre o discurso teológico mostrando a distância entre o teólogo e o objeto do pensamento, e a conseqüente impossibilidade de conceber Deus adequadamente. Não importa quão exaltado uma coisa possa ser, a distância entre nós e ela é muito menor do que a que existe entre ela e Deus (Or. 28.3). Platão está errado quando reivindica que imaginar Deus é difícil e que é impossível expressar o divino em palavras, pois a verdade é que é impossível expressar, e até mesmo mais impossível imaginar Deus. (ibid., 4). Um Deus compreensível seria um Deus limitado (ibid., 10). 819 Or. 29.6.


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palavras carentes de conteúdo. De qualquer modo, a geração do Filho de Deus seria “coisa sem importância” se nós que somos incapazes de entender nossa própria geração fossemos capazes de entendê-la. Portanto, é “estúpido discutir a questão se aquilo que foi gerado desde o começo existia antes de sua geração ou não”.820 Contudo, a parte mais importante do argumento de Gregório está em sua insistência em que os termos “Pai”, “Filho” e “Espírito Santo” são termos de relação. Seus oponentes propunham o seguinte dilema: o termo “Pai” deve referir-se ou a uma essência ou a uma ação; se refere-se a uma essência, o Filho não pode ser “da mesma essência” que o Pai – homoousios; se, por outro lado, ele se refere a uma ação, esta ação não pode ser outra senão a do Pai como criador, e portanto o Filho é uma criatura. Gregório refuta este argumento dizendo que “Pai” não se refere nem a essência nem a ação, mas a relação: aquele relacionamento de comunhão de essência que existe entre o Pai e o Filho.821 Isto levou Gregório a dar mais atenção à questão do relacionamento entre as três pessoas divinas, o que foi sua grande contribuição ao desenvolvimento da doutrina trinitariana. Em sua quinta Oração Teológica, Gregório discute sobre o Espírito Santo. Aqui ele afirma categoricamente que o Espírito é Deus, a quem todos os predicados da divindade devem ser atribuídos: Se jamais existiu um tempo em que Deus não era, então houve um tempo quando o Filho não era. Se jamais existiu um tempo quando o Filho não era, então existiu um tempo quando o Espírito não era. Se Um foi desde o começo, então os Três também foram.822 Entretanto, o ponto no qual a doutrina de Gregório vai além da de Basílio não é a divindade do Espírito Santo – a qual Basílio aceitava, embora talvez não tão sinceramente quanto seu amigo – mas as relações entre as três pessoas da Trindade. A tentativa de distinguir o Pai, o Filho e o Espírito Santo com base em seus atributos, fazendo distinção entre o Pai absolutamente transcendente e o Filho ou o Verbo, que é capaz de relacionar-se com o mundo, necessariamente levava ao Subordinacionismo e finalmente ao Arianismo. Atanásio estava consciente disto e por isso categórica e repetidamente negara toda tentativa de entender a transcendência do Pai de tal modo que ele pareceria estar mais longe da criação do que o Filho. Esta ênfase sobre a igual transcendência do Pai e do Filho, embora destruísse um dos fundamentos do Arianismo, era incapaz de mostrar como a doutrina nicena diferia do Sabelianismo. Esta era a grande tarefa dos Capadocianos. A abordagem de Gregório o levou a lidar com este problema com base nas relações interiores das três pessoas divinas dentro da 820

Ibid., 9 (NPNF, 2a série, 7:304). Ibid., 16. 822 Or. 31.4 (NPNF, 2a série, 7:318). 821


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Trindade. De acordo com Gregório, as únicas distinções que podem ser estabelecidas entre as três pessoas da Trindade são aquelas que se referem a origem de cada uma delas. Estas distinções nada tem a ver com a substância ou natureza, mas apenas com a origem de cada uma das pessoas E quando eu falo de Deus você ao mesmo tempo deve ser iluminado por um lampejo de luz e por três. Três em Individualidades ou Hypostases, se alguém preferir chamálas assim, ou pessoas (προσωπα), pois não queremos disputar sobre nomes contanto que as sílabas signifiquem a mesma coisa; mas Um em relação a Substância – isto é, a Divindade. Pois eles são divididos sem divisão, se posso assim dizer; e eles são unidos na divisão. Pois a Divindade é um em três, e os três são um, em quem a Divindade está, ou para falar mais apropriadamente, os Quais são a Divindade. Excessos e defeitos nós omitiremos, não fazendo da Unidade uma confusão, nem da divisão uma separação. Nos manteremos igualmente longe da confusão de Sabélio, e da divisão de Ario, que são maus diametralmente opostos, todavia iguais em sua maldade. Pois que necessidade há para hereticamente fundir Deus, ou cortá-lo em desigualdade? Pois para nós existe apenas Um Deus, o Pai, de Quem são todas as coisas; e Um Senhor Jesus Cristo, por Quem são todas as coisas; e Um Espírito Santo, em Quem são todas as coisas; porém estas palavras, de, por, em, quem, não significam uma diferença de natureza ..., mas elas caracterizam as personalidades de uma natureza que é uma e não misturada .... O Pai é Pai, e não é originado, pois Ele não é de ninguém; o Filho é Filho, e não é não originado, pois Ele é do Pai. Mas se você tomar a palavra Origem em um sentido temporal, Ele também não é originado, pois Ele é o Criador do Tempo, e não está sujeito ao Tempo. O Espírito Santo é realmente Espírito, vindo do Pai de fato, mas não segundo a maneira do Filho, pois não é por Geração, mas por Processão ...; pois não fez o Pai deixar de ser Não gerado por causa Dele gerar alguma coisa, nem o Filho de ser gerado porque Ele é do Não gerado (como poderia ser isto?), nem é o Espírito convertido em Pai ou em Filho porque Ele procede, ou porque Ele é Deus.823 As três características da origem que Gregório estabelece neste texto logo foram aceitas, não somente pelo Oriente, mas também pelo Ocidente, como um meio de expressar a distinção que existe dentro da Trindade: a característica do Pai é a de não ser gerado (αγεννησια); a do Filho é ser gerado (γεννησιζ); e a do Espírito é processão

823

Or. 39. 11. 12 (NPNF, 2a série, 7:355-356).


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(εκπορευσιζ).824 Com estes termos, Gregório deu novo significado à fórmula característica dos três Capadocianos: uma ousia e três hypostases. Gregório contribuiu para o desenvolvimento da doutrina, não somente em seus ensinos trinitarianos, mas também em seu esclarecimento cristológico. Opondo-se especialmente a doutrina de Apolinário – que já foi mencionada no capítulo anterior e cuja Cristologia será discutida mais adiante – Gregório ofereceu fórmulas que seriam usadas mais tarde como meios de solucionar as controvérsias cristológicas. Contudo, como o principal assunto deste capítulo é a doutrina trinitariana, e como não expusemos ainda os problemas envolvidos nas controvérsias cristológicas, a discussão sobre a Cristologia de Gregório será adiada para um tempo futuro – Capítulo XVI. Gregório de Nissa Como um administrador, Gregório de Nissa carecia de habilidades, para a tristeza e quase desespero de seu irmão e bispo metropolitano, Basílio de Cesaréia. Como um orador e escritor, Gregório não alcançou as alturas de seu homônimo de Nazianzo. Mas como um teólogo e expositor da experiência mística, ele foi muito além de muitos de seus contemporâneos orientais. Porém, não deveríamos esquecer que a obra dos três Capadocianos foi realizada em estrita cooperação e inspiração mútua, e que Gregório foi capaz de realizar o que ele fez com a colaboração de seus dois amigos. Em seus escritos, Gregório de Nissa faz maior e melhor uso da filosofia pagã do que os outros dois teólogos Capadocianos.825 Um freqüente leitor de Orígenes, Gregório concorda com o mestre alexandrino sobre a utilidade da filosofia para a pesquisa teológica. Mas ele também está muito mais consciente dos perigos que a filosofia acarreta para a teologia do que Orígenes. Como Orígenes, Gregório freqüentemente interpreta a Bíblia alegoricamente.826 Esta característica é mais marcante em suas obras místicas, onde pessoas e eventos históricos tornam-se símbolos dos vários estágios da ascensão mística.827 Contudo, mesmo nestas obras, Gregório nunca se esquece do caráter histórico da revelação bíblica. 828 Mas a influência de Orígenes sobre Gregório vai muito além dos princípios 824

Or. 29.2. Cp. Quasten, Patrology, 3:283-285; Hermann Dörries, “Griechentum und Christentum bei Gregor von Nyssa”, ThLit, 88 (1963), 569-582. 826 Em todas as obras de Gregório, a exegese alegórica é soberana, exceto em seu Comentário Sobre os Seis Dias da Criação e Sobre a Criação do Homem. Nestas duas obras, Gregório tenta completar a obra sobre a criação de seu falecido irmão, Basílio. Como Basílio tinha claramente declarado (PG, 29:188) que não seguiria o método alegórico, Gregório continuou na mesma direção. 827 A melhor exposição e defesa feita por Gregório do método alegórico é encontrada em sua introdução a suas Homílias sobre o Cântico dos Cânticos (ed. Jaeger, 6:3-13). 828 Assim, por exemplo, em seu tratado Sobre a Vida de Moisés, Gregório primeiro conta a história desta vida, e então move-se para sua interpretação mística. 825


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exegéticos. O temperamento e o interesse de Gregório são semelhantes aos de Orígenes, e por isso ele usa os escritos do alexandrino como uma constante fonte de princípios teológicos. Como Orígenes, ele constrói seu próprio sistema teológico sobre a doutrina da liberdade dos intelectos, e enfatiza esta liberdade a tal ponto que parece por em perigo a doutrina da graça.829 A origem do mal é encontrada na liberdade dos intelectos criados, e não em um princípio autônomo negativo.830 O mal existe como uma ausência, uma certa negatividade, e não como uma essência subsistente. Portanto, o mal não é eterno, e quando chegar o dia em que Deus será “tudo em todos” o mal não existirá mais, e aqueles que foram maus serão salvos. Por outro lado, Gregório não segue Orígenes com servilidade. Ao contrário, ele toma os princípios de Orígenes e os aplica dentro do contexto do seu tempo, quando o desenvolvimento teológico tinha alcançado um ponto em que era necessário corrigir algumas conclusões de Orígenes. Um exemplo deste relacionamento dual entre Orígenes e Gregório pode ser visto na doutrina da preexistência das almas. Orígenes afirmava que as almas, embora criatura, existiam desde o princípio, de modo que não houve um tempo em que não haviam almas. Ao fazer tais declarações, Orígenes demonstrava que não tinha considerado claramente a diferença entre a doutrina cristã da criação e a doutrina neoplatônica das emanações. Mais tarde, especialmente durante a controvérsia ariana, os teólogos deram mais atenção ao significado da palavra “criatura”, e concluíram que uma criatura não pode ser eterna. Portanto, Gregório afirma que as almas eram preexistentes somente na mente de Deus.831 Por outro lado, em alguns pontos Gregório mostra-se ser mais um idealista do que o próprio Orígenes. Por exemplo, quando ele afirma que somente criaturas intelectuais e Deus são reais no sentido estrito; o corpo é apenas uma concomitância de qualidades e idéias: fadiga, cor, forma, extensão, etc. A criação corporal, por outro lado, certamente deve ser classificada entre especialidades que nada tem em comum com a Deidade; e ela oferece esta suprema dificuldade para a Razão; a saber, que a Razão não pode ver como o visível surge do invisível, como o corpo sólido surge do intangível, como o finito surge do infinito, como aquilo que é circunscrito por certas porções, onde a idéia de quantidade entra, pode vir do que não tem tamanho, nem proporções, e assim por diante através de cada substância singular do corpo. Mas mesmo acerca disto podemos dizer tanto: i.e. que nenhuma daquelas coisas que atribuímos ao corpo é corpo em si mesmo; nem forma, De virgin. 46; De hom. op. 44; In Cant. Hom. 2.44 (onde são encontradas as palavras: αυτεζουσιος χαρις). Or. Cat. 6; De beat. 5.44. 831 De hom. op. 28; De an. et res.

829

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nem cor, nem fadiga, nem extensão, nem quantidade, nem qualquer outra noção qualificadora; mas cada um delas é uma categoria; é a combinação de todas elas em um todo único que constitui o corpo. Vendo, então, que estas várias qualificações que completam o corpo particular são compreendidas só pelo pensamento, e não pelo sentido, e que a Deidade é um ser pensante, que preocupação pode produzir, para um tal agente pensante, os imagináveis cujas combinações mútuas geram para nós a substância deste corpo?832 Por estas razões, Gregório de Nissa, como Orígenes, é um teólogo difícil de avaliar, pois somos tentados a entendê-lo como estando excessivamente amarrado a categorias neoplatônicas e por isso não fazemos justiça a suas genuínas preocupações teológicas e a sua contribuição para o esclarecimento da doutrina trinitariana. Embora seja difícil determinar quanto da doutrina trinitariana de Gregório é original dele, e quanto ele deriva de seu irmão e mestre, Basílio – uma dificuldade que é aumentada pela impossibilidade de se determinar, com absoluta certeza, qual dos dois foi o autor de alguns tratados muito importantes – ao menos podemos expor a doutrina trinitariana de Gregório e mostrar como suas convicções e interesses neoplatônicos o ajudam a solucionar algumas das dificuldades que seus contemporâneos encontraram, e a alcançar uma clareza maior do que eles. A fim de expor a doutrina trinitariana de Gregório, podemos seguir seus dois tratados Sobre a Santa Trindade833 e Sobre Não Três Deuses834, embora sempre fazendo uso de seu livro Contra Eunomio835, com o qual ele tentou continuar a obra de Basílio, seu irmão mais velho. No tratado Sobre Não Três Deuses, Gregório responde a Ablabio, que propunha a questão de porque, se nos referimos a Pedro, Tiago e João, cuja natureza é a mesma, como três homens, não devemos fazer o mesmo com as três pessoas da Trindade, e nos referirmos a eles como três deuses. Gregório responde que quando falamos de Pedro, Tiago e João como “três homens” estamos falando muito incorretamente, e nos deixamos ser levados por um vício de linguagem. Na verdade, a natureza humana é uma só, e o homem que está em Pedro é o mesmo homem que está em João. Naturalmente, uma explicação como esta se origina diretamente da tradição platônica de Gregório, não importa quão surpreendente isto possa soar para nós que não estamos acostumados a pensar nestes termos. A partir deste ponto, Gregório continua a dizer que, enquanto que um uso incorreto da 832

De an. et res. (NPNF, 2a série, 5:458). Ed. Jaeger, III/I, 3-16; NPNF, 2a série, 5:326-330. 834 Ed. Jaeger, III/I, 37-57; NPNF, 2a série, 5:331-336. 835 Ed. Jaeger, I/II; NPNF, 2a série, 5:33-314. 833


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linguagem é aceitável ao falar da humanidade de Pedro, Tiago e João, esta mesma inexatidão pode ser trágica se aplicada à natureza divina. Negar a unidade essencial de Pedro, Tiago e João é um erro filosófico, ao passo que negar a unidade de Deus é uma impiedade. Em um outro tratado836 Gregório adiciona que é precisamente esta a impiedade daqueles que negam que Jesus é Deus, pois se eles o adoram suas próprias premissas mostra que eles são ímpios, adorando alguém que não é verdadeiro Deus; se eles não o adoram eles são meros “judeus” que se recusam a adorar a Cristo. Além disso, existe uma outra razão porque devemos escolher falar de vários homens e não de vários deuses: as operações de várias pessoas são múltiplas e individuais, enquanto que as operações das três pessoas divinas são sempre comuns às três. Assim, visto que entre os homens a ação de cada um nas mesmas atividades é diferenciada, eles são adequadamente chamados muitos, visto que cada um deles está separado dos outros dentro de seu próprio meio ambiente, segundo o caráter especial de sua operação. Mas no caso da natureza Divina não aprendemos semelhantemente que o Pai faz algo por Si mesmo em que o Filho não trabalha conjuntamente, ou novamente que o Filho tem alguma operação especial separada do Espírito Santo; mas cada operação que se estende de Deus para a Criação, e é denominada conforme nossas concepções variáveis dela, tem sua origem no Pai, e procede através do Filho, e é aperfeiçoada no Espírito Santo. Por esta razão o nome derivado da operação não é dividido com relação ao número daqueles que a realizam, porque a ação de cada um concernente a algo não é separada e peculiar, mas o que quer que aconteça, quer em referência aos atos de Sua providência para conosco, ou ao governo e constituição do universo, acontece pela ação dos Três, porém o que acontece não são três coisas.837 Alguém poderia objetar a isto que “divindade” não é uma operação mas uma essência. Gregório rejeita esta objeção, reivindicando que “divindade” é apenas um nome, e que, como a essência de Deus está além de todo nome, o termo “divindade” não pode descrever Deus.838 A partir do parágrafo citado acima fica claro que a distinção entre as três pessoas divinas não pode ser estabelecida com base em suas relações externas. Gregório adiciona que esta distinção tampouco pode ser estabelecida com base em um subordinacionismo que pressupõe uma diferença de poder ou glória entre as três pessoas. Portanto, a única distinção que pode ser feita deve estar baseada nas relações internas da Trindade. Se, contudo, alguém contesta nosso argumento, sobre a base de que por não admitir a diferença de natureza o leva a uma mistura e confusão das Pessoas, tomaremos para 836

Ad Simplicium de fide (Ed. Jaeger, III/I, 61-67; NPNF, 2a série, 5:337-339). Quod non sint tres dei (NPNF, 2a série, 5:334). Cp. Jaeger, III/I, 47-48. 838 Ibid. 837


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um tal cuidado esta reposta; - que enquanto confessamos o caráter invariável da natureza, não negamos a diferença em relação a causa, e que o que é causado, somente pelo qual aprendemos que uma Pessoa é distinta da outra; - por nossa fé, isto é, que um é a Causa, e um outro é da Causa; e novamente naquilo que é da Causa reconhecemos uma outra distinção. Pois um é diretamente da primeira Causa, e um outro por aquilo que é diretamente da primeira Causa; de modo que o atributo de seu Unigênito reside sem dúvida no Filho, e a interposição do Filho, embora mantenha Seu atributo de ser Unigênito, não exclui o Espírito de Sua relação como natureza do Pai.839 A Cristologia de Gregório não é tão profunda quanto a de seu homônimo de Nazianzo. Mas ele também, em oposição a Apolinário, defende a integridade da natureza humana de Cristo.840 Por outro lado, embora a distinção entre a natureza humana e a natureza divina não desapareça na encarnação, a união é tal que existe uma communicatio idiomatum, isto é, a comunicação de propriedades de uma natureza para a outra. Esta é a razão porque Gregório afirma, como já era costume em sua época, que Maria é a “mãe de Deus”, e não simplesmente “mãe do homem Jesus”.841 Há, contudo, uma certa tendência idealista e docética na afirmação – a qual se tornará comum mais tarde – de que Maria continuou sendo fisicamente uma virgem mesmo após o nascimento de Jesus, “pois este nascimento não destruiu a virgindade.”842 Finalmente, e embora isto não seja nosso principal interesse neste capítulo, uma palavra deve ser dita com relação a teologia mística de Gregório.843 Seu misticismo é tipicamente neoplatônico, e é desenvolvido dentro da estrutura de uma série de passos sucessivos de purificação e ascensão, em um progresso constante e perpétuo. Este aspecto da teologia de Gregório influenciou grandemente o pensamento do autor desconhecido de algumas obras que circularam mais tarde sob o nome de Dionísio, o Areopagita. Através dele, Gregório fez o misticismo medieval sentir sua influência – um assunto que será discutido no segundo volume desta História. Conclusão Ao lado de suas grandes realizações em outros campos da vida eclesiástica – liturgia e administração no caso de Basílio, retórica e poesia no de Gregório de Nazaianzo, e misticismo no de Gregório de Nissa – a obra dos três grandes Capadocianos consistiu em elucidar, definir 839 840

841

Ibid. (NPNF, 2a série, 5:336). Cp. Jaeger, III/I, 55-56. Ver o Capítulo XVI.

Ep. 3.24 (Ep. 17 em NPNF). De virg. 19 (Ed. Jaeger, VIII/I, 323-324; NPNF, 2a série, 5:365). 843 Ver Jean Daniélou, Platonisme et Théologie mystique: Doctrine spirituelle de saint Grégoire de Nysse (Paris: Aubier, 1944). 842


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e defender a doutrina trinitariana. Eles colaboraram para a derrota do Arianismo bem como dos pneumatomacianos. Basílio pôs os fundamentos para a obra dos outros dois, e também divulgou a doutrina trinitariana através de suas inovações litúrgicas. Gregório de Nazianzo colocou os melhores recursos da linguagem ao serviço da fé nicena, e compôs hinos que contribuíram para a popularização desta doutrina, como tinha sido feito anteriormente pelos arianos. Gregório de Nissa, edificando sobre os fundamentos de Basílio e Gregório de Nazianzo, deu maior precisão e coerência lógica a sua doutrina. Devemos perguntar se nestes desenvolvimentos os Capadocianos foram realmente fiéis à fé nicena, ou, ao contrário, sua exposição da doutrina trinitariana, embora reivindicasse defender e expor a doutrina de Nicéia, na realidade abandonava a intenção dos bispos reunidos no Grande Concílio. Esta última alternativa tem sido exposta e defendida por vários historiadores do pensamento cristão, que vêem uma diferença marcante entre os “antigos nicenos” e os “novos nicenos”. Um dessses historiadores é Harnack, que acredita que a fórmula capadociana é uma forma aparentemente nicena de expressar a antiga doutrina do homoiousios – isto é, que o Pai e o Filho não são da mesma substância, mas de substâncias similares. Assim, Harnack afirma categoricamente que “não foi o ‘homousios’ que finalmente triunfou, mas pelo contrário a doutrina homoiusiana, que fixou os termos de acordo com o ‘homousios’.”844 Não há dúvida de que existem razões suficientes que justificam a distinção entre os “antigos” e os “novos” nicenos. Entre aqueles presentes em Nicéia haviam muitos que não entenderam o ponto em questão, e alguns dos que ali condenaram Ario e seus seguidores de fato eram monarquianos, cuja própria doutrina foi mais tarde condenada. Mesmo se dermos o nome de “antigos nicenos” ao grupo que se reuniu mais tarde ao redor de Atanásio, não há dúvida de que existem grandes diferenças entre eles e os Capadocianos. Mas estas diferenças não devem ser exageradas ao ponto de eles tornarem-se uma oposição que na realidade não existiu. Algumas das diferenças entre Atanásio e os Capadocianos são devidas a seu contexto histórico diferente, e outras a seus métodos teológicos diferentes. Atanásio e os Capadocianos tiveram que enfrentar oponentes que, embora fossem todos arianos, contudo eram diferentes. Atanásio enfrentou o Arianismo quando suas conseqüências finais ainda não tinham sido manifestas, e portanto era necessário refutá-lo e condená-lo mostrando o que ele percebia como conseqüências negativas para a fé cristã. Os Capadocianos, por outro lado, se opuseram a um Arianismo maduro cujos frutos já eram conhecidos. Portanto, sua tarefa não era tanto tentar descobrir as conseqüências do Arianismo, mas refutar estas conseqüências e 844

HD, 4:82.


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desenvolver uma alternativa. Assim, em uma boa medida, a distância que separa os “antigos” dos “novos” nicenos, pode e deve ser explicada com base na distância que separa os “antigos arianos” dos “novos”. Além disso, os Capadocianos diferiam de Atanásio quanto ao método teológico. O grande bispo alexandrino aplicou-se a todas as questões que tinham a ver com a divindade do Filho e suas conseqüências soteriológicas. Os Capadocianos se inclinaram a fazer uso de argumentos lógicos e escriturísticos, sem um esforço constante e consciente para relacionar a doutrina trinitariana com a soteriologia. 845 Para eles, o que está em jogo é uma doutrina fundamental do Cristianismo, em vez de um ponto de partida necessário para a soteriologia cristã. A batalha está quase no fim, e a tarefa dos Capadocianos consiste em sistematizar a fé da Igreja e expô-la com tanta clareza lógica quanto possível. Esta provavelmente é uma das razões porque, com Gregório de Nissa, encontramo-nos novamente na atmosfera origenista que Atanásio parecia ter sentido anteriormente. Mas o que Harnack quer dizer com seu claro contraste entre as duas gerações nicenas é muito mais do que isto. De acordo com ele, a fórmula capadociana é uma traição da fé nicena. Em Nicéia, foi declarada a unidade de substância entre o Pai e o Filho. Os Capadocianos – ao afirmar que existe em Deus uma ousia e três hypostases, e que a unidade de Deus é semelhante àquela que existe entre Pedro, Tiago e João – interpretaram a unidade de Deus como uma comunhão de natureza, e assim eles reintroduziram sob o disfarce do homoousios o que de fato era doutrina homoiousiana. Esta avaliação da obra dos capadocianos parece inaceitável por dois motivos: ela não interpreta corretamente a decisão nicena, e também erra em seu entendimento sobre a doutrina dos Capadocianos. Com relação ao Concílio de Nicéia, já temos salientado que sua intenção não era proclamar a unidade da substância divina, mas antes afirmar a divindade do Filho. Com relação aos Capadocianos, sua doutrina de que a unidade de Deus é análoga àquela que existe entre três pessoas, não está muito longe de Nicéia quanto parece a primeira vista, uma vez que nos lembremos que para Gregório de Nissa, dado a suas pressuposições filosóficas, a essência humana que é comum a Pedro, Tiago e João é mais real do que os três indivíduos em si mesmos. Esta doutrina capadociana é colocada dentro da estrutura de um realismo platônico, e é incorreto interpretá-la dentro do contexto de nosso nominalismo moderno.

