O Castelo como Nostalgia: notas para uma intervenção

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O CASTELO COMO NOSTALGIA notas para uma intervenção * Samuel Pereira Pinto, arquitecto

- texto publicado no Jornal Praça Alta, Ano XXI, N.ª 235 - 13 de Maio de 2015.


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O CASTELO COMO NOSTALGIA - texto publicado no Jornal Praça Alta, Ano XXI, N.ª 235 - 13 de Maio de 2015.

‘notas para uma intervenção O antigo castelo de Almeida ficará para sempre ligado a um dos acontecimentos mais marcantes da história da vila: a explosão monumental da estrutura, então convertida em armazém de munições e pólvora, no quadro da Terceira Invasão Francesa (1810), que resultaria na morte de cerca de 500 pessoas, incluindo soldados do lado francês atingidos por pedras projetadas para fora da fortificação, e na destruição de parte do casario, tendo segundo os registos restado apenas 6 casas com telhado. Dois séculos não bastaram para apagar o acontecimento da memória coletiva, bem como do contexto urbano próximo, que nunca se refez em completo do desastre e que o natural desenvolvimento da vila parece não ter conseguido ou sabido integrar, permanecendo como a zona mais carente de sentido dentro da lógica que pauta o núcleo intramuros. Não obstante, naquilo que é um paradoxo, a preponderância do evento na construção da memória não parece ter bastado para imortalizar o seu protagonista, convertido em vilão, e evitar a obliteração da relevância arquitetónica do castelo, assim como da sua até então importância para o desenvolvimento do povoado, o que decerto resulta da perda de referências tangíveis.


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A criação da primitiva fortificação situa-se no contexto da Invasão Árabe e subsequente Reconquista Cristã dos territórios ocupados, justificada pela importância geoestratégica do local. Já o posterior investimento sob domínio português, de que seria sucessivamente alvo o espaço, explica-se simultaneamente pela necessidade de consolidação das fronteiras terrestes do Reino e a definição de uma linha defensiva avançada. Numa análise mais alargada, é esta estrutura defensiva e a sua preponderância militar que explicam por si o desenvolvimento do aglomerado urbano que cresceu à sombra da sua proteção e do investimento régio, correspondendo o espaço do castelo com muita probabilidade ao espaço fundador da vila, ao local de assentamento do primeiro núcleo de povoadores e ao centro do poder políticomilitar até à Idade Moderna. A importância da estrutura não se esgota no seu significado urbano e estendese à relevância arquitetónica do edifício desaparecido. A última intervenção de relevo que aconteceria durante o reinado de D. Manuel I, sob o mando do arquiteto biscainho Francisco Danzilho e supervisão do mestre Mateus Fernandes, pai do manuelino, tornariam o castelo num dos expoentes máximos da arquitetura militar desta época, apenas comparável com as fortificações que então se erguiam no espaço além-mar. Se a fortificação abaluartada é hoje uma referência pela sua monumentalidade o castelo manuelino, documentado pelo escudeiro real Duarte d’Armas em 1509-1510, logo após as reformas manuelinas, era à data da sua construção uma das “jóias da coroa”. De resto, de entre todas as fortificações compiladas no Livro das Fortalezas, as de Almeida e de Miranda do Douro são as únicas que apresentam o estandarte pessoal do Monarca, com a esfera armilar. Imaginar à distância o castelo no alto do cume, agora despido, tem tanto de difícil como de surpreendente para quem nunca o conheceu e só pode resultar numa alteração significativa da perceção atual que temos da vila.