845

Deveríamos notar, contudo, que quando chegaram à questão sobre a alma humana de Cristo, os papeis se inverteram, e Atanásio falhou em ver o problema soteriológico em jogo, enquanto que os Capadocianos o colocaram no centro da discussão.


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XV. A TEOLOGIA TRINITARIANA NO OCIDENTE O Arianismo não era uma ameaça tão grande no Ocidente quando no Oriente. Parece que isto era devido a três razões principais: a tradição trinitariana do Cristianismo latino, sua ocupação com outros assuntos mais práticos que pareciam mais urgentes, e a influência do Estoicismo. A primeira razão é óbvia quando nos lembramos que o Ocidente já tinha desenvolvido a fórmula trinitariana com Tertuliano, que prevaleceria através de toda sua história: “Uma substância e três pessoas”. Isto foi unido à inclinação prática do Ocidente latino, impedindo com isso a controvérsia ariana de tornar-se um problema tão comum quanto era no Oriente. Finalmente, o fato de que no Ocidente o Estoicismo era a filosofia mais comum, também pode ter contribuído para evitar algumas das armadilhas do Neoplatonismo Oriental. Nos capítulos anteriores vimos como as discussões ocidentais sobre a Trindade, em sua preocupação em refutar o Modalismo, geralmente se inclinava para o Subordinacionismo. Mas isto nunca alcançou o extremo do Arianismo, e isto também pode ter sido devido, ao menos em parte, ao fato de que a influência da teologia alexandrina, com sua ênfase na transcendência divina, foi pouco sentida no Ocidente. Quando Deus é concebido como um ser absolutamente transcendente, somos tentados a ver o Verbo como um ser intermediário entre Deus e o mundo, como ocorre com o Arianismo. A influência estóica, com sua ênfase na imanência divina, contribuiu deste modo para salvar o Ocidente das ruínas do Arianismo. Isto não significa, contudo, que o Arianismo e a controvérsia trinitariana não tenha penetrado no Ocidente. Houveram ocasiões e lugares em que o Arianismo fez sentir sua influência. Durante o reinado de Constâncio, todo o Ocidente sentiu a pressão imperial em apoio ao Arianismo, e até mesmo o Papa Libério, bem como o idoso Ósio de Córdoba, foram forçados a assinar documentos que contradiziam a fé nicena. Contudo, mesmo durante este período, o Arianismo foi capaz de fazer forte progresso apenas nas zonas fronteiriças. 846 Alguns anos mais tarde, quando Justina tentou impor o Cristianismo naquela parte do Império, a qual era governada por seu filho Valentiniano II, a reação popular – sob a liderança muito hábil de Ambrósio de Milão – mostrou claramente que o Arianismo não tinha vitalidade interna no Ocidente. Apesar disto, o Ocidente produziu diversas obras nas quais tentou refletir sobre os problemas envolvidos na controvérsia que estava assolando o Oriente. Inicialmente estas obras seguiram o esboço geral daquelas escritas no Oriente, e algumas delas eram pouco mais do que versões revisadas de obras gregas. Mas o Ocidente lentamente desenvolveu suas próprias formas de discutir e expressar a doutrina trinitariana, e este desenvolvimento 846

Ver M. Meslin, Les Ariens d’Occident, 335-430 (Paris: Editions du Seuil, 1967), que estuda particularmente as comunidades arianas ao longo das margens do Danúbio.


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alcançou seu clímax no tratado Sobre a Trindade de Santo Agostinho. No início da segunda metade do quarto século, Hilário de Poitiers escreveu doze livros Sobre a Trindade, os quais claramente refletem as influências que ele recebera durante seu exílio no Oriente.847 Sua discussão sobre a Trindade não tem grande originalidade, e sua importância jaz mais em ter oferecido ao mundo de fala latina um tratado que resumia as questões em jogo na controvérsia ariana e os argumentos em favor da fé nicena.848 Santo Ambrósio, o grande campeão da fé nicena na Itália setentrional, não tem algo novo a contribuir para a doutrina trinitariana. Ele defendeu a fé nicena principalmente como um líder eclesiástico e pregador muito hábil. Mas quando o Imperador Graciano pediu-lhe para escrever um tratado sobre o Espírito Santo, Ambrósio simplesmente tomou a obra de Basílio sobre o mesmo assunto e apresentou uma versão livre e uma adaptação inadequada dela.849 Um outro oponente ocidental do Arianismo é Lúcifer de Calaris, na Sardenha.850 Em suas obras, escritas no latim do povo, ele ataca abertamente o Imperador Constâncio, e até mesmo faz algumas observações ofensivas sobre ele. Depois de sua morte, aqueles que não aceitavam a naturalidade com que a Igreja tinha restabelecido padrões arianos, tomando-os como seus símbolos, foram chamados de “luciferianos”. Carente de conteúdo doutrinário, esta seita não teve vida longa, embora tenha produzido alguns mestres e escritores hábeis – entre eles o mais digno de nota é Gregório de Elvira, que escreveu um tratado Sobre a Fé Ortodoxa Contra os Arianos.851 Foi no início do quinto século, com Agostinho, que o Ocidente demonstrou a profundidade e a originalidade de que era capaz. Em seus quinze livros Sobre a Trindade (399-419), Agostinho determinou o caminho que a teologia trinitariana ocidental seguiria, de modo que as diferenças posteriores entre a teologia trinitariana oriental e ocidental são provenientes desta obra. Por isso é necessário discutir aqui a doutrina trinitariana de 847

Sua produção literária e teológica, assim como sua carreira, antes de seu exílio foram habilmente estudadas por J. Doignon, Hilaire de Poitiers avant l’exil: Recherches sur la naissance, l’enseignement et l’épreuve d’une foi épiscopale en Gaule au milieu du IVe siècle (Paris: Étides augustiniennes, 1971). 848 Pierre Smulders, La doctrine trinitaire de S. Hilaire de Poitiers (Roma: Gregorian University Press, 1944); Jules Lebreton, “A Propos de la doctrine Trinitaire de saint Hilaire de Poities”, RScRel, 33 (1946), 484-489; P. Löffler, “Die Trinitätslehre des Bischofs Hilarius von Poitiers zwischen Ost und West”, ZschrKgesch, 71 (1960), 26-36; C. F. A. Borchardt, Hilary of Poitier’s Role in the Arian Struggle (Gravenhage: M. Nijhoff, 1966). 849 Cp. Ludwig Herrmann, “Ambrosius von Mailand als Trinitätstheologe”, ZeitschrKgesch, 69 (1958), 197-218, que reivindica que Ambrósio inclinava-se para um entendimento homoiousiano da Trindade. 850 A bibliografia mais detalhada que conheço é a encontrada em G. Cerretti, Lucifero vescovo di Cagliari ed il suo “Moriendum esse pro Filio Dei” (Pisa: Nistri-Lischi, 1940). Sobre sua doutrina trinitariana ver: C. Zedda, “La dottrina trinitaria di Lucifero di Cagliari”, DivThom, 52 (1949), 276-329. 851 As introduções gerais a sua obra e teologia são as seguintes: Angel Custodio Vega, ´Uma gran figura literaria espanõla del siglo IV”, CD, 156 (1944), 205-258; J. Collantes Lozano, San Gregorio de Elvira: Estudio sobre su eclesiología (Granada: Imp. F. Román Camacho, 1954); F. J. Buckley, Christ and the Church According to Gregory of Elvira (Roma: Gregorian University Press, 1964).


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Agostinho, embora a discussão global desta teologia será parte do segundo volume desta História. Agostinho aceitava a doutrina trinitariana como uma matéria de fé que está além de toda dúvida. Portanto, sua obra Sobre a Trindade não é dedicada, como a maior parte de seus predecessores, a oferecer provas da divindade do Filho e do Espírito Santo, nem a provar sua unidade essencial com o Pai. Basicamente, Agostinho constrói sobre o fundamento lançado pelos três Capadocianos, embora ele não conhecesse sua teologia diretamente, mas apenas através de Hilário. Como os Capadocianos, Agostinho deixa claro que a distinção entre as pessoas852 da Trindade não é devida a suas ações externas, mas a seu relacionamento interno.853 Isto não significa que é impossível ou completamente incorreto aplicar a uma das pessoas divinas uma ação particular da Trindade, como é feito quando afirmamos que “O Verbo se fez carne”. O que realmente ocorre é que as limitações de nosso vocabulário e de nossa mente não nos permitem expressar ou entender como a Trindade como um todo age em cada uma das obras de Deus, e por isso nós aplicamos estas obras a uma das pessoas divinas. Isto é o que os teólogos medievais chamariam de “apropriações”, 854 e sua justificação é encontrada nas seguintes palavras de Santo Agostinho: Mas eu corajosamente diria, que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, de uma e a mesma substância, Deus o Criador, a Trindade Onipotente, trabalha indivisivelmente; mas que isto não pode ser indivisivelmente manifestado pela criatura, que é muito inferior, e menos ainda por criaturas corpóreas: do mesmo modo como o Pai, o Filho e o Espírito Santo não podem ser chamados por nossas palavras, que certamente são sons corpóreos, exceto em seu próprio intervalo de tempo peculiar, dividido por uma separação distinta, intervalos que as próprias sílabas de cada palavra ocupam. Visto que em sua própria substância na qual eles estão, os três são um, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, exatamente o mesmo, não por noção temporal, acima de toda criatura, sem qualquer intervalo de tempo e lugar, e ao mesmo tempo um e o mesmo de eternidade a eternidade, por assim dizer a própria eternidade, o que não é sem verdade e misericórdia. Mas, em minhas palavras, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são separados, e não podem ser chamados ao mesmo tempo, e ocupar seu próprio lugar peculiar separadamente em letras visíveis. E como, quando eu chamo minha memória, intelecto e vontade, cada nome se refere a cada um separadamente, mas porém cada 852

Embora Agostinho evite usar o termo “pessoa” ao referir-se à Trindade. Cp. R. Boigelot, “Le mot ‘personne’ dans les écrits trinitaires de saint Augustin”, NRT, 57 (1930), 5-16. 853 José Morán, “Las relaciones divinas según San Agustín”, Aug, 4 (1959), 33-72. 854 Ver A. Chollet, “Appropriations aux personnes de la Sainte Trinité”, DTC, 1:1708-1717.


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um é expresso por todos os três; pois não há um destes três nomes que não é expresso juntamente tanto por minha memória quanto por meu intelecto ou por minha vontade [pela alma como um todo]; assim a Trindade trabalhou junta tanto na voz do Pai, quanto na carne do Filho e na pomba do Espírito Santo, embora cada uma destas coisas é citada separadamente para cada pessoa. E por esta similitude ser em algum grau discernível, que a Trindade, que é inseparável em si mesma, é manifesta separadamente pela aparência da criatura visível; e que a operação da Trindade também é inseparável individualmente em cada uma daquelas coisas que são ditas pertencer propriamente à manifestação quer do Pai, quer do Filho, ou do Espírito Santo.855 Embora Agostinho siga os teólogos gregos em sua discussão da doutrina trinitariana, teólogos como os Capadocianos tendem a tomar como seu ponto de partida a diversidade das pessoas ou hypostases, e a partir dela mover-se para a unidade de essência ou ousia, enquanto que Agostinho, por outro lado, começa com a unidade essencial de Deus, e a partir dela movese para a distinção de pessoas. Ele nunca entendeu inteiramente o que os Capadocianos queriam dizer por hypostasis – que ele traduzia como substantia.856 Mas o que o separa dos teólogos gregos é mais do que uma diferença puramente verbal. A diferença é antes que Agostinho não concede à diversidade de pessoas a importância que ela tinha nos Capadocianos. Sua maneira de entender a unidade e a simplicidade divina o leva a rejeitar toda tentativa de falar de Deus como um ser “triplo”, como tinha sido feito por Mário Victorino, um intelectual famoso que se convertera ao Cristianismo e a quem Agostinho admirava de outra maneira.857 Tampouco, visto que Ele é uma Trindade, deve ser pensado por isso que Ele é triplo; caso contrário o Pai sozinho, ou o Filho sozinho, serão menos do que o Pai e o Filho juntos. Embora, de fato, seja difícil ver como podemos dizer, ou o Pai sozinho, ou o Filho sozinho; visto que tanto o Pai está com o Filho, quanto o Filho com o Pai, sempre e inseparavelmente: não que ambos sejam o Pai, ou ambos sejam o Filho; mas porque eles sempre estão em relação um com o outro e nenhum nem outro está sozinho.858 Além disso, mesmo o termo persona, que por sua vez era normalmente aceito no 855

De Trin. 4.21.30 (NPNF, 1a série 3:85-86). Ibid., 5.8.10 (NPNF, 1a série 3:92): “De fato eles também usavam a palavra hypostasis; mas eles objetivavam atribuir uma diferença, não sei qual, entre ουσια e hypostasis: de modo que a maioria de nós que lidamos com estas coisas na língua grega, estamos acostumados a dizer, µιαν ουσιαν, τρεις υποστασεις, ou em Latim, uma essência, três substâncias.” 857 Cp. Paul Henry, “The Adversus Arium of Marius Victorius, the First Systematic Exposition of yhe Doctrine of the Trinity”, JTS, n.s. 1 (1950), 42-55. 858 De Trin., 6.7.9 (NPNF, 1a série, 3:101). 856


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discurso trinitariano ocidental com o prestígio dado a ele por uma longa tradição, é simplesmente um meio convencional de expressar o que é inexprimível. “Portanto, o que resta, exceto que confessemos que estes termos nascem da necessidade de falar, quando abundante raciocínio foi requerido contra os artifícios ou erros dos hereges?”859 De qualquer modo, seria muito mais correto falar de “relações”, pois isto é o que queremos dizer quando falamos de diferentes “pessoas”. Mas em Deus nada é dito ser de acordo com um acidente, porque Nele nada é mutável; e porém tudo que é dito, não é dito segundo a substância. Pois é dito em relação a algo como o Pai em relação ao Filho e o Filho em relação ao Pai, que não é acidente; porque tanto um é sempre Pai como o outro é sempre Filho: porém “sempre” não diz respeito ao tempo em que o Filho nasceu [natus], de modo que o Pai não deixa de ser o Pai porque o Filho nunca deixa de ser o Filho, mas porque o Filho sempre foi nascido, e nunca começou a ser o Filho. Mas se Ele tivesse começado a ser em qualquer tempo, ou em qualquer tempo deixasse de ser, o Filho, então Ele seria chamado de Filho segundo um acidente. Mas se o Pai, visto que Ele é chamado de Pai, fosse chamado assim em relação a Si mesmo, não em relação ao Filho; e o Filho, visto que Ele é chamado de Filho, fosse chamado assim em relação a Si mesmo, não em relação ao Pai; então tanto um seria chamado Pai, quanto o outro seria chamado Filho, segundo a substância. Mas porque o Pai não é chamado Pai exceto em que Ele tem um Filho, e o Filho não é chamado Filho exceto em que Ele tem um Pai, estas coisas não são ditas segundo a substância; porque cada um deles não é chamado assim em relação a Si mesmo, mas os termos são usados reciprocamente e em relação um ao outro; nem ainda segundo um acidente, porque tanto o ser chamado de Pai, quanto o ser chamado de Filho, é eterno e imutavelmente a eles. Porque, embora ser o Pai e ser o Filho seja diferente, todavia sua substância não é diferente; porque eles são assim chamados, não segundo a substância, mas segundo a relação, qualquer relação, contudo, não é acidente, porque ela não é mutável.860 Esta teoria das relações divinas é o ponto de partida de Agostinho para suas duas grandes contribuições ao pensamento trinitariano: sua teoria da processão do Espírito Santo, e sua doutrina dos vestígios da Trindade nas criaturas. Teólogos anteriores encontraram dificuldade para expressar a diferença que existe entre a geração do Filho e a processão do Espírito Santo. Os arianos tiraram proveito destas dificuldades, perguntando como é possível que, embora tanto o Filho quanto o Espírito Santo 859 860

Ibid., 7.4.9 (NPNF, 1a série, 3:110). Ibid., 5.5.6. (NPNF, 1a série, 3:89).


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derivam seu ser do Pai, um é chamado de Filho e o outro não é. Agostinho começa confessando sua ignorância com relação ao modo adequado de distinguir entre a geração do Filho e a processão do Espírito Santo. Mas ele propõe mais tarde a teoria – que se tornaria comum no Ocidente – de que o Espírito Santo é o laço de amor que existe entre o Pai e o Filho. Portanto o Espírito Santo, o que quer que ele seja, é algo comum ao Pai e ao Filho. Mas esta comunhão em si mesma é consubstancial e co-eterna; e se ela pode adequadamente ser chamada de amizade, o deve ser; mas é mais convenientemente chamado de amor. E isto também é uma substância, visto que Deus é uma substância, e “Deus é amor”, como está escrito.861 Este entendimento sobre a processão do Espírito Santo é importante por sua conseqüências posteriores, pois o debate medieval entre os teólogos do oriente e do ocidente com relação a cláusula Filioque teve suas raízes nele. 862 Outra contribuição de Agostinho para o desenvolvimento do pensamento trinitariano é sua teoria sobre a vestigia Trinitatis – os vestígios ou sinais da Trindade encontrados em suas criaturas. Em todas as coisas criadas, e especialmente na alma humana, podemos ver a marca da natureza triuna do Criador. Isto não significa simplesmente que algumas coisas da ordem natural podem ser usadas como meios para explicar ou ilustrar a doutrina trinitariana – um procedimento muito comum nos teólogos anteriores – mas antes que todas as coisas, pelo simples fato de que elas foram criadas pelo Deus triuno carregam a marca da Trindade. Mais tarde esta doutrina seria sistematicamente desenvolvida pelos teólogos medievais, que fariam distinção entre sombras, vestígios, imagens, e semelhanças da Trindade em várias criaturas.863 O próprio Agostinho, contudo, centralizou sua atenção sobre a criatura humana que, segundo a Escritura, foi feita à imagem e segundo a semelhança da Trindade – sendo esta a razão porque, em Gênesis 1:26, é usada a forma plural: “Façamos o homem”.864 Embora Agostinho use várias trilogias diferentes para mostrar a marca da Trindade na alma humana, a mais comum, e aquela que mais tarde teve uma carreira mais notável por toda a história do pensamento cristão, é aquela que se refere à memória, ao entendimento e a vontade. Visto que, então, estes três, memória, entendimento e vontade, não são três vivos, mas 861

Ibid., 6.5.7. (NPNF, 1a série, 3:100). Talvez Agostinho tenha extraído esta doutrina de Mário Victorino, para quem o Espírito Santo é um laço como este. Cp. PL, 8:1146. 862 Infra, 2:127-130. 863 Ver, por exemplo, a obra Itinerarium mentis in Deum de Santo Boaventura. 864 Uma interpretação que não é original em Santo Agostinho, mas antes é lugar comum na literatura patrística primitiva. Cp. Irineu, Adv. haer. 4. Proem.; Tertuliano, De res. car. 6; Novaciano, De Trin. 17; 26. Entre os gnósticos primitivos, era comum o uso deste texto como uma prova da participação de vários anjos ou poderes na obra da criação.


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uma vida; nem três mentes, mas uma mente; certamente segue que tampouco são três substâncias, mas uma substância. Visto que a memória, que é chamada de vida, mente e substância, é chamada assim em relação a si mesma; mas é chamada de memória, relativamente a algo. E deveria dizer o mesmo também sobre o entendimento e sobre a vontade, visto que eles são chamados entendimento e vontade relativamente a algo; mas cada um em relação a si mesmo é vida, mente e essência. E por isso estes três são um, visto que eles são uma vida, uma mente, uma essência; e o que quer que eles sejam separadamente chamados em relação a eles mesmos, eles são chamados juntos também, não pluralmente, mas no número singular. Mas eles são três, visto que no que eles são aplicados mutuamente um ao outro; e se eles não fossem iguais, e isto não somente um a um, mas também um para todos, eles certamente não poderiam conter mutuamente um ao outro; pois não apenas um é contido por cada um, mas todos por cada um. Pois me recordo que tenho memória e entendimento e vontade; e entendo isto que entendo; desejo e relembro; e desejo isto que desejo, relembro e entendo; e relembro juntamente com toda minha memória, entendimento e vontade. Pois aquilo de minha memória que eu não me lembro, não está em minha memória; e nada está tanto na memória quanto a memória em si mesma. Portanto, eu recordo toda a memória.865 Assim, Agostinho usa os relacionamentos interiores das faculdades da alma – e não há dúvida de que o bispo de Hipona é uma pessoa de profunda sensibilidade psicológica – a fim de tentar entender, na medida do possível, os relacionamentos internos dentro da Trindade. Em resumo, podemos dizer que Agostinho apontou o caminho que a teologia trinitariana ocidental seguiria mais tarde, pelo menos em três pontos fundamentais: sua insistência na unidade divina acima da diversidade de pessoas; sua doutrina da processão do Espírito; e sua teoria da vestigia Trinitatis, especialmente no campo da psicologia humana.866 O primeiro destes pontos, embora evitando o perigo do triteísmo que existia em outros teólogos, chegou muito perto ao do Sabelianismo que os antigos bispos orientais conservadores temiam que seria o resultado do homoousios niceno. O segundo ponto contribuiu grandemente para esclarecer e apontar o caminho para a doutrina ocidental sobre o Espírito Santo, e sua conseqüência mais importante seria a controvérsia posterior com relação ao Filioque. Finalmente, o terceiro ponto foi supremo na teologia medieval ocidental, e finalmente tronou-se a estrutura básica de uma teologia mística que tentava chegar a Deus através da 865

De Trin. 10.11.18 (NPNF, 1a série, 3:142). Cp. Michael Schmaus, “Das Fortwirken der augustinischen Trinitätspsychologie bis zur karolingischen Zeit”, Vitae et veritati: Festgabe für Karl Adam (Düsseldorf: Patmos-Verlag, 1956), 44-56. 866


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contemplação da marca da Trindade nas criaturas. Enquanto Agostinho estava trabalhando no problema trinitariano, o Oriente estava começando a mexer com um novo objeto de controvérsia: a pessoa do Salvador. O que tinha sido discutido até aqui foi principalmente a divindade do Filho. Agora a questão principal será como esta divindade se relaciona com a humanidade em Jesus Cristo. Este é o tema principal das controvérsias cristológicas a que devemos voltar agora.


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XVI. OS PRIMÓRDIOS DAS CONTROVÉRSIAS CRISTOLÓGICAS As controvérsias que estudamos giraram em torno de questões sobre a divindade do Filho e sobre o modo pelo qual sua divindade o relaciona com o Pai e com o Espírito Santo. Há uma outra questão que os teólogos deveriam fazer a si mesmos, uma vez que eles consideravam a divindade do Filho estabelecida: Como a divindade e a humanidade estão relacionadas dentro de Jesus Cristo? Mesmo nos períodos anteriores do pensamento cristão, vemos algumas das possíveis respostas a esta questão. Por um lado, é possível afirmar a divindade de Cristo e negar sua humanidade. Esta solução, chamada de Docetismo, era condenada pela grande maioria dos cristãos, pois ela tornava sem sentido a doutrina cardeal da encarnação. Por outro lado, é possível afirmar a humanidade de Cristo e classificar a revelação de Deus nele como o resultado de sua excelência moral. Esta posição, que provavelmente era a dos ebionitas, também não satisfazia a sensibilidade religiosa da maioria dos cristãos, que afirmavam categoricamente que “Deus estava em Cristo”. Muitos cristãos assumiram uma posição em algum lugar entre estas duas posições, embora às vezes inclinando-se em uma direção ou em outra. Em algumas ocasiões – como com Paulo de Samosata – eles se aproximavam de um ou de outro extremo e geralmente eram rejeitados. Mas os teólogos cuja Cristologia era mais ortodoxa – Inácio, Irineu, Orígenes e até mesmo Tertuliano – realmente não tentaram chegar a definições precisas com relação a união do humano e do divino em Jesus Cristo. Durante o quarto século, e especialmente no início da controvérsia ariana, também houve muito interesse nas questões trinitarianas para que os teólogos dessem atenção à Cristologia em si. Por exemplo, embora a Cristologia de Ario fosse muito diferente daquela que a Igreja Ocidental considerava ortodoxa desde os tempos de Tertuliano, e igualmente, da de alguns dos bispos orientais que encontraram-se em Nicéia – Eustátio de Antioquia, entre outros – o credo niceno não diz uma palavra contra sua Cristologia.867 Enquanto eles debatiam a questão sobre a divindade do Salvador, quem se sentiria inclinado a refletir sobre o relacionamento entre esta divindade e sua humanidade? Mas a controvérsia trinitariana inevitavelmente levaria ao debate cristológico. O Arianismo, objetivando fazer do Logos um ser sujeito a mudança, desenvolveu uma Cristologia para sustentar uma posição como esta.868 Assim, logo que os últimos teólogos 867

Isto não quer dizer que Ario ou Atanásio tinham uma Cristologia plenamente desenvolvida no sentido de que eles negavam explicitamente que Cristo tinha uma alma humana, mas apenas que eles tomavam tal negação como certa. Cp. William P. Haugaard, “Arius: Twice a Heretic?” CH, 29 (1960), 251-263. 868 Aloys Grillmeier, Christ in Christian Tradition, pp 190-192, argumenta que o relacionamento entre o pensamento trinitariano e cristológico dentro do Arianismo era o contrário do que é expresso aqui. Esta interpretação não parece, ao presente autor, fazer justiça aos textos existentes, especialmente visto que Atanásio, Apolinário e outros que sustentavam uma Cristologia similar eram anti-arianos.


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nicenos tiveram tempo para refletir sobre a pessoa de Jesus Cristo, eles julgaram ser necessário refutar, não apenas a doutrina sobre o Verbo dos arianos, mas também sua Cristologia. Além disso, através dos anos cada um dos principais centros intelectuais e doutrinários do Cristianismo tornou-se acostumado, quase inconscientemente, a formular e solucionar a questão cristológica de um modo tipicamente seu. Estes centros eram o Ocidente, Antioquia e Alexandria. No Ocidente, as doutrinas básicas do dogma cristológico foram estabelecidas desde o tempo de Tertuliano. Mais de um século antes do Concílio de Nicéia, Tertuliano tinha enfrentado o problema da dualidade de naturezas em Cristo, e o modo pelo qual estas duas “substâncias” – como ele as chamaria – estão unidas em uma única pessoa. Sua solução, embora careça da clareza e precisão que seriam obtidas somente através de longa controvérsia, é definitivamente superior à maioria das proposições do quarto e quinto séculos, pois Tertuliano está consciente da necessidade de insistir na divindade do Verbo e ao mesmo tempo afirmar a humanidade integral de Jesus Cristo, incluindo uma alma racional. 869 A fórmula de Tertuliano, de que em Cristo duas substâncias foram unidas em uma única pessoa, não foi aceita imediatamente pelos teólogos ocidentais, muitos dos quais seguiam sua doutrina das “duas naturezas” mas não aproximavam-se de sua referência à unidade de “uma pessoa”.870 Sua Cristologia, contudo, era basicamente a de Tertuliano, com sua insistência na realidade das duas naturezas, e em sua união de tal modo que existe entre elas uma communicatio idiomatum real. Mais tarde, Agostinho, que muito cedo ganhou preeminência como o grande mestre do Ocidente, recuperou o termo “persona” em seu contexto cristológico e com isso levou o Ocidente novamente à fórmula esquecida de Tertuliano das duas naturezas em uma pessoa.871 Assim, o Ocidente desenvolveu uma posição intermediária entre a confusão do humano e do divino em Cristo, e sua extrema distinção. Portanto, enquanto as controvérsias cristológicas se alastravam no Oriente, o Ocidente as olhava com interesse, mas sem um envolvimento profundo, pois a disputa nunca foi um problema crucial no Ocidente. Quando foi alcançado um acordo e a controvérsia acabou, foi a velha fórmula de Tertuliano que serviu como um elo para unir as teorias divergentes. No Oriente, a situação era diferente da situação no Ocidente, pois as fileiras estavam divididas em duas tendências cristológicas divergentes que não poderiam senão colidir: a antioquiana e a alexandrina. Não devemos pensar, contudo, que estas duas tendências devem 869

De carne Christi, 13. Tarsicius J. van Bavel, Recherches sur la christologie de saint Augustin (Fribourg, Switzerland: Editions Universitaires, 1954), p. 13. 871 Ibid., pp. 25-26.

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ser totalmente identificadas com as cidades pelas quais elas são chamadas; antes, é mais uma questão do conflito entre a teologia de inclinação helenista, centralizada em Alexandria, mas que tinha seus representantes até mesmo em Antioquia; e uma teologia centralizada em Antioquia e com um forte elemento sírio, que enfatizava as narrativas do Evangelho e a verdadeira humanidade de Jesus. Enquanto que os teólogos em Alexandria eram praticamente um grupo homogêneo, aqueles em e ao redor de Antioquia estavam divididos em dois ramos: um modelado em Alexandria, e o outro tipicamente antioquiano. Por esta razão a cidade de Antioquia tornou-se freqüentemente o campo de batalha entre os dois grupos, ao passo que Alexandria nunca foi invadida pelos ensinos antioquianos. Por volta da metade do terceiro século estas tendências divergentes já existiam em Antioquia. De fato, a controvérsia entre Paulo de Samosata e seus oponentes foi um dos primeiros episódios na grande batalha que dividiria a cristandade oriental um século e meio mais tarde. Embora Paulo de Samosata prestasse pouco serviço ao partido sírio por exagerar sua posição e assim dar ocasião a Malchion e ao partido origenista de condená-lo, isto não encerrou a tradição síria em Antioquia. Deste modo, não é surpresa que no começo do quarto século, com Eustátio de Antioquia, o partido sírio conseguisse novamente o controle do bispado. Com Eustátio a história de Paulo se repete, e novamente, embora agora com menos razão, os seguidores sírios de Orígenes – que neste caso eram lucianistas e, portanto, defensores da posição ariana – com a ajuda de Eusébio da Nicomédia, condenaram e depuseram um bispo de tendências síria e anti-origenista.872 Vamos parar por um momento para examinar a Cristologia de Eustátio.873 Nela encontramos as características fundamentais que mais tarde iriam separar a escola antioquiana da de Alexandria. Como Paulo de Samosata, Eustátio cria que a divindade a ser encontrada em Jesus Cristo não era pessoal – uma doutrina logo abandonada por seus sucessores na escola antioquiana. Ele estava interessado em salvaguardar a realidade da humanidade de Cristo, e procurava alcançar este fim distinguindo claramente entre o divino e o humano nele, às custas da verdadeira união das duas naturezas. Assim, a união do divino e do humano em Cristo era devida à combinação da vontade humana com a divina, de tal modo que a primeira sempre deseja o mesmo que a última. Além do mais, Jesus era um verdadeiro homem, com corpo e alma humanos, que realmente cresceu e se desenvolveu, exatamente como os outros seres humanos. Em Cristo, a “Sabedoria” impessoal de Deus habitava como em um templo, mas a personalidade era humana. 872

Sobre a condenação de Eustátio, ver o Cap. XII. Robert V. Sellers, Eustathis of Antioch and His Place in the Early History of Christian Doctrine (Cambridge: Cambridge University Press, 1928), pp. 100-120.

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Esta tendência de enfatizar a distinção entre as duas naturezas de Cristo, e igualmente a genuinidade de sua humanidade, persiste nos seguidores de Eustátio. Entre eles, é suficiente mencionar brevemente Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuéstia. Diodoro de Tarso foi um dos mais famosos teólogos de seu tempo, e entre seus discípulos podemos encontrar líderes célebres como Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Seus tratados, contudo, desapareceram, destruídos por aqueles que viam neles os primórdios do Nestorianismo, e permaneceram apenas alguns fragmentos seus citados em obras muito afortunadas.874 De qualquer forma, sabemos que a grande maioria de sua obra literária consistia em comentários da Bíblia, e que neles Diodoro seguia a exegese histórica e gramatical que Luciano de Antioquia tinha implantado nesta cidade – completamente em contraste com a alegorização alexandrina. Naturalmente, sua ênfase no sentido literal das Escrituras levou Diodoro – como o restante dos teólogos antioquianos – a dar mais atenção ao Jesus histórico como os Evangelhos o apresentavam. Contudo, no tempo de Diodoro – que morreu em 394 A.D. – o caráter pessoal da divindade de Jesus Cristo era algo estabelecido, e nisto Diodoro divergia de Paulo de Samosata e de Eustátio de Antioquia. Isto, por sua vez, propunha o problema do relacionamento entre a humanidade e a divindade de Jesus Cristo, o qual Diodoro tentou resolver – de um modo tipicamente antioquiano – estabelecendo e enfatizando a distinção entre as duas.875 O Verbo habitava em Jesus “como em um templo”, ou “como habitou nos profetas do Velho Testamento”, embora no caso de Jesus a união foi permanente. Além disso, não é somente um caso de diferença entre habitação – ou templo – e aquele que habita nele; é também um caso da distinção entre o filho de Deus e o Filho de Davi – e foi precisamente esta doutrina dos “dois filhos” que levou à destruição de suas obras pela posteridade. 876 Parece que Diododo chegou a esta ênfase sobre a distinção entre a humanidade e a divindade de Cristo através de sua oposição a Cristologia alexandrina, a qual já vimos representada por Atanásio, e mais adiante neste capítulo, veremos reaparecer em Apolinário. A Cristologia alexandrina insistia na exigência de que a união entre o divino e o humano em Cristo seria tal que há uma verdadeira communicatio idiomatum – isto é, que os atributos de 874

A melhor edição é a de Abramowski, “Der theologische Nachlass des Diodor von Tarsus”, ZntW, 42 (1949), 19-69. 875 Esta exposição da Cristologia de Diodoro depende, é claro, da autenticidade dos fragmentos de seus escritos que sobreviveram. Como estes fragmentos chegaram a nós através de citações em autores posteriores que estavam interessados em provar a heterodoxia de Diodoro, há sempre a possibilidade de que eles tenham sido mutilados ou que seus significados foram mudados de um ou de outro modo. Contudo, Francis A. Sullivan, The Christology of Theodore of Mopsuestia (Roma: Gregorian University Press, 1956), pp. 172-181, dá razões para se crer na autenticidade da maioria destes fragmentos. 876 Esta também é a razão porque M. Jugie reivindica que os princípios fundamentais do Nestorianismo são encontrados em Diododo: “La doctrine christologique de Diodore de Tarse d’après les fragments de ses oeuvres”, Euntes Docete, 2 (1949), 171-191.


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sua humanidade também podem ser predicados do Verbo. Todavia, quando eles tentaram aplicar este princípio, os teólogos alexandrinos o fizeram de tal modo que a natureza humana de Jesus Cristo foi mutilada – isto é, Jesus carecia de uma alma humana racional. Diodoro, de sua parte, viu o erro dos alexandrinos mas parece não ter sido convencido da necessidade de afirmar a communicatio idiomatum. Isto o levou a propor uma Cristologia na qual ele afirmava que o Verbo fora unido a um homem, não apenas à carne humana877 - uma posição que finalmente seria amplamente aceita; mas também o levou a estabelecer uma distinção extrema entre o Verbo e o “homem assumido”, de modo que não poderia haver qualquer communicatio idiomatum entre eles.878 A doutrina de Teodoro de Mopsuéstia segue o modelo antioquiano tradicional e por isso é muito similar ao de Diodoro, embora ajustado aos desenvolvimentos teológicos de sua época – Teodoro morreu trinta anos depois de Diodoro. Além disso, como Sellers diz, “O sistema de Teodoro é apenas a aceitação dos princípios de Eustátio, os quais agora são colocados de acordo com o pensamento doutrinário da época.”879 Isto não significa que o pensamento de Teodoro carece de valor e originalidade; antes, muito pelo contrário, é o clímax do esforço teológico da escola antioquiana. Em virtude de modernas descobertas, nas quais algumas obras de Teodoro, anteriormente desconhecidas, vieram à luz, os ensinos do bispo de Mopsuéstia se tornaram um objeto de estudo e de controvérsia.880 Todavia, podemos afirmar que Teodoro, seguindo a velha tradição antioquiana, enfatizava a distinção entre as duas naturezas de Cristo muito mais do que a unidade de sua pessoa. Contudo, Teodoro não levava isto ao extremo de afirmar – como Diodoro parece ter feito antes dele – que em Cristo haviam dois Filhos ou dois

877

Isto pode ser afirmado, apesar da interpretação diferente encontrada em Grillmeier, Christ, pp. 260-270. Sullivan, The Christologiy of Theodore, pp. 118-189: “Diodoro, de fato, tinha rejeitado não apenas os erros dos apoloniaristas, mas também a unidade de pessoa que eles estavam tentando, a seu próprio modo equivocado, defender. Cremos que Diodoro falhou em reconhecer a diferença entre a atribuição legítima dos atributos humanos ao Verbo encarnado como seu tema final, e sua atribuição ao Verbo em virtude de uma composição apoloniarista com a carne humana. A falha em fazer tal distinção, unida a um conceito superior da divindade do Verbo, exclui toda atribuição de atributos humanos ao Verbo. Mas a conseqüência inevitável de tal exclusão é nada menos do que uma negação da realidade da encarnação. Pois se nenhum atributo humano pode ser atribuído ao Verbo como seu objeto, então não podemos dizer que o Verbo nasceu da Virgem Maria segundo a carne, ou que o Verbo tornou-se homem.” 879 Sellers, Eustathius, p. 117. 880 O principal objeto destas controvérsias é o relacionamento entre a Cristologia de Teodoro e a de Nestório. Até recentemente, havia muito pouca dúvida quanto ao julgamento do Quinto Concílio Ecumênico que reuniu-se em Constantinopla em 553 – o qual transformou Teodoro em um nestoriano antes de Nestório. Os textos recentemente descobertos parecem provar que o Concílio fez uso de textos que tinham sido interpolados e torcidos pelos inimigos de Teodoro. Ver, em favor da ortodoxia de Teodoro: Robert Devreesse, Essai sur Théodore de Mopsueste (Cidade do Vaticano: Biblioteca Apostolica Vaticana, 1948); contra sua ortodoxia: Francis A. Sullivan, “Some reactions to Devreesse’s New Study of Theodore of Mopsuestia”, TnSt, 12 (1951), 179-207. O problema é complicado ainda mais pela questão do que era que Nestório realmente ensinava. 878


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Senhores.881 Há, na verdade, a diferença indestrutível entre o que assume e o assumido; mas existe também a união dos dois, também indestrutível e permanente. Esta distinção e união entre a humanidade e a divindade é tal que Teodoro podia falar da união de “duas naturezas” em “uma pessoa”,882 exatamente como Tertuliano já tinha feito e como toda ortodoxia cristã faria mais tarde. Ele entendia esta “pessoa”, contudo, como aquilo que resulta da união das duas naturezas,883 e não como a Segunda Pessoa da Trindade, à qual está unida a natureza impessoal do “homem assumido”.884 Como seus predecessores Eustátio e Diodoro, Teodoro interpretava a presença de Deus em Jesus Cristo em termos da habitação do Filho nele. Esta presença é diferente da onipresença de Deus no mundo. Deus está presente no mundo “por causa de sua natureza e poder”, mas está presente em Jesus Cristo “por causa de sua vontade graciosa”. Também é deste modo que Deus habita nos santos e nos profetas. No caso de Jesus Cristo em particular, é preciso adicionar que Deus habita nele “como em um filho”. Este Deus que habita em Jesus Cristo não é uma força impessoal, pelo contrário, é a Segunda Pessoa da Trindade, que assumiu a natureza humana de tal modo que existe uma harmonia absoluta entre as duas naturezas.885 Esta “associação”, contudo, não priva a humanidade de Jesus Cristo de quaisquer características humanas; assim pode haver verdadeiro desenvolvimento da Criança de Belém para o Mestre da Galiléia – e aqui encontramos um outro tema tipicamente antioquiano.886 Para Teodoro, o “homem assumido” pelo Verbo continua a ser o próprio sujeito dos atributos humanos, e estes não são transferíveis para o Verbo, exceto com a salvaguarda de que isto é possível somente “pelo relacionamento” e não diretamente.887 A verdadeira communicatio idiomatum ocorre somente em uma direção: os atributos do Verbo são estendidos ao homem; mas não vice-versa.888 881

Embora existam textos nos quais Teodoro estabeleça uma polaridade entre o Senhor e o Filho de Davi, existem outros nos quais ele explicitamente nega que existam “dois Filhos” ou “dois Senhores”. Ver Quasten, Patrology, 3 (Utrecht: Spectrum, 1960), 415-416. 882 Os textos mais relevantes são encontrados em Devreesse, Essai, p. 115, n.1. Deveríamos notar, contudo, que Teodoro prefere falar da união em uma “prosopon” em vez de em uma “hypostasis”. Sullivan, The Christology of Theodore, pp. 78-82; 259-284. 883 Sullivan, The Christology of Theodore, p. 265; Richard A. Norris, Manhood and Christ: A Study in the Christology of Theodore of Mopsuestia (Oxford: Clarendon Press, 1963), pp. 228-233. 884 Como será visto mais adiante, a última foi a interpretação que finalmente tornou-se mais comum, principalmente através da influência de Cirilo de Alexandria. 885 Esta “habitação” do Verbo no homem assumido, segundo Teodoro, é claramente exposta e discutida por Norris, Manhood and Christ, pp. 216-228. 886 O tema do desenvolvimento de Cristo segundo a Escola de Antioquia, é enfatizado por Robert V. Sellers, Two Ancient Christologies: A Study in the Christological Thought of the Schools of Alexandria and Antioch in the Early History of Christian Doctrine (Londres: S.P.C.K., 1954). 887 É assim que a posição de Teodoro com relação ao título “Mãe de Deus” deve ser entendida. Ele não o rejeita, mas insiste em que este título pode ser dado a Maria somente se mantermos em mente que ela na verdade é “Mãe do Homem” e “Mãe de Deus” somente em virtude do relacionamento entre o Verbo e o homem que nasceu dela. Ver: Norris, Manhood and Christ, pp. 215-216. 888 Sullivan, The Christology of Therodore, p. 287.


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Assim, as afirmações de Teodoro sobre a “unidade de pessoa” em Jesus Cristo, nunca apagam completamente a impressão de que ele está dizendo que, em Cristo, realmente existiam duas pessoas que agiam com tal harmonia que pareciam ser uma – e é importante recordar aqui que o termo prosopon, que Teodoro aplica à “pessoa” de Jesus Cristo, tem precisamente, embora não necessariamente, a conotação de uma aparência externa. Neste ponto a doutrina da encarnação parece ser posta em perigo – embora não mais do que quando os alexandrinos enfatizavam a unidade de Cristo às custas de sua humanidade. 889 Resumidamente, podemos caracterizar a doutrina antioquiana como uma Cristologia “Logos-homem”, em contraste com a Cristologia “Logos-carne” dos alexandrinos. Em outras palavras, enquanto os alexandrinos, especialmente os do quarto século, ficaram satisfeitos em afirmar a união do Verbo com a carne humana, os antioquianos julgaram necessário postular a união do Verbo com um ser humano completo. Por outro lado, enquanto os antioquianos estavam dispostos a ceder um ponto em relação a unidade da pessoa de Jesus Cristo, os alexandrinos insistiam em preservar e enfatizar esta unidade, mesmo às custas da natureza humana do Salvador. Deste modo a Cristologia alexandrina era muito diferente da de Antioquia. Com suas tendência neoplatônicas, os teólogos alexandrinos – desde Clemente – criam que deveriam sustentar a imutabilidade do Verbo mesmo se a integridade humana de Jesus sofresse com isso. Já vimos a tendência docética da afirmação de Clemente de que Cristo carecia de paixões humanas. O próprio Orígenes, embora sentisse a necessidade de condenar o Docetismo, declara que a constituição corpórea de Jesus era diferente da de outros seres humanos. Este ponto de visto continuou a desenvolver-se no terceiro e quarto séculos, quando a necessidade de afirmar a presença pessoal do Filho em Jesus Cristo, e de postular ao mesmo tempo sua união com a humanidade, deu origem a Cristologia “Logos-carne”. Segundo este ensino, não foi a humanidade que foi assumida elo Verbo, mas antes, a carne humana. Embora o primeiro representante importante desta posição tenha sido Apolinário de Laodicéia, deveríamos apontar alguns dos antecedentes, nos quais ele pode ter encontrado justificação para sua posição. Assim, por exemplo, o pouco que sabemos sobre Malchion e sobre outros origenistas que condenaram Paulo de Samosata em 268, pareceria indicar que sua Cristologia era do tipo 889

Antes de deixar Teodoro, é necessário salientar sua importância como exegeta. Se temos dedicado nossa atenção a sua Cristologia, é porque esta é nossa preocupação principal neste capítulo, e porque a posteridade dá mais atenção a Cristologia de Teodoro do que a sua obra hermenêutica. Contudo, seus discípulos o chamavam de “O Intérprete” – um título que mostra sua reputação como exegeta. Ver: L. Pirot, L’oeuvre exégétique de Theódore de Mopsueste (Roma: Pontificious Institutus Biblicus, 1913); Rowan Greer, Theodore of Mopsuestia: Exegete and theologian (Filadélfia: Westminster Press, 1961), pp 86-152; Devreesse, Essai, pp. 53-93. Este aspecto de sua obra, bem como sua Cristologia, mostram Teodoro com um antioquiano típico.


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“Logos-carne”. Segundo eles, “o Verbo divino está Nele assim como o homem interior em nós”.890 Jesus Cristo é um ser composto do mesmo modo como nós somos: exatamente como nos seres humanos existe carne e alma, assim também no Salvador existe a carne humana e o Verbo divino. 891 No princípio do quarto século, quando Eusébio e Panfilo de Cesaréia escreveram sua Apologia pro Origene, houve aqueles que criticaram o grande mestre alexandrino por ter declarado que Jesus tinha uma alma humana, e por esta razão Eusébio e Panfilio sentiram-se obrigados a salientar que as Escrituras mencionam a alma de Jesus.892 Mas o próprio Eusébio, ao expor suas doutrinas cristológicas, abandonou a posição de Orígenes e afirmou que o Verbo movia-se no corpo do Salvador do mesmo modo que a alma move-se nos corpos de outras pessoas.893 Como era de se esperar, este tipo de Cristologia entrou em conflito com a doutrina antioquiana. O primeiro conflito do qual temos registro foi o debate entre Paulo de Samosata e Malchion. 894 Algum tempo mais tarde, no início da controvérsia ariana, as duas escolas confrontaram-se novamente quando Eustátio de Antioquia foi condenado por Eusébio da Nicomédia e seus seguidores – cuja Cristologia era do tipo alexandrina. Logo depois, desta vez na cidade de Corínto, os dois grupos enfrentaram-se uma vez mais, mas os resultados desta confrontação não chegaram até nós.895 De qualquer modo, no início do quarto século, a Cristologia alexandrina em sua forma característica dominou o cenário teológico. Tanto Ario quanto Atanásio, que parecem ter concordado apenas nisto, eram participantes da Cristologia Logos-carne. Esta doutrina foi usada pelos arianos como um argumento em favor da mutabilidade do Verbo. Se o Verbo pode estabelecer uma união tão íntima com a carne humana, e é capaz de receber sentimentos e impressões transmitidas por esta carne, como pode ser imutável? Assim está claro que a questão trinitariana necessariamente levava à cristológica, visto que era importante remover o argumento ariano, que parecia provar que o Verbo era inferior a Deus. E, mesmo se ignorarmos o argumento ariano, a declaração definitiva da divindade de 890

Frag. 30. Texto grego encontrado em Gustave Bardy, Paul de Samosate (Louvain: Spicilegium Sacrum Louvaniense, 1929), p. 59. O próprio Bardy, contudo, não interpreta este texto como um caso de Cristologia Logos-carne (ver pp. 481-488). 891 Frag. 36, em ibid., pp. 61-63. 892 Apol. pro Orig. 5. 893 De eccl. theo. 1.20.90. Citado por Kelly, Early Christian Doctrines, p. 160. 894 Ver Capítulo XI. 895 A base para esta afirmação é Atanásio, Ep. 59, Ad Epictetum. Devemos salientar que esta epístola não nos permite afirmar categoricamente a natureza das duas tendências que encontraram-se em Corínto. Charles E. Raven, Apollinarism: An Essay on the Christology of the Early Church (Cambridge: Cambridge University Press, 1923), pp. 104 e seguintes, as toma como ensinos docetistas e ebionitas. Por outro lado, Sellers (Two Ancient Christologies, pp. 36-37) alega que temos aqui um conflito entre a Cristologia alexandrina e sua rival de Antioquia. O argumento de Sellers é convincente.