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Os eventos de 1810 representaram não só um corte abrupto na história de Almeida como na sua significação e reconhecimento visual. Enquanto elemento primordial do aglomerado transversal à sua história e parte integrante da praça-forte era peça fundamental à completa e correta interpretação do núcleo urbano, que não pode na sua ausência ser devidamente compreendido. Até então a identidade visual da vila desenhava-se, em grande medida, a partir da relevância do artefacto na paisagem: uma elevação artificial dominada pela imponente estrutura do castelo que se erguia vertical sobre o planalto, hoje ironicamente substituído pelo depósito de água e a Torre do Relógio. Uma imagem que correspondendo a uma evolução da vista registada por Duarte D’Armas não se altera nos seus aspetos mais essenciais, dados pela paisagem e os símbolos que a pontuam, que terá permanecido como a visão mais tangível da vila até à chegada das tropas francesas. Finda a utilidade militar da praça-forte, o desaparecimento desta referência na paisagem pode afigurar-se displicente. Não o é de todo, principalmente se tivermos presente que a afirmação dos municípios se joga hoje em grande parte no plano mediático e que os meios de comunicação reclamam símbolos fortes. O próprio sentido da arquitetura pública tem sido com as devidas reticências o da crescente “iconização”, o que corresponde a uma aproximação dos requisitos dos media. É neste sentido que deve ser também entendida a atual associação inequívoca de Almeida à figura de uma estrela e o crescente protagonismo da fortificação abaluartada. A “Estrela do Interior” é um produto relativamente recente dentro dos já vários séculos de história da vila que em parte acaba por responder ao desaparecimento da sua referência mais constante e duradoura. Um produto só possível devido à evolução da cartografia militar e mais recentemente da fotografia aérea aliada à generalização do acesso à informação. Não obstante, permanece como uma abstração para o visitante comum pela própria escala da intervenção que não permite uma perceção global do local. Seja num contexto de afirmação mediática da vila, seja por uma questão de justiça histórica ou mais-valia urbana, social ou económica, existe uma consciência saudável, pelo menos por parte do poder político, da importância da intervenção nas ruínas do antigo castelo. Os trabalhos arqueológicos que decorrem no espaço do antigo castelo desde 2007 enquadrados no projeto “O Castelo de Almeida: origem medieval, reformas manuelinas e reutilização moderna. Investigação e valorização arqueológica”, em resultado de uma colaboração entre a Câmara Municipal e o Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da


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Universidade dos Açores, constituem um primeiro passo importante no sentido da sua requalificação urbanística e valorização patrimonial. E, é aqui que devemos fazer um parêntesis, para não darmos um passo em falso. A intervenção nos espaços e edifícios históricos conheceu ao longo do século passado diferentes paradigmas. A política de intervenção da DGEMN durante os anos do Regime, seria orientada e condicionada pela tentativa de legitimação dos feitos heróicos associados aos períodos áureos da nacionalidade, de acordo com os ideais do Estado Novo, privilegiando por norma o restauro/reconstrução não raras vezes assente numa ficção histórica planeada, com resultados muito discutíveis. No extremo contrário, a ênfase aparentemente benigna colocado na conservação arqueológica, apoiado no rigor científico e um fascínio quase romântico pela “ruína”, legitimaram o desenvolvimento da museificação como uma espécie de intervenção arquitetónica tipo, também ela produtora de resultados perversos e perigosos. Em grande parte dos casos a arquitetura da museificação não produziu senão “nados-mortos” que revelam a incapacidade de integrar e utilizar a história como um suporte para o desenvolvimento. Aprendendo com estas experiências passadas, no discurso em torno da intervenção no património histórico palavras como “reabilitação” e “conservação” têm vindo a ser progressivamente substituídas pela “regeneração”, que pressupõe a revitalização económica e a sustentabilidade dos espaços reabilitados. Também neste caso, a preponderância arqueológica dos achados, não funciona só por si como matéria e legitimação da intervenção arquitetónica decorrente. A Arqueologia trata do passado e todo o Projeto arquitetónico, mesmo o que intervém sobre o património histórico, se situa no presente e tem por definição em vista o futuro. Trata-se apenas de parte da equação… A restante, a difícil, a que reclama talento e discernimento situa-se no domínio da visão estratégica e da identificação de oportunidades. E, num contexto de interioridade onde os meios escasseiam e as necessidades abundam, as intervenções exigem-se particularmente esclarecidas e oportunas. Por ventura, irremediavelmente versáteis, não fechando soluções e ponderando o maior número de saídas para que os projetos não se esgotem num mero ato de cosmética, com custos elevados, e um prazo de validade pré-estabelecido. É da parte propositiva da intervenção que depende a viabilidade da obra resultante e a sua própria esperança de vida.