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Jesus Cristo levaria à questão do modo pelo qual esta divindade está relacionada com sua natureza humana. Contudo, os antigos defensores de Nicéia parecem não reconhecer a situação, de modo que o mérito e o infortúnio deste reconhecimento compete a Apolinário de Laodicéia: mérito, porque sua obra dá testemunho de um mente alerta e uma clara percepção teológica, que lhe mostraram a necessidade de incluir a questão cristológica em suas discussões; infortúnio, porque sua solução foi menos afortunada do que sua percepção do problema, e ele logo foi condenado por seus antigos companheiros na defesa da doutrina nicena, que viam agora em seus ensinos um perigo tão sério quanto o Arianismo.896 Apolinário nasceu no início do quarto século na cidade síria de Laodicéia. Ele recebeu uma educação cuidadosa que fez dele um hábil orador e um verdadeiro erudito, não sem um senso de humor. Algum tempo depois do Concílio de Nicéia, Apolinário tornou-se amigo de Atanásio e de Basílio,897 e mais tarde tornou-se bispo de sua cidade natal, onde ele se distinguira por sua oposição ao bispo ariano George. Em seus esforços para refutar o Arianismo, Apolinário tornou-se consciente de que um dos argumentos básicos dos arianos posteriores era cristológico: se o Verbo estava unido a um corpo humano, e este corpo é por natureza mutável, então o próprio Verbo deve ser mutável. Defrontado com este argumento, ele teve que desenvolver uma Cristologia capaz de demonstrar como o Verbo imutável poderia unir-se a humanidade mutável. Apolinário dedicou seus melhores talentos especulativos a esta tarefa, mas o resultado foi a doutrina conhecida como Apolinarianismo, a qual os cristãos de uma visão teológica diferente sentiram-se obrigados a rejeitar. Por outro lado, na cidade de Laodicéia, localizada próxima a Antioquia, Apolinário foi um grande defensor, não apenas da fé nicena, mas também da teologia alexandrina que se opunha a antiga tradição antioquiana. Assim, ao mesmo tempo em que ele atacava Ario, ele devia tomar cuidado para que seus argumentos não estivessem alinhados com a Cristologia antioquiana, com sua tendência para fazer distinção entre o divino e o humano em Jesus Cristo de um modo que Apolinário julgava errôneo. Foi deste modo que a Cristologia de Apolinário, embora opondo-se a de Ario ao afirmar a imutabilidade do Verbo, estava de acordo com o último em sua estrutura fundamental, e por isso é do tipo Logos-carne. 896

Nenhuma obra sobreviveu sob o nome de Apolinário. Existem fragmentos de seus escritos em obras compostas contra ele – tais como a Antirrheticus de Gregório de Nissa. Além disso, um pouco de suas obras sobreviveu sob os nomes de muitos teólogos ortodoxos, tais como Atanásio, Gregório, o Fazedor de Milagres, e o Papa Júlio I. 897 Tem havido alguma discussão com relação a amizade de Apolinário e Basílio. Isto tem a ver principalmente com a autenticidade de quatro cartas que são encontradas entre as epístolas de Basílio, recebendo os números 361-364 (PG, 32: 1100-1108). Historiadores famosos como Loofs e Leitzmann negam sua autenticidade. Mas existe força nos argumentos em contrário, propostos por George L. Prestige, St. Basil the Great and Apollinaris of Laodicea (Londres: S.P.C.K., 1956). Esta correspondência, se genuína, ocorreu enquanto Apolinário ainda era considerado, não um herege, mas um campeão da fé nicena.


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Apolinário demonstra dois interesses principais ao formular sua Cristologia: a integridade da pessoa de Jesus Cristo – contra os antioquianos – e a imutabilidade do Verbo de Deus – contra os arianos.898 O primeiro destes interesses é manifesto quando Apolinário declara que Deus o Verbo não é uma pessoa, e o homem Jesus uma outra pessoa, mas o mesmo que subsistia como Filho antes foi feito um com a carne por Maria, assim constituindo-se a Si mesmo um homem perfeito, santo e sem pecado, e usando esta posição econômica para o reavivamento da humanidade e a salvação de todo o mundo.899 Por outro lado, seu interesse em salvaguardar a imutabilidade do Verbo pode ser visto na seguinte citação: Deus, tendo sido encarnado na carne de homem, também mantém Sua própria energia pura, possuindo uma mente não sujeita às afeições naturais e carnais, e mantendo a carne e os impulsos carnais divina e impecavelmente, e não apenas não controlada pelo poder da morte, mas até mesmo destruindo a morte.900 A Cristologia de Apolinário, concebida em parte para refutar o Arianismo, nasce de pressuposições tricotomistas de que os seres humanos são compostos – segundo I Tessalonicenses 5:23 – de corpo, alma e espírito. Esta constituição tripartida da natureza humana foi então interpretada à luz da tripla divisão que Platão estabelecera entre os diferentes componentes do ser racional. Deste modo a natureza humana é composta de corpo, alma e espírito ou razão. Nesta distinção, a alma é simplesmente o princípio vital que dá vida ao corpo. Portanto, a alma é impessoal e sem consciência, ao passo que todas as faculdades racionais são atribuídas ao espírito, que torna-se a base da personalidade. Baseando sua explanação nesta tricotomia, Apolinário cria que poderia explicar o modo pelo qual o Verbo uniu-se a humanidade em Cristo sem perder com isso sua imutabilidade: em Cristo, o Verbo ocupou o lugar do espírito, de modo que o corpo e a alma humanas estavam unidos à razão divina.901 Deste modo Apolinário salvou a imutabilidade do Verbo, o qual é sempre o agente ativo e nunca passivo. Ao mesmo tempo, ele resolveu o problema de como as duas naturezas – a divina e a humana – podem unir-se sem formar uma 898

Os historiadores antigos interpretam a Cristologia de Apolinário de um ponto de vista anti-ariano, enquanto que os historiadores modernos tendem a enfatizar a natureza anti-antioquiana de seu pensamento. Parece melhor interpretá-la como opondo-se a ambos, arianos e antioquianos, embora salientando esta última tendência. É verdade que não há menção de Eunomio e de outros líderes arianos nos textos cristológicos de Apolinário que sobreviveram, enquanto que existem freqüentes referências aos teólogos antioquianos. 899 Pseudo-Gregory, o Fazedor de Milagres, Conf. of Faith, 19 (ANF, 6:45). 900 Ibid., 16 (ANF, 6:44). 901 É muito difícil documentar este aspecto da doutrina de Apolinário. Podemos, contudo, indicar os fragmentos 74 e 151 em Leitzmann, Apollinaris von Laodicea und seine Schule (Tübingen: J.C.B. Mohr, 1904).


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nova natureza. Cristo é humano porque seu corpo e sua alma – ou princípio vital – são humanos; mas ele é divino porque sua razão é o próprio Verbo de Deus. Se, em Cristo, um ser humano completo, com sua própria personalidade e sua própria razão, estivesse unido ao Filho de Deus, o resultado seria duas pessoas, e isto destruiria a realidade da encarnação, a qual afirma que, em Cristo, Deus verdadeiramente uniu-se com a humanidade. 902 Apolinário, então, não encontrou outra solução senão mutilar a natureza humana de Cristo, tirando suas faculdades racionais, e colocando o Verbo no lugar que estas deveriam ocupar. A fim de mostrar a unidade do Salvador, que ele julgava tão importante para uma Cristologia correta, Apolinário falava repetidamente de Cristo como “uma natureza”. Provavelmente ele queira dizer com isso que, do mesmo modo como uma pessoa é uma “natureza”, assim Cristo, mesmo depois da encarnação, é apenas um e não pode ser dividido em “o humano” e “o Verbo”. Como uma de suas frases mais típicas, “uma natureza de Deus o Verbo encarnado”, foi encontrada em uma obra erroneamente atribuída a Atanásio, e assim preservada para a posteridade sob o manto de ortodoxia, a fórmula “uma natureza” influenciaria vários teólogos ortodoxos, mesmo depois que o Apoloniarismo foi formalmente condenado. Finalmente, ela se tornaria um dos pontos em debate e um novo conflito entre a Cristologia alexandrina e a antioquiana. Nos ensinos de Apolinário temos a conclusão natural da Cristologia do tipo Logoscarne, e Apolinário não adicionou nada mais do que a precisão lógica de sua poderosa mente. Isto, e o prestígio que ele gozava como um defensor da fé nicena, fez muitos relutarem em atacá-lo. Mas chegou a ocasião em que suas doutrinas começaram a ser propagadas e deram origem a um grupo cismático, e então alguns dos bispos mais famosos, convencidos como estavam dos erros de sua Cristologia, viram-se obrigados a atacar Apolinário em sua velhice. Em geral, podemos dizer que a forte oposição a Apolinário e seu grupo, desde o Oriente até o Ocidente, foi devida a sua soteriologia subentendida. No Ocidente ele foi reiteradamente condenado durante o reinado do Papa Damaso I (366-384), e as razões soteriológicas sempre foram invocadas nestas condenações.903 Mas foi no Oriente que os Três Grandes Capadocianos sentiram-se obrigados a refutar o ensino apoloniariano.904 Como vimos, Atanásio foi levado a sua forte oposição ao Arianismo pela consideração dos requerimentos da doutrina da salvação. Mas mesmo Atanásio, que via claramente as conseqüências soteriológicas de uma negação da verdadeira divindade do Filho, foi incapaz 902

Ibid., fr. 92. Ver, por exemplo, o decreto romano de 382, na obra Enchiridion Symbolorum de Denzinger, p. 65. 904 De modo algum os Capadocianos foram os únicos teólogos a refutar Apolinário, e um estudo mais completo sobre a controvérsia exigiria a consideração de vários sínodos romanos que o condenaram, bem como dos escritos de Epifânio e outros. Nosso propósito aqui é simplesmente mostrar as principais razões que levaram à condenação de Apolinário, e para este fim uma breve menção das objeções levantadas pelos Capadocianos contra Apolinário devem ser suficientes.

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de perceber que uma Cristologia que negasse a integridade humana de Jesus Cristo, também colocaria em perigo a doutrina cristã da salvação.905 Os Capadocianos foram os primeiros a reconhecer o perigo oculto dentro desta Cristologia, que negava a realidade da natureza humana de Cristo para todos os propósitos práticos, e mostrar como esta Cristologia destruiria o que eles viam como doutrina cristã da salvação. Para os Capadocianos, como para a maioria dos “Pais” gregos, a doutrina da deificação constituía um aspecto fundamental da soteriologia cristã. Como Atanásio, ecoando Irineu, tinha dito: “Ele tornou-se homem para que pudéssemos ser feitos deuses”.906 Quando Deus assumiu a humanidade, o propósito de Deus não era apenas participar na vida humana, mas também e sobretudo, habilitar-nos a participar na vida divina. Segundo os Capadocianos, tudo isto é perdido por Apolinário, e assim ele deve ser condenado tão enfaticamente quanto possível. Se alguém tem colocado sua confiança Nele como um Homem sem uma mente humana, ele realmente está privado de mente, e completamente indigno de salvação. Pois aquilo que Ele não tem assumido Ele não tem curado; mas aquilo que está unido a Sua Divindade também é salvo. Se apenas a metade de Adão caiu, então aquilo que Cristo assumiu e salva pode ser metade também; mas se toda sua natureza caiu, ela deve ser unida a toda natureza Daquele que foi gerado, e assim ser salva como um todo.907 Esta é a essência do argumento Capadociano, o qual também ocorre nos tratados contra Apolinário falsamente atribuídos a Atanásio. Mas o dito acima, embora requeira a inclusão das implicações soteriológicas de cada doutrina no debate cristológico, não oferece diretrizes para a solução do problema apresentado por Apolinário. Sua própria solução era inaceitável. Poderia ser encontrada uma solução que satisfizesse as exigências de Apolinário e ao mesmo tempo as condições soteriológicas que os Capadocianos estavam agora desenvolvendo? Realmente, muitos dos teólogos gregos, embora não tivessem entregue a si mesmos à formulação precisa de sua Cristologia, estavam muito perto da posição de Apolinário. Por esta razão, em seu primeiro ataque contra Apolinário, Basílio o acusou de cisma em vez de

905

Como declarado antes (Capítulo XIII, n. 30), o sínodo de 362 em Alexandria não deve ser necessariamente entendido como um abandono da Cristologia Logos-carne. O texto de Ad Antioch 7 não é decisivo. Finalmente, os dois tratados Contra Apolinário, atribuídos a Atanásio, são espúrios. 906 Oratio de inc. 54. 907 Gregório de Nazianzo, Ep. 101 (NPNF, 2a série 7:440). Cp. K. W. Wesche, “The Union of God and Man in Jesus Christ in the Thought of Gregory of Nazianzus”, StVlad, 28 (1984), 83-98.


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heresia.908 Mesmo Gregório de Nazianzo, cujas duas epístolas a Cledonio constitui uma sólida refutação da Cristologia apolinariana, não é bem sucedida em desenvolver uma Cristologia muito mais satisfatória do que a de seu oponente.909 Visto que o tipo de Cristologia “Verbocarne” tinha demonstrado suas últimas conseqüências nas doutrinas de Apolinário, Gregório a abandonou e fez uso da terminologia “Verbo-homem”. 910 Mas de modo algum isto indica que Gregório inclinava-se para a Cristologia antioquiana com sua inclinação para a humanidade total e real de Jesus Cristo. Pelo contrário, depois de ter negado a Cristologia de Apolinário, Gregório pensava ser necessário afirmar que o centro da personalidade do Salvador está em sua divindade, de modo que sua humanidade é, por assim dizer, absorvida pela natureza divina. As naturezas divina e humana são como o sol e as estrelas: embora as estrelas tenham sua própria luz, quando o sol aparece a luz estelar é absorvida na luz solar, e todas as luzes tornam-se uma só.911 A Cristologia de Gregório de Nissa também falha em escapar da tendência alexandrina de tomar a divindade de Jesus Cristo como o ponto de partida, e apenas atribuir a ela o mais alto grau de humanidade que possa ser compatível com seu ponto de partida. Exatamente como seu homônimo de Nazianzo, Gregório rejeita o tipo de Cristologia Verbo-carne e fala em termos da união do Verbo com uma humanidade completa. Mas ele também segue seu amigo ao afirmar que a divindade e a humanidade se misturam em Cristo de tal modo que a última é absorvida pela primeira. Seu exemplo mais conhecido é o de uma gota de vinagre dissolvida no mar: do mesmo modo que o vinagre não perde sua natureza própria, assim também a humanidade continua sua existência quando absorvida pela divindade, embora para todos os propósitos práticos pareça haver apenas o último.912 Os Capadocianos tem sido muito criticados por sua condenação de Apolinário, quando sua própria Cristologia parece diferir tão levemente da do bispo de Laodicéia. Contudo, se nos colocarmos na perspectiva dos Capadocianos, entenderemos porque eles viram um abismo entre sua Cristologia e a de Apolinário. Pois os Capadocianos, como para a maioria dos teólogos gregos primitivos, a salvação consistia essencialmente em deificação. O Verbo tornou-se carne, não tanto para dar um exemplo a humanidade ou para pagar nosso débito com Deus, quanto para derrotar as forças do mal que nos aprisionavam, e ao mesmo tempo abrir o caminho para nossa deificação. Visto que Deus assumiu a humanidade, a última é 908

Ep. 263. Há nesta epístola algumas acusações de heresia, mas elas se referem à doutrina da Trindade e a questões escatológicas. Com relação a Cristologia em si, Basílio acusa Apolinário apenas de vaga e inútil especulação. 909 Ep. 101-102. Ver também Ep. 125 e 202. 910 Ep. 102. 911 Ep. 101. 912 Adv. Eunonium 5.5. Devemos notar, contudo, que este texto refere-se à pós-ressurreição de Cristo.


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capaz de obter a deificação. Assim, para os Capadocianos, o importante era que, em Cristo, Deus realmente assumiu a humanidade, e não que sua humanidade permaneceu idêntica a nossa ou tão livre como a nossa. Portanto, a doutrina de Apolinário não era aceitável aos Capadocianos. E por esta razão, também, ele foram capazes de descrever a união do divino e do humano em Cristo em termos tais que o humano parecia perder-se no divino, sem com isso destruir a importância soteriológica da encarnação como eles a entendiam. Foi principalmente com base nestas objeções levantadas pelos Capadocianos e por outros teólogos que as doutrinas cristológicas de Apolinário foram condenadas pelo concílio reunido em Constantinopla em 381 A.D. – normalmente conhecido como o Segundo Concílio Ecumênico.


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XVII. A CONTROVÉRSIA NESTORIANA E O CONCÍLIO DE ÉFESO A rejeição das teorias de Apolinário não foi de modo algum uma solução do problema cristológico. Os próprios Capadocianos, embora estivessem convencidos de que era necessário condenar o idoso teólogo laodicense, não tinham uma alternativa clara a oferecer. Embora a Cristologia alexandrina tivesse sofrido um golpe severo com a condenação de Apolinário, ela ainda era uma corrente muito forte na teologia Oriental, e necessariamente colidiria com a Cristologia antioquiana. Além disso, o quinto século representa um passo a mais no processo pelo qual a Igreja do humilde e crucificado Senhor se tornaria envolvida em lutas por prestígio e poder, as quais eram não menos amargas que aquelas que aconteciam na corte Bizantina. Todas as grandes dioceses Cristãs – Roma, Alexandria, Antioquia, e Constantinopla – lutavam contra suas rivais em uma tentativa de obter predomínio, e cada uma delas, por sua vez, permitia que estes interesses políticos influenciassem suas decisões teológicas. Tentando simplificar um desenvolvimento muito complexo, podemos dizer que as controvérsias cristológicas do quinto século começaram nos primórdios de 428 A.D., quando o antioquiano Nestório ocupou a diocese patriarcal de Constantinopla. Mesmo se Nestório tivesse sido um homem prudente, a antiga tensão entre as teologias alexandrina e antioquiana, e a determinação da Alexandria que não devia ser suplantada pela nova capital, teria sido suficiente para criar sérias dificuldades.913 Mas Nestório não era um homem prudente, e o que poderia ter sido limitado a algumas dificuldades, terminou em tragédia. O conflito irrompeu quando Nestório declarou-se contra o título: “Genitora de Deus” (θεοτοκος), como aplicado a Maria.914 Naquele tempo, este título era comum entre muitos cristãos; e os teólogos alexandrinos, que estavam acostumados a ele desde o tempo do bispo Alexandre, viram isto como uma conseqüência necessária da communicatio idiomatum. Até mesmo Teodoro de Mopsuéstia estava propenso a aceitá-lo contanto que se tomasse cuidado para interpretá-lo corretamente. Mas Nestório via no título Genitora de Deus, como aplicado a Maria, uma confusão do divino e do humano em Jesus Cristo. De acordo com ele, podemos chamar Maria de Genitora de Cristo, mas não Genitora de Deus. 913

O Concílio de Constantinopla, em seu terceiro princípio, concedeu à “nova Roma” uma autoridade no Oriente semelhante a que a antiga Roma tinha no Ocidente. Isto não foi bem recebido em Roma ou em Alexandria, que naquele tempo via-se como a mais importante diocese no Oriente. Como conseqüência, Alexandria tornou-se um oponente vigoroso de Constantinopla, especialmente quando esta última diocese foi ocupada por um homem de inclinações antioquinas. Esta oposição pode ser vista, não apenas nas lutas descritas neste capítulo e no próximo, mas também em uma data anterior, no amargo antagonismo de Teófilo de Alexandria para com João Crisostomo, patriarca de Constantinopla, que foi deposto e mandado para exílio em 404 A. D. 914 Ao fazê-lo, ele não estava realmente tomando a iniciativa, mas antes estava tentando acalmar uma controvérsia que continuara em Constantinopla por algum tempo. Quando Anastácio, seu capelão, atacou o uso de θεοτοκος, Nestório se recusou a excomungá-lo. Mais tarde, o próprio Nestório pregou seu famoso sermão contra o título de θεοτοκος.


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A reação não demorou a vir. Cirilo, o bispo de Alexandria, era um zeloso defensor da autoridade de sua diocese e convicto da Cristologia alexandrina. Para ele, a posição de Nestório negava o princípio alexandrino da unidade do Salvador e era uma ocasião para reafirmar a autoridade da diocese alexandrina sobre a de Constantinopla. Portanto, não se deve interpretar Cirilo nem como um mero político eclesiástico, nem como um teólogo guiado por considerações puramente teológicas. Assim que ele teve conhecimento da pregação de Nestório contra o título “Genitora de Deus”, Cirilo reuniu todas as forças que poderiam ajudá-lo a alcançar a condenação do patriarca de Constantinopla. Como patriarca de Alexandria, ele tinha à sua disposição um forte argumento para obter o apoio da corte: ouro. A diocese de alexandria tinha acumulado grande riquezas, que agora poderiam ser empregadas na luta contra Nestório. Com estes recursos, Cirilo obteve o apoio de algumas altas autoridades que estavam mais interessadas no ouro do que na teologia. Sua segunda fonte de apoio foi a diocese Romana. Desde que no Concílio de Constantinopla reivindicara para aquela cidade uma posição semelhante à de Roma, Alexandria podia contar com a antiga capital como uma aliada contra as pretensões da arrogante diocese. Esta inclinação Romana em apoiar Alexandria contra Constantinopla tornou-se mais marcante quando Nestório ofereceu asilo a um grupo de pelagianos que tinha sido condenado no Ocidente.915 Por estas razões, bem como por seu tom autoritário e belicoso, Nestório foi condenado por um sínodo reunido em Roma, em Agosto de 430 A.D., sob a liderança do Papa Celestino. Finalmente, Cirilo tinha o apoio dos monges egípcios, que estavam convencidos de que a causa alexandrina era a da ortodoxia e que, desde os tempos de Atanásio, tornaram-se firmes defensores do que eles consideravam ser a verdadeira fé. Nestório, por outro lado, tinha o apoio de João, o patriarca de Antioquia. Embora ele não fosse tão poderoso quanto sua contraparte alexandrina, João era um poder a ser contado, como foi amplamente demonstrado durante o curso da controvérsia. O sínodo Romano de 430 A.D. apontou Cirilo para representá-lo no Oriente na tarefa de pedir a Nestório para se retratar. Cirilo escreveu a Nestório pedindo-lhe para retirar suas declarações, mas ele o fez em termos que Nestório, mesmo sendo ele de um caráter mais tratável, nunca teria sido capaz de aceitar. Após escrever duas vezes ao patriarca de Constantinopla, Cirilo lhe mandou uma terceira carta à qual foram anexadas doze anátemas que Nestório deveria aceitar. Estes anátemas não apenas condenavam a posição de Nestório, mas também eram uma exposição da teologia alexandrina, como se apenas ela fosse ortodoxa.916 Assim, Cirilo pretendia tornar a derrota de Nestório na vitória definitiva da 915

A doutrina de Pelágio e seus seguidores será discutida no segundo volume desta História. Traduzida, em NPNF, 2a serie, 14: 206-218. Texto original em PG, 77: 119, e em August Hahn, Bibliothek der Symbole und Glaubensregeln der alten Kirchen, 3a ed. (Breslau: E. Morgenstern, 1897), pp. 312-316. 916


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teologia alexandrina sobre sua rival antioquiana. Como resposta, Nestório mandou de volta doze anátemas contra Cirilo.917 Estas condenações mútuas criaram problemas tão grandes na Igreja Oriental, que os Imperadores Valentiniano III e Teodósio II convocaram um concílio geral que deveria reunirse em Éfeso, em 7 de Junho de 431 A.D. Na data marcada para a grande reunião, apenas uns poucos dos defensores de Nestório tinham chegado a Éfeso. Cirilo já estava lá com uma muiltidão de bispos e monges que estavam convictos de que era necessário condenar e depor Nestório. O bispo local, Memnon, que também era um defensor de Cirilo, tomou conta da organização de uma campanha para incitar as massas contra Nestório. Em 22 de Junho, João de Antioquia e seu grupo não tinham chegado, e Cirilo abriu as sessões do Concílio ignorando os protestos de setenta e oito bispos, bem como do emissário imperial. Naquele mesmo dia, em uma breve sessão de poucas horas, na qual ele não foi escutado, Nestório foi condenado e deposto. O patriarca João de Antioquia e seu grupo chegou quatro dias depois. Quando tiveram conhecimento da decisão do Concílio, eles se reuniram separadamente, e declararam que eram o verdadeiro concílio. Então condenaram e depuseram Cirilo, bem como Memnon. Entretanto, os emissários papais também chegaram a Éfeso. Eles se uniram ao Concílio de Cirilo, e juntos ratificaram a condenação de Nestório, e adicionaram a esta todos os que participaram no concílio rival encabeçado por João. Em troca deste apoio de Roma, o concílio de Cirilo condenou o Pelagianismo, que era a heresia que mais preocupava o papa. Dada a toda esta confusão, e temendo que o resultado fosse um cisma irreparável, Teodósio II ordenou que Cirilo, bem como Nestório e João, fossem aprisionados. Mas Cirilo logo mostrou que era um hábil político, e arranjou para que o imperador convocasse um grupo de delegados de cada uma das duas facções para encontrar-se com ele em Calcedônia, e lá tentar superar suas diferenças. Uma vez diante do imperador, Cirilo e seus defensores obtiveram seu favor, com o resultado de que Nestório foi deposto e forçado a retornar para Antioquia, enquanto que um novo patriarca foi indicado para Constantinopla. Quanto ao próprio Cirilo, ele logo retornou à Alexandria onde o imperador encontraria dificuldades de tomar alguma atitude contra ele, ele deveria decidir a fazer o mesmo. Isto, contudo, não encerrou a controvérsia, pois muitos teólogos alegavam que os doze anátemas de Cirilo contra Nestório eram hereges. 918 Assim, a controvérsia que, a princípio, tinha a ver apenas com Nestório, agora envolvia o próprio Cirilo. Roma, com uma tradição cristológica que era muito diferente da de Alexandria, considerou o documento de Cirilo muito embaraçoso. Cirilo estava sendo criticado até no próprio Egito, onde alguns de seus 917

Hahn, Bibliothek, pp. 316-318.


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antigos defensores consideravam suas ações mais que desagradáveis. Por outro lado, João de Antioquia e os outros bispos sírios tinham rompido a comunhão com o restante da Igreja, de modo que o cisma tinha agora se materializado. Em vista da aparente incapacidade dos bispos de chegarem a um acordo por si mesmos, o imperador decidiu intervir na disputa. Seu emissário Aristolau viajou para Antioquia e Alexandria e, após negociações longas e complicadas, um compromisso foi alcançado. Cirilo não retiraria seus anátemas, mas ele os reinterpretaria de tal modo que muitos pensassem que ele, de fato, tinha se retratado. Além disso, ele concordou em assinar uma fórmula baseada em uma afirmação credal que fora proposta em Éfeso pelo Concílio dirigido por João de Antioquia.919 Por outro lado, o patriarca de Antioquia concordou em confirmar a condenação e deposição de Nestório. Como alguns em seu grupo se recusaram a aceitar esta decisão, João foi forçado a depô-los também. Quanto a Nestório, ele passou quatro anos em um monastério em Antioquia, mas sua presença ali era muito incômoda para João, e ameaçava a precária paz que fora alcançada, e por isso ele foi mandado para lugares mais remotos, primeiro a cidade de Petra, e mais tarde, um oásis no deserto líbio. Lá ele foi esquecido de tal modo, que poucos anos depois em Constantinopla não sabiam mais o que acontecera com ele. Contudo, ele viveu além do tempo do Concílio de Calcedônia (451 A.D.), no qual ele pensou que sua própria doutrina fora defendida. Ele passou seus últimos anos tentando fazer-se ouvir de seu remoto exílio, e mostrar ao mundo que ele estava certo, pois sua doutrina estava de acordo com a de Calcedônia. Foi tudo em vão; Nestório, embora ainda vivo, pertencia ao passado, e na corte imperial, bem como nos grandes centros de vida eclesiástica, ninguém parecia ter tempo para escutar seus apelos. Nestório foi realmente um herege? Em outras palavras, sua doutrina era tal que negava alguns dos princípios fundamentais da fé cristã? Ou antes ele foi condenado por sua falta de diplomacia e pela ambição e habilidade política de Cirilo? Aqueles que o condenaram entenderam sua doutrina corretamente? Ou eles condenaram antes uma caricatura de seu pensamento? Estas são questões sobre as quais os eruditos não estão de acordo. E estas questões são mais complicadas pela tendência de alguns historiadores de interpretar a 918

Ver Robert V. Sellers, The Concil of Chalcedon (Londres: S.P.C.K., 1953), pp. 8-9. “Confessamos assim nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus, perfeito Deus e perfeito homem, de alma racional e corpo, gerado do Pai antes de todos os tempos quanto a sua divindade, e o mesmo nos últimos dias gerado da virgem Maria quanto a sua humanidade, para nós e para nossa salvação; o mesmo consubstancial com o Pai quanto a sua divindade, e consubstancial conosco quanto a sua humanidade; que é uma união de duas naturezas; nós, portanto, confessamos um Cristo, um Filho, um Senhor. De acordo com esta doutrina da união sem mistura, confessamos que a santa Virgem é Mãe de Deus (θεοτοκος), pois Deus o Verbo encarnou-se e fezse homem, e desde sua concepção uniu se em si mesmo ao templo que ele tomou dela. Quanto às palavras evangélicas e apostólicas a respeito do Senhor, sabemos que os teólogos interpretam algumas como sendo comuns, e se referindo a uma pessoa (προσωπον), e outras como se referindo diferentemente às duas naturezas; e eles entendem aquelas que pertencem ao divino como se referindo à divindade de Cristo, e as inferiores como se referindo à sua humanidade.” Traduzido do texto Grego em Hahn, Bibliothek, pp. 215-216. 919


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controvérsia nestoriana à luz de três fatos posteriores. Deste modo, muitos protestantes têm visto em Nestório um precursor do Protestantismo, em nenhuma outra base senão sua rejeição do título “Mãe de Deus”.920 Nestório começou a ser discutido em novas bases no começo do século vinte, principalmente por causa das obras de Loofs, Bethune-Baker, e Bedjan. O primeiro publicou em 1905 uma nova edição dos fragmentos de Nestório, e incluiu nela muitos fragmentos desconhecidos anteriormente.921 Bethune-Baker, fazendo uso de uma cópia do texto no qual Bedjan estava trabalhando, publicou em 1908 um estudo no qual ele tentou estabelecer a ortodoxia de Nestório.922 Finalmente, em 1910, Bedjan publicou uma versão siríaca – descoberta em 1889 – do Livro de Heráclides, por Nestório,923 que estava perdido. Desde então, os eruditos não cessaram de discutir a teologia de Nestório, mas eles ainda não alcançaram um veredicto unânime quanto à exata natureza de sua doutrina. 924 Falando geralmente, o centro da controvérsia está na dificuldade de estabelecer um acordo entre o que Nestório diz em seu Livro de Heráclides, e o que parece resultar dos fragmentos de suas outras obras que foram preservados nos escritos de seus adversários. Aqueles que tentam defender o desafortunado patriarca, afirmam que seu verdadeiro pensamento é encontrado no Livro de Heráclides, e que os fragmentos foram torcidos e citados fora do contexto com a intenção de justificar sua condenação. Mas outros afirmam que a divergência entre os fragmentos e o Livro de Heráclides originam-se de seus diferentes períodos e situações: os fragmentos foram escritos quando Nestório cria que era poderoso e, por isso, tomou para si a tarefa de argumentar resolutamente contra cada doutrina que ele cria ser herege, enquanto que o Livro de Heráclides é a apologia de um homem derrotado que está tentando mostrar a injustiça de sua sorte. Os proponentes desta teoria apontam que vinte anos

920

Assim, já no século dezessete um calvinista escreveu um tratado com o título Disputatio de suppositat, in qua plurima hactenus inaudita de Nestorio tanquam orthodoxo et de Cyrillo Alexandrino alliisque episcopis in synodum coactis tanquam haereticis demonstrantur. 921 Nestoriana: die Fragmente des Nestorius gesammelt, untersucht und herausgegeben (Halle: Max Niemeyer, 1905). 922 Nestorius and His Teaching: A Fresh Examination of His Teaching, with Special Reference to the Newly Recovered Apology of Nestorius (Cambridge: University Press, 1908). 923 Nestorius: Le Livre d’Héraclide de Damas (Paris: 1910). A tradução siríaca data provavelmente do sexto século. A versão inglesa de G. R. Driver e L. Hodgson foi publicada em 1925. 924 Os vários estudos e conclusões estão resumidos em Carl E. Braaten, “Modern Interpretations of Nestorius”, CH, 32 (1963), 251-267, e em Grillmeier, Christ in Christian Tradition, pp. 496-505. Os melhores estudos recentes são os de Luigi I. Scipione, Richerche sulla cristologia del “Libro di Eraclide” di Nestorio: La formulazione teologica e il suo contesto filosofico (Fribourg: Edizione universitarie, 1956), que mostram a influência do Estoicismo na antropologia e Cristologia de Nestório, e Luise Abramowski, Untersuchungen zum Liber Heraclidis des Nestorius (Louvain: Corpus scriptorum christianorum orientalium, 1963), que ocupa-se mais com a composição literária do Livro de Heráclides, embora ela também discuta seu ensino. Abramowski sugere que uma grande porção não é de Nestório; mas seus argumentos têm sido habilmente refutados por L. Scipione, Nestorio e il concilio de Efeso: Storia dogmatica e critica (Milan: Vita e pensiero, 1974), e por Roberta C. Chesnut, “The Two Prosopa in Nestorius’ ‘Bazaar of Heraclides’,” JTS, nova série, 29 (1978), 392409.


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se passaram entre os fragmentos e o Livro de Heráclides, e que estes anos mostraram a Nestório a insensatez de sua atitude anterior, e o ajudaram a moderar seu pensamento. Finalmente, outros alegam que mesmo em sua obra final, Nestório mostra que sua Cristologia não estava de acordo com a da Igreja como um todo. Parece existir um elemento de verdade em cada uma dessas interpretações. Por um lado, é verdade que o que Cirilo e seus seguidores condenaram em Éfeso, não foi a teologia de Nestório, mas uma mera criatura dela. Por outro lado, é verdade também que Nestório exagerou suas próprias posições no calor da controvérsia, que alguns de seus discípulos pareciam estar orgulhosos da maneira pela qual eles poderiam extrair as mais extremas conseqüências dos ensinos do patriarca, e que o próprio Nestório não tentou destruir a caricatura que estava sendo feita de sua teologia. Quando, condenado, deposto e exilado, ele percebeu seu erro, era tarde demais para corrigi-lo. A fim de entender a Cristologia de Nestório, devemos primeiro tentar esclarecer sua terminologia, pois o modo pelo qual sua teologia é interpretada depende grandemente do significado de termos como “natureza”, “hypostasis”, “prosopon”, “união”, etc.925 No Livro de Heráclides, o termo “natureza” freqüentemente aparece junto com o adjetivo “completa”. Como Nestório a vê, uma natureza pode ser tanto completa como incompleta. Naturezas incompletas são aquelas que ao virem juntas formam uma nova natureza – que pode também ser chamada de “composição natural”. Assim, por exemplo, o corpo e a alma são naturezas incompletas, pois sua união produz a natureza humana completa. Por outro lado, a natureza humana é completa, pois sua união com uma outra natureza completa – no caso de Cristo, a natureza divina – não produz uma nova natureza. O que faz uma natureza completa é a totalidade de suas “distinções”, “diferenças”, ou “características”; isto é o que Nestório chama de “separação”, embora este termo não deva ser entendido no sentido de uma distância, mas antes como de distinção, aquele caráter particular, que faz uma natureza definível e reconhecível. Quando Nestório se refere a uma natureza completa, ele freqüentemente usa o termo “hypostasis”. Esta hypostasis não é algo diferente da natureza em si, algo que é adicionado a uma natureza, mas antes é a própria natureza, visto que é “completa”. O termo “prosopon” é usado por Nestório – além de seu uso comum significando “função” e “indivíduo humano” – no sentido que ele tem dentro do contexto da doutrina trinitariana. 926 O Pai, o Filho e o Espírito Santo são três prosopa. Contudo, Nestório também o usa de um modo ambíguo, pois ele às vezes afirma que existem em Cristo duas prosopa, e 925

A sessão seguinte é grandemente dependente de Scipioni, Ricerche, pp. 45-97. Naturalmente, ele também usa o termo hypostasis em seu contexto trinitariano, embora prefira usar o termo prosopon. 926


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outras vezes afirma que existe apenas uma. Portanto, é necessário esclarecer as diferentes maneiras pelas quais Nestório usa o termo prosopon dentro de um contexto cristológico. Quando Nestório fala de duas prosopa em Jesus Cristo, ele está usando o termo no sentido de “prosopon natural”. Para ele, a prosopon natural é a forma de uma natureza, a totalidade das propriedades e distinções que fazem uma natureza completa, de modo que ela pode ser chamada de uma hypostasis. Cada natureza completa é conhecida e distinguida por sua prosopon. Portanto, no caso de Cristo, se a humanidade e a divindade devem subsistir como naturezas completas, sem serem dissolvidas numa terceira, cada uma delas deve ter sua própria prosopon. Por isso a alegação de que existem duas prosopa em Cristo. Existe um outro sentido no qual, de acordo com Nestório, deve-se afirmar que existe em Cristo apenas uma prosopon. Esta prosopon é aquilo que Nestório chama de “prosopon de união”, “prosopon da dispensação”, “prosopon comum”, ou “prosopon voluntária”. 927 Esta prosopon é a do Filho de Deus; ela é idêntica à segunda pessoa da Trindade.928 Em Jesus Cristo, Deus uniu a prosopon divina à natureza humana – mas isto de modo algum destrói as duas prosopa naturais, que correspondem a cada uma das duas “naturezas completas” ou hypostases que são unidas em Cristo. Acima de tudo, contudo, Nestório está empregando o termo “prosopon” em um sentido dinâmico que não está sujeito a distinção estática e ontológica. Pois Cristo ter uma prosopon divina significa que ele deseja o que Deus deseja, age como Deus age, e é a verdadeira revelação de Deus. Assim, para Nestório, não é uma questão de duas “naturezas”, como duas coisas diferentes, unindo-se em Jesus. A encarnação é antes um ser e ação dinâmica como a prosopon de Deus da parte do Jesus humano.929 O que podemos dizer, então, com relação à união da divindade e da humanidade em Cristo? Em primeiro lugar, Nestório crê que é necessário rejeitar toda interpretação que alegue que a união é “natural” ou “hipostática”. Como ele entende estes termos, uma união natural ou hipostática é aquele no qual duas naturezas unem-se para formar uma terceira. É uma união estática, completa. Se este fosse o caso em Cristo, não deveríamos falar de uma união, mas do resultado de uma união. Se as distinções das duas naturezas que são unidas desaparecem, a prosopa natural também desaparecerá, e, portanto, tudo que pode ser dito sobre a natureza resultante pode ser dito somente dela, e não de seus componentes. Além disso, apenas duas naturezas incompletas podem unir-se desta forma, e Nestório crê que a 927

Estas referências podem ser encontradas em Scipioni, Ricerche, pp. 59-60. Nestório nega que esta prosopon é o Verbo. Mas isto deve ser entendido à luz de seu uso dos termos “Filho” e “Verbo”. O úntimo é aplicado à Segunda Pessoa da Trindade; o primeiro é usado para a mesma Pessoa como uma prosopon distinta. Esta distinção não é real, mas simplesmente conceitual, e ela não significa que o “Filho” veio a existir somente depois da encarnação. 929 Um ponto feito de maneira hábil e cuidadosamente matizado por Chesnut, “The Two Prosopa”. 928


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integridade das duas naturezas que são unidas no Salvador é um princípio inviolável. Portanto, a união em Cristo não pode ser tal que as duas naturezas tornem-se apenas uma. A doutrina de uma união hipostática – que ele entende como sinônimo de união natural – é anátema para Nestório. Para Nestório, uma união natural é uma união de naturezas que ocorre na natureza e termina na natureza, enquanto que a união na prosopon ... é a união de naturezas e não de prosopa, que ocorre na prosopon e não na natureza, e termina na prosopon e não na natureza.930 A diferença fundamental entre estes dois tipos de união, é que a união “na prosopon” é dinâmica, e é constantemente renovada, como a união de um espelho com aquilo que ele reflete deve ser renovado e mantido a fim de que seja a verdadeira “prosopon” do refletido, embora que Nestório entenda o que seus oponentes estão propondo (a união “natural” ou “hipostática”) como uma mistura na qual as distinções que são próprias de cada natureza são misturadas e perdidas. Esta união é “voluntária” – um dos aspectos da doutrina de Nestório que foi mais severamente atacado. Isto não significa que é uma união puramente psicológica. Como Nestório o entende, o termo união voluntária não se refere primeiramente a uma união que é o resultado de uma decisão, mas uma decisão que não violenta as duas naturezas que são unidas. Uma união natural – isto é, uma união de duas naturezas incompletas a fim de formar uma terceira natureza – é involuntária, pois as naturezas unidas perdem suas propriedades. A união da divindade e da humanidade em Cristo é voluntária, não porque houve ali um ato de adoção – uma doutrina que Nestório condena explicitamente – mas porque nela nenhuma violência é feita às propriedades e distinções das naturezas. A união das duas naturezas em Cristo é voluntária no sentido de que ela resulta da livre vontade de Deus, bem como no sentido de que a vontade da natureza humana concorda com a vontade divina. Mas isto não significa que Nestório crê que a união pode ser corretamente interpretada como um mero acordo das duas vontades. Ao enfatizar a integralidade de cada uma das duas naturezas em Cristo, e reivindicar uma prosopon para cada uma delas, Nestório se coloca em uma posição na qual era difícil se reivindicar um sentido real para a união das duas naturezas, especialmente para aqueles que pensam em termos de “naturezas”, como faziam seus oponentes. Para ele, esta união é antes uma “associação”, de modo que cada uma das duas naturezas mantém seus próprios predicados, os quais não devem ser misturados e, ao mesmo tempo, partilham ativamente na união em si mesma. Portanto, ele podia não aceitar a doutrina da communicatio idiomatum, a 930

Scipioni, Ricerch, p. 76.


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qual era comum naquele tempo, não apenas entre os teólogos alexandrinos, mas também entre os do Ocidente e, numa certa extensão, até mesmo entre os antioquianos mais moderados. Esta é a base para sua oposição ao título Genitora de Deus como aplicado a Maria.931 Maria não é a Genitora de Deus, porque Deus não pode ter uma mãe. A distinção entre a criatura e o Criador impede tal possibilidade. Maria é a mãe do ser humano que serve como um “instrumento” ou “templo” para a divindade, e não da própria divindade. Maria é “Genitora do ser humano”, ou mais exatamente “Genitora de Cristo”, mas não “Genitora de Deus”. Afirmar o oposto seria “misturar as naturezas”, e resultaria numa terceira natureza que não poderia nem ser humana nem divina, mas uma natureza intermediaria. Onde Nestório se fez vulnerável, foi em sua excessiva distinção entre as naturezas humana e divina de Cristo, e em sua inabilidade para falar de sua união em termos suficientemente fortes. Se o relacionamento entre as duas naturezas é tal que a cada passo podemos e devemos fazer distinção entre elas, como é possível dizer que Deus habitou entre nós? Portanto, a controvérsia nestoriana não teve simplesmente a ver com se Maria era ou não a Mãe de Deus, mas também, e principalmente, com a pessoa e a obra de Jesus Cristo932 embora fosse desastroso para Nestório que suas outras preocupações teológicas o levassem a atacar um título dado a Maria que, naquele tempo, desenvolvera raízes firmes na adoração e piedade. Foi contra esta Cristologia “divisiva” de Nestório, que Cirilo desenvolveu sua Cristologia. Antes do início da controvérsia, Cirilo sustentava uma Cristologia que estava muito próxima a de Apolinário, pois, embora ele concordasse que havia uma alma humana em Cristo, esta alma não tinha importância cristológica. Na base de sua Cristologia permanece a idéia de que um ser humano é um espírito encarnado e que, consequentemente, um espírito torna-se humano, não por unir-se a uma alma, mas ao unir-se a uma carne. Dentro desta perspectiva, a alma não conta no processo da encarnação.933 Além disso, Cirilo estava propenso ao apolinarianismo porque em alguns textos que ele cria virem de mãos muito ortodoxas, mas que, na verdade, eram apolinários, ele encontrou a fórmula “uma natureza encarnada do Verbo de Deus”. Esta fórmula, como usada no apolinarianismo, negava a integralidade da humanidade de Cristo, a qual não poderia ser chamada de uma “natureza”, pois ela não tinha alma. Assim, Cirilo, ao aceitar esta fórmula 931

Cp. O Livro de Heráclides, 129, 136, 244. Também, Loofs, Nestoriana, p. 252. Após a controvérsia, Nestório chegou à conclusão de que havia um lugar válido para a communicatio idiomatum, pelo menos no que se refere aos eventos centrais da salvação. Deste modo, ele afirma no Livro de Heráclides (118) que através da encarnação Deus desejou atribuir morte a prosopon divina, de modo que a vitória pudesse ser atribuída à humanidade. 933 Jacques Liébaert, La doctrine christologique de saint Cyrille d’Alexandrie avant la querelle nestorienne (Lille: Facultés catholiques, 1951), p. 158. 932


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como parte da tradição ortodoxa, colocou-se em terreno muito instável. Mas a controvérsia nestoriana, e mais tarde as negociações com João de Antioquia, o forçaram a elaborar e a definir sua doutrina cristológica. Segundo a Cristologia que Cirilo desenvolveu, o divino e o humano são unidos em Cristo em uma “união hipostática” – um termo que pode também pode ter sido novo com Cirilo,934 e que mais tarde se tornaria uma marca de ortodoxia. Ele entendia esta união nos termos da fórmula apolinariana “uma natureza de Deus o Verbo encarnado”. Mas isto não significa que a terminologia daqueles que falavam de “duas naturezas” era totalmente inaceitável para ele. Pelo contrário, ele mesmo fala, de vez em quando, de duas naturezas, embora sempre deixando claro que elas não podem ser separadas.935 Igualmente, ele fala da humanidade de Cristo como uma “hypostasis”. 936 Mas, por outro lado, tanto “natureza” quanto “hypostasis” bem como “prosopon” podem ser usadas para se referir a este ser que tem sua própria subsistência individual.937 É neste último sentido que ele entende a fórmula “uma natureza de Deus o Verbo encarnado”. Neste sentido, a humanidade de Cristo não tem sua própria hypostasis ou natureza, pois ela não subsiste em si mesma, mas apenas na hypostasis do Verbo.938 De acordo com alguns historiadores, Cirilo afirma que o Verbo uniu-se à humanidade em geral, e não a um ser humano individual. 939 Esta interpretação alega que Cirilo tomou esta posição por causa da influência do Platonismo. Existem alguns textos que parecem apoiar esta interpretação.940 Mas Cirilo, de fato, não nega a individualidade da natureza humana do Salvador. Quando ele diz que a humanidade do Senhor não tem sua hypostasis própria, Cirilo deseja apenas indicar que ela não subsiste por si mesma, mas que o princípio de sua subsistência está no Verbo.941 Esta doutrina da “união hipostática” do divino e do humano em Cristo, é o fundamento da communicatio idiomatum. Como o Verbo é a “hypostasis” ou o princípio de subsistência 934

Cp. Grillmeier, Christ, p. 412, n.1. Vários textos são citados por Hubert du Manoir de Juaye, Dogme et spiritualité chez saint Cyrille d’Alexandrie (Paris: J. Vrin, 1944), pp. 126-128. 936 Ibid., pp. 129-130. 937 Ibid., pp. 131-132. 938 É também neste sentido que a distinção deve ser entendida: duas naturezas antes da união, uma depois. Em um sentido ideal, poderíamos pensar sobre a natureza humana subsistindo em si mesma; mas de fato – após a união – isto nunca aconteceu. 939 Esta é a interpretação de Harnack, HD, 4:176: “O que realmente é característico na posição de Cirilo é sua rejeição expressa de que um homem individual estava presente em Cristo, embora ele atribua a Cristo todos os elementos da natureza humana”. 940 Cp. du Manoir de Juaye, Dogme, pp. 263-264. Também, Cirilo, Ep. 45.2. 941 A principal objeção a esta interpretação da Cristologia de Cirilo está baseada sobre os textos nos quais ele diz que “todos nós estávamos em Cristo”, ou que “o Verbo veio habitar em todos através de um”. Mas estes textos deveriam ser entendidos à luz do conceito da unidade da humanidade de Cirilo, que o leva a fazer diversas afirmações com relação a Adão – e não há dúvida de que ele cria que Adão era um homem individual. Além disso, se Cirilo sustentasse que em Cristo o Verbo estava unido a humanidade em geral, seus rivais antioquianos teriam se apressado em atacá-lo por causa disto, o que eles não fizeram. 935


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da humanidade do Salvador, ela é para ele – isto é, para o Verbo – que tudo aquilo que é dito sobre esta humanidade deve ser apresentado. Maria é Mãe de Deus, não porque a divindade de Cristo começou a existir nela – o que seria absurdo – mas porque ela é a mãe de uma humanidade que subsiste apenas por sua união com o Verbo, e da qual devemos portanto dizer que todos os seus predicados são aplicados a este Verbo.942 Portanto, é necessário afirmar, não somente que Deus nasceu de uma virgem, mas também que Deus andou na Galiléia, sofreu e morreu.943 Quanto a Nestório, Cirilo nunca fez uma tentativa real de entender seu pensamento. Pelo contrário, fez uma caricatura da teologia de seu oponente, e então atacou esta caricatura. Segundo ele, Nestório não fazia distinção entre o modo pelo qual o Verbo habitou em Cristo, e o modo pelo qual o Espírito habitou nos profetas do Velho Testamento. Segundo ele, Nestório afirma que Cristo era apenas um homem portador de Deus. De acordo com ele, Nestório ensina que a união do divino e do humano em Cristo começou somente depois do nascimento de Jesus. De acordo com ele, em resumo, Nestório é um mero adopcionista, semelhante a Teódoto ou Paulo de Samosata. Na realidade, os ensinos de Cirilo eram tão vulveráveis quanto os de Nestório. Se o último achou difícil mostrar como ele entendia o divino e o humano serem relamente unidos em Cristo, Cirilo – pelo menos em seus primeiros anos – enfatizou a unidade do Salvador a tal ponto que era difícil para ele mostrar em que sentido ele era verdadeira e totalmente humano, e evitar ter esta humanidade absorvida pelo Verbo que estava unido a ela. E todavia, Cirilo é conhecido pela posteridade como um dos principais defensores da Cristologia ortodoxa, enquanto que Nestório é listado entre os grandes hereges da história do Cristianismo. Esta boa sorte de Cirilo é devida em grade parte à moderação que ele foi forçado a mostrar em suas negociações com João de Antioquia, e com os outros teólogos desta escola. Isto, por sua vez, o levou a explicar sua própria doutrina contra seus antigos aliados, que se voltaram contra ele por causa de sua moderação ao reconciliar-se com o grupo antioquiano. Mas apesar disto, Cirilo sempre enfatizou a unidade do Salvador acima de toda distinção entre as duas naturezas. Ele cria que a frase apolinariana “uma natureza de Deus o Verbo encarnado” era estritamente ortodoxa, e desenvolveu sua Cristologia de tal modo que estivesse de acordo com esta fórmula. Esta é a razão porque, no próximo episódio das controvérsias cristológicas, o grupo monofisita foi capaz de reivindicar o apoio recém-falecido Cirilo.

942 943

Ep. 1, 4, 17; Quod sancta Virgo deipara sit et non Christipara; Quod beata Maria sit deipara. Ver Sellers, Two Ancient Christologies, p. 88.