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Depois de alguns anos de experiência, fica claro que museificação não deve ser necessariamente sinónimo de achado arqueológico ou de história e muito menos deve ser confundida com preservação. De resto, engana-se quem pensa que a melhor forma de preservar um edifício é “embrulha-lo” em vidro! É sim reinterpreta-lo à luz da atualidade, procurar um sentido que o mantenha vivo, o que pressupõe encontrar um programa que o torne útil, economicamente viável ou possua um impacto social positivo sobre as populações que serve. A museificação deve ser entendida como um último recurso, que pressupõe a completa impossibilidade de encontrar um sentido utilitário atual naquilo que resta. Antes de acionarmos o mecanismo da morte assistida com vista à dissecação nas melhores condições do cadáver, para bem da ciência e do turista, devemos ponderar se o indivíduo não têm efetivamente oportunidade de recuperar ainda que parcialmente e com outra personalidade ou se não poderá servir como dador de órgãos. Esta afirmação não extrema a discussão entre a opção de preservar os achados motivada pelo rigor histórico e a (re)construção no local com vista à sua utilização, até porque só se pode compreender devidamente o evento de 1810, e por conseguinte a ruína, se existir consciência do que falta, assim como a (re)construção e utilização do espaço só faz sentido dentro do respeito pelo existente. Não correspondem, portanto, a posições antagónicas, existindo uma larga faixa cinzenta onde se deve balizar a discussão. Veja-se por exemplo a intervenção singular do arquiteto João Luís Carrilho da Graça no Castelo de São Jorge distinguida com o Prémio Piranesi em 2010. Também aqui, como em qualquer intervenção que se prevê singular, não existem modelos pré-fabricados, nem interessa por ventura importálos! Interessa sim aprofundar a análise e maturar ideias, encontrar novos significados e soluções singulares para a ruína dentro da igualmente singular história do monumento, a relevância dos achados arqueológicos, as necessidades/oportunidades locais e o poder de transformação que a intervenção pode ter sobre a envolvente urbana, a identidade da vila e o seu desenvolvimento. Um exercício que não se afigura fácil… E, não o é! E, ainda bem! Intervenções de relevo resultam de um acumulado de problemas que constituem também pistas para uma solução ajustada e exemplar. É precisamente neste sentido que participação cívica se revela uma mais-valia. Mais, no que diz respeito ao espaço público a auscultação dos cidadãos assumese como um exercício democrático: o património que é de todos não deve


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estar, por princípio, delegado à vontade individual e sujeito ao determinismo. Enquanto bem-comum reclama a legitimação com base na participação cívica, no diálogo alargado, na partilha de ideias e visões informadas. Numa tentativa de aproximação da decisão política dos cidadãos, alguns municípios têm promovido a submissão e votação de ideias no quadro de Orçamentos Participativos. Um caso próximo no tempo e espaço é o do Município do Fundão que na primeira edição conta com umas apreciáveis 80 propostas a votação. Se as necessidades e oportunidades podem ser identificadas através da auscultação dos munícipes, o trabalho de as transformar em algo viável e coerente deve ser delegado em mãos competentes. Também a este respeito os Concursos Públicos na área da Arquitetura têm sido utilizados como mecanismos que permitem aos Municípios alargar horizontes e colher ideias/propostas concretas sobre as quais se podem tomar decisões mais informadas e conscientes. Pelos desafios que representam a regeneração urbana, o património e o espaço público têm sido os alvos preferenciais destas iniciativas. No âmbito do programa “Fazer Acontecer a Regeneração Urbana”, apoiado pela Confederação Empresarial de Portugal, 5 cidades portuguesas (Viseu, Braga, Beja, Vila Real e Leiria) lançaram em simultâneo Concursos Públicos para a regeneração urbana dos seus centros históricos, edifícios ou espaços emblemáticos, com prémios acumulados (1º, 2º e 3º lugares somados) que variam entre os 5.000 e os 20.000 euros. Investimentos pequenos se comparados com os custos de uma intervenção mal calculada ou aquém das oportunidades. A corrida por reinterpretar o património e capitalizar a tragédia é para já um desafio que estamos a perder para um rival de longa data: o Real Fuerte de La Concepción, também ele destruído no contexto das Guerras Peninsulares e recentemente transformado dentro do pragmatismo espanhol num hotel de luxo. Resta a esperança fundamentada na certeza que pela sua singularidade, interesse histórico, potencial e visibilidade mediática, o antigo castelo, ou o que resta dele, reúne as condições ideais para captar no quadro de um Concurso Público a atenção de parte da elite da arquitetura nacional e outros gabinetes estrangeiros e assumir-se como uma intervenção paradigmática capaz de fazer as pazes com o passado abrindo portas ao futuro. * Samuel Pereira Pinto, arquitecto.


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