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XVIII. O CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA A fórmula conciliatória de 433 A.D. não poderia ser mais do que uma breve trégua na longa luta entre a Cristologia alexandrina e a antioquiana. Embora Cirilo tenha alcançado uma vitória importante na condenação de Nestório, os eventos subseqüentes provaram que ele deveria ter sido mais moderado em suas tentativas de impor seu próprio entendimento da Cristologia. É isto que o levou a aceitar a fórmula conciliatória de 433 A.D., à qual foi fiel pelo resto de sua vida. Mas o próprio Cirilo, em sua luta contra Nestório, tinha desencadeado forças que eram difíceis de conter. Muitos de seus antigos aliados, convencidos como estavam de que a verdadeira fé requeria a confissão da natureza única do Salvador, e de que toda aceitação da doutrina antioquiana das duas naturezas era equivalente a apostasia, se recusaram a considerar a paz de 433 A.D. como definitiva.944 Por outro lado, algo semelhante tinha ocorrido entre os antioquianos. Embora João de Antioquia não abandonasse o que seus mais extremos aliados consideravam ser a verdadeira fé – pois a fórmula de 433 afirmava a dualidade de naturezas no Salvador – ele traiu Nestório, seu antigo aliado, que segundo eles não tinha cometido nenhum outro crime senão o de atacar o erro daqueles que confundiam divindade com humanidade. 945 Por causa desta situação, o delicado equilíbrio alcançado em 433 não poderia durar muito. Logo que as circunstâncias permitissem, o conflito eclodiria novamente. Isto foi o que aconteceu quando em 444 AD. Dióscoro sucedeu Cirilo como patriarca de Alexandria. Dióscoro foi muito além de seu predecessor tanto em seu zelo pelo que ele cria ser ortodoxia, quanto em sua disposição de usar todos os meios disponíveis para alcançar a vitória final de sua própria causa. Ele via a fórmula conciliatória de 433 como uma vitória da heresia sobre a verdadeira fé, e como uma humilhação da antiga diocese de Alexandria, a qual deveria gozar a primazia sobre o Oriente. Quando Dióscoro sucedeu Cirilo, as circunstâncias pareciam estar colocadas de maneira ideal para o projeto de alcançar a destruição final da Cristologia antioquiana, bem como da humilhação da diocese de Antioquia. Na antiga cidade síria, o trono episcopal era ocupado por Domnus, que tinha sucedido João em 441 A.D. e estava mais interessado na vida monástica do que na participação ativa em questões eclesiásticas. Por isso ele confiou o governo de sua diocese a Teodoreto de Cyrus. Teodoreto era respeitado por muitos por causa de sua grande erudição, mas ele também era bastante suspeito por causa de seus estritos laços 944

Uma situação muito bem descrita por Sellers, Chalcedon, pp. 22-29. Cp. P. Th. Camelot, “De Nestorius à Eutychès: l’opposition de deux christologies”, DKvCh, 1:213-242. 945 Enquanto que alguns membros do grupo antioquiano estavam dispostos a declarar Cirilo ortodoxo, mas não condenar Nestório, outros foram mais adiante, alegando que Cirilo era um herege e que estar de acordo com a conciliação com ele, João traia a verdadeira fé. Ver Sellers, Chalcedon, pp. 20-22.


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pessoais com Nestório. Portanto, o bispo de Antioquia e seu colega estavam em uma posição muito vulnerável. Além disso, as condições políticas também favoreciam Dióscoro, pois Teodósio II, estando muito velho e fraco para governar, praticamente tinha colocado os afazeres do estado nas mãos do Grande Chamberlain Crisafio, que era facilmente tentado pelo ouro alexandrino. Finalmente, Dióscoro tinha o apoio de um bando de monges espalhados por todo o Oriente – e até mesmo em Antioquia – que estavam implorando por uma oportunidade de defender a verdadeira fé contra os hereges. As atividades de Teodoreto em Antioquia foram a ocasião para o ataque de Dióscoro. Teodoreto tinha proibido um certo Pelágio – não deve ser confundido com o outro monge do mesmo nome, que deu origem ao “Pelagianismo” – de ensinar teologia, pois suas doutrinas eram opostas às que eram usualmente sustentada pelos teólogos antioquianos. Um pouco mais tarde, Teodoreto escreveu três diálogos que são normalmente conhecidos como Eranistes, nos quais ele defendia a doutrina das duas naturezas. É uma obra moderada e reverente; mas não deixa dúvidas quanto a opinião de seu autor com relação aqueles que “confundem” as duas naturezas de Cristo. Dióscoro viu nas atividades de Teodoreto o elo fraco na corrente antioquiana. Ele fez Crisafio convencer o imperador a publicar um édito “anti-nestoriano” que, de fato, era dirigido contra a Cristologia antioquiana. Como era de se esperar, este édito causou uma tal consternação em Antioquia que desde então sobre ela foi fácil para Dióscoro alegar com base nela que Teodoreto e seus seguidores eram rebeldes. Como resultado, o imperador ordenou a Teodoreto permanecer em Cyrus e parar de perturbar a paz com seus sínodos e outras atividades. Teodoreto tentou continuar sua obra de Cyrus, principalmente através de seus escritos; mas era evidente que Dióscoro tinha arranjado para restringir o campo de ação do mais famoso teólogo antioquiano vivo. O assunto poderia ter terminado aqui; mas Dióscoro estava determinado a obter a vitória final de Alexandria sobre Antioquia, e por isso ele decidiu usar o caso de Eutico como um meio para um fim. Eutico era um monge em Constantinopla, onde ele era admirado por muitos e respeitado pela maioria, pois ele era padrinho de Crisafio. Quanto a sua doutrina, ele era um oponente decidido do Nestorianismo e de toda doutrina que parecia aproximar-se dele; mas ele não formulou sua própria Cristologia em termos precisos. Em 448 A.D., em um sínodo local reunido em Constantinopla, Eutico foi acusado de heresia por Eusébio de Doriléia, que era conhecido por seu zelo anti-herético, ao ponto de alguns de seus colegas teólogos sentirem que sua atitude era excessivamente belicosa. Ao atacar Eutico, Eusébio baseou seu caso sobre o fato de que o monge se recusava a aceitar a fórmula conciliatória de 433 A.D., a qual os bispos reunidos em Constantinopla consideravam


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um padrão de ortodoxia. Na verdade, Eutico não estava sozinho em negar da validade da fórmula de 433, pois muitos de seus colegas orientais não estavam muito dispostos a aceitar a doutrina das duas naturezas contida nesta fórmula; mas Eutico, talvez confiando no apoio de Crisafio e Dióscoro, se opôs abertamente ao acordo de 433. Depois de uma longa série de manobras de ambos os grupos, Eutico compareceu diante do sínodo constantinopolitano, embora – provavelmente para mostrar que os bispos reunidos ali estavam lidando com um personagem importante – ele veio cercado por soldados e oficiais da corte. Parece que ele não estava consciente de que era simplesmente um instrumento para os desígnios de Dióscoro, que parece ter instruído o emissário imperial a tornar certa a condenação de Eutico. Após tal condenação, Dióscoro se tornaria o defensor da causa de Eutico, e ao alcançar sua reintegração ele também daria um golpe fatal em seus oponentes. Como Dióscoro esperava, Eutico foi condenado pelo sínodo de Constantinopla. É difícil determinar qual era exatamente a doutrina de Eutico.946 Ele se recusou a aceitar as fórmulas “consubstancial a nós” e “duas naturezas após a encarnação” – ambas tomadas da fórmula conciliatória de 433 A.D. – embora ele estivesse disposto a afirmar que o Salvador era “de duas naturezas antes da união”. Mais tarde alegou-se que ele dissera que o corpo humano de Cristo desceu do céu. Mas isto parece ser um exagero, e provavelmente o que Eutico ensinava era que, por causa da encarnação, o corpo de Cristo foi deificado de tal modo que ele não era mais “consubstancial a nós”. De qualquer modo, não há dúvida de que Eutico era – como o papa Leão diz – “muito imprudente e excessivamente ignorante”,947 e que sua interpretação de Cirilo – em quem ele alegava basear sua teologia – era muito superficial. O mesmo pode ser dito com relação a sua interpretação de Nestório, que o levou a achar “Nestorianismo” em cada afirmação das duas naturezas em Cristo. Provavelmente é conveniente que aquele que deu o nome de Cirilo e Nestório as doutrinas que estes teólogos nunca sustentaram, dê seu próprio nome a uma doutrina que ele mesmo nunca sustentou – Eutiquianismo. Depois de ser condenado pelo sínodo de Constantinopla, Eutico apelou para os bispos das principais dioceses, inclusive para Leão, o bispo de Roma. De sua parte, Flaviano, o patriarca de Constantinopla que presidiu o julgamento de Eutico, também escreveu para Roma. Provavelmente é isto que Dióscoro esperava, pois agora o conflito local se tornaria universal, e portanto havia uma boa razão para se convocar um concílio geral, que não seria difícil para Dióscoro controlar. Se este concílio absolvesse Eutico e condenasse aqueles que o julgaram, isto seria uma grande vitória para Dióscoro, e para a diocese de Alexandria. Entretanto, a fim de mostrar a necessidade de um concílio geral, Dióscoro rejeitou as decisões 946

Ver A. van Roey, “Eutychès”, DHGE, 16:87-91; Camelot, “De Nestorius à Eutichès”, pp, 235-242.


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do sínodo que se reunira em Constantinopla e ofereceu comunhão a Eutico. Finalmente, o imperador convocou um concílio que devia reunir-se em Éfeso, em 449 A.D. Este concílio teve a presença de 130 bispos, e desde o início estava claro que Dióscoro – a quem o imperador tinha designado para presidir a assembléia – não estava disposto a tolerar qualquer oposição a sua própria política. Inesperadamente para Dióscoro, Roma tomou partido contra ele, pois o Papa Leão enviou a Flaviano de Constantinopla uma epístola – normalmente conhecida como a Tomo – na qual ele apoiava a condenação de Eutico. Embora a Tomo seja conciliatória no tom, ela claramente declara que Eutico foi condenado corretamente, e mostra a posição cristológica do próprio Leão. Segundo o Papa, Eutico deve ser contado entre aqueles que “sobressaem como mestres do erro porque nunca foram discípulos da verdade”, 948 e seu principal erro consiste em negar a consubstancialidade do Salvador com a humanidade, pois a glória da encarnação não destrói a natureza humana de Cristo. “Pois como Deus não é mudado por mostrar compaixão, assim o homem não é absorvido pela dignidade”.949 Pelo contrário, a distinção das duas naturezas é necessária mesmo depois da união. Sem detrimento, portanto, das propriedades igualmente da natureza e da substância que então uniram-se em uma pessoa, a majestade assumiu a humildade, a força a fraqueza, a eternidade a mortalidade: e para pagar nosso débito pertencente a nossa condição a natureza inviolável uniu-se a natureza passível. ... Assim na inteira e perfeita natureza do verdadeiro homem o verdadeiro Deus nasceu, completo no que era dele mesmo, completo no que era nosso.950 ... O Verbo cumprindo o que compete ao Verbo, e a carne carregando o que compete à carne. Um deles brilha com milagres, o outro sucumbe a injúrias. E como o Verbo não deixa de estar em igualdade com a glória de Seu pai, assim a carne não renuncia a natureza de nossa raça.951 Isto não significa, contudo, que Leão “divide” as naturezas como Nestório era acusado de fazer, pois ele afirma categoricamente que em Cristo existe apenas uma pessoa, e que esta unidade deve ser reafirmada constantemente. “Pois deve ser freqüentemente repetido que um e o mesmo é verdadeiramente Filho de Deus e verdadeiramente filho do homem”. 952 947

Ep. 28.1 (NPNF, 2a série, 12:38). Ibid. 949 Ibid., 4 (NPNF, 2a série, 12:40). Esta é a razão porque Leão não pode aceitar a fórmula de Eutico “de duas naturezas antes da encarnação, e em uma natureza após a união”. Isto implicaria em que a humanidade tinha sido absorvida pela divindade, (ibid., 6). 950 Ibid., 3 (NPNF, 2a série, 12”40) Note o uso de “natureza” e “substância” como sinônimos, como fora feito muito antes por Tertuliano. 951 Ibid., 4 (NPNF, 2a série 12:40-41). 952 Ibid., (NPNF, 2a série, 12:40-41). Há uma excelente análise do Tomo de Leão no livro “S. León Magno e el ‘Tomus ad Flavianum’”, de U. Domínguez del Val, Helmantica, 13 (1962), 193-233. Ver também B. Studer, “Consubstantialis Patri-Consubstantialis Matri: Une antithèse christologique chez Léon le Grand”, RevEtAug, 18 (1972), 87-115. 948


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Nesta exposição da doutrina cristológica, Leão não está inovando, nem tentando ser original. Pelo contrário, sua fórmula é a mesma que foi usada por Teruliano dois séculos e meio antes, embora seja verdade que Tertuliano somente se referiu a “uma pessoa” incidentalmente, e que, uns poucos anos antes, Leão tomou a obra de Ambrósio, Jerônimo e Agostinho, para difundir no Ocidente uma fórmula que já podia ser encontrada em Tertuliano.953 Assim, na controvérsia que ocorreu em torno de Eutico, as três principais correntes cristológicas da Igreja Primitiva encontraram-se: a alexandrina, a antioquiana e a do Ocidente. Todas concordavam que era necessário afirmar a união da divindade e da humanidade em Jesus Cristo, mas não concordavam quanto a como isto devia ser feito. Os alexandrinos tinham uma longa tradição de mestres que – abandonando Orígenes neste ponto – tentaram encontrar uma fórmula de união propondo uma doutrina cristológica do tipo Logos-carne. Em Apolinário esta doutrina alcançou sua conclusão natural, e desde aquele tempo nenhum teólogo ortodoxo conscientemente a apoiou. Mas houveram algumas obras que eram apolinarianas na origem, mas que circularam sob o nome de teólogos ortodoxos – particularmente Atanásio – e isto levou os alexandrinos a continuarem procurando soluções semelhantes à de Apolinário. Durante o quinto século, a mais comum foi a doutrina de Cirilo concernente a união hipostática e a falta de uma hypostasis humana em Cristo. Contudo, alguns de seus próprios sucessores viram sua doutrina como uma aproximação extremamente perigosa da “divisão das naturezas”, e retornaram à antiga afirmação da natureza única do Salvador. Naturalmente, como Cirilo era muito respeitado e afirmara que Cristo era “de duas naturezas”, era necessário resolver esta dificuldade, e os alexandrinos o fizeram através da fórmula “de duas naturezas antes da encarnação; em uma natureza após a união”. Isto é, que Cristo era verdadeiramente humano e divino, mas que esta distinção somente poderia ser feita em um nível intelectual – “antes da encarnação” – pois “após a união” a humanidade foi absorvida pela divindade a tal ponto que não era mais possível falar de uma natureza humana como tal. Os teólogos antioquianos partiram da realidade humana do Salvador, embora depois dos casos de Paulo de Samosata e de Eustátio de Antioquia, eles se convenceram de que também era necessário afirmar sua divindade pessoal. Além disso, após a condenação de Nestório, os antioquianos em geral tornaram-se conscientes de que a negação da communicatio idiomatum era, de fato, uma negação da própria encarnação, e portanto, da obra salvadora de Jesus Cristo. Por esta razão eles se dispunham a afirmar que a união da humanidade e da divindade em Cristo era tal, que uma verdadeira communicatio idiomatum 953

Ver Tarsicius J. van Bavel, Recherches sur la christologie de saint Augustin: L’human et le divin dans le


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poderia ocorrer. Mas eles não estavam prontos para aceitar a doutrina que “confundiria” a divindade com a humanidade, de modo que a última perdesse sua caracter próprio. Finalmente, os teólogos ocidentais partiram da antiga fórmula de Tertuliano, como generalizada por Ambrósio, Jerônimo e Agostinho. Como o Ocidente estava começando a conceber a obra salvadora de Cristo no que mais tarde seria sua forma característica, isto é, como o pagamento de um débito que a humanidade devia a Deus, era necessário afirmar que o Salvador era de um modo que esta obra pudesse ser realizada. Isto exigia a união da divindade e da humanidade em Cristo, mas não exigia qualquer entendimento particular desta união. Portanto, era suficiente repetir a antiga fórmula, embora mostrando ao mesmo tempo que isto não significa que a humanidade do Salvador foi absorvida por sua divindade. Isto é o que Leão fez em seu Tomo. Estas três correntes teológicas encontraram-se no concílio reunido em Éfeso, em 449 A.D. O resultado deste concílio poderia ser predito mesmo antes de sua primeira sessão. Dióscoro tinha o apoio de Crisafio, e através dele do próprio imperador. Além disso, ele trouxera consigo uma hoste de bispos e monges fanáticos que estavam dispostos a obter a vitória da “verdadeira fé” a todo custo. Teodoreto de Cyrus, o mais hábil dos defensores da causa antioquiana, recebeu ordens do imperador proibindo-o de tomar parte nas sessões do concílio. Finalmente, em um decreto publicado dois dias antes do concílio começar, o imperador indicou Dióscoro para presidir a assembléia, e lhe deu autoridade para impor silêncio sobre qualquer um que tentasse adicionar ou subtrair algo da fé proclamada pelos bispos reunidos em Nicéia (325) e em Éfeso (431).954 Sob tais condições, o concílio de Éfeso de 449 A.D. não poderia ser nada mais senão aquilo de que Leão o chamou mais tarde: “um sínodo de ladrões”.955 Apesar dos protestos de Flaviano e do emissário papal, o Tomo de Leão nunca foi lido. Parece que Flaviano foi tratado com tal violência que morreu alguns dias depois. Eusébio de Doriléia, que foi o primeiro a acusar Eutico, foi condenado e deposto por ensinar a doutrina das “duas naturezas após a união”. Eutico foi declarado perfeitamente ortodoxo, e vários dos bispos que anteriormente o tinham condenado, agora mudaram sua posição, e anatematizaram aqueles que condenaram Eutico. Em seguida, o concílio ocupou-se da tarefa de condenar e depor os principais expoentes da Cristologia antioquiana – entre eles, Domnus de Antioquia, Teodoreto de Cyrus

Christ d’après saint Augustin (Fribourg, Switzerland: Éditions universitaires, 1954), pp. 176-180. O concílio de Éfeso de 431 A.D. tinha proibido qualquer um de “propor, escrever, ou redigir uma fé diferente, além daquela que foi anunciada pelos santos pais reunidos em Nicéia com o Espírito Santo”. Isto é o que é conhecido como “o cânon efesiano”, e foi a base para este decreto imperial bem como para muito da oposição posterior às decisões tomadas em Calcedônia. 955 Ep. 95.2: “in illo ephesino non iudicio sed latrocinio”. 954


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e Ibas de Edessa.956 Finalmente, o concílio decretou que, a partir daquele tempo, somente aqueles que não sustentavam as doutrinas de Nestório e seus seguidores poderiam ser ordenados. Parecia ter ocorrido assim a vitória final de Alexandria sobre Antioquia, tanto teológica quanto politicamente. O papa Leão não se sentia inclinado a aceitar os decretos e decisões de um concílio que considerava ser uma reunião de ladrões. Logo ele recebeu cartas de Flaviano, Teodoreto e de Eusébio de Doriléia, Além disso, o diácono Hilário, que tinha feito parte da delegação papal a Éfeso, trouxe notícias imediatas com relação ao modo pelo qual o concilio tinha sido conduzido. Imediatamente, Leão começou sua campanha contra o que tinha ocorrido em Éfeso. Ele escreveu aos bispos, monges, políticos e até mesmo a membros da família imperial. Mas todos os seus esforços foram em vão. O imperador e aqueles que governavam com ele não estavam dispostos a abrir novamente a discussão que levara ao recente concílio de Éfeso. A situação mudou radicalmente quando, menos de um ano após o “sínodo de ladrões”, o imperador caiu de seu cavalo e morreu. Ele foi sucedido por sua irmã Pulcheria e seu esposo Marcião. Pulcheria sempre foi uma das principais esperanças do papa Leão – de fato, é provável que uma das razões porque ela foi expulsa da corte, durante o reinado de seu irmão, foi sua oposição a Dióscoro e a Crisafio.957 Agora ela e seu esposo puseram-se a desfazer o que tinha sido feito pelo recente concílio de Éfeso. Logo os bispos que tinham sido depostos por Dióscoro retornaram a seus postos; os restos mortais de Flaviano foram trazidos com grande pompa para a Basílica dos Apóstolos; o novo bispo de Constantinopla, que anteriormente seguia Dióscoro, agora declarava-se a favor do Tomo de Leão; nas províncias, muitos seguiram o exemplo do bispo da capital; finalmente, os imperadores chamaram os bispos para reunirem-se em um novo concílio em Nicéia, em Maio de 451 A.D. Por razões práticas, este concílio – que geralmente é conhecido como o Quarto Concílio Ecumênico, embora as assim chamadas igrejas nestorianas e monofisitas não o reconhecessem – ocorreu na Clacedônia.958 Quinhentos e vinte bispos – o maior número jamais reunido em um concílio até aquele tempo – reuniu-se na Basílica de Santa Eufêmia,959 juntamente com uma delegação imperial de dezoito membros. Aceitando o requerimento da delegação papal, o concílio começou a discutir o caso de 956

Ibas é importante para o desenvolvimento posterior da teologia cristã porque, através de seu estrito relacionamento com Barsumas de Nisibis, ele é um dos elos que explicam o assim chamado Nestorianismo da escola de Nisibis e do Cristianismo persa. O próprio Ibas, contudo, não era nestoriano, apesar do que o concílio de 449 decidiu a respeito dele. 957 Ver Paul Goubert, “Les rôle de Saint Pulchérie et de l’eunuque Chrysaphios”, DKvCH, 1:303-321. 958 Ver Sellers, Chalcedon, pp. 254-301; Monald Goemans, “Chalkedon als ‘Allegemeines Konzil’,” DKvCH, 1:251-289. 959 Ver Evagrius, HE 2.3. Também, Alfons M. Schneider, “Sankt Euphemia und das Konzil von Chalkedon”, DKvCH, 1:291-302.


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Dióscoro e do sínodo de 449 A.D. Os atos deste sínodo foram lidos e discutidos, e no final da leitura vários bispos que tinham participado da reunião anterior confessaram que permitiramse ser influenciados por ameaças e pelo medo; outros alegaram que foram confundidos. Dióscoro permaneceu firme em sua posição, afirmando que Cristo era “de duas naturezas” mas não “em duas naturezas”, e que este foi o motivo pelo qual Flaviano, Domnus, Ibas e o restante foram depostos. O resultado foi que Dióscoro foi condenado, deposto e banido. Ele morreu algum tempo depois, ainda no exílio, venerado pelos monofisitas, que o viam como o grande defensor da verdadeira fé, e quase esquecido pelos ortodoxos, para quem ele não passava de um fanático que fez uso do poder e influência de sua diocese para impor sua doutrina sobre outros. Seus companheiros do “sínodo de ladrões” foram perdoados quando confessaram seu erro anterior. Finalmente, os bispos que tinham sido depostos em 449 por Dióscoro e seus seguidores retornaram a suas dioceses – exceto Domnus de Antioquia, que preferiu continuar uma vida monástica retirada em vez de reassumir as responsabilidades do episcopado. Algumas dificuldades foram encontradas pelo concílio quando passou a redigir uma confissão de fé. O sétimo cânon do Terceiro Concílio Ecumênico (Éfeso, 431 A.D.) dizia que ninguém devia redifir ou propor uma fé diferente daquela que tinha sido afirmada em Nicéia. Muitos entenderam isto como uma proibição de anunciar novos credos, e por isso se opunham ao fato de o concílio de Calcedônia redigir uma fórmula doutrinária. Esta oposição teve de ceder perante a pressão imperial, bem como diante dos fatos óbvios de que o símbolo de Nicéia não era suficiente para por fim a controvérsia à mão, pois ambos os lados do presente debate desejavam aceitar este credo e reivindicá-lo em seu apoio. Uma outra dificuldade foi encontrada nas diferenças entre Cirilo e Leão. Cirilo sempre preferia falar de “uma natureza encarnada do Verbo de Deus”, e era considerado suspeito por aqueles que distinguiam muito claramente ente aquilo que corresponde à divindade de Cristo e aquilo que corresponde a sua humanidade. Quando às duas naturezas, Cirilo se inclinava a falar delas “antes da encarnação”, e até mesmo dizia que Cristo era “de duas naturezas”, mas ele nunca tinha dito que ele era “em duas naturezas”. Em oposição a isto, o Tomo de Leão afirmava que em Cristo haviam duas naturezas após a união, e que era possível distinguir entre a humanidade e a divindade de Cristo, de modo que algumas coisas podiam ser atribuídas a uma e algumas coisas a outra, embora sem esquecer a communicatio idiomatum, sem a qual a encarnação seria sem sentido.960 Ambas as fórmulas eram compatíveis, contanto que não se entendesse a frase “de duas naturezas” de tal modo que ela implicasse que a dualidade de naturezas existia somente em um momento ideal, “antes da encarnação”, e que 960

Ver Paul Galtier, “Saint Cyrille d’Alexandrie et Saint Léon le Grand à Chalcédoine”, DKvCH, 1:345-387.


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na pessoa concreta de Jesus Cristo, “após a união”, havia somente uma natureza. Esta última era a posição que Eutico tomara no sínodo de Constantinopla que o condenou, e foi também a declaração do sínodo de Éfeso em 449 A.D. Por esta razão os delegados ocidentais e alguns antioquianos, embora aceitando a autoridade e a ortodoxia de Cirilo, consideravam que sua fórmula “de duas naturezas” era insuficiente, e preferiram a fórmula “em duas naturezas”.961 Após longos debates que não é necessário discutir aqui, 962 uma fórmula foi redigida, conhecida pela posteridade como a Definição de Fé de Calcedônia. Seguindo, então, os santos Pais, todos nós a uma voz ensinamos que deveria ser confessado que nosso Senhor Jesus Cristo é um e o mesmo Deus, o Mesmo perfeito em Divindade, o Mesmo perfeito em humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, o Mesmo [consistindo] de uma alma racional e um corpo; homoousios com o Pai quanto a sua Divindade, e o Mesmo homoousios conosco quanto a sua humanidade; em todas as coisas como nós, somente exceto em pecado; gerado do Pai antes dos tempos quanto a sua Divindade, e nos últimos dias, o Mesmo, por nós e para nossa salvação, de Maria a Virgem Theotokos quanto a sua humanidade; Um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, feito conhecido em duas naturezas963 [que existem] sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação; a diferença de naturezas de modo algum tendo sido tomada em razão da união, mas antes as propriedades de cada uma sendo preservadas, e [ambas] concorrendo em uma pessoa (prosopon) e uma hypostasis – não partida ou dividida em duas pessoas (prosopa), mas um e o mesmo Filho e Unigênito, o Logos divino, o Senhor Jesus Cristo; mesmo como os profetas do velho [tem falado] concernente a ele, e como o próprio Senhor Jesus Cristo nos ensinou, e como o Símbolo dos Pais nos tem entregue.964 Compondo e aceitando esta fórmula, e também sancionando o Tomo de Leão e as epístolas doutrinais de Cirilo, os bispos reunidos em Calcedônia criam não estar violando o cânon efesiano que proibia o ensino de uma fé diferente da de Nicéia. Pelo contrário, para eles a Definição de Fé de Calcedônia parecia um comentário sobre a fé de Nicéia, embora relacionando esta fé com as controvérsias que se desenvolveram após o Grande Concílio. O credo da Igreja ainda seria o de Nicéia, embora fosse agora interpretado como proposto pela 961

Alguns antioquianos extremados foram mais adiante, e alegaram que a fórmula “de duas naturezas” era equivalente à fórmula apoloniariana “uma natureza encarnada do Verbo de Deus”, e deveria ser condenada. 962 Ver Sellers, Chalcedon, pp.103-123. 963 Alguns manuscritos gregos dizem “de duas naturezas”. Mas não há dúvida de que a maioria dos manuscritos gregos, bem como as versões antigas, estão corretas em sua leitura: “em duas naturezas”. 964 Tradução tirada de Sellers, Chalcedon, pp. 210-211. O texto grego está prontamente acessível em DKvCH, 1:389-390.


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Definição de Calcedônia, a qual condenava não apenas aqueles que, como Eutico, “confundiam” as naturezas do Salvador, mas também aqueles que, como Nestório, as “separavam”. A frase “de duas naturezas”, usada por Cirilo bem como por Eutico, não é condenada explicitamente, embora o modo pelo qual Eutico parece tê-la entendido seja rejeitado. Igualmente, embora a frase “em duas naturezas” seja, o modo pelo qual ela era considerado que Nestório a usava, é explicitamente rejeitado.965 O propósito dos Imperadores Marcião e Pilcheria ao convocar o Concílio de Calcedônia parecia ter sido alcançado. Após a condenação das posições extremas, bem como das heresias antigas, o Concílio tinha produzido uma Definição de Fé com a qual muitos bispos concordavam. Mas a unidade que fora alcançada era mais aparente do que real. Logo tornou-se evidente que haviam fortes minorias que não estavam dispostas a aceitar a Definição de Fé, e por isso surgiram grupos dissidentes que continuariam sua existência separada, ao menos até o décimo segundo século. Além disso, mesmo entre aqueles que aceitaram aquilo que tinha sido feito em Calcedônia, haviam diferenças com relação ao modo pelo qual a Definição devia ser interpretada. Estas diferenças, às vezes, levaram a violentas discordâncias. A própria Roma contribuiu para o enfraquecimento da autoridade do Concílio ao rejeitar seu vigésimo oitavo cânon, que concedia à diocese de Constantinopla “privilégios iguais” aos de Roma. Como conseqüência, as controvérsias cristológicas continuaram por vários séculos. Mas a história destas controvérsias pertence apropriadamente ao próximo volume desta História.

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Embora Nestório, então no exílio, alegasse que tinha sido provado que eles estava certo, pela condenação da Cristologia alexandrina extremada em Calcedônia.


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XIX. APOSTÓLICO OU APÓSTATA Tudo parece indicar que quando os bispos deixaram o grande saguão da Santa Eufêmia, eles estavam convencidos de que tinham sido fiéis à fé dos apóstolos. Mas eles estavam corretos nesta suposição? Não é possível ver o desenvolvimento do pensamento cristão desde o dia de Pentecoste até os dias de Calcedônia como uma imensa, embora inconsciente, apostasia na qual o evangelho original foi abandonado por amor a vãs filosofias e minúcias dogmáticas? A mensagem originalmente judaica não foi helenizada a tal ponto que ela praticamente deixou de ser judaica? Provavelmente sim. Mas existem alguns fatores que devem ser levados em consideração, e que mostrarão que os problemas envolvidos são mais complexos do que parecem à primeira vista. Primeiro, se o Cristianismo é a mensagem da encarnação, isto é, a mensagem do Deus que veio a este mundo tornando-se um de nós, como ele pode ser acusado de entrar no mundo helenista tornando-se helenizado? A alternativa teria sido um Cristianismo rígido, não encarnacional, que talvez tivesse preservado sua formulação original, mas que nunca teria entrado no mundo ao seu redor. Uma segunda consideração deve ser feita, contudo, se devemos apreciar os perigos envolvidos no curso que a teologia cristã seguiu em seu desenvolvimento. O helenismo não era apenas uma atitude cultural comum. Também tinha um conteúdo que poderia por em perigo a fidelidade do Cristianismo a sua mensagem original. A filosofia grega clássica era um fator importante na formação da mente helenista, e esta filosofia entendia o ser em termos basicamente estáticos. Quando os cristãos começaram a falar de Deus como a “causa primeira não causada”, como isto afetaria seu entendimento sobre o relacionamento de Deus com a história, e de Deus tornar-se parte da história em Jesus Cristo? Uma vez que eles começaram a definir Deus em termos de uma negação de todas as características humanas, como eles poderiam afirmar que um Deus tão definido se tornara homem? Assim, a maioria das dificuldades enfrentadas pelo pensamento cristão em seu desenvolvimento eram o resultado de uma tentativa de reconciliar o que era dito sobre Deus na tradição judaico-cristã original com o que parecia ser conhecido sobre o divino através daquilo que a tradição grega chamava de razão – que certamente não é o único entendimento possível de razão. Finalmente, devemos perguntar a que grau o processo de “Constantinização”, começado no início do quarto século, afetou o curso do pensamento cristão. Na verdade, existe uma grande diferença entre a Igreja das gerações anteriores, freqüentemente perseguida e jamais poderosa politicamente, e a Igreja que estamos deixando na conclusão deste volume, apoiada pelo poder imperial e muitas vezes subserviente a ele. Que esta mudança de situação afetou o curso do pensamento cristão é bastante óbvio, basta olhar para os eventos entre o


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“sínodo de ladrões” de 449 e o Concílio de Calcedônia dois anos mais tarde. Além disso, mesmo além da influência pública do poder sobre a teologia – do que veremos muitos exemplos nos dois próximos volumes desta História – existe a influência mais sutil devida à mudança de perspectiva social daqueles que faziam teologia. O modo pelo qual a posição social, política e econômica dos teólogos, e da Igreja em geral, afetou a interpretação do evangelho através dos séculos, não tem sido estudada suficientemente, e por isso tudo que podemos fazer aqui é alertar o leitor para tais questões, e prometer um estudo futuro sobre elas. Entretanto, uma avaliação geral do desenvolvimento do pensamento cristão até a época do Concílio de Calcedônia deveria afirmar que este desenvolvimento envolve, sem dúvida alguma, uma profunda helenização do Cristianismo. Esta helenização tem a ver não apenas com questões de forma ou vocabulário, mas também com o próprio entendimento da natureza do Cristianismo, e por isso ele criou problemas que teoricamente poderiam ter sido evitados, seguindo-se outras avenidas de interpretação filosófica. Mas é difícil ver qualquer alternativa viável que o pensamento cristão poderia, de fato, ter seguido, dada a atmosfera intelectual da época. Além disso, o desenvolvimento geral da doutrina cristã, embora fazendo uso de um entendimento helenista do Cristianismo, instintivamente excluiu aquelas formas extremas de helenização, bem como outras influências que teriam negado os dogmas básicos da fé cristã: que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo.


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APÊNDICE Embora os presentes volumes tenham o objetivo de ser uma introdução à história do pensamento cristão, não pode haver substituto para a leitura efetiva das fontes originais. Portanto, é sugerido que tais fontes sejam lidas simultaneamente com os vários capítulos deste volume. Este apêndice é um guia introdutório a estas leituras. Existem várias coleções de escritos cristãos antigos traduzidos para o inglês. Antes de mais nada, devemos mencionar os dez volumes de The Ante-Nicene Fathers (ANF) e os vinte e oito da The Nicene and Post-Nicene Fathers (NPNF). Estas duas coleções, traduzidas no último século, tem a desvantagem de que o estilo inglês é enfadonho e algumas vezes difícil de seguir. Por outro lado, eles são facilmente encontrados nas bibliotecas e estão prontamente disponíveis a um custo relativamente baixo, graças às reimpressões feitas por Wm. B. Eerdmans Publishing Company (Grand Rapids, Mich.). Elas também são razoavelmente completas e representativas – exceto, naturalmente, pelos textos descobertos após sua publicação. As séries Ancient Christian Writers (ACW), publicadas por Newman Press (Westminster, Md.), incluem excelentes traduções de obras inteiras. A Library of Christian Classics (LCC), publicada por Westminster Press (Filadélfia) é uma seleção de extratos razoavelmente longos, e às vezes de obras inteiras. Embora extratos muito longos ou obras inteiras dêem ao leitor um gosto e entendimento mais pleno do material a ser lido, eu também deverei fazer referências a antologias que incluem porções curtas do material que está sendo recomendado. Estas antologias são Hugh T. Kerr, Readings in Christian Thought (Nashville: Abingdon, 1966); Colman J. Barry, Readings in Church History, 3 Vols. (Westminster, Md.: Newman, 1966); Henry Bettenson, The Early Christian Fathers (Londres: Oxford University, 1956); e Henry Bettenson, The Later Christian Fathers (Londres: Oxford University, 1970). De vez em quando farei referência a outras traduções e coleções. O que segue é um programa de leituras básicas nas fontes primárias, sugerido para complementar o presente volume: I. Pais Apostólicos (Capítulo III) A. Inácio, Epístola aos Efésios 1. ANF, 1:49-58 (esta edição contêm duas versões. A versão mais curta, na coluna da esquerda, é a original) 2. ACW, 1:60-68 3. LCC, 1:87-93 4. Barry, 1:21-23 (seleções) 5. Bettenson, Early ..., pp. 54-57 (seleções)


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B. Didaque 1. ACW, 6:3-25 2. LCC, 1:161-170 3. Barry, 1:25-28 (seleções) 4. Bettenson, Early ..., pp. 69-72 (seleções) II. Apologistas (Capítulo IV): Justino, o Mártir, I Apologia, 1-17, 44-46 1. ANF, 1:163-168, 177-178 2. Kerr, pp. 20-25 (aproximadamente as mesmas seleções) 3. Barry, 1:31-36 (seleções semelhantes) 4. Bettenson, Early ..., pp. 80-87 (seleções semelhantes) III. Gnosticismo (Capítulo V): O Evangelho segundo Tomé 1. R. M. Grant e D. N. Freedman, The Secret Sayings of Jesus (Londres: Fontana Books, 1960), pp. 112-182 (inclui tanto o texto como um fluente comentário) 2. J. Dorese, The Secret Books of the Egyptian Gnostics (Nova Iorque: Viking, 1960), pp. 455-470 IV. Irineu (Capítulo VI): Contra Heresias, 3:1-5, 15-22 1. ANF, 1:414-418, 439-455 2. Kerr, pp. 28-36 (outras seleções) 3. Barry, 1:44-46 (extratos muito breves) V. Tertuliano (Capítulo VII): A. Prescrições contra os Hereges 1. LCC, 5:31-64 2. ANF, 3:243-265 3. Kerr, pp. 37-42 (seleções) B. Sobre a Carne de Cristo, 1-5 1. ANF, 3:521-526 2. E. Evans, tradução, Tertullian’s Treatise on the Incarnation (Londres: SPCK, 1956), pp. 581 VI. A Escola de Alexandria (Capítulo VIII): A. Clemente, Exortações aos Pagãos, 10-11 1. ANF, 2:197-206 2. G. W. Butterworth, tradução, Clement of Alexandria, em Loeb Classical Library (Cambridge: Harvard University Press, 1953), pp. 197-251 B. Orígenes, Sobre os Primeiros Princípios, prefácio e 1.1-6 1. ANF, 5:239-262


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2. G. W. Butterworth, tradução, Origen on First Principles (Londres: SPCK, 1956), pp. 1-58 3. Barry, 1:59-62 (o prefácio) 4. Kerr, pp. 43-47 (outras seleções) VII. Cipriano (Capítulo IX): Sobre a Unidade da Igreja 1. LCC, 5:124-142 2. ACW, 25:43-68 3. ANF, 5:421-429 4. M. Bévenot, tradução, Cyprian De Lapsis and De Ecllesiae Catholicae Unitate (Oxford: Clarendon Press, 1971), pp. 57-99 5. Barry, 1:62-67 (seleções) VIII. A Controvérsia Trinitariana (Capítulos X-XV) A. Ario 1. Carta a Eusébio da Nicomédia a. W. G. Rusch, editor, The Trinitarian Controversy (Filadélfia: Fortress, 1980), pp. 29-30 b. LCC, 3:329-331 2. Carta a Alexandre de Alexandria, em Rusch, pp. 31-32 B. Eusébio de Cesaréia, Carta a Sua Igreja 1. Rusch, pp. 57-60 2. LCC, 3:336-340 C. Atanásio, Orações contra os Arianos, 1 1. Rusch, pp. 63-129 2. NPNF, 2a série, 4:306-343 D. Gregório de Nissa, A Ablabio 1. Rusch, pp. 149-161 2. LCC, 3:256-267 3. NPNF, 2a série, 5:331-336 E. Agostinho, Sobre a Trindade, 9 1. Rusch,pp. 163-179 2. NPNF, 1a série, 3:125-133 3. LCC, 8:57-71 4. W. J. Oates, editor, Basic Writings of Saint Ausgustine, 2 vols. (Nova Iorque: Random House, 1948), 2:789-803 IX. As Controvérsias Cristológicas (Capítulos XVI-XVIII) A. Nestório, Carta a Celestino: LCC, 3:346-348 B. Cirilo de Alexandria, III Carta a Nestório: LCC, 3:349-354


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C. Leão o Grande, Epístola Dogmática a Flaviano (Tomo) 1. LCC, 3:360-370 2. Barry, 1:97-102 3. NPNF, 2a série, 12:38-43 4. Bettenson, Later..., pp. 278-280 (seleções)


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ÍNDICE DE ASSUNTOS E AUTORES As referências principais estão em negrito; referências a notas de rodapé estão em itálico; todas as outras referências estão em tipo normal. Abbagnano, N., 53, 54 Abramowski, L., 257, 339, 359 Acusações contra os cristãos, 98-99 Adão, 44, 166-167, 203; e Eva, 162-164 Adam, A.., 68 Adopcionismo, 249 Aeto, 281 África, contribuição à teologia antiga, 171; ver também Tertuliano, Cipriano Aharoni, Y., 30 Albanese, C. L., 127 Alexandre de Alexandria, 259, 262, 263, 264, 265, 266, 270, 354 Alexandre de Constantinopla, 274 Alexandre Polystor, 43 Alexandre, o Grande, 47, 48, 49, 59, Alexandria, 186-187 Alexandrina: teologia, 94-95, 186-228; Cristologia, 337, 340, 343-345, 353, 368, 374 Interpretação alegórica, 43-45, 46, 83-85, 94, 194-200, 211-215, 253, 260, 317 Allie, J. L., 174 Alogoi, 143-144 Altaner, B., 177 Alvarez de Miranda, A., 55, 56 Amann, E., 145 Ambrósio, 225, 309, 327, 328, 373, 374 Ambrósio (protetor de Orígenes), 210 Amidon, P. R., 245 Ammonius Saccas, 187 Anfiloquio de Icônio, 309 Anastásio Sinaita, 202 Andersen, C., 104, 210 Andrews, H. T., 40 Andriesen, D. P., 116 Angelologia, 90, 107, 112, 163


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Anicetus, 81 Anomeanos, 280-281, 288, 305, 312, 313 Antônio, 292 Antropologia, 46, 112, 129, 162-164, 202-203, 255 Antioquia, Concílio da Dedicação (345 A.D.), 278 Cristologia antioquiana, 250, 337-343, 353, 368, 374 Antioco Epifanes, 30 Antioco de Ascalon, 54 Apatia, 46 Apocalipse de Baruque, 37 Apocalipsismo, 36-37, 46-47, 95 Livros apocalípticos do Novo Testamento, 90 Apokatastasis, 224 Apolinarianismo, 288, 344-346, 365 Apolinário, 316, 321, 336, 344, 345, 346, 347-348, 349, 350, 351, 352, 364 Apolinário de Hierápolis, 117 Autoridade dos apóstolos, 146 Credo Apostólico, 151-154 Pais Apostólicos, origem do nome, 61 Sucessão apostólica, 65, 146, 147-148, 151, 169-170, 176-177, 243 Apropriações na Trindade, 329-330 Versão de Áquila, 42, 209 Arianismo, 259, 260, 261-290, 296, 297-298, 299, 302, 305, 312, 324, 332, 336, 338, 345, 346 Epístola de Aristeas, 40, 43, 44 Aristides, 100-101 Aristo de Pella, 117 Aristóbolo, 43 Aristóteles, 49, 53, 188 Ario, 145, 259, 260, 262-265, 273, 274, 300, 336, 345 Arnóbio, 229 Arte, 261 Artafânio, 43 Artemon, 144 Teologia da Ásia Menor, 93


299

Astério, o Sofista, 260 Atanásio, 145, 225, 257, 260, 263, 265, 267, 274, 276, 277, 280, 283, 285, 286, 291-302, 307, 309, 310, 314, 323, 324, 336, 345, 346, 348, 349 Atenágoras, 99, 112-114, 192 Attis e Cibele, 56 Audet, J. P., 67, 68 Agostinho, 60, 62, 144, 171, 182, 183, 327, 328, 337, 373, 375 Augustus, 59 Aureliano, 251 Axelson, B., 184

Baal-Shamin, 25 Bacanais, 57 Bainton, R. H., 58, 59 Bamberger, B. J., 34 Batismo, 68-69, 70, 79, 95, 107, 168, 183-184, 203, 241, 242 Bárbaros, 289 Barbel, J., 90, 237 Bardenhewer, O., 115 Bardy, G., 185, 213, 230, 259, 260, 289, 344 Lenda de Barlaam e Joasaph, 100 Epístola de Barnabé, 68, 83-86, 94, 95, 96, 106, 150, 195 Barnard, L. W., 62, 105, 109 Barnes, T. D., 172 Barrois, G. A., 30 Barth, K. 27 Bartsch, H. W., 76 Basílio de Ancira, 282, 286 Basílio de Cesaréia, 225, 286, 303, 304, 305-311, 314, 316, 317, 319, 322, 328, 346, 350 Basílides, 134, 139, 187 Batiffol, P., 66 Baylis, H. J., 184 Beck, A., 185 Bedjan, 358, 359 Bem Kakpai, Jr., 40


300

Bender, W., 172 Benoit, A., 164 Beran, J., 108 Besse, J. M., 261 Bethume-Baker, J. F., 144, 258, 358, 359 Betz, O., 35 Beumer, J., 67 Bévenot, M., 243, 244 Interpretação Bíblica, 43-45, 83-85 Bigg, C., 215 Bispos, 73, 77, 95, 243, 244, 245 Black, M., 33 Blackman, E. C., 138, 139 Blanes, F. S., 280 Bloch, R., 33 Boeto de Sidon, 54 Böhlig, A., 126 Boigelot, R., 329 Bonner, C., 118 Borchardt, C. F. A., 327 Botte, B., 58, 230 Bourlarand, E., 257 Bousset, W., 57 Braaten, C. E., 359 Brandt, Th., 184 Braun, R., 184 Bréhier, L., 261 Brock, S. P., 41 Bruce, F. F., 35 Buchheit, V., 208 Buckley, F. J., 328 Budge, E. A. W., 56 Bultmann, R., 73 Bumpus, H. B., 67 Buoniauti, E., 171


301

Burke, P., 63

Caballero, Cuesta, J. M., 211 Calígula, 59 Calisto, 145, 178 229, 230, 231, 232, 233 Camelot, P. Th., 371 Cânon, 146, 148-150, 151 Cantalamessa, R., 117, 145, 182 Capadocianos, 286, 287, 288, 299, 300, 303-325, 328, 330, 349, 350, 251, 352; ver também Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo e Macrina Carpocratianos, 133 Carrington, P., 107 Casamassa, A., 62, 79 Cataudella, Q., 210 Celestino, 355 Celso, 210 Cerdo, 139 Cerinto, 132-133, 139, 144 Cernust, R. C., 362 Cerretti, G., 328 Chadwick, H., 266 Concílio de Calcedônia, 312, 358, 376-380 Charles, R. H., 40, 91 Chartier, C., 184 Chenu, M. -D., 270 Chesnut, R. C., 359 Quiliasmismo, 82-83, 86, 109, 230, 253 Chollet, A., 329 Chrestou, P. K., 118 Cristologia, 65, 67, 74-76, 85-86, 89, 90-91, 93, 95, 118, 120, 124, 130-131, 133, 151, 165168, 181-183, 201, 222-223, 234, 251, 300-302, 312, 316, 321-322, 335-380 Crisafio, 369, 370, 371, 375, 375 Cícero, 59 Circuncisão, 74 Clark, D. L., 54


302

Clemente de Alexandria, 83, 84, 110, 123, 133, 134, 135, 138,154, 156, 187, 188-189, 190204, 205, 211, 214, 217, 226, 296, 343 Clemente de Roma, 62-67, 93, 94, 96, 147, 150 Collantes Lozano, J., 328 Colson, J., 67, 71, 170 Communicatio idiomatum, 223, 301, 312, 337, 340,343, 354, 363, 364, 366, 374, 378 Constante, 277, 278, 279 Constantino, 261, 265, 266, 267, 270-271, 273, 274, 275, 276, 277, 286 Constantino II, 277, 278 Constantinização, 382 Concílio de Constantinopla (381 A.D.), 286, 288, 289, 300, 352, 355 Concílio de Constantinopla (553 A.D.), 225, 341 Constâncio, 277, 278, 279, 281, 283, 286, 327, 328 Copleston, F. C., 49, 53 Cornélio, 235 Cornford, F. M., 51, 55 Corwin, V., 73, 74, 76, 78, 79, 80 Cosmopolitanismo, 48, 49, 127, 187 Criação, 130, 133, 139, 161, 162, 200, 202, 220-221, 294, 299, 318 Credos, 146 Cross, F. L., 36 Crouzel, H., 218, 220, 221 Cullmann, O., 51, 125 Cumont, V. M., 57 Cipriano, 171, 229, 238-245 Cirilo de Alexandria, 354-358, 360, 364-366, 367, 368, 371, 378, 379 Cirilo de Jerusalém, 282

Daly, C. B., 184, 235 Dâmaso I, 349 Daniélou, J., 37, 47, 67, 86, 91, 92, 104, 105, 123, 124, 125, 126, 165, 189, 214, 218-219, 222 Davies, J. G., 262 Davies, W. D., 33 De Aldama, J. A., 183 De Clerq, V. C., 280


303

De Faye, E., 129, 132, 214 De Chellinck, J., 24 De Jong, J. J., 184 De Jonge, H. J., 83 De Labriolle, P., 98, 210 De Lubac, H., 212 De Simone, R. J., 236 De Witte, L., 174 Rolos do Mar Morto, 35-36, 74 Décarie, V., 175 Décio, 208, 239, 257 Deificação: ver Divinização Delius, W., 109 Demetrius, historiador judeu, 43 Demetrius de Alexandria, 205, 206, 207 Demetrius de Faleros, 49 Denzinger, H., 349 Devreesse, R., 341, 342, 343 Diáspora, 39-47 Didaque, 67-71, 150 Dídimo, o Cego, 309 Diller, H., 184 Dio Cassius, 82 Diodoro de Tarso, 339-340 Carta a Diogneto, 61, 100, 116-117 Dionisíacas, 55 Dionísio de Alexandria, 225, 247, 255, 256, 257-259 Dionísio de Roma, 257-259 Dionísio, o areopagita, 322 Dióscoro, 369, 370, 371, 372, 375, 376, 377 Divinização, 203, 297, 298, 349, 352 Dix, G., 69, 262 Docetismo, 74, 91, 130, 141, 154, 173, 201 Dölger, F. J., 184 Domínguez del Val, U., 280


304

Domnus de Antioquia, 369, 376, 377 Donatismo, 266 Doresse, J., 131 Dörries, H., 317 Dowdall, H. C., 178 Drower, E. S., 126 Du Manoir de Juaye, H., 365, 366 Dualismo, 129, 138, 139 Dugmore, C. W., 34 Monarquianismo Dinâmico, 144

Ebionitas, 123-125, 154 Eclesiologia, 66-67, 77-78, 89-90, 93, 168, 169, 203, 225, 228, 242-245 Ecleticismo, 53-54, 60, 188 Extase, 46 Eisfeldt, O., 31 Ellspermann, G. L., 119 Elcasai, 47, 125-126 Adoração ao imperador, 58-59 Encratitas, 110 Segundo Livro de Enoque, 91 Enslin, M. S., 172 Concílio de Éfeso (431 A.D.), 312, 356, 378, 379 Concílio de Éfeso (449 A.D.), 372, 375-376, 377, 378 Epicureanismo, 49, 53 Epifânio, 47, 62, 63, 123, 124, 125, 131, 152, 208, 263, 281, 282, 349 Escatologia, 37-38, 82-83, 86, 101, 109, 142, 224, 230, 253 Essênios, 35-37, 74, 93, 123, 125 Eucaristia, 69, 70, 78-79, 93, 95, 107-108, 168-169, 184, 204, 225; como sacrifício, 69, 70 Eunômio, 281, 305, 306, 312, 313, 347 Eupolemo, 43 Eusébio de Cesaréia, 47, 62, 64, 71, 80, 81, 82, 83, 97, 100, 102, 109, 110, 117, 123, 125, 132, 133, 134, 135, 138, 142, 157, 205, 206, 208, 225, 248, 250, 252, 245, 266, 267, 268, 275, 344 Eusébio de Doriléia, 370, 375, 376


305

Eusébio da Nicomédia, 260, 265, 266, 276, 270, 272, 273-274, 275, 276, 277, 278, 338, 245 Eustátio de Antioquia, 269, 270, 274-275, 336, 338, 339, 341, 345 Eustátio de Sebaste, 284 Eutico, 370, 371, 372, 375, 376, 378, 379 Eutiquianismo: ver Monofisismo Evagrius, 377 Evans. E., 178

Queda, 163-164, 203, 222 Princípio feminino, 124, 125 Ritos de fertilidade, 55-56 Festugière, A. J., 183 Filioque, 332, 334 Finé, H., 184 Finkelstein, L. 33 Firmiliano de Cesaréia, 241 Fritzmeyer, J. A., 125 Flaviano de Constantinopla, 372, 375, 376, 377 Flückiger, F., 52 Foerster, W., 134 Fohrer, G., 31 Perdão de pecados, 228, 229, 231, 235 Fox, A., 50 Franks, 289 Fredouille, J. C., 175 Liberdade, 163, 220, 222, 317 Friedländer, M., 43 Fuellenbach, J., 63

Galán y Gutiérrez, E., 52 Galen, 54 Galtier, P., 378 Garciadiego, A. A., 77 Gärtner, B., 131 Geffcken, J., 92


306

George de Laodicéia, 346 Germinio, 278-279 Gervais, J., 105 Giet, S., 68, 86 Gilson, E., 175 Giordano, O., 109 Gnosis, 128; verdadeira, 199, 203, 204 Gnosticismo, 80, 93, 125, 126-137, 138, 158-159, 170, 173, 189 Natureza de Deus, 45, 51-52, 64, 100, 106, 115, 120, 161, 196-197, 200, 216, 293-294, 298299 Goegler, R., 211 Goemans, M., 280, 377 González, Faus, J. I., 163, 167 Gonzáles, J. L., 175 Goodenough, E. R., 35, 43, 44, 46, 106 Evangelho da Verdade, 136-137 Goubert, P., 376 Granto, R., M., 44, 47, 63, 65, 66. 69, 74, 76, 77, 78, 81, 83, 84, 85, 88, 89, 96, 111, 126, 127 Graciano, 328 Grébaut, S., 92 Greenslade, L., 63 Greer, R., 343 Gregg, R. G., 259, 263 Gregório de Elvira, 328 Gregório de Nazianzo, 225, 286, 303, 304, 308, 309, 311-316, 322, 323, 350, 351 Gregório de Neocesaréia: ver Gregório, o Fazedor de Milagres Gregório de Nissa, 225, 255, 281, 286 303, 304, 305, 307, 308, 316-322, 323, 345, 351 Gregório, o Fazedor de Milagres (de Neocesaréia), 205, 225, 248, 255, 345 Grieseck, H. E., 289 Griffiths, J. G., 56 Grillmeier, A., 264, 300, 340, 365 Grobel, K., 131, 136 Groh, D. E., 175, 259, 263, 292 Grossi, V., 172 Guerrier, L., 92


307

Guignebert, C. A. H., 32, 34 Gummerus, J., 282 Gussen, P. J. G., 186 Gutwenger, E., 82

Hadas, M., 43,48 Haenchen, E., 33 Hahn, A., 355, 356, 357 Hallonsten, G., 184 Mãos de Deus, 161-162 Hanson, P. D., 36 Hanson, R. P. C., 206, 211, 212, 213, 215 Harl, M., 222 Harnack, A. von, 23-24, 39, 119, 127, 138, 178, 200, 208, 287, 323, 324, 366 Harris, J. R., 100 Harrison, P. N., 81 Hasmoneanos, 30 Evangelho segundo os Hebreus, 92 Helena, 132 Heleno de Tarso, 251 Hengel, M., 43 Henry, P., 330 Heraclas, 189, 205, 206, 207, 247, 256 Heraclides (bispo árabe), 207, 219 Herford, R. T., 33 Hermas, 66, 86-90, 93, 94, 95, 96, 150, 174, 230 Hermias, 115-116 Hermogenes, 173 Herrmann, J., 280 Herrmann, L., 328 Hesíodo, 44 Heussi, K., 261 Hexapla, 209, 211 Hierarquia, 77, 89-90, 95 Hilário de Poitiers, 225, 327, 328


308

Hipólito, 35, 47, 123, 125, 131, 133, 134, 135, 138, 145, 151, 152, 153, 181, 229-235 História, 109, 170, 204, 226 Hitchcock, F. R. M., 114, 160, 184 Hoffmann, R. J., 138 Hoh, J., 88, 184 Holstein, H., 169 Holte, R., 104 Espírito Santo, 39, 89, 118, 126, 142, 210-202, 219, 284-285, 299, 308, 309-310, 314, 328, 332, 334 Homero, 44, 110, 193 Homeanos, 281, 288 Homoiousianos, 280, 282-283, 286, 328 Homoiousios, 279, 281, 323 Homoousios, 250, 251-252, 258, 267, 268, 269, 270, 279, 280, 281, 282, 285, 314, 334, 379 Hörgal, C., 162 Hornschuh, M., 189 Ósio de Córdoba, 266, 267, 269, 273, 280, 327 Houssiau, A., 158, 160, 166 Hypostasis, 258-259, 283, 287, 307-308, 316, 330, 361, 362-363, 365, 366, 379 União hipostática, 362-363, 365-366

Iamblichus, 60 Ibas de Edessa, 376, 377 Inácio, 71-80, 81, 91, 93, 96, 07, 122, 130, 147 Imagem de Deus, 162, 294, 296 Encarnação, 166, 200-201, 222, 264 Irineu, 62, 80, 82, 109, 110, 132, 133, 135, 136, 148, 154, 155, 156, 157-170, 174, 201, 202, 203, 215, 226, 227, 230, 234, 349 Ascensão de Isaías, 90-91, 93 Isis e Osiris, 56

Concílio de Jabneh, 40 Jaeger, H., 39 James, M. R., 92 Jeanmaire, Henry, 56


309

Jerônimo, 62, 63, 64, 79, 81, 172, 205, 373, 374 Jesus não Cristo, 132-133 Judeus, 69, 70-71, 85, 101, 138, 187, 213 João Crisóstomo, 339, 354 João de Antioquia, 355, 356, 357, 358, 365, 367, 368, 369 João de Damasco, 109 Joly, R., 104 Jonas, H., 126, 128, 129, 131, 136 Josefo, 35 Jossa, G., 168 Jouassard, D., 61 Joviano, 285 Judaismo, 29-47, 102-103, 122, 125 Cristianismo judaizante, 122-126 Jugie, M., 340 Juliano, “o Apóstata”, 283, 285, 286 Julius I, 276, 345 Julio César, 59 Jungkuntz, R. P., 53 Justino, 101-109, 110, 113, 119, 122, 131, 132, 133, 148-149, 157, 162, 166, 192, 193, 210 Justina, 286 Justiniano, 49, 225

Kahle, P., 41 Kannengiesser, C., 264 Karpp, H., 172, 183 Katsenmeyer, H., 170 Keilbach, G., 237 Kelber, W., 52 Kelly, J. N. D., 151, 152, 203, 268, 281, 288, 344 Keresztes, P., 102 Kikuchi, E., 131 Klein, G., 242 Teoria do conhecimento, 51, 103-105, 194 Knox, J., 72


310

Koch, H., 177 Kohlmeyer, E., 63 Kominiak, B., 106 Kraft, H., 267 Kretschmar, G., 216 Kroymann, E., 75 Krüger, G., 67

Lactâncio, 229 Lagrange, M. J., 102 Langstadt, E., 185 Latourette, K. S., 39 Lauterbach, J. Z., 33 Lavallée, F., 184 Lei, 122-123, 165, 193; natural, 52-52; ver também Torah Layton, B., 127, 130 Le Bachelet, X., 281 Le Moyne, J., 244 Lebreton, J., 65, 327 Leclercq, J., 109 Leening, B., 175 Leinhard, J. T., 264 Leipoldt, J., 131 Leisegang, H., 133 Lemarchand, L., 63 Leão, o Grande, 371, 372-373, 375, 376, 377, 378, 379 Leôncio de Antioquia, 260 Libério, 280, 327 Liébaert, J., 364 Lietzmann, H., 142, 276, 346, 348 Liturgia, 68, 107-108, 261-262; de Santo Basílio, 311; ver também Eucaristia, Batismo Llorca, B., 280 Löffler, P., 327 Logos, 45, 46, 52, 103-105, 106, 111, 112-113, 115, 119; ver também Verbo Cristologia Logos-carne, 264, 300, 343, 344, 345, 346, 348, 350-351, 374


311

Loi, V., 236 Loisy, A. F., 57 Lombardos, 289 Loofs, F., 159, 160, 259, 346, 358, 363 Lorenz, R., 300 Lortz, J., 172 Luciano de Antioquia, 248, 255, 259, 260, 263, 339 Lúcifer de Calaris, 328 Luciferianos, 328 Lucius Apuleius, 57 Ludwig, J., 238 Teologia lundensiana, 24 Lundström, S., 158 Lutero, 25

Macabeus, 30 McCaughey, J. D., 131 Macedônianos, 284-285 Macedônio de Constantinopla, 284 McGiffert, A. C., 152 Mackintosh, H. R., 24 McNamara, M., 40 McRae, G. W., 135 Macrina, 303-304 Malchion, 251, 338, 344 Malinine, M., 136 Mambrino, J., 162 Marathon da Nicomédia, 284 Marcelo de Ancira, 145, 152, 153, 269, 270, 274, 276-277 Marcião, 110, 137-141, 148, 149, 153-154, 173, 212 Marcus Aurelius, 53 Maris da Calcedônia, 260 Mario Victorino, 330 Maro Antônio, 59 Martírio de Policarpo, 81-82, 97


312

Mártires, 72, 82, 142 Maria, 154, 166, 183, 301-302, 322 Maria de Cassobolon, 73 Maximilla, 142 Maximino, 229 Méhat, A., 224 Meijering, E. P., 276 Meinhold. P., 63 Melito de Antioquia, 282 Melito, 109, 117-118, 119, 182 Memnon de Éfeso, 356 Menoustier, A., 244 Menander, 132, 133 Ménard, J. E., 136 Metodio, 225, 252-254 Midraschim, 33, 46 Milenarismo: ver Quiliasmismo Minucio Félix, 98, 99, 184, 229 Mitra, 57, 58 Modalismo: ver Sabelianismo Mohammed, 126 Mohrmann, C., 185 Molland, E., 169 Monarquianismo, 143-146, 177-178, 248-252, 276-277 Monasticismo, 261, 310-311 Mondésert, C., 194, 195, 200, 201, 204 Monofisismo, 371, 377 Montanismo, 142-143, 172, 173, 177-178, 238 Montano, 142-143 Moore, G. F., 33 Morán, J., 329 Moreschini, C., 172 Mowinckel, S., 38 Cânon Muratoriano, 86 Musurillo, A., 86


313

Religiões de mistério, 55-58, 80, 93 Misticismo, 46, 128, 316, 317, 322, 334

Neoplatonismo, 94, 133, 188, 200 Nestorianismo, 339, 371, 377 Nestório, 341, 353-364, 366, 368, 369, 376, 380 Concílio de Nicéia (325 A.D.), 266-271, 288, 310 Nicotra, G., 242 Nielsen, J. T., 167 Escola de Nisibis, 376 Noeto de Esmirna, 145, 178, 231-233 Norris, R. A., 342 Noth, M., 31 Novaciano, 229, 235-238 Novacianos, 240 Numerologia, 129, 202 Nygren, A., 23-25

Ogara, F., 116 Velha Igreja Católica, 147 Onésimo, 72 Optatus, 62 Orbe, A., 129, 130, 138, 161, 162, 170 Orígenes, 62, 64, 71, 83, 84, 98, 99, 119, 117, 123, 133, 138, 155, 156, 187, 188-190, 205227, 229, 231, 252, 254, 255, 259, 293, 317, 318, 319, 343, 344 Orfismo, 55 Ortiz de Urbina, I., 268 Osborn, E. F., 203 Ousia, 258, 259, 283, 285, 287, 305-306, 307-308, 316 Ovid, 59

Pagels, E., 127, 150 Panfílio, 205, 217, 248, 250, 344 Panteno, 189, 190 Pantokrator, 153


314

Papias, 79, 81, 82-83, 83, 93 Paratore, E., 184 Controvérsia Pascal, 158 Patripassianismo: ver Sabelianismo Atos de Paulo, 150 Paulo de Samosata, 144, 247, 248-252, 259, 262, 263, 264, 269, 276, 338, 344 Pelagianos, 355, 356 Pelikan, J., 142, 276 Penitência, 66, 87, 88, 89, 94, 173, 230-232, 238 Perownw, S., 31 Perrin, N., 38 Perseguição, 71, 87, 97, 99, 189, 208, 239 Pessoa, 179, 258, 283, 329, 331, 337, 342 Evangelho de Pedro, 92 Pedro de Sebaste, 304 Pregações de Pedro, 123 Revelação de Pedro, 92 Peterson, E., 89, 162 Pfeiffer, R. H., 31 Fariseus, 33-34 Filo, 43-46, 83, 94, 103, 115, 195, 212, 213, 221 Filo de Larissa, 54 Filosofia e Teologia, 102, 104-105, 108, 114, 119, 174, 175, 192, 200, 317 Fótio, 253 Pierius, 247, 248 Pirot, L., 343 Pius, 86 Platão, 43, 48, 49, 50-52, 55, 99, 114, 188, 193 Platonismo, 51-54, 216, 224, 227; Médio-platonismo, 53, 94, 105, 106, 107 Plínio, o Ancião, 35 Plínio, o Jovem, 97, 97, 172, 208 Plotino, 60, 187, 188 Plumpe, J. C., 242 Pneumatomacinaos, 284-285, 288, 299, 305, 308, 310, 312 Policarpo, 73, 79, 80-82, 93, 157


315

Pontiano, 229 Pórfiro, 60 Porter, H. B., 107 Poschmann, B., 88, 244 Pecado pós-batismal, 66, 86, 88, 94, 230-231 Potino, 157 Potter, R., 165 Praxeas, 145, 173, 175-176, 177-178, 232 Prestige, G. L., 346 Prete, S., 88 Prigent, P., 109 Priscila (Montanista), 142 Processão do Espírito Santo, 332 Profetas: no Velho Testamento, 105; na Igreja, 69-71, 86, 142-143 Prosopon, 258, 283, 343, 361-362, 365, 379 Prümm, K., 164 Pseudopigrafa, 90 Pseudo-Atanásio, 145 Pseudo-Barnabé: ver Epístola de Barnabé Pseudo-Clementino, 123, 125, 131 Pseudo-Gregório, o Fazedor de Milagres, 347 Pseudo-Tertuliano, 131, 134 Ptolomeu (Gnóstico), 158 Ptolomeu II Filadelfo, 40, 41 Puech, H. -C., 136 Pulcheria, 376, 380 Pitagoreanos, 55

Quacquarelli, A., 109, 178 Quadrato, 100, 117 Quasten, J., 204, 230, 341 Quispel, G., 136, 171, 184

Rackl, M., 75 Ratcliff, E. C., 107


316

Raven. C. R., 181, 345 Recapitulação, 165-168, 230, 253 Recognições, 62 Refoulé, F., 175 Reitzenstein, R., 57 Relíquia dos mártires, 82 Restauração do caído, 235, 239, 240; ver também Perdão de pecados Ressurreição, 99, 108, 112, 113, 130, 154 Fórmula conciliatória de 433 A.D., 357, 368, 369, 370, 371 Revelação, 76, 114, 142, 143 Reynders, B., 159 Rheinfelder, H., 178 Rico, 87 Richard, M., 158 Richardson, C. C., 73, 79 Rigorismo, 172, 173, 230, 231 Ringgren, H., 36 Rist, M., 36 Ritschl, A., 24 Rivera, L. N., 170 Riykin, E., 33 Sínodo de Ladrões: ver Concílio de Éfeso (449 A.D.) Roberts, R. E., 184 Robinson, J. A., 100, 166 Robinson, J. M., 131 Império Romano, como meio para expansão cristã, 60 Primazia de Roma, 170, 244, 245 Rordorf, W., 69 Roslan, W., 96 Rossi, S., 157, 184 Rufino, 62, 152, 153, 211, 217 Ruiz Bueno, D., 81, 83, 114, 116 Regra de Fé, 146, 151, 154-155, 176, 215

Sabelianismo, 145, 207, 232, 236, 237, 256, 257, 266, 271, 273, 275, 283, 334


317

Sabélio, 145, 232-233, 308 Sacramentos, 77, 225 Saduceus, 33-34 Sagnard, F. M. M., 103 Salvação, 128, 130, 137, 296-107 Santos Otero, Aurélio de, 92 Satanás, 161, 162, 164, 167, 168, 203, 221-222, 223, 226 Saumage, C., 239 Scharl, E., 165 Scheidweiler, F., 237 Schenke, H. -M., 127, 131 Schepens, P., 243 Schérer, J., 207 Schimthals, W, 36 Schmidit, W., 102 Schneider, A. M., 377 Schoeps, H. J., 47, 126 Scholem, G. G., 47, 127 Schürer, E., 31 Schwartz, E., 132 Scipioni, L. I. 359, 360, 361, 362 Segunda Clemente, 65-67, 150 Seeberg, B., 109 Seeberg, R., 263 Sellers, R. V., 269, 270, 338, 341, 342, 345, 357, 366, 377, 379 Sétimo Severo, 189, 190, 205 Septuaginta, 40-43, 209 Serratosa, R., 280 Seyr, F., 174 Oráculos Sibelinos, 91-92, 94-95 Sider, R. D., 175 Simon, H., 52 Simon, M., 52 Simão, o Mágico, 131-132 Simonetti, M., 237


318

Simonin, H. D., 169 Pecado original, 183, 185 “Blasfêmia de” Sirmium, 179-280, 282 Ceticismo, 53 Smith, J. P., 160 Smulders, P., 327 Sócrates, 49 Sócrates (historiador), 260, 285 Geração do Filho, 217-218 Sonne, I., 34 Sorano de Éfeso, 183 Alma, 115, 188, 293; imortalidade, 50-51, 99, 108-109, 112, 114, 293; origem, 183; preexistência, 51, 133, 226, 253, 318; transmigração, 51, 99, 133, 221, 226 Sozomen, 283, 285 Spanneut, M., 52, 275 Stead, G. C., 135, 300 Stelzenberger, J., 52 Stendhal, K., 36, 125 Estevão (bispo de Roma), 241, 244 Stevenson, G. H., 31 Stirnimann, J. K., 174 Estoicismo, 45, 46, 52-53, 54, 63, 64-65, 94, 104, 105, 174, 188, 294, 326 Strato, 48 Ström, A. V., 86 Studer, B., 373 Estudos, 54 Subordinacionismo, 107, 233, 236, 250, 256, 275, 279, 296, 314, 326 Substância, 179, 258, 259, 283, 287, 330 Suetonius, 59, 62 Sullivan, F. A., 340, 341, 342, 343 Sundberg, C., 41 Obras de supererrogação, 88-89, 94 Swete, H. B., 40 Simaco (ebionita), 123 Versão de Simaco, 209


319

Sincretismo, 54, 59-60, 74, 126, 137, 187 Teologia Síria, 93

Tarp, W. W., 39 Tarpho, 102 Taciano, 109-112, 192 Telfer, W., 171 Templo, 32, 37, 39, 40 Terry, M. S., 92 Tertuliano, 62, 75, 81,98, 109, 110, 131, 133, 135, 139, 143, 145, 148, 152, 154, 155, 156, 171-185, 192 , 201, 215, 226, 227, 231, 234, 235, 238, 239, 269, 287, 326, 336, 337, 373, 374 Tetz, M., 276 Teodoro de Mopsuéstia, 339, 341-343, 354 Teodoreto, 47, 125, 259, 264, 267, 369, 370, 375, 376 Teodósio, 286, 288 Teodósio II, 356, 369 Teodocianos, 144 Teodócio, 42 Teodoto, 144 Versão de Teodoto, 209 Teognis de Nicéia, 260 Teognosto, 247 Teófilo, 116, 163, 114-115, 119, 157 Teofrasto, 48 Teotokos, 301-302, 322, 342 354, 363-364, 366, 379 Thierry, J. J., 240 Thornton, L. S., 170 Misticismo do Trono, 47 Timaeus, 51-52 Tisserant, E., 90 Tomo de Leão, 372-373, 375, 377, 378, 379 Torah, 31-33, 39, 124 Torrance, T. E., 96 Touilleux, P., 56 Traducionismo, 183


320

Trajano, 97, 172, 208 Trakellis, D. C., 106 Trindade, 65, 90, 95, 115, 120, 143-146, 161-162, 178-181, 202, 216-220, 229, 232-234, 236238, 249-252, 253, 256, 260, 261-290, 292, 299, 310, 312-316, 319-321, 323-325, 326-334; econômica, 181, 234, 350 Tropicista, 284 Epistola dos Doze Apóstolos, 92 Testamento dos Doze Patriarcas, 91 Documento dos Dois Caminhos, 68, 85 Tipos de teologia, 92-95, 226-227 Tipologia, 105-106, 118, 159, 213-214, 230, 253

Ursacius, 278-279, 281

Valens (bispo), 278-279, 281 Valens (imperador), 285 Valentiniano II, 286, 327 Valentiniano III, 356 Valentim, 110, 134-137, 154, 158-159, 173 Valeriano, 257 Van Bavel, T. J., 337, 373 Van den Eynde, D., 169 Van der Geest, J. E. L., 172 Van Esbroeck, M., 257 Van Unnik, W. C., 127 Van Winden, J. C., 103 Vândalos, 289 Vega, Angel Custodio, 328 Verbeke, G., 52 Verhoeven, Th. L., 178 Vermaseren, M. J., 56, 83 Verriele, A., 164 Vespasiano, 59 Vestigia trinitatis, 332-334 Victor, 80, 158


321

Vincent de Lérins, 25 Nascimento virginal, 249 Vischer, L., 150 Visigodos, 289 Vokes, F. E., 69 Völker, W., 46 Von Campenhausen, H., 172 Von der Goltz, E. F., 73, 75, 79 Von Loewenich, W., 79

Walker, G. S. M., 280 Walker, S. M., 244 Waszink, J. H., 104 Weiser, A., 31 Wesche, K. W., 350 Teologia Ocidental, origens, 93-94 Wevers, J. W., 42 Wiles, M. F., 218 Wilpert, G., 61 Wingren, G., 25, 162, 164, 167 Sabedoria, 39, 135 Wölfl, K., 181 Wolfson, H. A., 45, 46 Mulher, 150, 248 Verbo, 75-76, 161-162, 191, 200, 203, 204, 226, 294-296; ver também Logos Eternidade do Mundo, 226, 253; ver também Criação Würthwein, E., 41

Xenofontes, 55

Zandee, J., 128 Zedda, C., 328 Zeller, E., 53 Zenobia, 251 Zeferino, 229


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